HABEAS CORPUS
REJEIÇÃO DE RECURSO
CÚMULO JURÍDICO
DESCONTO
CUMPRIMENTO SUCESSIVO
Sumário


I. A natureza excecional de uma decisão de Habeas Corpus não entra no mérito da causa, mas apenas num dado conjunto de aspetos da legalidade, limitando-se à questão do devido processo legal na privação da liberdade do arguido, dentro de limites que a Constituição e a Lei determinam claramente.
II. Dado o caráter por essência expedito da presente providência, que constitucionalmente tem que ser levado a audiência contraditória no prazo máximo de 8 (oito) dias (artigo 31.º, n.º 3 da CRP), lapso temporal encurtado, in casu, em situação de turno, e atentos os requisitos específicos, obviamente que não pode nem deve o julgador embrenhar-se nos meandros de uma carreira criminal com implícitas vicissitudes processuais profusas, nem tampouco em questões alegadas que remeteriam para terreno quiçá extrajurídico e muito extrajudicial, por muito eloquentes que possam ser.
III. Retorica e juridicamente, não se podem alinhar, em sede jurídica, argumentos de todo o tipo, de várias qualidades e naturezas, sob pena de se não alcançar eficácia de julgamento. Precisamente característica do modus operandi jurídico é a especialidade dos temas e a própria ordem do debate, inter alia. (cf. Paul Ricoeur, La critique et la conviction, Paris, Calmann-Lévy, 1995).
IV. Inexistem dúvidas de que, no nosso ordenamento jurídico, a pena de prisão tem um limite máximo de vinte e cinco anos, em conformidade com o disposto no artigo 41.º, n.º 2 do Código Penal, limite que, em caso algum, pode ser excedido (n.º 3 desse normativo), e que é, também, aplicável quando se trata de processo de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira, nos termos estabelecidos no artigo 237.º, n.º 4 do Código de Processo Penal. Porém, tal não significa que haja um (paradoxal e injusto) direito absoluto dos condenados a um máximo de 25 anos de prisão, ignorando as regras do concurso (e não concurso) de crimes. Seria escandaloso, desde logo por absurdo, que alguém pretendesse que a sua pena atual viesse a ser diminuída por conta de ter tido já uma carreira criminal profusa, e cumprido já muitas outras penas, em processos findos e pretéritos.
V. Cumpre descontar, na pena a cumprir pelo condenado, um total de 9 anos, 2 meses e 13 dias de privação de liberdade sofridos pelo mesmo. E não mais. Nem menos.
O desconto diz respeito ao período de privação de liberdade a que o peticionante esteve sujeito no Brasil por mor do processo de extradição, somado ao tempo ulterior, consumido antes da efetivação da entrega, ao qual acresce o período de pena cumprido, em território brasileiro, no âmbito dos processos devidamente discriminados nos autos, e (obviamente) excluído desse cômputo o período em que ficou preso por outros crimes cometidos no Brasil ou em Portugal (a existirem).
VI. Na pena a cumprir em território nacional pelo condenado não se podem englobar outros períodos de privação de liberdade sofridos no Brasil, à ordem de outros processos (não relacionados com o processo de “mobilidade” hoc sensu do condenado).
VII. Há ainda a pena de 4 anos e 6 meses de prisão à ordem do processo 12329/99.4..., em que o ora peticionante foi condenado, relativamente à qual apenas deverá ser descontado o período em que o requerente se encontrou em prisão preventiva e o período de detenção à ordem do processo de extradição pedida no âmbito deste processo 12329/99.4... .
VIII. O requerente encontra-se, atualmente, ligado ao processo n.º 106/17.7YRCBR, a cumprir as penas em que foi condenado Processo nº 95.2...9-9, da 15ª Vara do Tribunal Criminal de ..., Brasil, e, em 21.06.2007, no Processo nº 430.20...025-2, do Tribunal Judicial de ..., Estado de ..., Brasil, cujas decisões foram reconhecidas em Portugal por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.
VIII. Verifica-se, assim, que não lhe foi aplicada, em nenhum momento, uma pena superior a 25 anos de prisão, não tendo, ainda, sido ultrapassados nem o marco dos 5/6, nem o termo, da soma das penas que se encontra sucessivamente a cumprir.
IX. Necessariamente se conclui que a prisão não se mantém para além dos prazos legalmente previstos, pelo que não se verifica o fundamento de ilegalidade previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal. Acresce que a pena de prisão que o condenado se encontra a cumprir foi ordenada por um juiz e foi motivada por facto pelo qual a lei a permite, pelo que inexiste qualquer dos motivos de ilegalidade da prisão previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do mesmo preceito.
X. Acordou-se assim em indeferir, conforme o artigo 223.º, n.º 4, al. a) do Código de Processo Penal a providência de Habeas Corpus requerida, por falta de fundamento bastante.

