MASSA FALIDA
DÍVIDA DE IMI
RELAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
Sumário

I – No âmbito de processo de falência ou insolvência – e na competência do Tribunal onde o mesmo se encontra pendente – não cabe a apreciação e resolução da questão, suscitada pelo liquidatário judicial, de saber se a massa falida é (ou não) responsável pelo pagamento do IMI que foi liquidado e que lhe foi imputado pela Administração Tributária.
II – Tal questão – alheia à verificação dos créditos reclamados no processo – insere-se no âmbito da relação jurídico-tributária estabelecida entre a massa falida e a Administração Tributária e prende-se com a legalidade do ato/facto tributário que liquidou o imposto e apurou o respetivo sujeito passivo, respeitando, por isso, à esfera de competência dos tribunais administrativos e fiscais (delimitada no art.º 4.º do ETAF).

Texto Integral


Apelação nº 2119/03.7TBACB-I.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Leiria - Alcobaça - Juízo Comércio - Juiz 1

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Maria João Areias

                               Paulo Correia

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito do processo de falência referente a E..., Ld.ª, o Sr. Liquidatário Judicial veio apresentar requerimento, peticionando que o Ministério Público, na qualidade de representante da Fazenda Nacional, viesse aos autos informar das dívidas de IMI (prédios e períodos a que respeita o imposto) cujo pagamento seja da responsabilidade da massa falida.

Na sequência desse facto, o Ministério Público, em representação da AT, veio juntar a informação por esta prestada da qual resultava, designadamente, que era devido IMI entre os anos de 2004 a 2020 relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz predial n.º 1620 da freguesia ....

O Sr. Liquidatário veio então apresentar novo requerimento onde sustenta, em resumo, que o prédio inscrito na matriz sob o art.º ...20 apenas foi apreendido em Outubro de 2017 e vendido em Fevereiro de 2021 nas condições que resultaram da transação efectuada no processo que correu termos no apenso D com a divisão do produto da venda entre a Ré U..., Ld.ª (que era proprietária do imóvel até àquela data) e a Autora (a Massa Falida) e que, como tal, a Massa Falida não é responsável pelo pagamento do IMI até 2017.

Concluiu pedindo que o Serviço de Finanças fosse notificado para emitir, unicamente, as guias para pagamento do IMI devido pelo prédio inscrito na matriz sob o art.º ...68.º referente aos anos de 2004 a 2011 e pelo prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º ...20.º referente aos anos de 2017 a 2020.

Em resposta a tal requerimento, o Ministério Público veio dizer que não lhe incumbia emitir, no âmbito deste de processo de insolvência, qualquer opinião sobre a matéria colocada, uma vez que, de acordo com as regras do CPPT (Código de Procedimento e de Processo Tributário), era junto do Tribunal Administrativo e Fiscal que poderiam ser suscitadas eventuais Reclamações, Recursos hierárquicos ou impulsos com referência àquela matéria.

Na sequência desse facto, foi proferido despacho com o seguinte teor:

“Com efeito, não compete aos Tribunais Judiciais decidir quem é o sujeito passivo de determinada obrigação fiscal.

Caberá ao Sr. Liquidatário Judicial ponderar a pertinência de um recurso aos meios graciosos ou judiciais de impugnação da decisão da Autoridade Tributária e Aduaneira previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Inconformada com tal decisão, a Massa Falida de E..., Ld.ª veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

I. Na sequência de acção instaurada pela massa falida, aqui recorrente, contra a U..., Ld.ª., no ano de 2017, foi celebrada transação, por via da qual a última aceitou o pedido de nulidade da transmissão do prédio inscrito na matriz sob o artigo urbano ...20, da freguesia ..., concelho ....

