RECURSO PENAL
RECURSO DE REVISÃO
NOVOS MEIOS DE PROVA
CONDENAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
APRECIAÇÃO DA PROVA
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I. O direito à revisão de sentença, consagrado como direito fundamental (artigo 29.º, n.º 6, da Constituição), que se efectiva por via de recurso extraordinário que a autorize (art.º 449ss do CPP), com realização de novo julgamento, possibilita a quebra do caso julgado de sentenças condenatórias que devam considerar-se injustas, por ocorrer qualquer dos motivos taxativamente previstos na lei (artigo 449.º do CPP). A injustiça da condenação sobrepõe-se à eficácia do caso julgado, em homenagem às finalidades do processo, assim se operando o desejável equilíbrio entre a segurança jurídica da definitividade da sentença e a justiça material do caso.
II. Constitui jurisprudência constante deste Tribunal a de que, para efeitos de admissibilidade da revisão com fundamento no n.º 1, al. d), do art. 449, são factos novos ou novos meios de prova os que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação e que, sendo desconhecidos da jurisdição no acto de julgamento, permitam suscitar graves dúvidas acerca da culpabilidade do condenado; “novos” são também os factos e os meios de prova que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e, porque aí não apresentados, não puderam ser considerados pelo tribunal.
III. Novos meios de prova são aqueles que são processualmente novos, que não foram apresentados no processo da condenação; a novidade, neste sentido, refere-se ao meio de prova, seja pessoal, documental ou outro, e não ao resultado da produção da prova, sendo que o requerente não pode indicar testemunhas que não tiverem sido ouvidas no processo, a não ser justificando que ignorava a sua existência ao tempo da decisão ou que estiveram impossibilitadas de depor.
IV. Num processo penal de tipo acusatório completado por um princípio de investigação, a que corresponde o modelo do Código de Processo Penal, as garantias e procedimentos que devem ser respeitados tendo em vista a formação de uma decisão judicial definitiva de aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (artigo 340.º e segs. do CPP), incluindo as possibilidades de impugnação, de facto e de direito, por via de recurso ordinário (artigo 412.º do CPP) admissível, por regra, relativamente a todas as decisões in procedendo e in judicando (artigo 399.º), reduzem e previnem substancialmente as possibilidades de erro judiciário que deva ser corrigido por via de recurso extraordinário de revisão contra as «injustiças da condenação», o que eleva especialmente o nível de exigência na apreciação dos fundamentos para autorização da revisão.
V. A garantia do direito a um processo equitativo («processo justo»), nas suas múltiplas dimensões, tal como se consagra no artigo 32.º da Constituição e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que concorrem neste sentido, impõem que ao arguido, que tem o direito e o dever de estar presente em audiência, assistido por defensor (artigos 61.º e 332.º do CPP), seja dado o tempo e os meios necessários para preparação da sua defesa e apresentar os meios de prova a produzir e assegurada a faculdade de contradizer a prova contra si produzida em audiência (como se estabelece nos artigos 315.º, 327.º, 339.º, n.º 4, 340.º e 355.º do CPP).
VI. A dúvida relevante para a revisão tem de ser qualificada. Não basta a mera existência da dúvida; é necessário que ela se eleve a um patamar de solidez que permita afirmar a sua «gravidade», isto é, que, na ponderação conjunta de todos os factos e meios de prova, seja possível justificadamente concluir que, tendo em conta o critério de livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e sem prejuízo da sujeição das novas provas ao teste do contraditório, imediação e oralidade do novo julgamento, deles resulta uma forte possibilidade de não condenação.
VII. Neste caso, a motivação do recurso dirige-se diretamente aos fundamentos da decisão recorrida em matéria de facto, nomeadamente à apreciação e valoração das provas e ao seu resultado, matérias que, compreendendo-se no âmbito, objeto e finalidades do recurso ordinário (artigo 412.º do CPP), se encontram subtraídas ao objeto e ao conhecimento do recurso extraordinário de revisão (artigos 449.º e segs. do CPP), que pressupõe o trânsito em julgado da decisão condenatória. Eloquentes neste sentido são as afirmações da falta ou insuficiência de prova para a condenação, da violação do princípio in dubio pro reo, que constitui um princípio relativo à apreciação da prova, da existência de dúvida razoável quanto à participação do recorrente na prática dos factos e a pretensão de absolvição dos crimes por que o recorrente se encontra condenado.
VIII. Os depoimentos das testemunhas agora indicadas, cuja não apresentação em julgamento não se encontra suficientemente justificada, não permitem colocar seriamente em crise os fundamentos da decisão condenatória em matéria de facto e, assim, afirmar, em conformidade com a exigência da al. d) do n.º 1 do artigo 499.º do CPP, que estas constituem novos meios de prova que, por si só ou combinados com os que foram apreciados no processo, em que se fundamenta aquela decisão, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação, ou, noutra formulação, que a aplicação da pena constitui resultado de inaceitável erro judiciário de julgamento da matéria de facto, devendo, em consequência, ser negada a revisão.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I.  Relatório


1. AA, com a identificação dos autos, interpõe recurso extraordinário de revisão do acórdão de 20 de fevereiro de 2020 proferido pelo Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., confirmado em recursos interpostos para o Tribunal da Relação ... e para o Supremo Tribunal de Justiça e transitado em julgado, que o condenou pela prática, como autor material e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21.º, n.º 1, do D.L. 15/93, de 22 de janeiro, e Tabelas I-A, B e C, anexas, e 75.º, 76.º, do Código Penal, na pena de oito anos de prisão, e pela prática, em concurso real, como autor material e como reincidente, de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punível pelos artigos 2.º, n.º 1, al. ae), 3.º, n.º 3 e 86.º, n.º 1, als. c) e d), da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro, e artigos 75.º e 76.º, do Código Penal, na pena de dois anos e quatro meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de nove anos e três meses de prisão.

2. Fundando o recurso na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal (CPP), por considerar terem sido descobertos novos meios de prova, alega o recorrente, no essencial, que “só em sede de reclusão veio a saber através da sua irmã BB que o produto apreendido e guardado no interior da residência alvo de buscas e do veículo automóvel eram da pertença de CC”, facto que não era do seu conhecimento na data de discussão e julgamento.

É do seguinte teor o requerimento que apresenta (transcrição):

“Nestes autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, foi o arguido, aqui Recorrente, condenado, pela prática, como autor material e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21.º, n.º 1, do D.L. 15/93, de 22.01, e Tabelas I-A, B e C, anexas ao referido diploma, e 75.º, 76.º, ambos do Código Penal, na pena de oito anos de prisão e em concurso real, como autor material e como reincidente, de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punível pelos artigos 2.º, n.º 1, al. ae), 3.º, n.º 3 e 86.º, n.º 1, als. c) e d), todas da Lei nº 5/2006 de 23.02, e artigos 75.º e 76.º, ambos do Código Penal, na pena de dois anos e quatro meses de prisão; por fim, condenar o arguido, aqui Recorrente, em cúmulo jurídico, na pena única de nove anos e três meses de prisão;

O Arguido recorreu para o Tribunal da Relação ..., que por acórdão de 8 de Julho de 2020 negou provimento ao seu recurso. Desse recurso o Arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 2 de Dezembro de 2020 negou provimento ao recurso.

Matéria de facto dada como provada que releva para efeitos do presente recurso (…) [transcrição dos factos provados, infra, 8]

A versão dada como provada e que consequentemente levou à condenação do Arguido AA, atribuiu ao aqui Arguido a posse e propriedade de todo o produto estupefaciente apreendido e foi o alicerçar nessa fundamentação que levou à condenação do Arguido.

Ora, tais produtos não eram do Arguido mas aquando a realização do julgamento e posteriores recursos não tinha como provar efectivamente que o produto estupefaciente apreendido não era dele, porque na realidade desconhecia de quem era, uma vez que na casa onde os mesmos foram apreendidos e alvo das respectivas buscas era habitada por outras pessoas e frequentada por terceiros.

Só em sede de reclusão veio a saber através da sua irmã, a saber, BB, que o produto apreendido e guardado no interior da residência alvo de buscas e do veículo automóvel eram da pertença de CC, cc ..., e que reside atualmente na Rua ... ... ... ..., altura dos factos mantinha uma relação amorosa com a sua irmã e que por medo de represálias a mesma nunca contou a verdade ao aqui Arguido, apenas o fazendo à poucos dias, após o fim do referido namoro.

Assim, trata-se de um facto novo, que não era do conhecimento do Arguido, aquando da audiência de discussão e julgamento, e já após ter sido proferido acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, que põe em causa a versão que refere os doutos acórdãos que atribuem a propriedade do produto estupefaciente ao aqui Recorrente e consequentemente o condenou pelo crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21.º, n.º 1, do D.L. 15/93, de 22.01, e Tabelas I-A, B e C, anexas ao referido diploma, e 75.º, 76.º, ambos do Código Penal.

O Arguido sempre soube que o referido produto não era da sua pertença, porque inclusive já não residia naquela casa, como aliás ficou provado, mas desconhecia o seu proprietário e com que intenção ou o porquê de o mesmo estar guardado naqueles locais, inclusive nos veículos onde foi também encontrado o estupefaciente e que se encontram identificados nos factos provados.

A verdade é que só agora, soube através da sua irmã BB que o referido produto era do seu ex namorado, e que o mesmo guardava na sua casa porque era um local mais seguro e que na verdade a ser encontrado nunca o iriam associar ao mesmo.

Este facto novo já não pode ser apreciado pelas instâncias nem em sede de recurso ordinário pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Pode agora ser apreciado em sede de recurso de revisão.

Os fundamentos da revisão:

O recurso extraordinário de revisão está previsto nos artigos 449º e seguintes do CPP. Trata-se de um recurso de uma sentença transitada em julgado. A paz jurídica do Arguido e da comunidade posta em causa com o reconhecimento do crime, pretende se ver restabelecida com este tipo de recurso.

Na verdade, a questão não está em averiguar-se se se trata de novos factos ou de versão nova dos factos, mas sim em saber se esses factos novos suscitam ou não graves dúvidas sobre a justiça da condenação. Em suma, tudo está em averiguar se se verifica o nexo de causalidade entre o erro que se pretende corrigir e a injustiça da decisão condenatória, sendo isto que verdadeiramente, justifica a revisão e evita o erro judiciário transforme um inocente em criminoso.