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I

RELATÓRIO


1. AA, de nacionalidade portuguesa, com os demais sinais nos autos, preso no E. P. ..., à ordem do Proc.º n.º 106/17...., do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., vem interpor junto deste Supremo Tribunal de Justiça uma providência de Habeas Corpus.

2. Patrocinado por Advogado, apresentou o seguinte texto como fundamento da sua petição:

“(…) vem peticionar a Vossa Excelência


HABEAS CORPUS


sob o artigo 222-2-c) do Código de Processo Penal com os seguintes fundamentos

l - o requerente foi preso no BRASIL onde cumpriu16 ANOS e 11 MESES; em Portugal cumpriu 4 anos   e   2 meses:

- em 12-5-1995 foi preso;

- em 5-12-1995 foi emitido alvará de soltura;

- em 5-4-2005 foi preso;

- em 9-8-2010 ausentou-se; -em 15-10-2010 foi novamente preso;- documento 1;

2 - em fins de Outubro 2018 foi extraditado para Portugal;

3 - em 11-11-2018   deu entrada no E. P. ...;

4 - nesta data  já expiou 21 ANOS  (VINTE E UM ANOS) de cárcere; sucede (que,

5 - o Tribunal ... errou na contagem da pena "atribuindo"  penas sucessivas que  somávamos 38 anos; agora, em 17-3-2022 corrige a pena para 30 anos;

6 - o requerente cumpriu  um  sexto  da   pena  prevista  no Brasil   datada   de 1995 que PRESCREVEU em 2015; foi junta ainda pena de 2005 de ... da qual cumpriu 5 anos e 3 meses; iniciou o cumprimento da pena em 1995; o BENEFICIO DE 1/6 DA PENA   FOI ATINGIDO EM ...-5-2018;

7 - o total da pena cumprida no Brasil e em Portugal é de 20 ANOS e SEIS MESES mas o requerente já expiou VINTE E UM ANOS!!! ocorre excesso de prisão pelo que só resta a este ALTO TRIBUNAL ordenar a   sua imediata libertação.

8 - o art°. 41°   do Código Penal   Português refere   que a pena   máxima é de VINTE   E CINCO ANOS mas o Tribunal ... entende que é de TRINTA ANOS...

9 - a contagem da pena   deve começar em  1995 e não em 2007 como por lapso ocorreu no Tribunal ...; assim, o MEIO DA PENA ocorreu em 2010, os DOIS TERÇOS em 2015 e os CINCO SEXTOS em 2020. ...e não 2022 (meio da pena), 2027 (dois terços)
e 2032 ( cinco sextos) como decidiu agora o Tribunal ... que omite as regras de cumprimento da pena   sob a Lei Brasileira e entende que 30 anos é o limite..................................

10 - sob o Principio da Especialidade e da Humanidade  das penas o  requerente  deve de IMEDIATO ser libertado face ao tempo de prisão cumprido no Brasil e em Portugal excesso; é  inaplicável a prisão perpétua em Portugal há   décadas.

11 - acresce que é doente, sofre de asma, diabetes, tem dores de coluna e tensão alta; está colocado numa cela fria e húmida, sem higiene, minúscula e sem ventilação;

12 - a prisão de   ...    não tem condições mínimas de dignidade humana à luz do artigo 3o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; Portugal foi condenado pela COUR EUROPEENNE no Affaire PETRESCU contra Portugal proc. 23190/17 de 3-12-2019 pelas péssimas condições prisionais !!!!

Termos em que, face ao exposto e sob o artigo 222-2-C) do CPP:

DEVE SER DEFERIDA A PROVIDENCIA DE HABEAS CORPUS E O REQUERENTE AA LIBERTADO DE IMEDIATO, ASSIM SE FAZENDO A LÍDIMA JUSTIÇA !!!!”


