RECUSA DE JUÍZ
DISTRIBUIÇÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
INDEFERIMENTO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I -    Nos termos do art. 43.º n.º 1, do CPP, apenas a intervenção de um juiz num processo pode ser recusada e não de um tribunal coletivo.
II -   Um requerimento em que se requer a recusa de um juiz não é a sede própria para se arguir também nulidades/irregularidades de despachos judiciais.
III - A Lei n.º 55/2021, de 13-08, que introduziu mecanismos de controlo da distribuição eletrónica dos processos judiciais e alterou alguns artigos do CPC nunca foi regulamentada pelo Governo, pelo que não pode ser servir de fundamento para requerimentos a pedir a recusa de juízes, com base de que não foi cumprido o sistema de distribuição eletrónica de processos.

Texto Integral

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório

1. O arguido AA veio, por intermédio do seu ilustre Advogado, requerer a recusa dos Senhores Juízes Desembargadores BB (Presidente), CC (Relator) e DD (Adjunto) e do Tribunal coletivo pelos mesmos constituído, para reunir, julgar e deliberar, em Conferência, nos autos de recurso n.º 101/12.2TAVRM-F-G1, da Secção Penal do Tribunal da Relação ..., com os seguintes fundamentos que passamos a transcrever:

                                             1.

A Distribuição deste processo aos três Senhores Juízes foi feita sem observância das formalidades legalmente exigidas nos artigos 204.º e 213.º do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal de harmonia com o processo penal:

Vejamos:

                                             2.

O artigo 213.º n.º 3 do CPC, na redação da Lei n.º 55/2021 de 13 de agosto, dispõe o seguinte:

“É correspondente aplicável o disposto nos n.ºs 4 a 6 do artigo 204.º à distribuição nas Relações e no Supremo Tribunal de Justiça, com as seguintes especificidades:

a) A distribuição é feita para apurar aleatoriamente o juiz relator e os juízes-adjuntos de entre todos os juízes da secção competente, sem aplicação do critério da antiguidade ou qualquer outro;

b) Deve ser assegurada a não repetição sistemática do mesmo coletivo.”

                                             3.

E os números 4 a 6 do artigo 204.º que:

“4. A distribuição obedece às seguintes regras”:

a) Os processos são distribuídos por todos os juízes do tribunal e a listagem fica sempre anexa à ata”;

b) Se for distribuído um processo a um juiz que esteja impedido de nele intervir, deve ficar consignada em ata a causa do impedimento que origina a necessidade de fazer nova distribuição por ter sido distribuído a um juiz impedido, constando expressamente o motivo do impedimento, bem como anexa à ata a nova listagem;

c) As operações de distribuição são obrigatoriamente documentadas em ata, elaborada imediatamente após a conclusão daquelas e assinada pelas pessoas referidas no n.º 3, a qual contém necessariamente a descrição de todos os atos praticados.

5. Os mandatários judiciais têm acesso à ata das operações de distribuição dos processos referentes às partes que patrocinam, podendo, a todo o tempo, requerer uma fotocópia ou certidão da mesma, a qual deve ser emitida nos termos do artigo 170.º;

6. Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, nos casos em que haja atribuição de um processo a um juiz, deve ficar explicitada na página informática de acesso público do Ministério da Justiça que houve essa atribuição e os fundamentos legais da mesma.”

                                               4.

E o artigo 213.º n.º 2, acrescenta relativamente à distribuição nos tribunais de 1.ª instância e à exigência ou determinação legal da “assistência obrigatória do Ministério Público e, caso seja possível por parte da Ordem dos Advogados de um advogado designado por esta ordem profissional, (...),”o poder de os mandatários das partes estarem presentes, se assim o entenderem,

                                               5.

Pressupondo e exigindo, assim, necessariamente, a notificação aos mandatários das partes do dia e hora designado para o concreto ato judicial de distribuição em causa.

Todavia,

                                               6.

O advogado signatário não foi notificado para essa distribuição, a que queria e tinha o direito de ter estado presente, por força da norma citada do artigo 213.º n.º 2 do CPC e por se tratar de acto processual que diretamente diz respeito ao seu constituinte, e tinha o direito, por isso mesmo, como vimos, de ter sido notificado para o efeito.

