EXTRADIÇÃO
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DA ENTREGA
DOENÇA GRAVE
Sumário


I. Prevendo o artigo 12.º-A da Lei n.º 65/2003, de 23.08, casos de execução facultativa, a recusa há-de fundar-se em dúvida sólida e grave sobre as garantias de respeito pelos direitos fundamentais do arguido que, manifestamente, não se desvelam na situação em apreciação.
II. O arguido alega razões de saúde, bem como outras condições pessoais e profissionais, que entende justificarem a suspensão temporária da entrega por motivos humanitários graves, ao abrigo do n.º 4 do art. 29.º da Lei 65/2003, de 23.8.
III. A situação de doença invocada constituiria, nos termos do art.º 29.º n.º 4, da Lei n.º 65/03, motivo de suspensão temporária da entrega, “comprovando-se uma particular exigência: a de que a entrega imediata fizesse manifestamente perigar a vida ou saúde da pessoa procurada” que não se mostra alegada e demonstrada.

Texto Integral



Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório


1. AA, de nacionalidade ..., nascido em .../.../1961, natural de ..., com os demais sinais dos autos, recorre para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no artigo 24º. da Lei 65/2003, de 23 de agosto, do acórdão do Tribunal da Relação ..., de 22.06.2022, que julgou improcedente a defesa apresentada e deferiu o cumprimento do Mandado de Detenção Europeu, emitido pelo Procuradoria da República junto do Tribunal de Grande Instância de ..., em 2 de fevereiro de 2018, para cumprimento de uma pena de 3 anos e 9 meses de prisão.

2. Alegando que a execução do Mandado de Detenção e consequente entrega do Recorrente ao Estado Francês não é assistida pelas necessárias e exigidas garantias e pedindo a sua revogação e substituição por outro que decida a suspensão temporária da entrega, diz, em conclusões:

“1 - O Requerido foi presente ao Tribunal da Relação ..., no âmbito do pedido internacional para detenção e entrega, emitido pelas autoridades francesas.

2 - O Requerido nunca teve conhecimento da condenação a que foi sujeito no âmbito do procedimento criminal a que é relativo o presente processo.

3 - Não praticou os factos de que vem acusado, nem consequentemente, qualquer crime.

4 - O julgamento em causa realizou-se, portanto, sem a presença do ora Recorrente.

5 – Na pendencia dos presentes autos, o Recorrente contactou as autoridades francesas, solicitou a realização de novo julgamento, tendo já sido agendada a data para a realização de novo julgamento.

6 - Isto porque o julgamento inicial se realizou na sua ausência.

7 - As autoridades francesas não garantem ao aqui Recorrente os meios para assegurar a sua defesa em liberdade.

8 - O recorrente vê-se sujeito a não permanecer em liberdade enquanto aguarda por novo julgamento esvaziando-se de qualquer sentido a garantia prestada pelo Estado francês.

9 - O Recorrente reside desde março de 2016 em Portugal, onde possui residência estável.

10 - O Recorrente é detentor de duas sociedades em Portugal, onde exerce a sua atividade profissional e paga impostos.

11 - O Recorrente vive em união de facto e encontra-se perfeitamente integrado na sociedade portuguesa, onde pretende manter-se.

12 - O Recorrente e a sua companheira têm inúmeros problemas de saúde.

13 - A entrega do Recorrente a França implicará o afastamento do seu meio familiar, imprescindível para a sua saúde.

14 – A execução do Mandado de Execução e consequente entrega do Recorrente ao estado Francês não é assistida pelas necessárias e exigidas garantias.

15 – Ainda que se considerasse não existir fundamento de recusa da execução do Mandado de Detenção Europeu, o que não se concede, o Estado Português deveria considerar o perigo para a saúde do Recorrente resultante da entrega do mesmo às autoridades francesas e em consequência, optar pela suspensão temporária da entrega.”