II. Na decorrência da transacção a massa falida, aqui recorrente, no ano de 2017 apreendeu o antedito imóvel, que veio a ser vendido em 2021, prédio esse que até àquela data de 2017 era propriedade da U..., Ld.ª

III. Notificada para informar as dívidas cujo pagamento seria da responsabilidade da massa falida, por referência ao prédio inscrito na matriz sob o artigo urbano ...20, da freguesia ..., concelho ..., veio a ATA peticionar o pagamento dos montantes relativos ao IMI entre 2004 e 2020.

IV. Inconformado com a posição da ATA, o Sr. Liquidatário Judicial atravessou um requerimento peticionando a notificação da ATA para lhe remeter unicamente as guias para pagamento do IMI, no que para aqui interessa, dos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, relativamente ao prédio inscrito na matriz sob o artigo urbano ...20, da freguesia ..., concelho ..., discriminando os períodos a que respeitava o imposto e respectivo valor.

V. Os montantes do imposto a pagar, nomeadamente os que resultam do IMI dos anos de 2004 a 2020 ou apenas do IMI dos anos de 2017 a 2020, é uma questão que se prende com dívidas da massa falida.

VI. Nessa medida, a resposta a tais questões compete unicamente ao Juízo de Comércio onde correm os autos de falência e nunca ao foro fiscal.

VII. Por outro lado, a massa falida apenas poderá ser responsável pelo pagamento do IMI do supra identificado prédio com referência ao ano de 2017 em diante, altura em que o aprendeu.

VIII. Ao agir da forma como agiu, declarando-se incompetente, o Tribunal a quo violou o disposto no comando legal contidos no art.º 13º, n.º 1, do CPEREF, por falta de aplicação.

Com o que, deve ser revogada a decisão do Tribunal a quo, que decidiu no sentido de não lhe competir decidir quem é o sujeito passivo de determinada obrigação tributária, abstendo-se de decidir se o pagamento do valor reclamada pela ATA em sede de IMI relativo ao prédio inscrito na matriz urbana sob o art.º ...20.º da freguesia ..., concelho ..., é da responsabilidade da massa, substituindo-a por outra que determine a competência material deste tribunal e ordene ao Serviço de Finanças ... que emita e remeta ao Liquidatário Judicial, as guias para pagamento do IMI relativo àquele prédio unicamente dos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, por serem esses os únicos anos cujo pagamento de tal imposto é da responsabilidade da massa falida.

O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se cabe (ou não) no âmbito do processo de insolvência – e na competência do Tribunal onde o mesmo se encontra pendente – a apreciação e resolução da questão que foi suscitada pelo Sr. Liquidatário, ou seja, a questão de saber se a Massa Falida é (ou não) responsável pelo pagamento do IMI que foi liquidado e que lhe foi imputado pela ATA. 


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III.

Apreciemos então a questão suscitada no recurso.

De acordo com os elementos que constam dos autos, existe um litígio entre a Massa Falida (por intermédio do respectivo liquidatário judicial) e a ATA no que toca à responsabilidade daquela pelo pagamento do IMI referente ao prédio urbano inscrito na matriz predial n.º 1620 da freguesia ..., sendo certo que a ATA entende ser devido pela Massa Falida o imposto com referência aos anos de 2004 a 2020 (tendo procedido à respectiva liquidação), entendendo a Massa Falida que não é responsável pelo pagamento do imposto até 2017 (já que, na sua perspectiva, o imóvel não era, durante esse período, sua propriedade).

O Sr. Liquidatário veio então pedir, ao juiz do processo de falência, a resolução desse conflito, pedindo que fosse determinada a notificação do Serviço de Finanças para emitir, unicamente, as guias para pagamento do IMI devido pelo prédio inscrito na matriz sob o art.º ...68.º referente aos anos de 2004 a 2011 e pelo prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º ...20.º referente aos anos de 2017 a 2020 (com exclusão, portanto, do IMI referente a este último prédio dos anos anteriores a 2017 que a ATA havia liquidado e que lhe estava a exigir).