Acresce que,

                                               7.

Quanto ao mais, foi informado pela Presidência do Tribunal da Relação ... “que a operação de distribuição não foi documentada em ata, atendendo a que a Lei n.º 55/2021, de 13 de agosto (...) não entrou em vigor por ausência de regulamentação até à data (cf. artigo 3.º da referida Lei n.º 55/2021)”.

                                               8.

O que significa que:

1. Do acto judicial de distribuição deste processo de recurso não foi elaborada ata, nem outro auto algum;

2. Nesse acto não esteve presente o Ministério Público, desconhecendo-se se foi ou não notificado,

3. Nem o Recorrente, que não foi para tanto notificado;

4. E não foi efetuado sorteio eletrónico para apurar aleatoriamente o Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador Adjunto – já que apenas o Excelentíssimo Senhor Juiz Relator terá sido sorteado eletronicamente.

Consequentemente,

                                              9.

Mostra-se violadas as regras antes citadas e transcritas dos artigos 213.º n.ºs 2 e 3 e 204.º a 206.º do CPC – aqui aplicáveis por força do disposto e nos termos do artigo 4.º do CPP, de harmonia e com respeito pelos princípios gerais do processo penal.

Assim,

                                                     10.

Uma vez que estão em causa regras definidoras da competência do tribunal, a sua violação conduz aqui à nulidade absoluta deste processo de recurso desde a sua distribuição neste Tribunal da Relação, nos termos e por força do disposto na alínea e) do artigo 119.º do CPP.

Por outro lado,

                                              11.

O entendimento de que as alterações determinadas pela Lei n.º 55/2021 não teriam entrado em vigor “por falta de regulamentação” (que determinou as apontadas ilegalidades e a nulidade insanável antes arguida) viola, desde logo e diretamente, o disposto nos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º daquela lei:

Viola a letra do artigo 3.º - que manda proceder à regulamentação daquela lei “no prazo de 30 dias a contar da data da sua aplicação; e que determina que essa regulamentação entre em vigor ao mesmo tempo que a lei;

E a própria letra da norma transitória do artigo 4.º - que pura e simplesmente dispõe que “a presente lei entra em vigor 60 dias após a sua publicação”, sem prever a dependência da dita regulamentação;

E viola ainda toda a lei, porque a nova redação das normas dos artigos 204.º n.º 4 alínea c) e 213.º n.º 2 do CPC, por ela determinada, não carece de regulamentação alguma.

Por outro lado, ainda,

                                                       12.

Viola o disposto no artigo 137.º n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo, uma vez que omite e viola a obrigação de tutela jurisdicional da exequibilidade desse acto legislativo, expressamente prevista e acautelada nessa norma legal, que impende sobre todos os Tribunaise também sobre este Tribunal da Relação.

Ao que acresce, in casu, que

                                               13.

Se trata da exequibilidade de acto normativo, legislativo, da Assembleia da República, emanado diretamente do próprio Poder Legislativo, da exequibilidade da Lei n.º 55/2021.

                                               14.

O que significa que a omissão da tutela jurisdicional da sua exequibilidade por parte do Tribunal da Relação ... viola o Princípio da Separação e Interdependência de Poderes da República Portuguesa, essencial, indispensável e determinante da sua organização constitucional como Estado de Direito Democrático baseado na Soberania Popular, consagrado no artigo 2.º, no artigo 108.º, no artigo 110.º, no artigo 111.º n.º 1, no artigo 112.º n.º 5, no artigo 161.º alíneas c) e o), no artigo 165.º n.º 1 alíneas b) e p), no artigo 199.º alínea c) e nos artigos 202.º e 203.º da Constituição; viola a constitucionalmente imposta sujeição dos Tribunais à Lei; viola a independência deste Supremo Tribunal face ao Governo; e parece significar, mesmo, inaceitável cumplicidade com o Executivo na violação da obrigação de atempadamente regulamentar esta mesma lei.

A este propósito,

                                               15.