3. O Relatório a que alude o art. 223.º do CPP, elaborado pela Mer.ma Juíz de turno, não só é relativamente extenso, como remete para os seguintes elementos dos autos principais:

 Refª ...73;  Refª 4712217;  Refª ...77;  Refª ...54;  Refª ...32;  Refª 4756771;  Refª ...10;  Refª ...13;  Refª ...94;  Refª ...60;  Refª ...72;  Refª ...45;  Refª ...60;  Refª ...50;  refª ...58;  Refª ...12;  Refª ...86;  Refª 5320531;  Refª ...59;  Refª ...32;  Refª ...26;  Refª ...11;  Refª ...92;  Refª 5826408;  Refª ...54;  Refª ...95;  refª ...76;  Refª ...82;  Refª ...66;  Refª 6342482;  Refª ...71;  Refª ...30;  Refª ...95;  Refª ...66;  Refª ...13;  Refª 8116507;  Refª ...69;  Refª ...88;  Refª ...09;  Refª 8525200;  Refª ...90;  Refª ...12;  Refª ...19;  Refª ...64;  Refª ...30.

Como veremos infra, apenas se devem recortar, sem prejuízo de um contacto holístico com os autos, as questões efetivamente suscitadas pelo peticionante que tenham cabimento no recorte legal respetivo, ou seja, na previsão do artigo 222.º n.º 2 do CPP. E, mais especificamente, posto que tal consta da fundamentação da providência, trata-se de analisar a questão à luz da sua subsunção ou não na respetiva alínea c).


4. O referido Relatório, em cujo texto, brevitatis causa, em boa medida se colhe a síntese dos factos, infra apontados, conclui fundamentalmente com um elemento importante para o processo, mas não para o Habeas Corpus, e um outro, relevante para a presente providência.

No primeiro caso, está a verificação de um lapso no desconto de pena (favorável ao peticionante, por sinal):

“14. (…) porquanto se constata que se considerou um período de desconto superior ao que resulta dos autos – foi efetuado um desconto de 11 anos, 8 meses e 9 dias de privação de liberdade, ao invés de ser efetuado um desconto de 9 anos, 2 meses e 13 dias de privação de liberdade efetivamente sofridos pelo condenado;”.

E consequentemente a Juiz signatária do Relatório manda tirar consequências dessa verificação (mas tal não afeta em nada, como se verá imediatamente, o Habeas Corpus).


No segundo caso, (re)feitas as contas, resulta que, no presente processo, não há qualquer excesso de pena de prisão, qualquer ultrapassagem de prazos (cf. ponto 15 do Relatório). E ainda:

“16. Atentos os marcos temporais supra descritos e não se mostrando excedido o limite máximo de prisão a cumprir pelo condenado, entende-se ser de manter, porque legal, a prisão sofrida pelo condenado nos autos.”

5. Do referido Relatório consta ainda, com relevância no domínio do iter processual ocorrido, a partir da entrega do ora peticionante às autoridades portuguesas, na sequência da satisfação, pelo Brasil, do pedido de extradição:

“9. Efetuada a entrega, foi o condenado sujeito a 1º interrogatório judicial de arguido detido, no âmbito do Processo 12329/99...., do Juiz ... deste Juízo Central Criminal (onde havia sido declarado contumaz e no qual renunciou ao princípio da especialidade), tendo sido sujeito à medida de coação de prisão preventiva – a transferência ocorreu a 15.03.2018 e o 1º interrogatório judicial, com aplicação da referida medida de coação, a 16.03.2018;

10. A 12.09.2018, o condenado foi ligado aos presentes autos, para cumprimento das penas de prisão aplicadas nos dois processos judiciais brasileiros descritos em 1. (cfr. refª ...58 dos autos);”



***


Convocadas as secções criminais, em situação de “turno”, e notificados o Ministério Público e o Defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.



II

FUNDAMENTAÇÃO

A.

Dos Factos


Com relevância para a decisão da vertente providência, recortam-se os seguintes factos, de entre uma mole complexa, mas sobretudo vasta, sendo que ela é balizada pelos apontados pela petição propulsiva e pela Resposta a que alude o art. 223, n.º 1 do CPP.

1. Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25.10.2017, no âmbito do proc. n.º 106/17.7YCBR (de revisão e confirmação de sentença estrangeira) foi decidido:

«a) Declarar revistas e confirmadas as sentenças. transitadas em julgado, e proferidas:

em 28-11-1997. no Processo n.° ... da 15' Vara do Tribunal Criminal ..., ...;

em 21-6-2007, no Processo n.° ... do ...- marca de ..., .... nesta. com excepção da sanção acessória de suspensão dos direitos ... ao requerido/recluso AA, acima identificado.

b) Operando o cumulo jurídico das penas aplicadas ao Requerido no Processo n." ...

Tendo em conta as penas parcelares. respectivamente de, 15 anos, 15 anos e 6 anos de prisão, fixa-se a pena única de 22 (vinte e dois anos) de prisão.

c) Operando o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao Requerido no Processo n.° ...:

Tendo em conta as penas parcelares de 14 anos e 3 anos de prisão, fixa-se a pena única de 16 (dezasseis) anos de prisão.»

Ou seja, o ora peticionante foi condenado, ao cumprimento sucessivo de duas penas únicas: uma de 22 anos de prisão, e outra de 16 anos de prisão.

2. Viria a estar preso, em território brasileiro, em cumprimento da pena aplicada nos autos nº 95.2419-9, tendo cumprido, até 09.12.2014, 8 anos e 20 dias de prisão – cfr. refª ...76.

3. No âmbito do Processo 12329/99...., do Juiz ... do Juízo Central Criminal ... foi pedida a extradição do ora peticionante, o que viria a ocorrer após o devido processo, que não foi imediato.

4. Neste processo, o arguido foi julgado por um crime de tráfico de estupefacientes tendo sido condenado numa pena de 4 anos e 6 meses de prisão.

5. Assim, esteve o condenado detido às ordens do referido pedido de extradição desde 03.03.2011 a 21.09.2011 (ou seja, por mais de meio ano: 6 meses e 18 dias) e entre 08.02.2018 e 15.03.2018 (1 mês e 7 dias).

6. Seria entregue às autoridades nacionais em 15.03.2018.

7. Tal ocorreu no âmbito do aludido processo e ainda mediante transferência de condenado, decorrente da revisão das sentenças estrangeiras descritas em 1.

8. A partir da referida data de 15.03.2018, ficou AA privado da sua liberdade à ordem dos autos 12329/99...., do ... do referido Juízo Central Criminal ....

9. Tal ocorreu até ser ligado aos presentes autos a 12.09.2018, para cumprimento das penas aplicadas em 1 (5 meses e 28 dias).

10. Como já assinalado supra, foi o condenado sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no âmbito do Processo 12329/99...., do Juiz ... do Juízo Central Criminal (onde havia sido declarado contumaz e no qual renunciou ao princípio da especialidade), tendo sido sujeito à medida de coação de prisão preventiva – a transferência ocorreu a 15.03.2018 e o primeiro interrogatório judicial, com aplicação da referida medida de coação, a 16.03.2018;


11. A 12.09.2018, o condenado foi ligado aos presentes autos, para cumprimento das penas de prisão aplicadas nos dois processos judiciais brasileiros descritos em 1. (cfr. ref.ª ...58 dos autos).


B.

Enquadramento geral


1. Há um especial timbre (e até simbolismo, que a sua historicidade evidencia) na providência de Habeas Corpus, que tem sede constitucional, além de, obviamente, consagração na lei penal. Esse como que ADN do instituto confere-lhe uma feição muito particular, que se tem mantido numa linha de grande coerência jurisprudencial, e não consente tergiversações nem utilizações ultra- ou extra-, além do seu património e sentido, legal e constitucionalmente determinados e consolidadíssimos entre nós. Não deixa de ser eloquente, porém, que o Tribunal Constitucional tenha sido chamado a proferir (no seu Acórdão 10/2005) a seguinte decisão: “Não é inconstitucional a taxatividade dos requisitos previstos no artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal para a concessão de habeas corpus”. Por vezes, uma subtil “força normativa dos factos” (ou, rectius, força de factos com pretensões normativas) obriga a que, numa reiteração da normatividade, as instâncias judiciais declarem o que deveria ser evidente. Mas é importante que tal seja feito, para separar as águas e não deixar dúvidas para futuro.