Como se viu, pode fundamentar o recurso extraordinário de revisão, além do mais, a descoberta de «novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação» [al. d) do n.º 1 do art. 449.º do CPP].

Ou seja, pode distinguir-se, neste fundamento, os “novos factos” dos “novos meios de prova”, por forma a poder-se afirmar que o fundamento pode consistir na descoberta de factos desconhecidos anteriormente e por tal não ponderados na decisão cuja revisão se pretende e que suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação (factos novos), ou na descoberta de novas provas da ocorrência de factos já conhecidos e ponderados, ou de factos também eles novos na acepção acima referida (novos meios de prova).

Pode, assim, afirmar-se que a al. d) do n.º 1do art. 449.º consente a revisão com base em novos meios de prova de factos já debatidos no julgamento que conduziu à sentença cuja revisão se pede e não só com base em novos factos erespectivos meios de prova.

Encontra, assim, apoio formal a pretensão do requerente de obter a revisão com base somente na descoberta de novos meios de prova.

Das Buscas realizadas:

As buscas nos presentes autos foram efetuadas em duas residências, sitas na Praça ..., ..., ..., ... e na Avenida ... em ....

No entanto, o douto acórdão ignora tal facto, e atribui exclusivamente a residência do arguido à morada sita na ..., sem apurar minimamente se o mesmo lá vivia ou não, se sim, vivia com quem, em que quarto dormia, ou tao pouco se dormia na sala.

A questão é que no âmbito de buscas realizadas para se apurar se o arguido detinha alguma arma, foram encontradas substâncias psicotrópicas ilícitas.

Tais substâncias descritas ao longo do acórdão, foram encontradas em vários compartimentos da residência em questão, nomeadamente em dois quartos, e na despensa.

O produto estupefaciente, sem que exista qualquer ligação com o arguido ,foi a posse imputada ao mesmo, no entanto sustentada e corroborado com coisa nenhuma.

Na verdade, nada existe, e nada liga este produto ao arguido.

Aliás, é notório a ausência de outras provas produzidas em sede de audiência de discussão e julgamento que enlacem aquelas substâncias encontradas na residência ao arguido, e até nos próprios veículos.

Porquanto, uma coisa é deduzir, que foi o que fez o tribunal ad quo, outra bem diferente, é ter-se a certeza, e essa certeza não foi revelada em sede de audiência de discussão e julgamento, há apenas uma convicção no julgador de que o produto encontrado pertence ao Arguido, sem sequer fundamentar a sua razão de ser.

A realidade, é que cabia, ao Ministério Público provar que o produto estupefaciente era do arguido, ou a outro elemento qualquer, e não atribuir a sua posse e responsabilidade de imediato ao arguido, quando na verdade ficou provado, embora o tribunal assim não quisesse ver que o Arguido não reside naquela residência, residindo na mesma outras pessoas, e a droga apreendida foi encontrada em espaços comuns da casa.

O facto de o mesmo se encontrar naquela residência no dia em que se realizaram as buscas, não o pode envolver de forma automática e imediata ao que lá foi encontrado.

Pelo que em julgar como julgou o tribunal a quo, condenado o Arguido, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do CPP.

Princípio este que, conforme salienta Figueiredo Dias in “Direito Processual...” pag. 139, está associado ao “... dever de perseguir a chamada “verdade material”-, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos).”

No mesmo sentido, Henrique Eiras in “Processo Penal Elementar”, Quid Iuris, 2003, 4ª edição, p. 102, refere que este principio “... não significa que o tribunal possa utilizar essa liberdade à sua vontade, de modo discricionário e arbitrário, decidindo como entender, sem fundamentação.

O juiz tem de orientar a produção de prova para a busca da verdade material e, ao decidir, há de fundamentar as suas decisões: a apreciação da prova que faz reconduz-se a critérios objectivos, controláveis através da motivação. A sua convicção, que o levará a decidir de certa maneira e não de outra, embora pessoal, é objectivável.”

Por outro lado, ao dar como provados factos que não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento, violou, ainda, o disposto no artigo 355.º, n.º 1, do CPP.

Com efeito, de acordo com esta norma, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas em audiência de julgamento, não sendo tal valorado.

No entendimento do Recorrente, o Tribunal a quo decidiu tendo por base factos, que não foram provados, nem sequer foram alegados testemunhalmente, prejudicando o silogismo judiciário.

É evidente e bastante notória a insuficiência da prova realizada para aquela que foi a decisão da matéria provada, motivo pela qual estamos, perante a violação do principio do "in dubio pro reo", pois no casu sub judice, o Tribunal simplesmente fundamentou a condenação em juízos de probabilidade, pelo que o Tribunal a quo violou, ainda, o disposto no n.º 2. do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Nos presentes autos, houve uma total ausência de prova que o Recorrente tenha praticado os crimes em que foi condenado, e ainda assim, existe uma dúvida razoável quantos aos factos pelos quais vem o Arguido acusado, e quanto à sua culpa, pelo que deve ser absolvido dos mesmos, por não se considerarem provados os factos contantes dos artigos 1, 9 e 14 do douto acórdão.

Pelos que os artigos supra mencionados devem considerar-se por não provados por total ausência de prova e consequentemente ser o Arguido absolvidos dos crimes de que foi condenado.

Em conclusão:

1.º O ora Recorrente foi condenado pela prática de um crime de de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21.º, n.º 1, do D.L. 15/93, de 22.01, e Tabelas I-A, B e C, anexas ao referido diploma, e 75.º, 76.º, ambos do Código Penal, na pena de oito anos de prisão e em concurso real, como autor material e como reincidente, de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punível pelos artigos 2.º, n.º 1, al. ae), 3.º, n.º 3 e 86.º, n.º 1, als. c) e d), todas da Lei nº 5/2006 de 23.02, e artigos 75.º e 76.º, ambos do Código Penal, na pena de dois anos e quatro meses de prisão; por fim, condenar o arguido, aqui Recorrente, em cúmulo jurídico, na pena única de nove anos e três meses de prisão

2.º O Arguido recorreu para o Tribunal da Relação ..., que por acórdão de 8 de Julho de 2020 negou provimento ao seu recurso. Desse recurso o Arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 2 de Dezembro de 2020 negou provimento ao recurso.

3.º Assim a factualidade dada como provada, o enquadramento e qualificação jurídica dos factos e a consequente condenação em virtude dos mesmos é contrariada por uma nova versão dos factos.

4.º A versão dada como provada refere que todo o produto estupefaciente encontrado na habitação sita na ..., bem como em 2 veículos pertenciam a AA, aqui recorrente.

5.º A versão do Acórdão condenatório não relevou que aquela habitação era habitada e frequentada por outras pessoas.

6.º Ficou provado que o Arguido vivia maior parte do tempo com a sua namorada, na ....

7.º A irmã do Recorrente, BB, vem agora revelar ao Recorrente que afinal o legitimo “dono” do estupefaciente é CC, seu namorado à data.

8.º Esta nova versão dos factos terá, no entender da defesa diferente qualificação dos factos com relevância direta para a descoberta da verdade material.

Assim,

9.º Uma vez que este facto novo já não pode ser apreciado em sede de recurso ordinário, pelo STJ.

Deverá o mesmo ser apreciado em sede de recurso extraordinário de revisão.

Termos em que deve ser revisto o Acórdão condenatório.”

3. Na resposta, conclui o Ministério Público pela improcedência do recurso, nos seguintes termos (transcrição):

“(…) Nos termos do disposto no artigo 453.º, n.º 1, do Código de Processo Penal foi produzida a prova com a inquirição das testemunhas BB e CC.

O depoimento da testemunha CC foi manifestamente desprovido de credibilidade quanto à assunção da propriedade do produto estupefaciente que foi apreendido nos autos, pois que foi muito impreciso quer quanto à quantidade e localização onde o mesmo se encontrava, bem como quanto ao produto de corte que nem sabia que substância se tratava. O mesmo se diga quanto ao veículo onde foi encontrado produto estupefaciente que a testemunha disse que não era utilizado pelo arguido/condenado.

Tanto assim foi que, como resulta da acta de 28-03-2022, foi determinada a extracção de certidão para procedimento criminal contra a testemunha.

“Tendo em conta o depoimento da testemunha, requer-se a extração de certidão das declarações ora prestadas e remessa aos serviços do Ministério Público, a fim de ser instaurado um processo de Crime de Tráfico de Produto de Estupefaciente ou, eventualmente, pelo Crime de Falsidade de Testemunho.

Seguidamente a Mmª Juiz de Direito proferiu o seguinte: DESPACHO

Proceda como promovido, devendo a certidão integrar ainda a Acusação deduzida no processo principal, o Acórdão proferido, o requerimento apresentado pelo arguido no âmbito do recurso de revisão, os autos de apreensão, bem como a ata da presente diligência.”

Do acórdão recorrido resulta que,

“O Tribunal baseou-se, quanto à sua convicção sobre a matéria assente, nas declarações do agente da PSP DD, que interveio na identificação do arguido, na  sequência de uma participação de terceiros, vindo posteriormente a participar na busca realizada na residência do mesmo, na ..., tendo explicado que chegou à conclusão de que o arguido residia naquela morada, por a mesma constar do seu documento de identificação, tendo, além disso, verificado, em diligências prévias, que era aquela a residência que o arguido frequentava, colocando o veículo, que utilizava, estacionado à porta.

O depoente explicou onde se encontravam os objectos apreendidos e melhor descritos nos autos de fls. 44 a 46 e de fls. 51 a 55, esclarecendo que a mãe do arguido tinha dificuldades de locomoção, sendo-lhe difícil, nomeadamente, alcançar a prateleira superior da despensa onde foram encontrados alguns dos objectos de detenção ilícita, escondidos.

Mais referiu que a mãe do arguido se mostrou surpreendida com as apreensões feitas na residência onde habitava, reacção que corroborou a convicção de que os objectos de detenção ilícita pertenceriam ao arguido.

No tocante à circunstância de o arguido residir juntamente com a sua mãe, na altura das apreensões efectuadas – não obstante a namorada do arguido, EE, ter pretendido convencer que o arguido residiria consigo, em ..., apenas ficando em casa da mãe esporadicamente – o Tribunal, além do depoimento de DD, valorou especialmente o facto de o próprio arguido, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, ter referido que vivia com a mãe, a irmã mais nova e uma sobrinha menor, identificando-se, de facto, como morador na residência sita na ..., onde decorreu a busca domiciliária.

