HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
PRISÃO ILEGAL
INDEFERIMENTO
Sumário


I -   Como resulta, de forma clara, do disposto no n.º 1 do art. 215.º do CPP, os prazos contam-se até à prolação da decisão (acusação, decisão instrutória, condenação), sendo irrelevante, para o efeito, o momento da respetiva notificação.
II - Tendo sido a prisão preventiva do arguido ordenada pela autoridade judiciária competente, por facto pelo qual a lei permite, vindo a ser deduzida acusação por esses factos, dentro do prazo legal da duração máxima da prisão preventiva então em curso, e mantendo-se a prisão preventiva dentro do prazo máximo de duração dessa medida de coação na fase em que o processo ora se encontra, não se encontra o requerente em situação de prisão ilegal.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório

1. AA, de 33 anos, arguido no processo n.º 201/21.8JELSB, do Juízo de Instrução Criminal ..., e aí melhor identificado, alegando encontrar-se em situação de prisão ilegal, por se mostrar ultrapassado o termo do prazo máximo de prisão preventiva a que se encontra sujeito, vem, nos termos do art.º 31.º da Constituição da República Portuguesa e do art.º 222.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, intentar providência de habeas corpuscom os seguintes fundamentos: (transcrição)

2. “I, Em 2 de fevereiro de 2022, o Requerente foi detido para apresentação a primeiro interrogatório judicial.

II. Em 4 de fevereiro de 2022, o Requerente foi apresentado para primeiro interrogatório judicial no Juízo de Instrução Criminal ..., no Tribunal Judicial ... (cf. cópia do despacho de 4 de fevereiro de 2022).

III, Nesse interrogatório foi-lhe aplicada a medida de coação de prisão preventiva, conforme se pode ler no despacho de 4 de fevereiro de 2022:

"(...)   decide-se   sujeitar   o   arguido   AA   às seguintes medidas de coação:

O já prestado TIR (art.° 196° do CPP);

Prisão preventiva, nos termos do art.° 202°f n.° 1, ais. a) e e) ambos do CPP".

IV.  O Requerente está a cumprir desde essa data (04/02/2022) a medida de coação de prisão preventiva, numa primeira fase no estabelecimento prisional ..., tendo posteriormente sido transferido para o estabelecimento prisional ..., onde se encontra atualmente.

V. O arguido encontra-se indiciado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, conforme consta do despacho de 4 de fevereiro de 2022:

"Concordamos com a qualificação jurídica constante da promoção do Ministério Público aquando da apresentação dos arguidos a primeiro interrogatório, quando à factualidade indiciar fortemente a prática pelos arguidos em co-autoría de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.° 21°, al. a) do DL n.° 15/93, de 22/01, por referência à tabela IC".

VI. O crime de tráfico de estupefacientes previsto no art.° 21.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de janeiro, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

VII. De acordo com o art.° 215°, n.° 1, alínea a) e 2 do CPP, quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, a prisão preventiva extingue-se quando desde o seu início, tiverem decorrido seis meses sem que tenha sido deduzida acusação.

VIII. In casu, verifica-se que, até à presente data, não foi proferido despacho de acusação.

IX. Tendo assim o referido prazo de seis meses sido ultrapassado no dia 04/08/2022.

X. Pelo que, a prisão preventiva aplicada ao arguido extinguiu-se em 05/08/2022.

XI. Sendo que, ainda não foi dada ordem de libertação ao Requerente, conforme impõe o n.° 1 do art.° 217° do CPP.

Em conclusão:

XII. Pelo exposto, na presente data, o Requerente encontra-se ilegalmente preso nos termos da alínea c) do n.° 2 do artigo 222° do CPP, em clara violação do disposto nos artigos 28°, n.° 4 da CRP e dos artigos 215° n.°s 1, alínea a) e 2, e 217°, n.° 1 do CPP;

XIII. Razão pela qual, deve ser declarada ilegal a prisão preventiva e ordenada a sua imediata libertação, nos termos dos artigos 31°, n.° 3 da CRP e 222° e 223°, n.° 4, alínea d) do CPP.


3. Foi prestada a informação a que alude o art° 223.°, n.º 1, in fine do C.P.P.: (transcrição)

“1. Por despacho proferido a 4 de Fevereiro de 2022, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foi aplicada ao arguido AA a medida de coacção de prisão preventiva.

2. A referida medida de coacção foi revista por despachos de fls. 1336 e 1550, datados, respectivamente, de 26.04.2022 e 23.07.2022.

3. A 21 de Julho de 2022, foi deduzida acusação contra o arguido - fls. 1530 e seguintes -, imputando-lhe a prática de um crime de estupefacientes agravado, previsto e punido pelo art. 21.°, n.° 1 e 24.°, alíneas b) e c) do DL 15/93 de 22 de Janeiro,

4. Mostram-se em curso diligências com vista à tradução urgente da referida acusação para mandarim, conforme resulta do despacho de fls. 1528.

5. A 9 de Agosto de 2022 deu entrada a presente petição de "habeas corpus", sendo que a mesma foi entregue no dia de hoje na ... Secção do DIAP, com a informação que consta de fls. 1596.