Importa, contudo, ressaltar, que este aresto tem, inter alia, a virtualidade de precisar e insistir, implicitamente, no recorte de construção do instituto que tem numerus clausus de requisitos aplicáveis. Tudo o mais, fora dessas três alíneas, não importa para a obtenção de ganho de causa. Sem se olvidar, evidentemente, o requisito que diríamos “envolvente”, o abuso de poder (cf., v.g., em diálogo Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa — Anotada, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2007,  recente Acórdão deste STJ proferido no Proc.º n.º 43/21.0PJSNT-B.S1, de 21-04-2022, 5.ª secção (Relator: Conselheira Helena Moniz).

2. O Habeas Corpus incorpora, assim, a sua “história” e a sua vivência; o seu ser não é alheio ou desentranhável do seu modo-de-ser. É essa, aliás, a grande lição da jurisprudência como fonte do Direito. Como se recordou, para bem enquadrar institucionalmente o instituto, nos Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 30 de setembro de 2020, no Proc.º 421/15.4GESLV-A.S1, e de 31 de julho de 2020, no Proc.º 39/20.0PHSNT-B.S1, a Constituição da República Portuguesa (CRP) –  que seguiu uma tradição muito antiga, radicada no velho direito britânico e entre nós recebida por influência brasileira, por sua vez colhida na experiência dos EUA – consagra plenamente a providência do Habeas Corpus, a exemplo, aliás, do que vinha ocorrendo desde a Constituição de 1911 (art. 3.º, 31.º). Apesar de anteriormente desconhecida no constitucionalismo moderno português, de influência francesa, que era avessa ao instituto (Blandine Barret Kriegel, Les Droits de l'homme et le droit naturel, Paris, P.U.F., 1989, pp. 96-97). Não se limita a enunciar a providência. Fá-lo com sede sistemática nos Direitos Fundamentais, o que é reconhecer-lhe uma especial dignidade (cf., v.g., Ponto I do Sumário do Acórdão deste STJ de 23-05-2018, proferido no Proc. n.º 965/18.6T8FAR-A.S1 - 3.ª secção, tendo como Relator o Conselheiro Lopes da Mota). Ora essa dignidade tem também uma contrapartida de requisitos claros e distintos, e não se pode confundir nunca com aquele uso retórico da Constituição a que Eça de Queiroz aludia na polémica da proibição das Conferências do Casino. Na verdade, os preceitos constitucionais não podem ser meros arietes retóricos. A proeminência constitucional (a que Paulo Bonavides chamou “hegemonia vinculante” - Do Estado Liberal ao Estado Social, 7.ª ed., 2.ª tiragem, São Paulo, Malheiros Editores, 2004, p. 18) passa pelo rigor na aplicação dos institutos. E se na Constituição, como ensinava Pellegrino Rossi (Cours de droit constitutionnel, nova ed., Paris, Droz, 2012), ao menos grosso modo, se encontram as “cabeças de capítulo” de todas as matérias jurídicas, o corpo jurídico e a atividade jurisdicional em especial necessitam muitas vezes de mediação legal infraconstitucional mediadora, que concretize, especifique, densifique as grandes ideias, para que se não quedem num “céu dos conceitos” proclamatório. Ora o Habeas Corpus está concebido como grande providência de digníssima consagração na Carta Magna, mas deve a sua estrutura a rigorosos requisitos, que são inultrapassáveis.

3. Encontra-se, pois, bem recortada a figura, de forma a que o seu bom uso, apropriado e nas circunstâncias para que foi pensada, surta efeitos. É sabido que o Habeas Corpus é, v.g. recordando Cavaleiro de Ferreira, uma providência extraordinária destinada a pôr termo a situação ilícita que é a prisão ilegal (Curso de Processo Penal, 1956, II, p. 477). O problema é saber se a manutenção da situação da recorrente será ilegal, e se se verificam os pressupostos para a concessão da providência em apreço.

4. Inter alia, podemos ver no acórdão de 10-08-2018, referente ao processo n.º 11/17.7GAMRA-A.S1 - 3.ª Secção (Relator o Conselheiro Pires da Graça):

“I - A providência de habeas corpus visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação directa, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação. Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame da situação de detenção ou prisão em sede de habeas corpus, há que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável – integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

II – O habeas corpus não se destina a sindicar as decisões judiciais sobre crime verificados, penas aplicadas, nomeadamente a pena conjunta, nem sobre os pressupostos desta, ou sobre incidentes no cumprimento da pena, é assim e, apenas, um meio extraordinário de controlo da legalidade actual da prisão, estritamente vinculado aos pressupostos e limites determinados pela lei».