Tais declarações, prestadas logo após a detenção – quando o arguido ainda não teria tido tempo de pensar profundamente sobre os efeitos das suas declarações relativas à residência, relativamente à prova da incriminação que lhe era imputada, – foram valoradas com especial peso, atenta a sua espontaneidade, tendo sido, como já aflorámos, corroboradas pelo depoimento prestado pela testemunha DD, que se baseou no resultado concordante das diligências prévias em que participou.

Os agentes da PSP FF e GG igualmente depuseram, de forma objectiva e segura, sobre as diligências em que intervieram, nomeadamente na busca ao veículo de matrícula ..-..-PT, utilizado pelo arguido.

Tendo sido o arguido abordado após a utilização do veículo de matrícula ..-RL-.., de cuja chave dispunha e forneceu, foi igualmente realizada busca em tal viatura, conforme atestado por DD, FF e GG.

Do depoimento das referidas três testemunhas, conjugado com os autos de busca e apreensão juntos aos autos, foi possível apurar, por um lado, que era o arguido o utilizador habitual das duas aludidas viaturas – tendo, nesse sentido, prestado depoimento esclarecedor o agente DD, que interviera em diligências prévias, no âmbito das quais observara actos de utilização, nomeadamente deslocações do arguido – e, por outro lado, quais os objectos apreendidos e os locais em que foram encontrados.

Conjugadamente com tais depoimentos, foi importante a análise dos autos de busca e de apreensão constantes do processo, relativamente à residência da mãe do arguido e à residência da namorada do mesmo, bem como, conforme já referido, aos dois veículos aludidos.

No tocante à conclusão sobre a actividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida pelo arguido, o Tribunal baseou-se nas regras de experiência comum aplicadas à análise da natureza e quantidades dos objectos apreendidos. De facto, a quantidade de produto estupefaciente detida pelo arguido, permitindo a divisão em elevado número de doses – conforme pericialmente apurado –, bem como a detenção de vários objectos utilizados.”

Ora, esta prova agora trazida aos autos não tem a virtualidade de infirmar a convicção do tribunal quanto à matéria de facto fixada no acórdão recorrido, pelo que, nesta conformidade, entende-se que não deverá proceder o presente recurso de revisão.”

4. Pronunciando-se sobre o mérito do pedido, de acordo com o disposto no artigo 454.º do CPP, consigna a Senhora Juíza do processo, concluindo pela denegação da revisão (transcrição):

“(…) Nos termos do disposto no artigo 453.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, foi produzida prova com a inquirição das testemunhas BB e CC.

O Ministério Público emitiu douto parecer, a fls. 66 a 70, no sentido da improcedência do presente recurso de revisão por entender que o “depoimento da testemunha CC foi manifestamente desprovido de credibilidade quanto à assunção da propriedade do produto estupefaciente que foi apreendido nos autos, pois que foi muito impreciso quer quanto à quantidade e localização onde o mesmo se encontrava, bem como quanto ao produto de corte que nem sabia que substância se tratava. O mesmo se diga quanto ao veículo onde foi encontrado produto estupefaciente que a testemunha disse que não era utilizado pelo arguido/condenado”.

Conclui o Ministério Público que a “prova agora trazida aos autos não tem a virtualidade de infirmar a convicção do tribunal quanto à matéria de facto fixada no acórdão recorrido, pelo que, nesta conformidade, entende-se que não deverá proceder o presente recurso de revisão”.

Nos termos do disposto no artigo 454.º do Código do Processo Penal, passamos a prestar informação sobre o mérito do pedido.

O arguido AA encontra-se a cumprir a pena única de nove anos e três meses de prisão, tendo sido condenado: […]

O presente recurso não incide sobre a condenação pela prática, como autor material e como reincidente, de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punido pelos artigos 2.º, n.º 1, al. ae), 3.º, n.º 3 e 86.º, n.º 1, als. c) e d), todas da Lei nº 5/2006 de 23.02, e artigos 75.º e 76.º, ambos do Código Penal.

A questão de o arguido residir, ou não, na Praceta ..., ..., ..., foi suscitada em audiência de julgamento, bem como a existência, ou inexistência, de elementos de conexão entre o arguido e os produtos estupefacientes, bem como as substâncias utilizadas no corte daqueles, apreendidos nos autos.

Em primeiro interrogatório judicial, o arguido prestou declarações quanto à sua situação pessoal e condições económicas. Interrogado sobre com quem vivia, declarou “Eu vivo com a minha mãe e com a minha irmã mais nova, de 28 anos”, e uma sobrinha.

Em audiência de julgamento, pela testemunha DD, HH, foi referido que recebida a denúncia, deslocou-se a residência da então namorada de o arguido. Nesse momento, foi solicitada a identificação ao arguido, tendo o mesmo declarado residir na Praça ..., ..., ..., na ....

As questões ora suscitadas foram objecto de análise pelo tribunal conforme resulta da motivação da matéria de facto. Consta do acórdão proferido pela primeira instância que : “O Tribunal baseou-se, quanto à sua convicção sobre a matéria assente, nas declarações do agente da PSP DD, que interveio na identificação do arguido, na sequência de uma participação de terceiros, vindo posteriormente a participar na busca realizada na residência do mesmo, na ..., tendo explicado que chegou à conclusão de que o arguido residia naquela morada, por a mesma constar do seu documento de identificação, tendo, além disso, verificado, em diligências prévias, que era aquela a residência que o arguido frequentava, colocando o veículo, que utilizava, estacionado à porta (…).

No tocante à circunstância de o arguido residir juntamente com a sua mãe, na altura das apreensões efectuadas – não obstante a namorada do arguido, EE, ter pretendido convencer que o arguido residiria consigo, em ..., apenas ficando em casa da mãe esporadicamente – o Tribunal, além do depoimento de DD, valorou especialmente o facto de o próprio arguido, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, ter referido que vivia com a mãe, a irmã mais nova e uma sobrinha menor, identificando-se, de facto, como morador na residência sita na ..., onde decorreu a busca domiciliária.

Tais declarações, prestadas logo após a detenção – quando o arguido ainda não teria tido tempo de pensar profundamente sobre os efeitos das suas declarações relativas à residência, relativamente à prova da incriminação que lhe era imputada – foram valoradas com especial peso, atenta a sua espontaneidade, tendo sido, como já aflorámos, corroboradas pelo depoimento prestado pela testemunha DD, que se baseou no resultado concordante das diligências prévias em que participou”.

No que tange aos bens e quantia apreendidos, consta da motivação da matéria de facto que “Os agentes da PSP FF e GG igualmente depuseram, de forma objectiva e segura, sobre as diligências em que intervieram, nomeadamente na busca ao veículo de matrícula ..-..-PT, utilizado pelo arguido.

Tendo sido o arguido abordado após a utilização do veículo de matrícula ..-RL-.., de cuja chave dispunha e forneceu, foi igualmente realizada busca em tal viatura, conforme atestado por DD, FF e GG.

Do depoimento das referidas três testemunhas, conjugado com os autos de busca e apreensão juntos aos autos, foi possível apurar, por um lado, que era o arguido o utilizador habitual das duas aludidas viaturas – tendo, nesse sentido, prestado depoimento esclarecedor o agente DD, que interviera em diligências prévias, no âmbito das quais observara actos de utilização, nomeadamente deslocações do arguido – e, por outro lado, quais os objectos apreendidos e os locais em que foram encontrados”.

No âmbito do presente recurso extraordinário de revisão, depôs a testemunha BB, irmã do arguido, que declarou residir na Praceta ..., .... Sobre a situação de o arguido, declarou a testemunha que aquele residia na Praceta ..., ..., ..., ainda que não pernoitasse sempre, nessa residência. Explicou que na residência sita na Praceta ..., ..., além de si e de o arguido, vivia a sua mãe, bem como uma sobrinha, actualmente com ... anos de idade. A residência tem três quartos, um dos quais ocupado pelo arguido e outro, ocupado por si.

Decorre do seu depoimento que o arguido possuía o veículo marca ..., com matrícula ..-..-PT e que este veículo não era utilizado por CC.

Inquirida sobre o produto estupefaciente que foi apreendido no interior da residência, a testemunha BB declarou ter “a suspeita” que tal substância pertencia a CC. Explicou que, à data dos factos, tinha uma relação de namoro com CC e que este pernoitava, por diversas vezes, na sua residência.

Inquirida sobre a razão para não ter prestado depoimento, em audiência de julgamento, a testemunha referiu que, nessa data, não tinha certeza se a substância estupefaciente pertencia ou não a CC e que, em data posterior ao termo da audiência de julgamento, confrontou este, tendo o mesmo admitido que lhe pertencia toda a substância estupefaciente apreendida.

Resulta do depoimento de BB que a relação de namoro entre si e CC cessou no início do ano de 2020. Do depoimento de CC resulta, igualmente, que a relação de namoro entre si e BB terminou no início do ano de 2020 e, nessa data, esta já o “pressionava” sobre a pertença do produto estupefaciente apreendido.

A testemunha CC declarou conhecer o arguido AA por ter tido uma relação de namoro com a sua irmã, BB, entre meados de 2018 e o princípio do ano de 2020. BB residia na Praceta ..., ..., ..., na .... Habitualmente, pernoitava nessa residência onde vivia, também, a mãe e a sobrinha de BB, bem como o arguido AA.

Referiu que o arguido utilizava dois veículos de marca .... Não conseguiu indicar a cor de qualquer dos veículos o que não deixa de causar perplexidade considerando que um dos veículos era o local onde alegadamente guardou, desde Outubro/Novembro de 2018 até início do ano de 2019, dezanove placas de haxixe e onde se deslocava sempre que necessitava de tal substância.

Inquirida sobre o produto estupefaciente apreendido, a testemunha CC disse pertencer-lhe e que se destinava ao seu consumo pessoal durante cerca de quatro meses.

Confrontado com a quantidade - dezanove placas de cannabis resina (haxixe), com o peso total líquido de 1.831,400 gramas, com o grau de pureza de 13,7%, correspondente a 5018 doses – de haxixe apreendida, a testemunha referiu que “maior parte” era para o seu consumo.