3. O Ilustre Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação ... respondeu, concluindo:

“a) O cumprimento do presente mandado de detenção europeu – M.D.E. funda-se no princípio do reconhecimento, confiança e respeito mútuos entre os Estados membros, previsto no art.º 1.º n.º 2 da Lei n.º 65/2003, de 23/08, e na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho;

b) Não se vislumbra a existência de qualquer obstáculo legal ponderoso que legitime a recusa obrigatória ou facultativa do presente mandado de detenção europeu – M.D.E..

c) O presente mandado de detenção europeu – M.D.E. observa escrupulosamente todas as exigências de forma e de conteúdo legalmente exigidas pelo Regime Jurídico Geral ou Organização Quadro do mandado de detenção europeu aprovado pela Lei n.º 65/2003 de 23/08/2003 publicada no Diário da Republica n.º 194/2003, Serie I – A, em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho de 13 de junho, na redação introduzida e editada pelas Leis n.ºs 35/2015, de 4 de maio, e 115/2019, de 12 de setembro.

d) O pedido ou pretensão de entrega judicial do Estado emitente é legitimo, juridicamente atendível, fundamentado e não contraria qualquer norma legal do direito interno português e da ordem publica internacional.

e) Devendo julgar-se o presente recurso manifestamente improcedente por falta de fundamento legal com a integral confirmação e manutenção do douto acórdão criticado, nos precisos e exatos termos em que foi prolatado, e em consequência, ordenar-se a entrega do requerido AA às competentes autoridades judiciárias de França, para efeitos de cumprimento da pena fixada, pelos factos e infração penal que a motivaram, sem prejuízo e com a salvaguarda do principio da especialidade, ao qual este cidadão não renunciou.”


4. É o seguinte o teor do acórdão recorrido: (transcrição)

I - Pela Procuradoria da República junto do Tribunal de Grande Instância de ..., foi emitido, em 2 de fevereiro de 2018, Mandado de Detenção Europeu (MDE) contra AA (de nacionalidade ..., natural de ..., ..., nascido em .../.../1961, solteiro, empresário, residente em Rua ..., ... ...) para cumprimento da pena de quatro anos de prisão em que este foi condenado, por decisão de 22 de dezembro de 2017, pelo Tribunal Correcional de ..., no processo n.º ...78, pelo crime de abuso de confiança de pessoa vulnerável, p. e p. pelo artigo 314.º, n.º 1, 1), n.º 2, 1) e n.º 10 do Código Penal françês (crime punível com pena de prisão até sete anos), o que corresponde ao crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 4, b), do Código Penal português (crime punível com pena de prisão até oito anos).

 Na sequência desse Mandado, o requerido veio a ser detido no dia 31 de março de 2022, pelas 11 horas e 30 minutos, e posteriormente conduzido a este Tribunal da Relação para audição.

Ouvido o detido, com observância das formalidades legais, em diligência iniciada pelas 12 horas do dia 1 de abril , declarou o mesmo que não renunciava a regra da especialidade e que não consentia na entrega ao Estado requerente, solicitando prazo para deduzir oposição, o que foi deferido, sendo-lhe concedido o prazo de dez dias para o efeito e determinando-se que aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito à obrigação de apresentação semanal no posto policial da área da sua residência.

Nessa oposição, o requerido afirma que nunca teve conhecimento da acusação e condenação a que é relativo o Mandado de Detenção em apreço (tendo sido ouvido no âmbito do processo referido apenas uma vez, em 2015), que não cometeu o crime por que foi condenado, que, depois de ter residido na ..., reside estavelmente em Portugal desde 2016, gerindo duas empresas e vivendo maritalmente com uma senhora com graves problemas de saúde e que não tem antecedentes criminais. Alega que o Mandado de Detenção em apreço não indica se o seu fim é o cumprimento de pena ou o cumprimento de obrigações processuais, o que constitui desrespeito pelos seus direitos de arguido decorrentes dos artigos. 58.º, 61.º, g), 257.º e 258.º, nº 3, do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 16.º, n.º 6. da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto. e ainda dos artigos 20.º, 27.º e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Entretanto, o requerido veio informar que, no processo em questão, havia requerido novo julgamento e que este já estava marcado, facto que foi confirmado pela Autoridade emitente. Esta declarou, porém, que tal facto não anulava o seu interesse na execução do Mandado de Detenção em apreço, declarando também que o ora requerido poderá solicitar no processo em que foi condenado a aplicação de medida de coação não detentiva e que são reduzidas as hipóteses de reversão da sua condenação..