E, ainda não há muito, recorde-se a lição do Acórdão deste STJ de 06-06-2019, proferido no Proc. n.º 146/19.1SELSB-A.S1 - 5.ª Secção, (Relator: Conselheiro Nuno Gomes da Silva):

“I - A providência de “habeas corpus” tem uma natureza excepcional destinando-se a assegurar o direito à liberdade mas não é um recurso. É, por assim dizer, um remédio único, a ser usado quando falham as demais garantias do direito de liberdade mas não pode ser utilizado para impugnar quaisquer deficiências ou irregularidades processuais que têm no recurso a sua sede própria de apreciação. (...)”.

5. Nunca será demais recordar que os requisitos para a concessão do Habeas Corpus no caso de prisão ilegal são os que se encontram enunciados no n.º 2 do art. 222 CPP in fine, para os casos de a prisão:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

É sobre estas três alíneas que há sempre que laborar.


C. Do Direito ao Caso


1. Nenhuma possibilidade de aplicação se vislumbra, no caso vertente, de qualquer das alíneas do referido normativo. E apenas é alegada matéria que poderia eventualmente ser considerada à luz da previsão da alínea c), mas sem qualquer plausibilidade, como se verá.

2. Sinteticamente, tal como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Fevereiro de 2005, entende-se que

“No âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe, porém, julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas tem de se aceitar o efeito que os diversos actos produzam num determinado momento, retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”. A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso de actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis.”

3. Nesta providência, há apenas que determinar, se na manutenção da situação da peticionante algo se poderá descortinar que se possa acolher aos fundamentos referidos no artigo 222, n.º 2 do CPP, ou neles, de algum modo se subsumir.

4. A providência em causa assume uma natureza excecional, a ser utilizada quando de algum modo claudicarem as demais garantias defensivas do direito de liberdade, para obviar a casos de detenção ou de prisão ilegais. Por isso, a medida não pode ser utilizada para impugnar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais que têm o recurso como sede própria para a sua reapreciação. Ou de elementos do estado das prisões ou das especificidades de saúde do recluso.

5. Não se verificando aqui, evidentemente, qualquer situação de “possibilidade de habeas corpus em alternativa ao recurso ordinário, quando este se revele insuficiente para dar resposta imediata e eficaz à situação de detenção ou prisão ilegal” (J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, 2007, Coimbra, Coimbra Editora, p. 510).

6. Só pode fundamentar a referida providência a existência de uma afronta clara, e indubitável, ao direito à liberdade. Deve demonstrar-se, sem qualquer margem para dúvida, que quem está preso não o deve estar e que a sua situação afronta o seu direito fundamental a estar livre. Estão em causa, pois, e apenas, situações de flagrante ilegalidade em que, por estar em causa uma clara postergação ou ataque a um valor fundamental, a reposição da legalidade – repondo a normal ordem das coisas e sanando esse ostensivo mal e disfunção na ordem jurídica – tem um carácter urgente.

7. Insiste-se e matiza-se: a providência excecional em causa, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as possíveis situações de ilegalidade de uma medida limitadora da liberdade. Está outrossim reservada para os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão a tomar com a imposta celeridade de julgamento.

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal, no seu Acórdão de 16 de dezembro de 2003, trata-se aqui de “um processo que não é um recurso, mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)”.

8. Acrescente-se ainda que a natureza excecional da decisão de Habeas Corpus, não entra no mérito da causa, mas apenas num dado conjunto de aspetos da legalidade –, limitando-se à questão do devido processo legal na privação da liberdade do arguido, dentro de limites que a Constituição e a Lei determinaram claramente.

9. Dado o caráter por essência expedito da presente providência, que constitucionalmente tem que ser levado a audiência contraditória no prazo máximo de 8 (oito) dias (artigo 31.º, n.º 3 da CRP), lapso temporal encurtado, in casu, em situação de turno, e atentos os requisitos específicos, obviamente que não pode nem deve o julgador embrenhar-se nos meandros de uma carreira criminal com implícitas vicissitudes processuais profusas, nem tampouco em questões alegadas que remeteriam para terreno quiçá extrajurídico e muito extrajudicial, latamente de “humanidade” (em tese relevantes e fulcrais em si, mas não pertinentes no presente contexto, de requisitos muito estritos), como as que se prendem com as alegadas condições do estabelecimento prisional que acolhe o peticionante, ou a sua situação de saúde.