Referiu que as dezanove placas de haxixe foram por si colocadas, em Outubro/Novembro de 2018, na parte traseira do veículo ..., sem conhecimento do arguido, esclarecendo que se encontrava danificada a fechadura da porta do lado do condutor desse veículo o que lhe permitia o acesso ao interior do mesmo. Assim, colocado o produto no veículo, acedia ao mesmo sempre que necessitasse de tal substância. Desde Outubro/Novembro de 2018, o veículo permaneceu imobilizado naquele espaço.

Declarou não saber a data em que adquiriu o haxixe e ter pago quantia não superior a dois mil euros pelas dezanove placas de haxixe com o peso total líquido de 1.831,400 gramas. Inquirida sobre o modo como conseguiu tal quantia monetária para adquirir substância de natureza estupefaciente, a testemunha CC declarou ter “juntado”, durante cerca “de um ano”.

No que tange aos seus rendimentos, a testemunha declarou que, à data, trabalhava na construção civil e auferia, por mês, cerca de €800,00 (oitocentos euros). Pagava a renda mensal, no valor de €450,00, pela residência que havia arrendado, além das despesas decorrentes do quotidiano, tais como as referentes à alimentação, ao transporte, ao consumo de água, gás e electricidade, ao telemóvel e à televisão.

Declarou ser consumidor de produto estupefaciente há mais de vinte e cinco anos. Consumia haxixe e cocaína. Por dia, consumia quatro tiras de haxixe e duas gramas de cocaína.

Entendemos que, à luz das regras da experiência comum, do senso comum e da lógica, não é credível que a testemunha CC, com o rendimento mensal auferido e as despesas mensais fixas que tinha de suportar, tivesse conseguido canalizar, num ano, dois mil euros para aquisição de produto estupefaciente, bem como a quantia necessária à aquisição de substâncias utilizadas no corte de produto estupefaciente e à aquisição de cocaína, sendo o consumo desta substância de duas gramas por dia.

Inquirida sobre o produto estupefaciente apreendido – uma embalagem de plástico contendo cocaína “cloridrato”, com o peso líquido de 10,329 gramas -, no interior do veículo de matrícula ..-RL-.., marca ..., modelo ..., de cor ..., a testemunha CC disse pertencer-lhe, tendo pago a quantia de €300,00 (trezentos euros). Referiu que numa das raras vezes em que o arguido AA lhe deu boleia até à estação, deve ter deixado cair o produto estupefaciente, do bolso do seu fato treino. Confrontado com a circunstância da cocaína se encontrar no interior de uma mochila, a testemunha alterou o seu depoimento por forma a contornar tal obstáculo, referindo que também costumava andar com mochila. Não questionou o arguido sobre a cocaína deixada no interior desse veículo por não ter “interesse” em perguntar.

Admitiu serem seus os seis telemóveis apreendidos num dos quartos da residência, bem como a quantia de €300,00 (trezentos euros) que se encontravam no interior de uma bolsa; a embalagem contendo benzocaína, com o peso líquido de 994,00 gramas, bem como a picadora. Declarou não se recordar quanto pagou por esta substância. Referiu que o produto de corte se destinava a “fazer a mistura” com o produto estupefaciente para “poder dispensar” a amigos, em contrapartida de quantia monetária. “Dispensava” meia grama ou uma grama, a colegas, em número não inferior, com uma periodicidade de uma/duas vezes, por semana, a cada. Com a “dispensa” de produto estupefaciente a terceiros, obtinha lucro. A quantia de €300 que estava no interior da bolsa, era proveniente dessa actividade. Explicou que a picadora era para cortar o produto de corte que, por vezes, adquiria em pedra. Fazia a preparação e divisão do produto de estupefaciente no interior da residência de II.

Declarou a testemunha CC que lhe pertence o produto estupefaciente - [dez bolotas de cannabis (resina), com o peso total líquido de 94,276 gramas, com o grau de pureza de 28,8%, correspondente a 543 doses; uma bolota de cocaína “cloridrato”, com o peso líquido de 10,023 gramas, com o grau de pureza de 71,4%, correspondente a 35 doses; e duas embalagens de heroína, com o peso líquido de 1,882 gramas, com o grau de pureza de 11%, correspondente a 2 doses] -, bem como as substâncias utilizadas como produtos de corte - paracetamol e cafeína, com o peso líquido de 17,259 gramas -, apreendidos no interior da residência, na despensa; a mala de computador contendo duas balanças e utensílios utilizados para embalamento e acondicionamento de estupefacientes; as duas facas, com resíduos de cocaína; a espátula, com resíduos de cocaína; e a balança de precisão, com resíduos de cocaína.

Convocando o depoimento prestado, em audiência, pelas testemunhas DD e GG, Agentes da PSP que participaram nas buscas, resulta claramente de tais depoimentos que o acesso ao veículo marca ..., com a matrícula ..-..-PT só se mostrou possível com a chave/mecanismo disponibilizado pelo próprio arguido e que o mesmo tinha na sua posse. Explicaram as autoridades policiais que depuseram que a avaria do veículo marca ..., com a matrícula ..-..-PT, localizava-se no motor, circunstância que foi pelos mesmos detectada quando tentaram retirar, do local, tal veículo, após efectivada a apreensão.

Decorre, ainda, do depoimento da testemunha DD que a primeira abordagem de o arguido ocorreu após obtida a notícia de que este possuía armas. Nessa sequência, abordaram o arguido e solicitaram que o mesmo os acompanhasse à Esquadra, o que foi por este recusado. Foi, então, solicitada a emissão de mandado de busca. A execução dos mandados de busca em ambas as residências foi precedida de diligências realizadas com o propósito de se certificarem quanto à residência do arguido e indagarem da rotina do mesmo. Dessas diligências constataram que o veículo marca ..., com a matrícula ..-..-PT, foi mantido imobilizado no mesmo local, durante dois/três dias antes da detenção.

É nosso entendimento que a versão prestada pela testemunha CC para ter acesso ao veículo é contrariada pelo depoimento prestado pelas testemunhas DD e GG pois, só tiveram acesso ao interior do veículo com a matrícula ..-..-PT, após a chave ser disponibilizada pelo arguido.

É igualmente nosso entendimento que, à luz do crivo das regras da experiência comum, não é credível que um indivíduo guarde dezanove placas de haxixe com peso superior a 1.800 gramas, no interior de um veículo que não lhe pertence e relativamente ao qual não tem o domínio.

Acresce que, caso fosse real a avaria na fechadura da porta do condutor do veículo marca ..., com a matrícula ..-..-PT, não era apenas a testemunha CC que tinha acesso ao interior desse veículo, mas qualquer cidadão. Não é plausível, no nosso entendimento, que um indivíduo guarde dezanove placas de haxixe no interior de um veículo, sabendo que qualquer cidadão podia aceder, através da porta do lado do condutor, ao interior desse veículo e, subsequentemente ao produto estupefaciente aí guardado. Risco que, de harmonia com o depoimento prestado pela testemunha CC, teria corrido desde Outubro/Novembro de 2018 até 17 de Janeiro de 2019.

Sobre o produto estupefaciente apreendido no interior do veículo de matrícula ..-RL-.., marca ..., modelo ..., de cor ..., cremos que a versão apresentada pela testemunha CC não merece acolhimento considerando que a cocaína foi encontrada no interior de uma mochila. Caso a mochila pertencesse à testemunha, recordar-se-ia dessa perda e, consequentemente, não teria avançado com a explicação de o produto ter caído do bolso das suas calças. Acresce que caso a testemunha tivesse se esquecido, no interior do veículo do arguido, da mochila que veio a ser apreendida, este não teria qualquer dificuldade em identificar o legítimo possuidor desse bem e contactar a sua irmã, comunicando-lhe estar na posse da mochila de CC.

Entendemos que não é merecedora de credibilidade a explicação apresentada pela testemunha CC para a guarda, no interior da residência de o arguido, do produto de corte e dos utensílios destinados à preparação do produto estupefaciente. Dispondo a testemunha de residência habitada exclusivamente por si, carece de qualquer lógica, guardar tais produtos e utensílios na residência de terceiros, bem como fazer a preparação e divisão do produto de estupefaciente no interior da residência da namorada, habitada por esta, pela mãe e irmão.

Sobre as substâncias apreendidas na despensa, utilizadas para corte de substâncias de natureza estupefaciente, a hesitação da testemunha quando inquirida, não permite, no nosso entender, concluir que tivesse conhecimento da sua existência, naquele local.

Em suma, cremos que a coloração dos factos trazida pela testemunha CC e a valoração de todos os elementos probatórios não permite a conclusão pretendida pelo arguido, ou seja, de exclusão da sua responsabilidade criminal pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes. A guarda de dezanove placas de haxixe ocorre em local cujo domínio pertence ao arguido e não à testemunha CC. Foi evidente o desconhecimento da testemunha CC quanto ao tipo de produtos de corte que se encontravam na despensa da residência de o arguido. Foi manifesto o desconhecimento da testemunha CC quanto à localização da cocaína apreendida no interior do veículo de matrícula ..-RL-.., utilizado pelo arguido, e à circunstância dessa substância se encontrar dentro de uma mochila. É na residência do arguido que ocorre a guarda de utensílios e de produto de corte utilizados na preparação e divisão de produto estupefaciente.

Dispõe a al. d) do n.º 1 do artigo 449.º do C.P.P. que “a revisão de sentença transitada em julgado é admissível se se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.

Pelo exposto, entendemos que o recorrente não invoca, como fundamentos para a procedência do recurso, quaisquer factos novos ou meios de prova que suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22.01, e tabelas I-A, B e C, anexas ao referido diploma.”

5. Recebido, foi o processo com vista ao Ministério Público, nos termos do artigo 455.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer, no sentido da denegação da revisão (transcrição):

“1. O arguido AA veio interpor recurso de revisão, invocando o fundamento previsto na al. d) do n.º 1 do art.º 449º do Código de Processo Penal.

2. A tal recurso respondeu o Exmo. Sr. Procurador da República, pugnando pela respectiva improcedência.

A Exma. Sra. Juiz de Direito prestou a informação prevista pelo art.º 454º do CPP, pronunciando-se, igualmente, pelo indeferimento da requerida revisão.