O Ministério Público promove que seja deferido o pedido, por não existirem e fundamentos legais para a recusa de cumprimento do Mandado de Detenção em apreço.

  Colhidos os vistos legais, procedeu-se a audiência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II - O objecto do presente processo encontra-se delimitado pelos termos do Mandado de Detenção Europeu, importando decidir se a pessoa procurada deve, ou não, ser entregue às autoridades judiciárias requerentes.                    

III  - Analisemos o conteúdo da oposição deduzida pelo requerido.

Vem o requerido dizer, na sua oposição, que não cometeu o crime por que foi condenado, que, depois de ter residido na ..., reside estavelmente em Portugal desde 2016, gerindo duas empresas e vivendo maritalmente com uma senhora com graves problemas de saúde e que não tem antecedentes criminais. Alega que o Mandado de Detenção em apreço não indica se o seu fim é o cumprimento de pena ou o cumprimento de obrigações processuais elos direitos do arguido, o que constitui desrespeito pelos seus direitos de arguido decorrentes dos artigos. 58.º, 61.º, g), 257.º e 258.º, nº 3, do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 16.º, n.º 6. da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto. e ainda dos artigos 20.º, 27.º e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Impõe-se reconhecer que nenhuma das razões invocadas pelo requerido se integra nalguma das causas de recusa obrigatória da execução de um Mandado de Detenção Europeu, elencadas no artigo 11.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, nem de recusa facultativa dessa execução elencadas no artigo 12.º dessa mesma Lei.

O Mandado de Detenção Europeu em apreço é claro quanto à sua finalidade, que é o do cumprimento de uma pena a que o requerido foi condenado (não o cumprimento de obrigações processuais). Não cabe nesta sede, obviamente, impugnar tal condenação e discutir a prova nela considerada. São irrelevantes nesta sede as questões invocadas pelo requerido e relativas à sua inserção social e à circunstância de não ter antecedentes criminais.

Uma dúvida, porém, poderia suscitar-se (e, na verdade, se suscitou) pela afirmação do requerido de que desconhecia a acusação e condenação a que é relativo o Mandado de Detenção Europeu em apreço. Da informação dele constante resulta que o julgamento em causa se realizou sem a presença do ora requerido. Parecia também resultar que o julgamento se teria realizado sem a presença do ora requerido depois de ele ter faltado na data inicialmente marcada, para que havia sido notificado, nos termos do artigo 494.º do Código de Processo Penal francês. O requerido nega que tivesse sido notificado para tal julgamento.

Sobre decisões proferidas na sequência de julgamento no qual o arguido não esteja presente, rege o artigo 12.º-A, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto. Estatui o n.º 1 deste artigo:

«1 - A execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade pode ser recusada se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado conste que a pessoa, em conformidade com a legislação do Estado membro de emissão:

a) Foi notificada pessoalmente da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto e de que podia ser proferida uma decisão mesmo não estando presente no julgamento; ou

b) Tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor por si designado ou pelo Estado para a sua defesa e foi efetivamente representado por esse defensor no julgamento; ou

c) Depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa, incluindo de novas provas, que pode conduzir a uma decisão distinta da inicial, declarou expressamente que não contestava a decisão ou não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável; ou

d) Não foi notificada pessoalmente da decisão, mas na sequência da sua entrega ao Estado de emissão é expressamente informada de imediato do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa, incluindo apreciação de novas provas, que podem conduzir a uma decisão distinta da inicial, bem como dos respetivos prazos.»

