RECURSO DE REVISÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
FACTOS PROVADOS
FACTOS CONCLUSIVOS
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário


I. É arguida a nulidade de acórdão proferido em recurso extraordinário de revisão, por este tribunal não se ter pronunciado sobre se um facto dado como provado no acórdão condenatório constitui um mero juízo conclusivo e assenta em factos igualmente dados como provados.
II. Considerando a natureza e objeto do recurso de revisão, definidos na Constituição e na lei processual penal, não só o tribunal não omitiu pronúncia, por não se tratar de matéria que devesse apreciar, como lhe estava vedado o conhecimento da questão identificada.

Texto Integral

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório

1. AA, arguido nos autos, interpôs recurso extraordinário de revisão de sentença, tendo sido, em 08.06.2022, proferido acórdão que negou a revisão, por manifesta falta de fundamento legal.

2. Notificado deste Acórdão, vem o arguido, mediante o requerimento que ora se aprecia, arguir a nulidade do acórdão, nos termos do disposto no art.º 379.º, 1, c), ex vi art.º 425.º, 4, ambos do C.P.P, por omissão de pronúncia: (transcrição)

1

Este Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão sob reclamação, não tomou clara e expressa posição sobre o que foi alegado, em pertinente fundamentação, e, naturalmente, “concluído” em várias das conclusões, sobretudo na 8.ª conclusão, especificamente na última parte, onde foi escrito:

“... o que só não conseguiram por facto que lhes foi alheio e que não dominaram”.

Isto está escrito no artigo 104 da fundamentação de facto do acórdão recorrido...

Estas  orações gramaticais  são  proposições  lógicas  que  mais  não representam que dois juizos conclusivos, que são a declaração de existência, na situação:

1.º – de um facto alheio à vontade dos arguidos que impediu a morte dos policiais.

2.º – os arguidos não dominaram a acção desse facto que impediu aquelas mortes, e que tentaram dominar esse facto.

Aqueles juízos conclusivos implicam a existência de elementos de facto que permitam tais conclusões...

E foi isto que o Recorrente se esforçou por evidenciar, na fundamentação e nas conclusões 2.ª a 10.ª, maxime na 8.ª e 9.ª.

Parecendo-lhe, a todas as luzes, que o artigo 104.º  da  referida fundamentação tem o sentido de conclusões sem pertinentes factos que as justifiquem, a este ALTO TRIBUNAL competia:

1.º – Dizer se sim ou não existiam os factos fundantes de tais conclusões, e onde estão descritos.

2.º – Se demonstrasse a existência desses factos, ficaria demonstrado o erro de análise do Recorrente.

3.º – Se concluísse pela existência desses factos, certamente teria de reconhecer que o Recorrente foi condenado por 2 crimes cuja prova de os ter cometido não existe.

Feito e concluído este percurso, no caso de serem evidenciados os factos que o Recorrente não conseguiu verificar, as coisas ficavam logo por aí, sem necessidade das demais demonstrações feitas; se não fosse feita tal demonstração fáctica, então, sendo uma certeza que o Recorrente foi condenado pela prática de 2 crimes que não cometeu, então, sim, este ALTO TRIBUNAL devia dizer se:

1.º – O Recorrente foi ou não condenado injustamente, subsumindo-se o caso às proposições que dizem: ”os cidadãos injustamente condenados têm direito (…) à revisão e à indemnização pelos danos sofridos” (art.º 29.º, 6 da const.); ou,

2.º – Apesar disso o disposto no art.º 449.º, 1, d) do C.P.P., amparado no inciso, do n.º 6 do art.º 29.º referido, que diz “nas condições que a lei prescrever”, afasta o direito à revisão da sentença.

E, finalmente, chegados a este ponto, estaríamos na discussão da constitucionalidade “versus” inconstitucionalidade da interpretação literal do disposto no art.º 449.º, 1, d) do C.P.P.

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No termo do raciocínio ora concluído, teremos as evidências de que:

- A omissão de pronúncia sobre a última parte da conclusão 8.ª. E, daí, a nulidade aludida no cabeçalho, por violação dos art.ºs 379.º, 1, c) e 425.º, 4 do C.P.P.