6. O Ministério Público pronunciou-se conforme resulta de fls. 1597.”


A providência vem instruída com os elementos pertinentes.


Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Defensor do Requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP):


II. Fundamentação

Dos elementos que instruem o processo, com interesse para a decisão do pedido de habeas corpus, extraem-se os seguintes:

a. Factos:

1. Por despacho proferido a 4 de fevereiro de 2022, foi aplicada ao arguido AA a medida de coação de prisão preventiva.

2. A referida medida de coação foi revista em 26.04.2022 e 23.07.2022.

3. A 21 de Julho de 2022, foi deduzida acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos arts. 21.°, n.° 1 e 24.°, alíneas b) e c) do DL 15/93 de 22 de Janeiro,

4. Mostram-se em curso diligências com vista à tradução urgente da referida acusação para mandarim, língua nacional do arguido.

b. Do direito

A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no artigo 31° da Constituição, tem tratamento processual nos artigos 220° e 222° do CPP, que estabelecem os fundamentos da providência, concretizando a injunção e a garantia constitucional.

No caso, importa o artigo 222° do CPP que se refere aos casos de prisão ilegal e em cujos termos a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência deve resultar da circunstância de a mesma

- ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

- ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

- ou quando se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 222° do CPP.

A providência em causa, com previsão constitucional no art. 31.º, assume, assim, uma natureza excecional, expedita, de garantia de defesa do direito de liberdade, consagrado este nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, para pôr termo a situações de detenção ou de prisão ilegais.

Em jurisprudência constante, tem vindo este tribunal a considerar que a providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excecional de urgência, perante as ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, sem lei ou contra a lei, referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP [acórdão de 19.0.22, no proc. n.º 57/18.8JELSB-D.S1; e também, entre outros, os acórdãos de 02.02.22, no proc. 13/18.6S1LSB-G, de 04.05.22, no proc. 323/19.5PBSNT-A.S1, 02.11.2018, de 04.01.2017, no proc. n.º 78/16.5PWLSB-B.S1, e de 16-05-2019, no proc. n.º 1206/17.9S6LSB-C.S1, em www.dgsi.pt].

A providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial, não se mostra numa relação de continuidade com os recursos admissíveis que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais.

Os motivos de ilegalidade da prisão, como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se afirmou, entre outros, no acórdão de 22.1.2020 (proc. 4678/18.0T8LSB-B.S1, acessível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2021/02/criminal_sumarios-2020.pdf), o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar:

- se a prisão, em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível,

- se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e

- se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (cfr. também, os acórdãos de 26.07.2019 e de 09.01.2019, proc. n.º 589/15.0JALRA-D.S1, em www.stj.pt/wpcontent/uploads/2019/06/criminal_ sumarios_ janeiro_ 2019 .pdf).

c. No caso

O peticionante reputa a sua prisão ilegal, por excesso de prazo, acolhendo-se à alínea c), do citado artº 222º do CPP.

O prazo de duração máxima de prisão preventiva, sem que tenha sido deduzida acusação é, no caso, de 6 meses (n.ºs 1, al. a) e 2 do artº 215º e al. m) do art. 1.º, todos do CPP).

Ora, à data da apresentação da presente petição, em 9 de agosto, já tinha sido deduzida nos autos a acusação contra o ora peticionante, antes do termo do prazo de seis meses, contados a partir da data em ficou sujeito à medida de prisão preventiva, à ordem dos mesmos autos.

Mesmo não tendo o arguido e o seu Exmo. Mandatário, na data da apresentação da petição do habeas corpus, conhecimento da dedução da acusação, a prolação da decisão que pôs termo à fase de inquérito ocorreu ainda no curso do prazo definido na lei.

Como resulta, de forma clara, do disposto no n.º 1 do art. 215.º do CPP, os prazos contam-se até à prolação da decisão (acusação, decisão instrutória, condenação), sendo irrelevante, para o efeito, o momento da respetiva notificação.

Este é, há mais de 10 anos, o entendimento reafirmado pela jurisprudência constante deste tribunal, como se colhe, entre muitos outros, dos acórdãos de 18-02-2010, proc. 1546/09.0PCSNT-A.S1 , 5ª secção in www.dgsi.pt e de 10-12-2008, proc. nº 08P3971 , in www.dgsi.pt, cujo sumário se transcreve, na parte que ora importa e que cita abundante jurisprudência anterior:

“ (…) III - Na dicotomia data da prolação da acusação/data da notificação da acusação como elemento aferidor da determinação do momento relevante para se estabelecer o marco que importa ter em atenção na definição do dies ad quem do prazo de duração máxima de prisão preventiva, é de ter como correcta a opção pela data em que é elaborada a acusação.

IV - Desde logo pelo elemento literal, a extrair da al. a) do n.º 1 do art. 215.º do CPP, quando refere que o decurso do prazo sem que tenha sido deduzida acusação e de modo similar nas restantes alíneas, como na b), ao referir o decurso do prazo sem que tenha sido proferida decisão instrutória, e nas als. c) e d), ao colocar o ponto final do prazo sem que tenha havido condenação, em 1.ª instância ou com trânsito em julgado.