   Podemos considerar verificada esta última situação. Na verdade, o ora requerido solicitou a realização de novo julgamento, direito que lhe assiste precisamente porque o julgamento inicial se realizou na sua ausência.

O facto de ter sido requerida a realização de novo julgamento não torna necessariamente inútil a execução do Mandado de Detenção em apreço. Não é condição dessa execução que a condenação em causa tenha transitado em julgado e não possa ainda ser revertida (como sucede no caso em apreço). É isso que necessariamente se verificará na situação prevista na citada alínea d) do n.º 1 do artigo 12.º-A, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, situação que corresponde ao caso em apreço.

   Poderia a Autoridade emitente considerar que o interesse que levou à emissão do Mandado de Detenção em apreço deixa de se verificar por o ora requerido ter solicitado a realização de novo julgamento (e, por isso, foi a mesma questionada a esse respeito). Não considera tal, porém. Só nos resta, por isso, satisfazer o pedido dessa Autoridade, uma vez que, como vimos, não estamos perante algum obstáculo legal a esse pedido. É claro que não nos compete nesta sede ajuizar da maior ou menor probabilidade de a condenação do ora requerido vir a ser revertida e de lhe poder vir a ser aplicada, ou não, medida de coação não detentiva no processo em que foi condenado.

IV - Nos termos expostos, julga-se improcedente a defesa apresentada e defere-se o cumprimento do Mandado de Detenção Europeu em apreço, emitido pelas autoridades judiciárias francesas, relativo a AA, passando-se, após trânsito, os devidos mandados de captura e entrega, devendo esta última ter lugar no mais curto prazo possível (artigo 29º da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto).


Colhidos os vistos legais e submetido o recurso à conferência, cumpre decidir.

5. Objeto do recurso

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso.

Em causa, estão, apenas:

- a questão de saber se se encontra justificada a recusa de execução do MDE, nos termos da al. d) do n.º 1 do art. 12.º-A da Lei n.º 65/2003, de 23.08;

- se, face às circunstâncias pessoais, alegadas, mas não documentadas, se verificam os requisitos da suspensão temporária da entrega por motivos humanitários graves, ao abrigo do n.º 4 do art. 29.º do mesmo diploma.


6. Quadro normativo

O artigo 12.º-A do Regime Jurídico do mandado de detenção europeu, aprovado pela Lei n.º 65/2003, de 23.08, foi aditado pelo art.º 4.º da Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, e dispõe sobre as situações em que o mandado de detenção resulta de “decisões proferidas na sequência de um julgamento no qual o arguido não tenha estado presente”.

A alteração no direito interno visou dar cumprimento à Decisão-Quadro 2009/299/JAI, do Conselho, de 26 de fevereiro, que teve por propósito reforçar os direitos processuais das pessoas e promover a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo no que se refere às decisões proferidas na ausência do arguido.

Este instrumento comunitário reconheceu que as soluções oferecidas pelas decisões-quadro anteriores não eram satisfatórias, nos casos em que a pessoa não possa ser informada do processo, e não abordavam de uma forma coerente a questão das decisões proferidas na sequência de um julgamento em que o arguido não tenha estado presente. (Considerandos 1 e 3)

Enfatizou que o direito da pessoa acusada de estar presente no julgamento integra o direito a um processo equitativo, consignado no artigo 6.º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, com a interpretação que lhe é dada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

E, por fim, adiantou que as soluções comuns para os motivos de não reconhecimento previstos nas decisões-quadro em vigor antes aplicáveis deveriam ter em conta a diversidade de situações no que respeita ao direito da pessoa de requerer um novo julgamento ou de interpor recurso. Esse novo julgamento ou recurso tem por objetivo “garantir os direitos da defesa e caracteriza-se pelos seguintes elementos: a pessoa em causa tem o direito de estar presente, o mérito da causa, incluindo novas provas, será (re)apreciado e o processo poderá conduzir a uma decisão distinta da inicial”. O direito a novo julgamento ou a recurso da decisão deverá ser garantido quando a decisão já tenha sido notificada, bem como, no caso do mandado de detenção europeu, quando ainda não tiver sido notificada, sendo, no entanto, notificada sem demora após a entrega. É esse o caso quando as autoridades não tenham conseguido contactar a pessoa, nomeadamente por esta ter tentado subtrair-se à acão da justiça.