3. A exaustividade e pertinência de ambas as peças processuais dispensam-nos de maiores comentários.

Cremos, com efeito, que, in casu, se não verifica o pressuposto do qual depende a admissão de um recurso extraordinário desta natureza. (…)

Ora, o arguido alegou, agora, que os elementos que, entretanto, sua irmã lhe transmitira constituem um novo meio de prova que, por si só ou conjugado com a prova já produzida, suscitam graves dúvidas sobre a justiça da sua condenação. E é com base nisso que fundamenta o seu pedido de revisão no art.º 449º, n.º 1, al. d) do CPP.

Como é sabido, o recurso de revisão não se destina a colmatar estratégias de defesa que, no momento próprio, não obtiveram sucesso.

Recorde-se que a revisão, tal como se escreveu no acSTJ de 14/05/2008, “constitui um meio extraordinário de reapreciação de uma decisão transitada em julgado, e tem como fundamento principal a necessidade de se evitar uma sentença injusta, de reparar um erro judiciário, por forma a dar primazia à justiça material em detrimento de uma justiça formal.”

E “assenta num compromisso entre a salvaguarda do caso julgado, que é condição essencial da manutenção da paz jurídica, e as exigências da justiça. Trata-se de um recurso extraordinário, de um “remédio” a aplicar a situações em que seria chocante e intolerável, em nome da paz jurídica, manter uma decisão de tal forma injusta (aparentemente injusta) que essa própria paz jurídica ficaria posta em causa.” – cfr. Ac STJ de 04-07-2007, Proc. n.º 2264/07 - 3.ª secção”

Admitamos, então, que o arguido, à data do seu julgamento, desconhecia os “factos” que a irmã apenas agora lhe terá comunicado.

Com base em tal pressuposto, o Tribunal a quo procedeu à audição, quer da irmã, quer da testemunha que, alegadamente, seria o possuidor de, pelo menos, parte do estupefaciente apreendido nos autos.

Há que dizer que, quer o nosso Exmo. Colega, quer a Mma. Juiz, desmontaram lapidarmente as asserções do arguido, evidenciando a falta de credibilidade dos depoimentos, sobretudo, da testemunha CC.

São, na verdade, patentes as incongruências de tais declarações, que contrariam, não apenas os depoimentos de outras testemunhas, como nem sequer se pautam pelo mínimo de credibilidade que seria de esperar caso tivesse sido, de facto, autor dos ilícitos. Veja-se como foram inverosímeis as explicações que forneceu ao Tribunal relativamente à posse do estupefaciente e produtos associados, quer numa habitação, quer num veículo que não eram seus.

5. Em suma, os fundamentos invocados pelo arguido não parecem ser suficientemente ponderosos para suscitar graves dúvidas sobre a justiça da sua condenação, atenta a inverosimilhança das novas “provas”, que não resistem a uma análise à luz das regras de experiência comum e contrariam elementos factuais cuja fidedignidade não está posta em causa; pelo que, em conformidade, nos parece dever ser negada a requerida revisão”.

6. Depois de questionar o afirmado no parecer do Ministério Público, o recorrente reafirma a sua posição inicial dizendo, em síntese, que “não se concebe, que com mais nenhum elemento probatório se continue a insistir num único culpado, e que mesmo após existir uma Testemunha, completamente alheia nos autos, com um discurso totalmente claro e assertivo quanto a tudo o que lhe foi questionado, e que assume os  factos a que o Arguido foi injustamente condenado, continuamos perante uma Justiça que permite e aceita estar perante um cidadão em reclusão quando existe a possibilidade de estar inocente”, e concluindo que “urge reverter a situação, e cabe à justiça esclarecer o que de facto aconteceu, e porque razão surge agora alguém que assume a posse do estupefaciente, pelo que só após um novo julgamento, com todos os elementos e factos se poderá concluir por uma justiça justa e digna”.

7. O recorrente tem legitimidade para requerer a revisão (artigo 450.º, n.º 1, al. c), do CPP), nada obstando ao conhecimento do recurso.

Colhidos os vistos, o processo foi remetido à conferência para decisão (artigo 455.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

II. Fundamentação

Factos – sentença recorrida

8. A sentença recorrida, cuja revisão agora se pretende, julgou provados, na parte que agora interessa, os seguintes factos:

“1. Desde data não concretamente apurada, mas posterior ao dia 4 de Junho de 2017, e até ao dia 17 de Janeiro de 2019, o arguido dedicou-se à venda de produtos estupefacientes a terceiros.

2. No dia 17 de Janeiro de 2019, cerca das 10h30m, foi efectuada uma busca domiciliária à residência do arguido, sita na Praça ..., ..., ..., na ..., no decurso da qual foram encontrados os seguintes objectos:

A) - num quarto:

. seis telemóveis de marca Apple, modelo Iphone; . um telemóvel de marca BQ;

. € 300,00 (trezentos euros) que se encontravam no interior de uma bolsa de cor ... e branca;

. um Ipad cinzento;

. um saco de papel contendo uma embalagem contendo benzocaína, com o peso líquido de 994,00 gramas (substância geralmente utilizada como produto de corte da cocaína);

. um saco de papel, contendo no seu interior uma picadora.

B) noutro quarto:

. uma arma de fogo, de calibre 7.65mm Browning (.32 ACP ou .32 Auto), com o n.º de série rasurado, de funcionamento semiautomático de movimento duplo, com sistema de percussão central e indirecta, com um cano com 102 mm de comprimento, com seis estrias de sentido dextrogiro no seu interior, a qual se encontrava em condições de efectuar disparos, com o respectivo carregador, contendo no interior onze munições de calibre 7.65mm Browning de marca GFL, as quais se encontravam em boas condições de utilização.

. uma cobertura para punho, adequada à arma de fogo referida supra; . um coldre em cabedal de cor castanho;

. cinco telemóveis de marca Nokia; . um telemóvel de marca Altice;

. um telemóvel de marca Selecline; C) na despensa:

. uma mala de computador de cor ..., contendo no seu interior duas balanças e utensílios utilizados para embalamento e acondicionamento de estupefacientes;

. duas facas, com resíduos de cocaína;

. uma espátula, com resíduos de cocaína;

. dez bolotas de cannabis (resina), com o peso total líquido de 94,276 gramas, com o grau de pureza de 28,8%, correspondente a 543 doses.

. um boião de cor ..., contendo no seu interior uma balança de precisão, com resíduos de cocaína, uma bolota de cocaína “cloridrato”, com o peso líquido de 10,023 gramas, com o grau de pureza de 71,4%, correspondente a 35 doses, e duas embalagens de heroína, com o peso líquido de 1,882 gramas, com o grau de pureza de 11%, correspondente a 2 doses.

. um saco plástico contendo paracetamol e cafeína, com o peso líquido de 17,259 gramas, (substâncias geralmente utilizadas como produtos de corte de estupefacientes).

3. Nesse mesmo dia, foi efectuada uma busca ao veículo automóvel da marca ..., com a matrícula ..-..-PT, que se encontrava estacionado nas imediações da residência habitada pelo arguido, tendo sido encontradas, na respectiva bagageira, dezanove placas de cannabis resina (haxixe), com o peso total líquido de 1.831,400 gramas, com o grau de pureza de 13,7%, correspondente a 5018 doses.

4. Por o arguido se encontrar a utilizar o veículo de matrícula ..-RL-.., marca ..., modelo ..., de cor ..., encontrando-se na posse do mesmo e da respectiva chave, nesse mesmo dia, procedeu-se a uma busca a tal viatura, no decurso da qual foi encontrada e apreendida, no interior de uma mochila, uma embalagem de plástico contendo cocaína “cloridrato”, com o peso líquido de 10,329 gramas.

Foi ainda apreendido um inibidor de sinal com antena, que se encontrava ligado ao isqueiro do veículo.

5. O arguido não é titular de licença de uso e porte de arma ou de detenção de arma no domicílio, nem de registos ou manifestos de armas de fogo. (…)

15. O arguido mantém uma relação de namoro com EE desde 2017, frequentando e pernoitando assiduamente na casa onde esta última vive juntamente com a filha menor da mesma, desde 2018” (…)

26. Após ter sido libertado, em Fevereiro de 2010, regressou ao agregado da progenitora, composto por esta e pela irmã mais nova do arguido, tendo começado a trabalhar, por conta própria, no ramo do comércio de ..., num estabelecimento comercial em ..., gozando de uma situação económica estável e de capacidade para ajudar o seu agregado familiar.

27. Depois do período de reclusão sofrido desde 22 de Agosto de 2012 a 4 de Junho de 2017, o arguido regressou ao agregado da progenitora.

32. O veículo de matrícula ..-RL-.. encontra-se registado a favor de E..., S.A., na qualidade de proprietária.

33. O veículo de matrícula ..-..-PT encontra-se registado a favor de JJ, na qualidade de proprietário”.

9. Da motivação da decisão condenatória em matéria de facto consta, designadamente, quanto às provas em que se funda a decisão de facto:

“O Tribunal baseou-se, quanto à sua convicção sobre a matéria assente, nas declarações do agente da PSP DD, que interveio na identificação do arguido, na sequência de uma participação de terceiros, vindo posteriormente a participar na busca realizada na residência do mesmo, na ..., tendo explicado que chegou à conclusão de que o arguido residia naquela morada, por a mesma constar do seu documento de identificação, tendo, além disso, verificado, em diligências prévias, que era aquela a residência que o arguido frequentava, colocando o veículo, que utilizava, estacionado à porta.

O depoente explicou onde se encontravam os objectos apreendidos e melhor descritos nos autos de fls. 44 a 46 e de fls. 51 a 55, esclarecendo que a mãe do arguido tinha dificuldades de locomoção, sendo-lhe difícil, nomeadamente, alcançar a prateleira superior da despensa onde foram encontrados alguns dos objectos de detenção ilícita, escondidos.

Mais referiu que a mãe do arguido se mostrou surpreendida com as apreensões feitas na residência onde habitava, reacção que corroborou a convicção de que os objectos de detenção ilícita pertenceriam ao arguido.

No tocante à circunstância de o arguido residir juntamente com a sua mãe, na altura das apreensões efectuadas – não obstante a namorada do arguido, EE, ter pretendido convencer que o arguido residiria consigo, em ..., apenas ficando em casa da mãe esporadicamente – o Tribunal, além do depoimento de DD, valorou especialmente o facto de o próprio arguido, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, ter referido que vivia com a mãe, a irmã mais nova e uma sobrinha menor, identificando-se, de facto, como morador na residência sita na ..., onde decorreu a busca domiciliária.