O Recorrente suscita a inconstitucionalidade dos artigos 3.º e 4.º da Lei n.º 55/2021 e do artigo 137.º n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo na interpretação normativa em que tal entendimento se traduz, no sentido de que as alterações determinadas pela referida Lei aos artigos 204.º e 213.º do Código de Processo Civil não teriam entrado em vigor, por violação do Princípio da Separação e Interdependência de Poderes, por violação da organização constitucional da República Portuguesa como Estado de Direito Democrático baseado na Soberania Popular e por violação, assim, dos artigos 2.º, 108.º, 110.º, 111.º n.º 1, 112.º n.º 5, 161.º alíneas c) e o), 165.º n.º 1 alíneas b) e p), 199.º alínea c) e 202.º e 203.º da Constituição.

Assim,

                                                      16.

Por ausência do mandatário do Recorrente, por falta de notificação para o acto; por ausência do Ministério Público; por inexistência ou omissão de documentação do acto através da formalização legalmente exigida; por tal inexistência ou omissão impedir a confirmação de como, quando (e mesmo se) esse acto efetivamente e concretamente se realizou; e por este processo ter sido pura e simplesmente atribuído ao Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador Adjunto neste recurso sem distribuição, sem precedência do sorteio eletrónico e aleatório legalmente exigido pela alínea a) do artigo 213.º n.º 3 do CPC e em violação do dever previsto na respetiva alínea b), mostra-se a distribuição daquele Processo e todos os actos nele praticados desde então viciados de nulidade insanável, por violação das regras de competência do tribunal, nos termos do artigo 119.º alínea e) do CPP.

Ora,

                                                    17.

No entender do recorrente aqui requerente, tudo consubstancia, ainda, motivo de recusa dos Senhores Juízes requeridos e do próprio tribunal Coletivo por eles constituído, nos termos dos artigos 43.º e seguintes do Código de Processo Penal, uma vez que, em seu modo de ver, a violação de lei antes detalhada e a consequente ausência de sorteio eletrónico e aleatório do Excelentíssimo Senhor Juiz Adjunto consubstancia “motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade e, por necessária consequência, sobre a imparcialidade não apenas desse Senhor Juiz mas de todo o Coletivo:

Com efeito,

                                            18.

A distribuição eletrónica e aleatória realizada nos exatos e rigorosos termos previsto na Lei é o acto processual jurisdicional que necessariamente determina, fundamenta e justifica a competência do Tribunal e do Juiz ou Juízes titulares das funções jurisdicionais sobre cada Processo; e é, por isso, o primeiro e incontornável pressuposto do Princípio, Garantia e Direito Fundamental ao Juiz Legal, consagrado no artigo 32.º n.º 9 da Constituição, e do respeito pela Independência dos Tribunais consagrado no seu artigo 2.º.

                                                   19.

E é por isso, também, a primeira e incontornável garantia de imparcialidade dos Senhores Juízes no concreto exercício dessas funções jurisdicionais – porque em processo criminal só a estrita e rigorosa observância das normas e dos termos legais previstos para essa operação de escolha dos Senhores Juízes respeita ambos esses Princípios e Garantias e Direitos Fundamentais, normas e termos legais que no processo em causa foram, pura e simplesmente, desaplicados ignorados, desprezados.

                                            20.

No modo de ver do requerente a suspeita de parcialidade de um membro de Tribunal Coletivo não pode deixar de estender-se a todos os restantes membros.

Neste sentido, aliás, tem sido decidido, nomeadamente, pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em Acórdão de 9 de maio de 2000 – processo Sander contra o Reino Unido, citado por Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 4ª Edição atualizada, 2011, p. 133 – que “tratando-se de um tribunal colectivo ou do júri, basta a parcialidade de um dos seus membros para inquinar toda a actividade do tribunal.”

                                             21.

Justifica-se, pois, que a suspeita relativamente a um membro deste Tribunal Coletivo se estenda aos restantes membros.

TERMOS EM QUE, REQUER:

SE DIGNEM VOSSAS EXCELÊNCIAS DECLARAR A RECUSA DOS

SENHORES JUÍZES DESEMBARGADORES REQUERIDOS E DO TRIBUNAL COLETIVO – POR ELES CONSTITUÍDO PARA REUNIR EM CONFERÊNCIA.