O art. 12.º-A do RJMDE prevê as diversas causas e hipóteses de julgamento na ausência e define, em reprodução do direto da União, as condições que permitam a execução, nas diversas alíneas do n.º 1:

«1 - A execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade pode ser recusada se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado conste que a pessoa, em conformidade com a legislação do Estado membro de emissão:

a) Foi notificada pessoalmente da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto e de que podia ser proferida uma decisão mesmo não estando presente no julgamento; ou

b) Tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor por si designado ou pelo Estado para a sua defesa e foi efetivamente representado por esse defensor no julgamento; ou

c) Depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa, incluindo de novas provas, que pode conduzir a uma decisão distinta da inicial, declarou expressamente que não contestava a decisão ou não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável; ou

d) Não foi notificada pessoalmente da decisão, mas na sequência da sua entrega ao Estado de emissão é expressamente informada de imediato do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa, incluindo apreciação de novas provas, que podem conduzir a uma decisão distinta da inicial, bem como dos respetivos prazos.”

Quando o arguido não teve conhecimento da realização do julgamento ou, tendo tido conhecimento da decisão, não renunciou, expressamente ou por decurso do prazo, ao direito de recurso ou a novo julgamento, os n.ºs 2, 3 e 4 impõem obrigações de informação para o estado de execução e de garantia de proteção do direito a um processo equitativo para o estado emitente:

“2 - No caso de o mandado de detenção europeu ser emitido nas condições da alínea d) do número anterior, e de a pessoa em causa não ter recebido qualquer informação oficial prévia sobre a existência do processo penal que lhe foi instaurado, nem ter sido notificada da decisão, ao ser informada sobre o teor do mandado de detenção europeu pode a mesma requerer que lhe seja facultada cópia da decisão antes da sua entrega ao Estado membro de emissão.

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, logo após ter sido informada do requerimento, a autoridade judiciária de emissão faculta, a título informativo, cópia da decisão por intermédio da autoridade judiciária de execução, sem que tal implique atraso no processo ou retarde a entrega, não sendo esta comunicação considerada como uma notificação formal da decisão nem relevante para a contagem de quaisquer prazos aplicáveis para requerer novo julgamento ou interpor recurso.

4 - No caso de a pessoa ser entregue nas condições da alínea d) do n.º 1 e ter requerido um novo julgamento ou interposto recurso, a detenção desta é, até estarem concluídos tais trâmites, revista em conformidade com a legislação do Estado membro de emissão, quer oficiosamente, quer a pedido da pessoa em causa.”

Atente-se que, no âmbito da UE, a cooperação judiciária em matéria penal é conformada pelo princípio do reconhecimento mútuo que, como tem sido sublinhado na jurisprudência do TJUE, assenta em noções de equivalência e de elevado grau de confiança mútua nos sistemas jurídicos dos Estados-Membros da UE, com respeito pelos direitos fundamentais consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (JOUE C 364 de 18.12.2000), que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados (artigo 6.º, n.º 1, do Tratado da União Europeia).  entre os Estados membros, previsto no art.º 1.º n.º 2 da Lei n.º 65/2003, de 23/08, e na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de junho.

A Decisão-Quadro que vimos acompanhando e a consequente alteração legislativa no ordenamento interno visaram assegurar que os direitos fundamentais (entre os quais se encontra o direito a um processo equitativo) encontrassem a proteção máxima nos estados de emissão, conferindo as garantias de recurso, novo julgamento, com a possibilidade de apresentação de novas provas, com a presença do arguido e o reexame da situação de detenção, oficiosamente ou a requerimento.