São questões que podem relevar noutras sedes, mas não nesta, que de modo algum se pode encarar como um gavetão indiscriminado de razões e queixas a latere da conceção legal do instituto, plenamente balizada doutrinal e jurisprudencialmente. Falando em geral, não pode deixar de se compreender o pano de fundo de quem se pode sentir sem saída, e sem garantia de alguns direitos que a todos devem assistir, mas a via a ser encontrada não é a desta providência, de recorte técnico-jurídico muito restrito.

Desde logo, é óbvio que o Estado português não pode abrir (ou fechar) os seus estabelecimentos prisionais (pelo menos a pessoas doentes, como será o caso) com o argumento de que as condições que oferecem não seriam as melhores, e não o pode fazer louvando-se em opinião, doutrina ou jurisprudência. Est modus in rebus. E aí o direito comparado pode oferecer interessantes ilustrações. Retorica e juridicamente, não se podem alinhar, em sede jurídica, argumentos de todo o tipo, de várias qualidades, sob pena de se não alcançar eficácia de julgamento. Precisamente característica do modus operandi jurídico é a especialidade dos temas e a própria ordem do debate, etc. (como recordou até Paul Ricoeur, La critique et la conviction, Paris, Calmann-Lévy, 1995).

10. Inexistem dúvidas de que, de acordo com o nosso ordenamento jurídico, a pena de prisão tem um limite máximo de vinte e cinco anos, em conformidade com o disposto no artigo 41.º, n.º 2 do Código Penal, limite que, em caso algum, pode ser excedido (n.º 3 desse normativo), e que é, também, aplicável quando se trata de processo de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira, nos termos estabelecidos no artigo 237.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, que expressamente dispõe que “Se a sentença penal estrangeira tiver aplicado pena que a lei portuguesa não prevê ou pena que a lei portuguesa prevê, mas em medida superior ao máximo legal admissível, a sentença é confirmada, mas a pena aplicada converte-se naquela que ao caso coubesse segundo a lei portuguesa ou reduz-se até ao limite adequado (…)”.

Contudo, terão de ser distinguidas duas situações que não são equiparáveis. A primeira será aquela em que o agente pratica um único crime, cujo pena abstratamente aplicável tem esse limite máximo de 25 anos, nunca lhe podendo ser aplicada uma pena superior. Da mesma forma, praticando vários crimes que se encontrem em concurso, nos termos do artigo 30.º do Código Penal, ou seja, tais ilícitos penais foram todos cometidos antes do ter transitado em julgado a condenação por qualquer deles, haverá lugar à aplicação de uma pena única a qual tem, também, como limite máximo os referidos 25 anos (cfr. artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal).

Diferentemente ocorre no caso de sucessão de crimes, leia-se, quando o agente comete um crime após ter transitado em julgado uma condenação anterior.

Nesse circunstancialismo, uma vez que se trata não de cúmulo jurídico mas de sucessão de penas, inexiste qualquer limite de 25 anos, pois que, se assim não fosse, tendo sido determinada, por decisão transitada em julgado, uma pena de 25 anos, o condenado poderia vir ulteriormente a praticar qualquer crime, sem que nenhuma pena lhe fosse aplicada, o que consubstanciaria uma impunidade total e uma carta branca para a prática de ilícitos.

Ademais, no primeiro caso, de cúmulo jurídico, havendo lugar à aplicação de uma pena única, serão descontados no cumprimento dessa pena de prisão todos os períodos temporais em que o condenado esteve preso, à ordem dos processos aí englobados.

Todavia, tal já não sucede quando há uma sucessão de penas. Sendo tais penas de cumprimento sucessivo, elas serão cumpridas, individualmente, sendo descontados os períodos de detenção sofridos pelo arguido apenas por referência ao próprio processo da pena que se encontra a ser cumprida.

Por seu turno, os marcos relevantes para a apreciação da liberdade condicional são definidos por referência à soma aritmética de todas as penas.

Em face disso, qualquer pena que o condenado tenha cumprido anteriormente à ordem de um outro processo não poderá, de forma alguma, ser imputada à pena ulterior, de cumprimento sucessivo, tendo ambas as penas natureza absolutamente autónoma.