Tais declarações, prestadas logo após a detenção – quando o arguido ainda não teria tido tempo de pensar profundamente sobre os efeitos das suas declarações relativas à residência, relativamente à prova da incriminação que lhe era imputada, – foram valoradas com especial peso, atenta a sua espontaneidade, tendo sido, como já aflorámos, corroboradas pelo depoimento prestado pela testemunha DD, que se baseou no resultado concordante das diligências prévias em que participou.

Os agentes da PSP FF e GG igualmente depuseram, de forma objectiva e segura, sobre as diligências em que intervieram, nomeadamente na busca ao veículo de matrícula ..-..-PT, utilizado pelo arguido.

Tendo sido o arguido abordado após a utilização do veículo de matrícula ..-RL-.., de cuja chave dispunha e forneceu, foi igualmente realizada busca em tal viatura, conforme atestado por DD, FF e GG.

Do depoimento das referidas três testemunhas, conjugado com os autos de busca e apreensão juntos aos autos, foi possível apurar, por um lado, que era o arguido o utilizador habitual das duas aludidas viaturas – tendo, nesse sentido, prestado depoimento esclarecedor o agente DD, que interviera em diligências prévias, no âmbito das quais observara actos de utilização, nomeadamente deslocações do arguido – e, por outro lado, quais os objectos apreendidos e os locais em que foram encontrados.

Conjugadamente com tais depoimentos, foi importante a análise dos autos de busca e de apreensão constantes do processo, relativamente à residência da mãe do arguido e à residência da namorada do mesmo, bem como, conforme já referido, aos dois veículos aludidos.

No tocante à conclusão sobre a actividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida pelo arguido, o Tribunal baseou-se nas regras de experiência comum aplicadas à análise da natureza e quantidades dos objectos apreendidos. De facto, a quantidade de produto estupefaciente detida pelo arguido, permitindo a divisão em elevado número de doses – conforme pericialmente apurado –, bem como a detenção de vários objectos utilizados habitualmente no processamento das doses para venda, nomeadamente de uma picadora, num dos quartos; de benzocaína, paracetamol e cafeína, substâncias utilizadas como produto de corte; de facas, espátula e balanças de precisão, indicam, claramente, a prossecução de uma actividade de tráfico de estupefacientes, na modalidade de venda. Porém, não foi possível apurar a exacta data a partir da qual o arguido se dedicou a tal actividade.

De direito

10. O direito à revisão de sentença condenatória tem consagração, como direito fundamental, no artigo 29.º, n.º 6, da Constituição, que dispõe: “Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.”

O direito à revisão, que se efetiva por via de recurso extraordinário que a autorize, nos termos dos artigos 449.º e seguintes do Código de Processo Penal (CPP), com realização de novo julgamento, possibilita a quebra do caso julgado de sentenças condenatórias que devam considerar-se injustas por ocorrer qualquer dos motivos taxativamente previstos na lei. A linha de fronteira da segurança jurídica resultante da definitividade da sentença, por esgotamento das vias processuais de recurso ordinário ou do prazo para esse efeito, como componente das garantias de defesa no processo (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), estabelece-se, enquanto garantia relativa à aplicação da lei penal (artigo 29.º da Constituição), no limite resultante da inaceitabilidade da subsistência de condenações que se revelem «injustas».

O juízo de grave dúvida sobre a justiça da condenação, por virtude da demonstração dos fundamentos contidos no numerus clausus definido na lei, que justifica a realização de novo julgamento, sobrepõe-se, assim, à eficácia do caso julgado, em homenagem às finalidades do processo – a realização da justiça do caso concreto, no respeito pelos direitos fundamentais –, desta forma se operando o desejável equilíbrio entre a segurança jurídica da definitividade da sentença e a justiça material do caso. O fundamento do caso julgado «radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito», sublinha Eduardo Correia, que acrescenta: «a força de uma sentença transitada em julgado há-de estender-se até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos a julgamento», sendo que «posta uma questão ante um magistrado, deve este necessariamente resolvê-la esgotantemente até onde deva e possa» (Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Teoria do Concurso em Direito Criminal, Almedina, 1963, pp. 302 e 304).

11. Num processo penal de tipo acusatório completado por um princípio de investigação, a que corresponde o modelo do Código de Processo Penal, as garantias e procedimentos que devem ser respeitados tendo em vista a formação de uma decisão judicial definitiva de aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (artigo 340.º e segs. do CPP), incluindo as possibilidades de impugnação, de facto e de direito, por via de recurso ordinário (artigo 412.º do CPP) admissível, por regra, relativamente a todas as decisões in procedendo e in judicando (artigo 399.º), reduzem e previnem substancialmente as possibilidades de erro judiciário que deva ser corrigido por via de recurso extraordinário de revisão contra as «injustiças da condenação», o que eleva especialmente o nível de exigência na apreciação dos fundamentos para autorização da revisão.

A garantia do direito a um processo equitativo («processo justo»), nas suas múltiplas dimensões, tal como se consagra no artigo 32.º da Constituição e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que concorrem neste sentido, impõem que ao arguido, que tem o direito e o dever de estar presente em audiência, assistido por defensor (artigos 61.º e 332.º do CPP), seja dado o tempo e os meios necessários para preparação da sua defesa e apresentar os meios de prova a produzir e assegurada a faculdade de contradizer a prova contra si produzida em audiência (como se estabelece nos artigos 315.º, 327.º, 339.º, n.º 4, 340.º e 355.º do CPP).

12. A lei enumera os fundamentos e dispõe sobre admissibilidade da revisão no artigo 499.º do CPP. Estabelece a al. d) do n.º 1 deste preceito, em que o recorrente fundamenta o seu pedido:

«1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando: (…)

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. (…)»

3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada. (…)»

Importa ainda considerar o artigo 453.º (Produção de prova), que dispõe:

«1 - Se o fundamento da revisão for o previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º, o juiz procede às diligências que considerar indispensáveis para a descoberta da verdade, mandando documentar, por redução a escrito ou por qualquer meio de reprodução integral, as declarações prestadas.

2 - O requerente não pode indicar testemunhas que não tiverem sido ouvidas no processo, a não ser justificando que ignorava a sua existência ao tempo da decisão ou que estiveram impossibilitadas de depor.»

No caso sub judice, há, pois, que, em conformidade com estas disposições legais, averiguar se se descobriram novos factos ou novos meios de prova que, por si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. A revisão incide, assim, sobre a questão de facto, visando um julgado novo sobre os factos provados, com base em novos elementos de facto.

13. A compreensão do conceito de “justiça da condenação”, contido nesta alínea d), tem-se sedimentado por recurso a elementos históricos e sistemáticos de interpretação, tendo em conta a evolução da legislação.

Na sua formulação inicial, a possibilidade de revisão com fundamento em novos factos e em novos meios de prova requeria que estes constituíssem grave presunção de inocência do condenado. Dispunha o artigo 673.º, n.º 4, do CPP de 1929 que «Uma sentença com trânsito em julgado só poderá ser revista: (…) 4.º Se, no caso de condenação, se descobrirem novos factos ou elementos de prova que, de per si ou combinados com os factos ou provas apreciados no processo, constituam graves presunções da inocência do acusado». 

No atual CPP, a possibilidade de revisão alargou-se, porém, para além das situações em que possa haver «graves presunções da inocência do acusado». Por virtude da nova formulação – «graves dúvidas sobre a justiça da condenação» – expandiu-se o campo das possibilidades de revisão com base em novos factos ou novos meios de prova, em harmonia com o conteúdo do princípio da presunção da inocência e do direito a um processo justo, embora, como tem sido sublinhado, aquelas situações continuem a reconduzir-se ao núcleo essencial da previsão da al. d) do n.º 1 do artigo 449.º, com a limitação resultante do n.º 3 deste mesmo preceito, que se traduz na inadmissibilidade da revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada (sobre este ponto, Conde Correia, O «Mito» do Caso Julgado e a Revisão Propter Nova, Coimbra Editora, 2010, p. 381ss).

14. Nas circunstâncias do caso, a questão deverá, assim, analisar-se metodologicamente em dois momentos: (a) Na verificação e determinação da “novidade”, isto é, em determinar se são apresentados factos ou meios de prova que devam considerar-se “novos”; (b) Se reconhecida a novidade, na verificação da sua necessária aptidão para que se possam constituir fundadas bases de um juízo de fortes dúvidas sobre os fundamentos da condenação, se pode concluir que a aplicação da pena constituiu o resultado de inaceitável erro judiciário de julgamento da matéria de facto.

15. A jurisprudência consolidada deste tribunal tem sublinhado que, para efeitos da al. d) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, são novos meios de prova os que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação e em que esta se fundou e que, sendo desconhecidos do tribunal no ato de julgamento, permitam suscitar graves dúvidas acerca da culpabilidade do condenado. Novos meios de prova são aqueles que são processualmente novos, que não foram apresentados no processo da condenação. A novidade, neste sentido, refere-se ao meio de prova – seja pessoal, documental ou outro –, e não ao resultado da produção da prova (como se salienta, entre outros, no acórdão de 9.2.2022, Proc. 163/14.8PAALM-A.S1, citando o acórdão de 10.04.2013, Proc. 127/01JAFAR-C.S1, 3.ª Secção, em www.dgsi.pt).

«Novos» factos ou meios de prova são, em regra, apenas os que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e, porque aí não apresentados, não puderam ser considerados pelo tribunal [acórdãos de 9.2.2022, cit., e de 2.5.2018, Proc. n.º 1342/16.9JAPRT-E.S1, citando-se os acórdãos de 26.10.2011 proc. 578/05.2PASCR.A.S1 (Sousa Fonte), de 30.1.2013, proc. 2/00.7TBSJM-A.S1 (Raul Borges), com indicação exaustiva de jurisprudência e doutrina, e de 19.03.2015, proc. 175/10.0GBVVD-A.S1 (Isabel São Marcos), em www.dgsi.pt]. Admitindo-se, no entanto, que, embora não sendo ignorados pelo recorrente, poderão estes ser excecionalmente considerados desde que o recorrente justifique a razão, atendível, por que os não apresentou no julgamento (assim, entre outros os acórdãos de 8.1.2014, no proc. 1864/13.33T2SNT-A.S1, e de 16.1.2014, no proc. 81/05.0PJAMD-A.S1, em Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 2016, 2.ª ed. e anotação ao artigo 449.º, de Pereira Madeira).