Entre as várias hipóteses resolvidas pela norma, importa, ao caso, exatamente a prevista na al. d), ou seja, a situação em que o arguido foi condenado na ausência, sem que tenha ficado estabelecido, na apreciação do MDE, que o arguido tenha tido conhecimento prévio da realização do julgamento e da decisão, por qualquer das vias previstas nas alíneas anteriores.

Neste caso, o primeiro contacto com a realização e resultado do julgamento advém da comunicação do estado-membro de execução do mandado.

Na decisão sobre a execução, necessariamente fundada no princípio do reconhecimento mútuo, cabe à autoridade judiciária do estado-membro de execução transmitir a informação prestada pelo estado de emissão e, quando entenda necessário, obter as garantias de respeito dos requisitos de processo equitativo elencados, por parte da autoridade judiciária do estado de emissão.


7. Apreciação

7.1. Como resulta da prova produzida, não é seguro que o arguido tenha tido conhecimento da realização do julgamento e da decisão, em momento anterior ao contacto com a autoridade judiciária portuguesa, pelo que é de situar o caso na previsão da al. d), do n.º 1, do citado art. 12.º-A..

Obtida a decisão condenatória e transmitida ao arguido, o mesmo requereu a realização de julgamento no estado de emissão, encontrando-se já designada a data para a respetiva realização.

A autoridade judiciária portuguesa competente solicitou à autoridade judiciária francesa as garantias consignadas no n.º 4 do referido art. 12.º-A, que as transmitiu de forma expressa.

As garantias afirmadas pela autoridade francesa foram comunicadas ao arguido pelo Tribunal nacional.

Não subsiste, pois, qualquer fundamento para a recusa de execução.

Prevendo o artigo 12.º-A casos de execução facultativa, a recusa há-de fundar-se em dúvida sólida e grave sobre as garantias de respeito pelos direitos fundamentais do arguido que, manifestamente, não se desvelam na situação em apreciação.


7.2. O arguido alega razões de saúde, bem como outras condições pessoais e profissionais, que entende justificarem a suspensão temporária da entrega por motivos humanitários graves, ao abrigo do n.º 4 do art. 29.º da Lei 65/2003, de 23.8.

Como bem salienta o Ministério Público, não foi apresentada qualquer prova sobre o estado de saúde do arguido, nem sequer se mostra identificada a doença de que padece.

A situação de doença invocada constituiria, nos termos do art.º 29.º n.º 4, da Lei n.º 65/03, motivo de suspensão temporária da entrega, “comprovando-se uma particular exigência: a de que a entrega imediata fizesse manifestamente perigar a vida ou saúde da pessoa procurada”. E tal não vem demonstrado.[1]

Não se mostra, pois, identificado e documentado o estado de saúde do arguido, de modo a permitir aquilatar da gravidade da doença, ou do perigo para a vida ou saúde a que, por exemplo, o seu transporte poderia dar causa.

Também quanto a este ponto, não se descortina razão legal para a pretensão do recorrente.

Não se verificando fundamento legal para a procedência das pretensões do recorrente, adequadamente analisadas pelo acórdão recorrido e não ocorrendo violação da lei de que este tribunal deva conhecer, o recurso não merece provimento.


III. Decisão

29. Pelo exposto, acordam os juízes da 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) julgar improcedente o recurso interposto pelo requerido AA.

b) Custas pelo recorrente, art. 513º n.º 1 do CPP - fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs – art. 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


Supremo Tribunal de Justiça, 13 de junho de 2022.


Teresa de Almeida (relatora)

Ernesto Vaz Pereira (adjunto)

Nuno António Gonçalves (presidente)

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[1] Acórdão deste tribunal, no processo 07P4856, de 09.01.2008