V - Em todos estes casos é patente a referência à data da prática do acto processual ou elaboração da decisão (acusação, decisão instrutória e condenação) proferida no processo de acordo com cada etapa ou fase processual e não ao momento em que chega ao conhecimento do destinatário o teor da mesma.

VI - De contrário, em caso de pluralidade de arguidos, teríamos datas diferentes consoante os diversos momentos em que a decisão fosse chegando ao destino. E, por outro lado, furtando-se o destinatário ao recebimento da notícia, descoberto estaria o caminho para se prolongar o prazo caso se mostrasse pontualmente necessária ou conveniente tal estratégia.

VII - Este STJ já tomou posição sobre a questão, defendendo-se no Ac. de 11-10-2005 (CJSTJ, 2005, tomo 3, pág. 186) que, para o efeito previsto no art. 215.º do CPP, releva a data da acusação e não a notificação ao arguido dessa peça processual (cf., ainda, Acs. de 14-03-2001, de 22-03-2001, de 15-05-2002, de 11-06-2002, de 24-10-2007, Proc. n.º 3977/07 - 3.ª, de 12-12-2007, Proc. n.º 4646/07 - 3.ª, e de 13-02-2008, Proc. n.º 522/08 - 3.ª), o mesmo se passando com a decisão instrutória, como afirmou o Ac. do STJ de 28-06-1989, Proc. n.º 18/89 - 3.ª.

VIII - Neste sentido se tem pronunciado, também, a jurisprudência do TC – cf. Acs. n.ºs 404/2005, de 22-07, e 208/2006, de 22-03 (in, respectivamente, DR, II Série, de 31-03-2006 e de 04-05-2006), em que se questionava a al. c) do n.º 1 do art. 215.º do CPP; Ac. n.º 2/2008 (in DR, II Série, de 14-02-2008), já na vigência da nova redacção do art. 215.º introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08; e Ac. n.º 280/2008, de 14-05-2008, em que estava em causa a inconstitucionalidade do art. 215.º, n.º 1, al. a), do CPP, por violação do disposto nos arts. 28.º, n.º 4, 31.º e 32.º, n.º 1, todos da CRP.

IX - Da marcação da data da prolação da acusação como termo final do prazo de duração máxima de prisão preventiva nesta 1.ª fase do processo decorre que, no dia seguinte, se inicia o novo prazo de duração máxima correspondente à fase que se segue, que igualmente deverá ser observado, não se violando qualquer prazo nem resultando ferida qualquer garantia de defesa.”

Também, assim, decidiu o Tribunal Constitucional, no acórdão n° 280/2008, de 14-5-2008, Proc. n° 295/08, ín D.R. nº 141, Série II de 2008-07-23. ao não julgar inconstitucional a norma constante da alínea a) do n." 1 do artigo 215.° do Código de Processo Penal, que “o prazo máximo da prisão preventiva, na fase de inquérito, afere-se em função da data da prolação da acusação e não da data da notificação da mesma.”

Acresce que, atento o princípio da atualidade, “princípio estruturante da providência de habeas corpus, segundo o qual a providência excecional só deve ser usada para fazer cessar a ofensa ilegítima da liberdade pessoal; se a ofensa é atual e subsiste na apreciação do habeas corpus”[1], o prazo de prisão preventiva que agora está em causa para a extinção da medida coativa, é de 10 meses até à decisão instrutória, se houver lugar à instrução, e, se não houver lugar à instrução, é de 1 ano e 6 meses até à condenação em 1.ª instância, conforme art. 215.º, n.ºs 1 e nº 2 do CPP.

Tendo sido a prisão preventiva do arguido ordenada pela autoridade judiciária competente, por facto pelo qual a lei permite, em virtude de factos indiciadores da prática de crime que integra a criminalidade altamente organizada e é punido com pena de prisão superior a 8 anos, vindo a ser deduzida acusação por esses factos, dentro do prazo legal da duração máxima da prisão preventiva então em curso, e mantendo-se a prisão preventiva dentro do prazo máximo de duração dessa medida de coação na fase em que o processo ora se encontra, não se encontra o requerente em situação de prisão ilegal.


Não se verificam, pois, os pressupostos de concessão da providência de habeas corpus, inexistindo ilegalidade, abuso de poder ou inconstitucionalidade que imponha o respetivo deferimento.


III. Decisão:

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, decidindo nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 223.º do CPP, delibera:

- indeferir, por falta de fundamento, a petição de habeas corpus, apresentada pelo Requerente.

- condenar o Requerente a pagar as custas da providência, fixando-se a taxa de justiça em 4UCs (art. 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais).


Supremo Tribunal de Justiça, 23 de agosto de 2022


Teresa de Almeida (Relatora)

João Guerra (1.º Adjunto)

Leonor Furtado (2.ª Adjunta)

Catarina Serra (Presidente da Secção)

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[1] Cfr., entre outros, Acórdãos STJ de 23.10.2019, no processo n.º 780/16.1T9VFX-A, Relator Nuno Gonçalves, e de 19.11.2020, no Processo n.º 7/19.4F9LSB-C.S1, Relator António Gama.