16. A dúvida relevante para a revisão tem de ser qualificada. Como se tem salientado, não basta a mera existência da dúvida; é necessário que ela se eleve a um patamar de solidez que permita afirmar a sua «gravidade» [como se nota, entre outros, nos acórdãos de 9.2.2022, cit., de 30.1.2013, proc. 2/00.7TBSJM-A.S1 cit. e de 29.4.2009, proc. 15189/02.6.DLSB.S1 (Pires da Graça)], isto é, que, na ponderação conjunta de todos os factos e meios de prova, seja possível justificadamente concluir que, tendo em conta o critério de livre apreciação (artigo 125.º do CPP) e sem prejuízo da sujeição das novas provas ao teste do contraditório, imediação e oralidade do novo julgamento, deles resulta uma forte possibilidade de não condenação.

Apreciação

17. Recordando a motivação do recurso, alega o recorrente, em síntese:

(a) que “a versão dada como provada e que consequentemente levou à condenação, [lhe] atribuiu a posse e propriedade de todo o produto estupefaciente apreendido e foi o alicerçar nessa fundamentação que levou à [sua] condenação”;

(b) que “tais produtos não eram do arguido, mas aquando da realização do julgamento e posteriores recursos não tinha como provar efetivamente que o produto estupefaciente apreendido não era dele, porque na realidade desconhecia de quem era, uma vez que na casa onde os mesmos foram apreendidos e alvo das respetivas buscas era habitada por outras pessoas e frequentada por terceiros”;

(c) que “só em sede de reclusão veio a saber através da sua irmã BB, que o produto apreendido e guardado no interior da residência alvo de buscas e do veículo automóvel eram da pertença de CC, (…) [que na] altura dos factos mantinha uma relação amorosa com a sua irmã e que por medo de represálias a mesma nunca [lhe] contou a verdade, apenas o fazendo há poucos dias, após o fim do referido namoro”, o que é “facto novo, que não era do [seu] conhecimento, aquando da audiência de discussão e julgamento”;

(d) que “sempre soube que o referido produto não era da sua pertença, porque inclusive já não residia naquela casa, como aliás ficou provado, mas desconhecia o seu proprietário e com que intenção ou o porquê de o mesmo estar guardado naqueles locais, inclusive nos veículos onde foi também encontrado o estupefaciente”.

Continua dizendo:

(a) que “nada existe, e nada liga este produto ao arguido”;

(b) que “é notório a ausência de outras provas produzidas em sede de audiência de discussão e julgamento que enlacem aquelas substâncias encontradas na residência ao arguido, e até nos próprios veículos”;

(c) que “essa certeza não foi revelada em sede de audiência de discussão e julgamento, há apenas uma convicção no julgador de que o produto encontrado pertence ao arguido, sem sequer fundamentar a sua razão de ser”;

(d) que “cabia ao Ministério Público provar que o produto estupefaciente era do arguido, ou a outro elemento qualquer, e não atribuir a sua posse e responsabilidade de imediato ao arguido, quando na verdade ficou provado, embora o tribunal assim não quisesse ver, que o arguido não reside naquela residência, residindo na mesma outras pessoas, e a droga apreendida foi encontrada em espaços comuns da casa”;

(e) que “o tribunal a quo violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do CPP”;

(f) que, “ao dar como provados factos que não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento, violou, ainda, o disposto no artigo 355.º, nº 1, do CPP”, pois que “de acordo com esta norma, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas em audiência de julgamento”;

(g) que “é evidente e bastante notória a insuficiência da prova realizada para aquela que foi a decisão da matéria provada, motivo pela qual estamos, perante a violação do principio do "in dubio pro reo””;

(h) que “houve uma total ausência de prova que o recorrente tenha praticado os crimes em que foi condenado, e ainda assim, existe uma dúvida razoável quantos aos factos pelos quais vem o arguido acusado, e quanto à sua culpa, pelo que deve ser absolvido dos mesmos, por não se considerarem provados os factos contantes dos artigos 1, 9 e 14 do douto acórdão”, devendo “considerar-se por não provados por total ausência de prova e consequentemente ser o arguido absolvido dos crimes de que foi condenado”.

18. O que acaba de se transcrever evidencia, em primeira análise, meramente formal, que a motivação do recurso se dirige diretamente aos fundamentos da decisão recorrida em matéria de facto, nomeadamente à apreciação e valoração das provas e ao seu resultado, matérias que, compreendendo-se no âmbito, objeto e finalidades do recurso ordinário (artigo 412.º do CPP), se encontram subtraídas ao objeto e ao conhecimento do recurso extraordinário de revisão (artigos 449.º e segs. do CPP), que pressupõe o trânsito em julgado da decisão condenatória. Eloquentes no sentido do que se afirma são, nomeadamente, as afirmações da falta ou insuficiência de prova para a condenação, da violação do princípio in dubio pro reo, que constitui um princípio relativo à apreciação da prova, da existência de dúvida razoável quanto à participação do recorrente na prática dos factos e a pretensão de absolvição dos crimes por que o recorrente se encontra condenado.

Depois, o recorrente assume que sempre soube que o produto estupefaciente não era sua pertença, mas que, na audiência de julgamento, não tinha como provar que não era seu porque desconhecia a quem pertencia e só agora o pode fazer por a sua irmã o ter informado. Ora, a questão de saber se o produto pertencia ou estava na posse do recorrente era matéria essencial e central do julgamento, pois daí dependia a decisão final de condenação ou de absolvição, por dizer respeito à prova de um elemento essencial do tipo de crime por que o recorrente estava acusado e a ser julgado. Como é óbvio, não tinha o recorrente que provar a quem pertencia esse produto, não se lhe impunha qualquer ónus de prova. Bastar-lhe-ia, como a lei processual lhe garante, alegar aquele conhecimento de que o produto lhe não pertencia (alegação que não se extrai da fundamentação da decisão condenatória em matéria de facto), contrariar a prova produzida, em suma, que usasse os meios de defesa ao seu alcance na audiência de julgamento. Como anteriormente se referiu, as regras de produção de prova em julgamento e as garantias do processo contraditório em processo de tipo acusatório complementado por um princípio de investigação reduzem substancialmente as possibilidades de erro judiciário que deva ser corrigido por via do recurso extraordinário de revisão (supra, 10 e 11).

Pelo que, neste quadro e nos estritos limites dos fundamentos do recurso extraordinário de revisão, apenas há que verificar se, mesmo assim, não obstante tais regras e garantias, a prova agora indicada constitui um meio de prova “novo” que, por si ou combinado com os meios de prova apreciados no processo, tenha por efeito suscitar uma “grave dúvida sobre a justiça da condenação” (supra 12 a 16), não bastando que da prova obtida dos “novos” meios de prova se possa, por mero confronto com os factos provados na decisão de condenação, verificar uma simples divergência ou contrariedade como a que afirma o recorrente nas conclusões ao dizer que “a factualidade dada como provada é contrariada por uma nova versão dos factos” (conclusão 3).

19. Observa a Senhora Juíza do processo, na informação produzida que “a questão de o arguido residir, ou não, na Praceta ..., ..., ...”, “a existência, ou inexistência, de elementos de conexão entre o arguido e os produtos estupefacientes”, “bem como [com] as substâncias utilizadas no corte daqueles, apreendidos nos autos”, que o recorrente coloca no centro da sua argumentação, “foi suscitada em audiência de julgamento”, tendo sido “objeto de análise pelo tribunal conforme resulta da motivação da matéria de facto”, em que se especificam e se analisam as provas que serviram de base à decisão, aqui se incluindo as declarações do próprio arguido prestadas após a detenção, nomeadamente no interrogatório judicial que então teve lugar e perante os agentes da PSP, o depoimento dos agentes da PSP, em particular do agente DD, que procederam à vigilância (“diligências prévias”), identificaram o arguido, confirmaram o local de residência e participaram nas buscas, e o resultado das “diligências prévias” efetuadas. Com efeito, sendo estes elementos de facto fundamentais à decisão sobre a culpabilidade, a prova a produzir sobre eles era essencial.

20. Recordando a fundamentação do acórdão condenatório, no que se refere aos bens e quantia apreendida e à utilização das viaturas tribunal motivou a decisão em matéria de facto referindo que “os agentes da PSP FF e GG igualmente depuseram, de forma objectiva e segura, sobre as diligências em que intervieram, nomeadamente na busca ao veículo de matrícula ..-..-PT, utilizado pelo arguido” e que “tendo sido o arguido abordado após a utilização do veículo de matrícula ..-RL-.., de cuja chave dispunha e forneceu, foi igualmente realizada busca em tal viatura, conforme atestado por DD, FF e GG”, concluindo que “do depoimento das referidas três testemunhas, conjugado com os autos de busca e apreensão juntos aos autos, foi possível apurar, por um lado, que era o arguido o utilizador habitual das duas aludidas viaturas – tendo, nesse sentido, prestado depoimento esclarecedor o agente DD, que interviera em diligências prévias, no âmbito das quais observara actos de utilização, nomeadamente deslocações do arguido – e, por outro lado, quais os objectos apreendidos e os locais em que foram encontrados”.

21. Dos factos provados, que o recorrente não questiona, resulta que “depois do período de reclusão sofrido desde 22 de Agosto de 2012 a 4 de Junho de 2017, o arguido regressou ao agregado da progenitora” (no local indicado), embora frequentasse e pernoitasse assiduamente na casa da namorada II, e que “tinha consigo” a pistola e as munições apreendidas na mesma residência. O facto de frequentar e pernoitar (passar a noite) com assiduidade na casa da namorada não é, obviamente, incompatível com o facto de residir na casa onde foram apreendidos os estupefacientes e a arma e munições, que o tribunal recorrido julgou provado estarem na posse do arguido, pelo que daí não pode extrair-se, como pretende, conclusão contrária no sentido da sua pretensão.