- À luz do disposto no art.º 29.º, 6 da Constituição, e do modo como foi questionada a constitucionalidade do art.º 449.º, 1, d) não podia ser julgado “o pedido de revisão manifestamente ilícito fundado”, pois as questões colocadas são sérias e pertinentes.

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Apesar de bastante, permita-se ao Recorrente acrescentar mais algumas notas.

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Os nossos tribunais superiores repetem-se, “ad nauseam”, que “o objecto do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas da motivação apresentada pelo recorrente”. É assim como que um teorema, mas a quem falta a demonstração. Entretanto cumprem o “conatus” processual revelado pelo axioma: “o processo é o maior cemitério dos direitos”. Assemelhando-se ao conceito por extensão, enquanto a motivação valerá como conceito por compreensão, fácil se torna ver o risco que o não demonstrado “teorema” acarreta para quem outra coisa não logra que escarnecer os princípios contidos nos artigos 20.º, 1 e 4 e 202.º, 2 da Constituição. Mas se tal teorema propicia a obnubilação de muito do que possa ter sido motivado, e que a “extensiva” conclusão autorize dizer-se, sem contraditório, que o contido no “copreensivo” ao “extensivo” escapou, já o mesmo nunca poderá ser esquecido o que à “extensão” escapou.

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O recorrente disse nas seguintes conclusões de recurso:

(repete as conclusões 2.ª a 10.ª)

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De harmonia com o descrito no ponto 53 dos factos julgados provados no artigo 53 do acórdão recorrido, e quanto a zonas vitais, os feridos sofreram lesões cutâneas (de superfície):

- no tórax;

- na cara;

- abdómen;

- na zona mamária.

Nas palavras do ponto 104 do acórdão recorrido, os disparos foram feitos “com intuito de matarem os dois agentes policiais (…)”.

- “O que só não conseguiram por facto que lhes foi alheio e que não dominaram”.

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Ora, o que esta proposição diz é que, não fora um “facto que lhes foi alheio e que não dominaram” os arguidos teriam matado os policiais, e, assim, graças a esse “facto que lhes foi alheio e que não dominaram é que as coisas se ficaram pelos pequenos orifícios e superfície (como se notou atrás).

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Naturalmente, este juízo implícito, mais que absurdo até seria ingénuo, não fossem as consequências, mais coisa menos coisa, de mais 7 anos de prisão.

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Independentemente deste juizo, o acórdão recorrido, em parte alguma, disse ou determinou que “facto” foi esse “que lhes foi alheio e que não dominaram”.

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Facto esse  que transformou  os  disparos  letais  em “picadelas” de superfície! - Pese o devido respeito pelos Senhores Agentes que sofreram as lesões.

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Ora, antes de passar à discussão jurídica possibilidade/impossibilidade do recurso, este Supremo Tribunal de Justiça tinha o dever de demonstrar onde, no acórdão recorrido, estava a descrição, do “facto que lhes foi alheio e que não dominaram”...

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Que facto alheio à vontade dos arguidos ?!

14

Que facto alheio... que não dominaram?!

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E, após a verificação da existência desse erro grosseiro, então, sim, este Supremo Tribunal de Justiça diria:

- primeiro, se o facto era ou não subsumível ao disposto n.º 6 do art.º 29.º da Constituição;

- segundo, se a interpretação literal da al. d), n.º 1 do art.º 449.º é compatível com esse n.º 6 do art.º 29.º.

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Sim, a verificação da existência “versus” inexistência de um facto de que resultou a condenação de 2 crimes de homicídio qualificado na forma tentada é impetração a que o Tribunal tinha – e tem – o dever – indeclinável – de responder...

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E se concluir, como à Defesa parece ter de concluir, que tal famigerado facto não existe em parte alguma, então este Alto Tribunal dirá o que, no seu entender, vale mais para o Direito:

- A liberdade de uma pessoa

ou aquilo que se diz ser

- A Segurança e certeza do direito . - Em que estas, em processo penal, serão negra “segurança”, e negra “certeza”.