13. Assim, uma questão fundamental é um problema antes de mais contabilístico. É que, (re)feitas as contas, somando os períodos de privação de liberdade descritos, e sempre, como é óbvio, fazendo fé nas informações juntas aos autos pelas autoridades brasileiras, cumpre descontar, na pena a cumprir pelo condenado, um total de 9 anos, 2 meses e 13 dias de privação de liberdade sofridos pelo mesmo. E não mais. Nem menos.

O desconto diz respeito, assim, ao período de privação de liberdade a que o extraditando esteve sujeito no Brasil por mor do processo de extradição, somado ao tempo ulterior, consumido antes da efetivação da entrega, ao qual acresce o período de pena cumprido, em território brasileiro, no âmbito dos processos discriminados no ponto 1, e (obviamente) excluído desse cômputo o período em que ficou preso por outros crimes cometidos no Brasil ou em Portugal (a existirem). Seria escandaloso, por absurdo, que alguém pretendesse que a sua pena atual viesse a ser diminuída por conta de ter tido já uma carreira criminal profusa, e cumprido já muitas outras penas, em processos findos e pretéritos.


14. Nada mais há que descontar além do pertinente ao caso. Insiste-se: na pena a cumprir em território nacional pelo condenado, não se podem englobar outros períodos de privação de liberdade sofridos no Brasil, à ordem de outros processos (não relacionados com o processo de “mobilidade” hoc sensu do condenado). E do mesmo modo, obiter dictum, se refira que, como desde logo se viu pela decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, em que foram revistas e confirmadas as sentenças proferidas, em 28.11.1997, no Processo nº ..., da ... Vara do Tribunal Criminal ..., Brasil, e, em 21.06.2007, no Processo nº ..., do Tribunal Judicial ..., Estado de ..., Brasil, resultariam, em cúmulo jurídico das penas aplicadas em cada um daqueles autos, as penas únicas de 22 anos de prisão, no primeiro processo, e de 16 anos de prisão no segundo. Ou seja, um total de 38 anos, pela soma das duas penas em cumprimento sucessivo, o que evidentemente em nada fere o limite português de 25 anos, em conformidade com o exposto supra. A tal obriga o sistema ou a lógica do cúmulo jurídico português, em vigor.

15. A tais penas acrescerá, ainda, a de 4 anos e 6 meses de prisão à ordem do processo 12329/99...., em que foi condenado, relativamente à qual apenas deverá ser descontado o período em que o requerente se encontrou em prisão preventiva e o período de detenção à ordem do processo de extradição pedida no âmbito deste processo 12329/99.....


16. O requerente encontra-se, atualmente, ligado ao processo n.º 106/17...., a cumprir as penas em que foi condenado Processo nº ..., da ... Vara do Tribunal Criminal ..., Brasil, e, em 21.06.2007, no Processo nº ..., do Tribunal Judicial ..., Estado de ..., Brasil cujas decisões foram reconhecidas em Portugal por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.

17. Verifica-se, assim, que não lhe foi aplicada, em nenhum momento, uma pena superior a 25 anos de prisão, não tendo, ainda, sido ultrapassados nem o marco dos 5/6, nem o termo, da soma das penas que se encontra sucessivamente a cumprir.

18. Desta forma, necessariamente se conclui que a prisão não se mantém para além dos prazos legalmente previstos, pelo que não se verifica o fundamento de ilegalidade previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal.

19. Acresce que a pena de prisão que o condenado se encontra a cumprir foi ordenada por um juiz e foi motivada por facto pelo qual a lei a permite, pelo que inexiste qualquer dos motivos de ilegalidade da prisão previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do mesmo preceito.

20. Nesta medida, em face do exposto, necessariamente se conclui que a petição de Habeas Corpus apresentada pelo arguido carece de fundamento bastante, pelo que se indefere a mesma, nos termos do artigo 223.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal.


III

DISPOSITIVO



Termos em que se acorda, neste Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir, conforme o artigo 223.º, n.º 4, al. a) do Código de Processo Penal a providência de Habeas Corpus requerida, por falta de fundamento bastante.

Custas pelo requerente, com 3 UC de taxa de justiça (Tabela III e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).


Supremo Tribunal de Justiça, 25 de julho de 2022


Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Adjunto)

Helena Moniz (Presidente)