E a questão que se coloca no presente recurso consiste em saber se o juiz do processo de falência tem (ou não) competência para apreciar e decidir essa questão, sendo certo que a decisão recorrida negou essa competência argumentando que não compete aos Tribunais Judiciais decidir quem é o sujeito passivo de determinada obrigação fiscal e que a pretensão da Massa Falida teria que ser exercida por via de recurso aos meios graciosos ou judiciais de impugnação da decisão da Autoridade Tributária e Aduaneira previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Fazendo incidir o teor das suas alegações sobre o mérito da sua pretensão (avançando argumentos no sentido de que a Massa Falida não é responsável pelo pagamento do imposto em causa), a Apelante pouco ou nada diz sobre a questão que constitui o verdadeiro objecto do recurso e que se prende com a competência (ou incompetência) do juiz deste processo para apreciar e decidir a questão (sendo certo que foi esse o único fundamento da decisão recorrida). Na verdade, com relevância para essa questão, a Apelante diz apenas que o apuramento do valor a pagar é uma questão que se prende com as dívidas da massa insolvente que, como tal, tem que ser apreciada pelo Juízo onde correm os autos de falência e que, ao decidir como decidiu (declarando-se incompetente), o Tribunal violou, por falta de aplicação, o disposto no art.º 13º, n.º 1, do CPEREF.

Pensamos não assistir razão à Apelante.

Refira-se, em primeiro lugar, que o art.º 13.º do CPEREF – citado pela Apelante – não resolve a questão, limitando-se a determinar que a competência dos tribunais portugueses para os processos de recuperação de empresa e de falência é determinada pelo disposto no Código de Processo Civil e na Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.

Vejamos então as disposições que poderão ser convocadas para a resolução da questão que é colocada à nossa apreciação.

Relativamente aos tribunais judiciais, resulta do disposto no artigo 211º da CRP e no artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26/08) que eles têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

No que toca aos tribunais administrativos e fiscais, dispõe o art.º 212º, nº 3, da Constituição, que lhes compete “…o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (sublinhados nossos).

Em conformidade com essa norma constitucional, dispõe o art.º 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei 13/2002 de 19/02) que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. E, concretizando o âmbito da jurisdição que está genericamente definido no artigo 1º, o artigo 4º do aludido Estatuto enuncia, nos seus nºs 1 e 2, os litígios compreendidos no âmbito da jurisdição administrativa, onde se incluem, entre outros, os litígios que tenham por objeto questões relativas à tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais e relativas à fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal.

No caso em análise, está em causa o acto da administração tributária que liquida o IMI e apura o respectivo sujeito passivo nos termos do art.º 113.º do Código do IMI – estando em causa, portanto, uma relação jurídico-tributária, nos termos em que esta se encontra definida no art.º 1.º da Lei Geral Tributária, estabelecida entre a administração tributária, agindo como tal, e a Massa Falida – em relação ao qual o sujeito passivo tem ao seu dispor, nos termos do art.º 129.º do referido diploma, os meios de garantia previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário, ou seja, o direito de impugnação ou recurso (cfr. art.º 95.º da Lei Geral Tributária) por via dos meios processuais tributários previstos no CPPT (reclamação graciosa, recurso hierárquico, impugnação judicial) e que são da competência dos órgãos próprios da administração tributária ou, em caso de impugnação judicial, dos tribunais administrativos e fiscais nos termos acima referidos.

A questão que o Sr. Liquidatário veio colocar e cuja resolução veio pedir no âmbito deste processo de falência insere-se no âmbito dessa relação jurídico-tributária que se estabeleceu entre a Massa Falida e a Administração Tributária e prende-se com a legalidade (ou ilegalidade) do acto/facto tributário que liquidou o imposto e apurou o respectivo sujeito passivo.

Ora, estando em causa – como se viu – uma questão emergente de uma relação jurídico-tributária que se estabeleceu entre a ATA e a Massa Falida, é certo que tal questão se insere no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais (delimitado no art.º 4.º do ETAF) e, nessa medida, está excluída – pelo menos em regra – do âmbito de competência dos tribunais judiciais. Tratar-se-á, portanto, de questão que deve ser suscitada e resolvida, nos termos acima referidos, por via dos meios processuais tributários previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário e que, conforme referido, são da competência dos órgãos próprios da administração tributária ou dos tribunais administrativos e fiscais.