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O Tribunal não se pronunciou pois sobre a inexistência nos fundamentos do acórdão recorrido, que foi alegada e reproduzida na conclusão 8.ª, ou seja, “que não conseguiram (matar os dois polícias) por facto que lhes foi alheio e que não dominaram”, pois, como também se alegou, “nenhum facto houve que impedisse que os agentes fossem atingidos nas zonas vitais”.

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Isto, que para além da conclusão 8.ª, torna-se ainda mais claro no contexto das conclusões 2.ª e 10.ª, não é uma questão, ao contrário do afirmado no Acórdão sob reclamação, que “visa corrigir a qualificação jurídica dos factos”; é sim demonstração de uma condenação violenta, pois o trecho posto em causa é uma conclusão, não uma especificada descrição de factos provados, como não colhe a afirmação de que se pretende “representar a defesa que formulara em julgamento e nos sucessivos recursos interpostos, visto que, em julgamento não se discutem conclusões mas factos, e, nem da sentença nem dos acórdãos, se colhe a discussão dessa conclusão. - Dos factos que não há notícia, não se pode sequer falar de defesa e recursos.

Termos em que deve proceder a nulidade arguida, reformulando-se a decisão.”


3. O arguido foi condenado por acórdão de 02.11.2010, proferido no ... Juízo Criminal de Viana do Castelo, com intervenção do tribunal de júri.

Interposto recurso, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação ..., em 11.07.2011.

Deste acórdão, foram interpostos recursos, tendo sido proferidos, pelo Supremo Tribunal de Justiça, os acórdãos de 26.04.2012 e 10.09.2012.

O Acórdão recorrido transitou em julgado, relativamente ao arguido AA, em 10-09-2013.


Colhidos os vistos, realizou-se a conferência a que alude o artigo 455.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Cumpre decidir.


II. Fundamentação

1. Na reclamação agora apresentada, o recorrente entende que o acórdão, de 08.06.2022, é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, aplicável ex vi art. 425º n.º 4 do mesmo diploma.

Dispõe o art. 425º n.º 4 do CPP, além do mais, que aos acórdãos proferidos em recurso se aplica o regime das nulidades da sentença consagrado no art. 379.º do mesmo diploma legal.

O n.º 1 do artigo 379.º, do CPP enumera, de forma taxativa, os casos de nulidade de sentença, prevendo, na alínea c), a violação pelo tribunal dos seus poderes/deveres de cognição:

1 - É nula a sentença (…):  

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…).

Configura, assim a denominada omissão de pronuncia.

É jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que omissão de pronúncia – e, consequentemente a correspondente nulidade -, somente se verifica quando o tribunal deixa de pronunciar-se sobre questões de facto ou de direito que lhe foram submetidas pelos sujeitos processuais ou que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas, expendidos pela acusação e pela defesa ou, na fase seguinte, pelos recorrentes em amparo das teses em presença[1].


2. O acórdão cuja nulidade se vem arguir foi proferido em recurso extraordinário de revisão de sentença.

Afirmou-se, então, em síntese:

“Dispõem a alínea d) do n.º 1 e o n.º 3 do artigo 449.º do Código de Processo Penal:

1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

A jurisprudência deste tribunal tem sublinhado, de forma consolidada, que, para efeitos da al. d) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, são factos novos ou novos meios de prova os que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação e que, sendo desconhecidos da jurisdição no ato de julgamento, permitam suscitar graves dúvidas acerca da culpabilidade do condenado.

À novidade, assim considerada, dos factos ou meios de prova, acresce a necessidade de que eles, por si ou em conjugação com os já apreciados no processo, sejam de molde a criar dúvidas fundadas sobre a justiça da condenação. A dúvida relevante para a revisão tem de ser qualificada pela sua gravidade. (acórdãos de 09.02.22, proc. 163/14.8PAALM-A.S1 de 30.1.2013, proc. 2/00.7TBSJM-A.S1 e de 29.4.2009, proc. 15189/02.6.DLSB.S1, 3.ª Secção).