2. Os magistrados visados, através de despachos proferidos nos autos, pronunciaram-se, ao abrigo do disposto no art. 45.º n.º 3, do C.P.P., no sentido de o pedido de recusa em questão não ter o mínimo de fundamento legal.

3. Submetidos os autos à Conferência, cumpre, agora, apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Como se intui, a questão prende-se com a aplicação da Lei n.º 55/2021, de 13/08, que introduz mecanismos de controlo da distribuição eletrónica dos processos judiciais, alterando vários preceitos do C.P.C.

Acontece que tal lei, apesar de no seu art. 3.º estabelecer que o Governo procederia à sua regulamentação, no prazo de 30 dias, a contar da sua publicação, devendo aquela entrar em vigor ao mesmo tempo que esta, nunca teve lugar até à presente data essa regulamentação.

Logo, numa primeira nota, há que dizer que a lei em causa necessita inequivocamente de regulamentação.

Numa segunda nota, é a própria lei a reconhecer a essencialidade dessa regulamentação, ao estabelecer a entrada em vigor simultânea dos dois diplomas. Ou seja: a Lei n.º 55/2021 não entra em vigor enquanto não for regulamentada.

E não se argumente, com todo o respeito, como parece fazer o requerente, que o art. 4.º, da citada lei, ao determinar que ela entra em vigor 60 dias após sua publicação, significa que já entrou em vigor, uma vez que - repita-se -, como nunca foi regulamentada, a consequência a tirar só pode ser a de que a mesma nunca entrou em vigor na nossa ordem jurídica.

2. Refira-se também, a propósito, que, por comunicado datado de 04/10/2021 e publicado no sítio oficial da Ordem dos Advogados, o Senhor Bastonário avisava os Colegas que a Ordem fora informada que o Governo não tencionava cumprir o prazo de 30 dias para regulamentação, previsto no art. 3.º da Lei n.º 55/2021, prevendo, para o efeito, um prazo mais alargado, o que implicaria que esta importante reforma do C.P.C. não entrava em vigor na data prevista, ficando sem ser aplicada durante um largo lapso de tempo, contra o que o próprio Parlamento determinou.

Saliente-se, igualmente, que o incidente de recusa diz apenas respeito à intervenção de um juiz num processo e não de um tribunal coletivo, conforme se alcança do art. 43.º n.º 1, do C.P.P.

Por seu lado, a invocação de nulidade insanável, pela não verificação, in casu, das formalidades legais na distribuição eletrónica do presente processo, feita pelo requerente não faz o menor sentido, atendendo às circunstâncias descritas, sendo certo que esta não seria também a sede própria para arguir nulidades.

3. Não se mostram violadas quaisquer disposições, designadamente, as invocadas no requerimento apresentado.

Não há também qualquer violação da Constituição da República, nomeadamente, o princípio da separação de poderes ou outros, bem como os preceitos constitucionais indicados na peça do requerente.

Nesta conformidade, sem necessidade de outros considerandos, terá de improceder, por manifesta falta de fundamento, o requerimento com o pedido de recusa efetuado, pois, prevendo uma lei a necessidade da sua regulamentação, para a sua entrada em vigor, a omissão desse ato normativo acarreta necessariamente a não entrada em vigor da mesma, ficando, assim, prejudicada toda a fundamentação que subjaz ao pedido do requerente.

III. Decisão

Em face do exposto, indefere-se o pedido de recusa dos Senhores Juízes Desembargadores BB (Presidente), CC (Relator) e DD (Adjunto) e do Tribunal Coletivo pelos mesmos constituído, para reunir, deliberar e julgar, nos autos de recurso n.º 101/12.2TAVRM-F-G1, do Tribunal da Relação ....

Custas do incidente, a cargo do requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Vai ainda o requerente condenado em 8 UC, nos termos do disposto no art. 45.º n.º 7, do C.P.P.

Notifique.

Lisboa, 13/07/2022

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator) 

Teresa de Almeida (Adjunta)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)