22. O recorrente apresentou duas testemunhas – a sua irmã II e CC, com quem, à data dos factos (em janeiro de 2019), ela “tinha uma relação amorosa”, terminada “há pucos dias” (em junho de 2022) – que não foram ouvidas em julgamento (em fevereiro de 2020). Diz que só soube, já em “reclusão”, que a sua irmã tinha conhecimento de que o produto estupefaciente era do seu “namorado” CC, por esta só nesta altura lhe ter contado esse facto “por medo de represálias”, circunstância que, todavia, não demonstra e que seria de relevo em vista da sua admissão face ao disposto no artigo 453.º, n.º 2, do CPP.

As testemunhas indicadas foram ouvidas no âmbito do recurso, nos termos do n.º 1 do artigo 453.º do CPP, sendo o seu depoimento apreciado e valorado, de acordo com as regras e critérios aplicáveis (artigo 127.º do CPP), nos termos que constam da pronúncia da Senhora Juíza do processo sobre o mérito do pedido (artigo 454.º do CPP).

23. Como se extrai da informação da Senhora Juíza do processo, a testemunha BB declarou que o arguido “residia na Praceta ..., ..., ..., ainda que não pernoitasse sempre, nessa residência”, onde “além de si e de o arguido, vivia a sua mãe, bem como uma sobrinha”, que “a residência tem três quartos, um dos quais ocupado pelo arguido e outro, ocupado por si”, que “o arguido possuía o veículo marca ..., com matrícula ..-..-PT e que este veículo não era utilizado por CC”; inquirida sobre o produto estupefaciente que foi apreendido no interior da residência, “declarou ter “a suspeita” que tal substância pertencia a CC” com quem “tinha uma relação de namoro” e que “este pernoitava, por diversas vezes, na sua residência”. Sobre a razão para não ter prestado depoimento em audiência de julgamento, “referiu que, nessa data, não tinha certeza se a substância estupefaciente pertencia ou não a CC e que, em data posterior ao termo da audiência de julgamento, confrontou este, tendo o mesmo admitido que lhe pertencia toda a substância estupefaciente apreendida”.

Deste depoimento, que confirma o provado quanto ao local de residência, não se surpreende facto incompatível com o decidido em matéria de facto.

24. Da mesma informação se extrai que a testemunha CC confirma a relação de namoro, ao tempo dos factos, com BB, que pernoitava na residência desta, onde viviam também a sua mãe, uma sobrinha e o arguido, que esta o “pressionava sobre a pertença do produto estupefaciente apreendido”.

Extrai-se também que a testemunha CC “referiu que o arguido utilizava dois veículos de marca ..., cuja cor não conseguiu indicar “o que não deixa de causar perplexidade considerando que um dos veículos era o local onde alegadamente guardou, desde Outubro/Novembro de 2018 até início do ano de 2019, dezanove placas de haxixe e onde se deslocava sempre que necessitava de tal substância”; que esta testemunha, “inquirida sobre o produto estupefaciente apreendido, disse pertencer-lhe e que se destinava ao seu consumo pessoal durante cerca de quatro meses”; que “confrontado com a quantidade - dezanove placas de cannabis resina (haxixe), com o peso total líquido de 1.831,400 gramas, com o grau de pureza de 13,7%, correspondente a 5018 doses – de haxixe apreendida, referiu que “maior parte” era para o seu consumo”; que “referiu que as dezanove placas de haxixe foram por si colocadas, em Outubro/Novembro de 2018, na parte traseira do veículo ..., sem conhecimento do arguido, esclarecendo que se encontrava danificada a fechadura da porta do lado do condutor desse veículo o que lhe permitia o acesso ao interior do mesmo”; e que “declarou não saber a data em que adquiriu o haxixe e ter pago quantia não superior a dois mil euros pelas dezanove placas de haxixe” quantia que “declarou ter “juntado”, durante cerca “de um ano”.

Apreciando esta parte do depoimento da testemunha, a Senhora Juíza do processo, concluiu, em juízo não merecedor de qualquer reparo, que, “à luz das regras da experiência comum, do senso comum e da lógica, não é credível que a testemunha CC, com o rendimento mensal auferido [de cerca de 800 euros] e as despesas mensais fixas [450 euros de renda mensal e despesas quotidianas, tais como as referentes à alimentação, ao transporte, ao consumo de água, gás e eletricidade, ao telemóvel e à televisão], tivesse conseguido canalizar, num ano, dois mil euros para aquisição de produto estupefaciente, bem como a quantia necessária à aquisição de substâncias utilizadas no corte de produto estupefaciente e à aquisição de cocaína, sendo o consumo desta substância de duas gramas por dia”.

25. Quanto à cocaína apreendida no interior do veículo ..-RL-.. – uma embalagem de plástico contendo cocaína “cloridrato”, com o peso líquido de 10,329 gramas – da informação prestada extrai-se que “a testemunha CC disse pertencer-lhe, tendo pago a quantia de €300,00 (trezentos euros)” e “referiu que numa das raras vezes em que o arguido AA lhe deu boleia até à estação, deve ter deixado cair o produto estupefaciente, do bolso do seu fato treino.”

Retira-se também que “confrontado com a circunstância da cocaína se encontrar no interior de uma mochila, a testemunha alterou o seu depoimento por forma a contornar tal obstáculo, referindo que também costumava andar com mochila”; que a testemunha “admitiu serem seus os seis telemóveis apreendidos num dos quartos da residência, bem como a quantia de €300,00 (trezentos euros), a embalagem contendo benzocaína, com o peso líquido de 994,00 gramas, bem como a picadora”; que “declarou não se recordar quanto pagou por esta substância” e que “referiu que o produto de corte se destinava a “fazer a misturacom o produto estupefaciente para “poder dispensar” a amigos, em contrapartida de quantia monetária”, “com uma periodicidade de uma/duas vezes, por semana”, fazendo a divisão e preparação na residência de II.

Retira-se ainda que “declarou a testemunha CC que lhe pertence o produto estupefaciente - [dez bolotas de cannabis (resina), com o peso total líquido de 94,276 gramas, com o grau de pureza de 28,8%, correspondente a 543 doses; uma bolota de cocaína “cloridrato”, com o peso líquido de 10,023 gramas, com o grau de pureza de 71,4%, correspondente a 35 doses; e duas embalagens de heroína, com o peso líquido de 1,882 gramas, com o grau de pureza de 11%, correspondente a 2 doses] -, bem como as substâncias utilizadas como produtos de corte - paracetamol e cafeína, com o peso líquido de 17,259 gramas -, apreendidos no interior da residência, na despensa; a mala de computador contendo duas balanças e utensílios utilizados para embalamento e acondicionamento de estupefacientes; as duas facas, com resíduos de cocaína; a espátula, com resíduos de cocaína; e a balança de precisão, com resíduos de cocaína”.

26. O depoimento da testemunha CC foi confrontado com a prova produzida em julgamento, tendo a Senhora Juíza do processo, em juízo de apreciação que se mostra adequado e fundamentado, consignado, em síntese:

(a) que “a versão prestada para ter acesso ao veículo é contrariada pelo depoimento prestado pelas testemunhas DD e GG pois, só tiveram acesso ao interior do veículo com a matrícula ..-..-PT, após a chave ser disponibilizada pelo arguido”;

(b) que “não é credível que um indivíduo guarde dezanove placas de haxixe com peso superior a 1.800 gramas, no interior de um veículo que não lhe pertence e relativamente ao qual não tem o domínio”;

(c) que “não é plausível que um indivíduo guarde dezanove placas de haxixe no interior de um veículo, sabendo que qualquer cidadão podia aceder, através da porta do lado do condutor, ao interior desse veículo e, subsequentemente ao produto estupefaciente aí guardado”;

(d) que “sobre o produto estupefaciente apreendido no interior do veículo de matrícula ..-RL-.., a versão apresentada pela testemunha não merece acolhimento considerando que a cocaína foi encontrada no interior de uma mochila”;

(e) que “não é merecedora de credibilidade a explicação apresentada para a guarda, no interior da residência do arguido, do produto de corte e dos utensílios destinados à preparação do produto estupefaciente”, e

(f) que, quanto às “substâncias apreendidas na despensa, utilizadas para corte de substâncias de natureza estupefaciente, a hesitação da testemunha quando inquirida, não permite concluir que tivesse conhecimento da sua existência, naquele local”.

27. Em conclusão, refere a Senhora Juíza do processo: “Em suma, cremos que a coloração dos factos trazida pela testemunha CC e a valoração de todos os elementos probatórios não permite a conclusão pretendida pelo arguido, ou seja, de exclusão da sua responsabilidade criminal pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes. A guarda de dezanove placas de haxixe ocorre em local cujo domínio pertence ao arguido e não à testemunha CC. Foi evidente o desconhecimento da testemunha CC quanto ao tipo de produtos de corte que se encontravam na despensa da residência de o arguido. Foi manifesto o desconhecimento da testemunha CC quanto à localização da cocaína apreendida no interior do veículo de matrícula ..-RL-.., utilizado pelo arguido, e à circunstância dessa substância se encontrar dentro de uma mochila. É na residência do arguido que ocorre a guarda de utensílios e de produto de corte utilizados na preparação e divisão de produto estupefaciente”.

28. Em conformidade com o que vem de se expor, e em concordância com a Senhora Juíza do processo e com a posição do Ministério Público, impõe-se concluir que os depoimentos das testemunhas agora indicadas, cuja não apresentação em julgamento, deve notar-se, não se encontra suficientemente justificada, não permitem colocar seriamente em crise os fundamentos da decisão condenatória em matéria de facto e, assim, afirmar, em conformidade com a exigência da al. d) do n.º 1 do artigo 499.º do CPP, que estas constituem novos meios de prova que, por si só ou combinados com os que foram apreciados no processo, em que se fundamenta aquela decisão, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação, ou, noutra formulação, que a aplicação da pena constitui resultado de inaceitável erro judiciário de julgamento da matéria de facto.

Pelo que deve ser negada a revisão.

III. Decisão

29. Pelo exposto, e com estes fundamentos, nos termos do disposto no artigo 455.º~, n.º 3, do Código de Processo Penal, acordam os juízes em conferência na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em denegar a revisão da sentença condenatória requerida pelo condenado AA.

Vai o recorrente condenado em custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (artigos 456.º do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, em anexo).


Supremo Tribunal de Justiça, 6 de julho de 2022


José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria da Conceição Simão Gomes

Nuno António Gonçalves

(assinado digitalmente)