É indiscutível que o Recorrente não apresenta factos novos nem novos meios de prova. Tal é, aliás, expressamente afirmado pelo próprio, na seguinte passagem da motivação “Como não há factos novos nem meios de prova novos, a condenação manifestamente injusta do Recorrente, condenado por 2 crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, que não cometeu, não poderá ser revista.”

Limita-se, no que a factos e meios de prova se refere, a reapresentar a defesa que formulara em julgamento e nos sucessivos recursos interpostos.

A final, requer a realização de uma diligência de prova que se destina à reapreciação de factos já julgados, com fundamento em prova pessoal, material e pericial.

Não se dá, pois, por verificada a invocada base legal para o recurso de revisão.

(,,,)

O que o arguido, verdadeiramente, questiona é a conformidade da norma do artigo 449.º do CPP com a norma do n.º 6 do artigo 29.º da CRP, ao arrepio da jurisprudência constante deste Tribunal, do Tribunal Constitucional e da Doutrina.

Alega, em suma, que uma disposição constitucional que consagra um direito fundamental “não pode sofrer qualquer limitação ou parcelação” e que não se vislumbra outro direito fundamental com o qual o direito à revisão de sentença possa estar em colisão.

(…)

Na Constituição e na lei processual penal, em concordância plena, o recurso de revisão é remédio excecional contra decisões gravemente injustas, “permitindo a sua revisão naqueles casos em que a subsistência da decisão (injusta) seria insuportável para a comunidade”. (acórdão STJ, de 10.09.2008, proc. nº 08P1617)

Como este Tribunal tem reafirmado, “o recurso extraordinário de revisão não tem por objeto a reapreciação da decisão judicial transitada. Não é uma fase normal de impugnação da sentença penal. É um procedimento autónomo especialmente dirigido a obter um novo julgamento e, por essa via, rescindir uma sentença condenatória firme (Acórdão de 15.09.21, no proc. 699/20.1GAVNF-A.S1, 3.ª secção).

Em conclusão, e em concordância com o recorrente, juiz do processo e o Ministério Público nas instâncias, não se identifica qualquer elemento que possa constituir novo facto ou meio de prova novo suscetível de, com base nele, se assentar qualquer dúvida grave sobre a justiça da condenação, que possa constituir fundamento do recurso de revisão, nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP.

Por outro lado, não assiste razão ao arguido quanto à alegada desconformidade constitucional da norma contida no n.º 1 do art. 449.º do Código de Processo Penal.”


3. O reclamante, como se afirmou no acórdão de 08.06.22, não apresentou factos novos ou novos elementos de prova, fundando a revisão em formulação legal ampla que propunha como adequada ao texto constitucional e que visava incluir, no âmbito deste recurso extraordinário, a reapreciação de qualquer “decisão injusta”.

No presente requerimento, identifica a questão sobre a qual este tribunal não se pronunciou: saber se um facto dado como provado no acórdão condenatório constitui um mero juízo conclusivo e assenta em factos igualmente dados como provados.

Ora, este ponto foi objeto de apreciação nos recursos ordinários referidos em I.3., constituindo matéria de facto fixada, bem como se mostram resolvidas ou sanadas eventuais irregularidades ou nulidades a ele respeitantes.

Considerando a natureza e objeto do recurso de revisão, definidos na Constituição e na lei processual penal, não só o tribunal não omitiu pronúncia, por não se tratar de matéria que devesse apreciar, como lhe estava vedado o conhecimento da questão identificada.


Não se verifica, pois, a alegada nulidade de omissão de pronúncia.


III - Decisão

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça -3ª secção criminal delibera:

- indeferir o pedido de declaração de nulidade do acórdão, de 08.06.2022, apresentado pelo Requerente;

- condenar o Requerente a pagar as custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs (art. 8.º, n.º 9, e Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais).


Teresa de Almeida (Relatora)

Lopes da Mota (Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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[1] Por todos, acórdão deste Tribunal, 3.ª secção, de 06.05.21, no processo 64/19.3T9EVR.S1.E1.S1.