É certo que essa competência – por regra atribuída e reservada aos tribunais administrativos fiscais – é extensível ao juiz do processo de insolvência no âmbito e para o efeito de proceder à verificação dos créditos aí reclamados. Com efeito, o carácter universal da verificação do passivo no âmbito do processo de insolvência – que implica a necessidade de reclamação dos créditos no âmbito do processo de insolvência, para o efeito de nele poderem obter pagamento, independentemente do seu fundamento e da sua natureza, conforme previsto nos artigos 90.ºe 128.º do CIRE e como também se encontrava previsto no art.º 188.º do CPEREF (aqui aplicável) – determina a extensão da competência material do tribunal de insolvência que, para o efeito de proceder à verificação dos créditos que sejam impugnados, não poderá deixar de ter competência para apreciar matérias que, normalmente e por regra, estariam reservadas para outros tribunais e, designadamente, para apreciar questões de natureza tributária normalmente reservadas aos tribunais administrativos, quando esteja em causa um crédito tributário que haja sido impugnado.

Não é essa, no entanto, a situação dos autos.

Não nos encontramos, de facto, no âmbito da fase de verificação do passivo e o que está em causa não é a verificação de um crédito tributário que haja sido reclamado no processo de insolvência; o que está em causa é uma dívida tributária referente a IMI que se constituiu na pendência do processo, ou seja, uma dívida que, nos termos da legislação actualmente vigente (o CIRE) seria qualificada como dívida da massa insolvente (art.º 51.º do CIRE) e que, no âmbito do CPEREF, era tratada em termos semelhantes (embora sem alusão à terminologia e classificação agora utilizada), correspondendo a uma dívida da responsabilidade da massa falida enquadrável no âmbito do respectivo art.º 208.º.

Sucede que, em relação a essas dívidas, não existe – não existe agora, nem existia no âmbito do CPEREF – qualquer norma legal onde se possa apoiar qualquer extensão da competência material do tribunal da insolvência relativamente a questões ou litígios emergentes de relações jurídicas tributárias.

Refira-se que, no actual quadro legislativo (o CIRE), a extensão da competência do tribunal de insolvência relacionadas com as dívidas da massa insolvente está prevista no art.º 89.º, n.º 2 – onde se determina que as acções relativas a essas dívidas correm por apenso ao processo de insolvência (com a inerente competência do tribunal onde corre este processo) – mas com expressa exclusão das execuções por dívidas de natureza tributária, o que não deixa de evidenciar que não existiu qualquer intenção de incluir no âmbito de competência do tribunal onde corre o processo de insolvência a apreciação de questões relacionadas com dívidas da massa insolvente de natureza tributária (que, nos termos das disposições legais acima mencionadas, estão reservadas aos órgãos próprios da administração tributária ou aos tribunais administrativos e fiscais).

Concluimos, portanto, que, fora do âmbito da fase de verificação do passivo e daquilo que seja necessário para efeitos de verificação dos créditos aí em causa, não cabe no âmbito do processo de insolvência/falência – e não cabe do âmbito da competência do tribunal onde ele se encontra pendente – a resolução de questões ou litígios emergentes de relações jurídico-tributárias que hajam surgido entre a Massa Insolvente ou Falida e a Administração Tributária, designadamente, as questões ou litígios que – como acontece na situação dos autos – estão relacionados com a legalidade (ou ilegalidade) do acto/facto tributário que liquidou o imposto e atribuiu à Massa Falida a responsabilidade pelo respectivo pagamento. Tais questões e a resolução desses litígios devem ser suscitadas por via dos meios processuais tributários que se encontram previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário e que são da competência dos órgãos próprios da administração tributária ou dos tribunais administrativos e fiscais.

Improcede, portanto, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                      (Paulo Correia)