RECURSO DE REVISÃO
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
METADADOS
PROVA PROIBIDA
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
EXCEÇÃO DE CASO JULGADO
MEIOS DE OBTENÇÃO DA PROVA
DIREITOS FUNDAMENTAIS
REJEIÇÃO
Sumário


I. O sentido da norma do 282, nº 3, da CRP só pode ser este: (1) em princípio, a declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) não implica «revisão» dos casos julgados em que se tenha aplicado a norma declarada inconstitucional (ou ilegal); (2) todavia, os casos julgados que incidam sobre matéria penal, disciplinar ou de mera ordenação social poderão ser revistos, se da revisão resultar (por efeito da desaplicação da norma considerada inconstitucional ou ilegal) uma decisão de conteúdo mais favorável ao arguido (cfr. art. 29.º-4); (3) a possibilidade de revisão de sentenças constitutivas de caso julgado em matéria penal ou equiparada não é automática, pois tem de ser expressamente decidida pelo TC na sentença que declarar a inconstitucionalidade (ou ilegalidade) da norma. (in J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MO­REIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, Pág. 1041, nota V).
II. “O fundamento último da solução consagrada na primeira parte do nº 3 do artigo 282 da Constituição não se encontra só no respeito pela autoridade própria dos tribunais ou num princípio de separação de poderes, estando indissociavelmente ligado a uma exigência de segurança jurídica. “Colocado entre dois campos de interesses opostos – de um lado a consideração do interesse da certeza e segurança jurídicas, a demandar o respeito pelo caso julgado, com a sua natureza definitiva, e do outro o interesse do respeito pela legalidade constitucional, a solicitar a reconstituição da ordem jurídica constitucional mediante o afastamento da norma que a violava e de todos os efeitos jurídicos produzidos á sua sombra -, o legislador constitucional sobrepôs o primeiro ao segundo, pondo como limite ao efeito ex tunc da inconstitucionalidade a existência de caso julgado formado relativamente a situação em que tenha ocorrido a aplicação da norma declarada inconstitucional” (acórdão nº 232/04). (in “Constituição Portuguesa Anotada”, 2017, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Universidade Católica Editora, 2017).
III. O acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022 não excecionou a ressalva dos casos julgados nos termos referidos (artigo 282, nº 3, 2ª parte).
IV. O alegado aproveitamento ou transmissão de metadados ao abrigo das normas declaradas inconstitucionais, não foi causal da condenação que aqui se pretende rever. O acórdão condenatório revidendo não se aproveitou da aplicação dessas normas. Nem as invocou.
V. Nem o poderia ter sido, já que o crime de exercício ilícito de actividade de segurança privada previsto no artigo 57, nº 2, da L. 34/2013, de 16/05, e punido em abstrato “com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”, por que o arguido foi condenado  não cabe no catalogo de crimes graves da L. 32/2008.
VI. Os arts.187 a 189, do CPP, regulam o recurso aos dados relativos a conversações ou comunicações telefónicas em tempo real, enquanto o acesso aos dados conservados pelas operadoras por conversações ou comunicações telefónicas passadas é regulado pela Lei nº32/2008, de 17 Julho; o nº1, do art.187 citado, delimita o objeto dessa regulação como “a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas”, o que representa comunicações a ocorrer, conversações ou comunicações telefónicas em tempo real. Já se o que interessa processualmente são comunicações passadas, localizadas no tempo e no espaço, chama-se à colação a Lei nº32/2008, de 17 de Julho,
VII. São, pois, dois meios de prova diferentes, um as escutas telefónicas, outro a conservação e transmissão dos dados. O primeiro regulado nos arts 187 a 190 do CPP. O segundo previsto nos artigos 4º, 6º e 9º da L. 32/2008, agora declarados inconstitucionais nos termos do acórdão nº 268 do Tribunal Constitucional
VIII. Mais, a doutrina fala mesmo na trilogia das fontes da prova digital, a saber, CPP, artigos 187 a 190, Lei 32/2008, de 17/07, a denominada lei dos metadados, e a Lei 109/2009, de 15/09, Lei do Cibercrime, “três diplomas legais para regular aspetos parcelares da mesma realidade concreta.”
IX. O acórdão do TC não buliu em mínima medida sequer com o regime processual penal das interceções telefónicas.

Texto Integral

Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



I. RELATÓRIO

1. No proc. n.º 618/160SMPRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto, Juiz ..., em 09/11/2021, foi proferido acórdão a condenar o arguido AA, como autor material de um crime de exercício ilícito da atividade de segurança privada, p. p., pelo artigo 57, nº 2, da L. 34/2013, de 16/05, na pena de dois anos de prisão, cuja execução ficou suspensa por igual período com regime de prova.

Inconformado, o arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 06/04/2022, negou provimento ao recurso. O acórdão transitou em julgado em 28/04/2022.

2. Vem o arguido interpor o presente recurso extraordinário de revisão com as seguintes conclusões:

“I. Primeiramente, e antes de tudo, importa mencionar que foi, o aqui Recorrente, alvo de Acórdão do Tribunal Coletivo da ... Secção Criminal da Instância Central da Comarca do Porto datado de 09 de Novembro de 2021,

II. Que o condenou, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de exercício ilícito da atividade de segurança privada, p. e p. pelo artigo 57º, nº2 da Lei nº34/2013, de 16 de Maio,

III. Na pena de 2 (dois) anos de prisão, cuja execução fica suspensa por igual período com regime de prova.

IV. De tal decisão, e por não se conformar, em 10 de Janeiro de 2022, interpôs, o aqui Recorrente, o competente recurso para o Tribunal da Relação do Porto,

V. Tendo sido, posteriormente, notificado da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, datada de 06 de Abril de 2022,

VI. Que negou provimento ao recurso por si interposto e, nessa sequência, confirmou o Acórdão recorrido, decisão já transitada em julgado.

VII. Ora, sucede, porém, que o Tribunal Constitucional, em Acórdão, datado de 13 de Maio de 2022, declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade dessas normas constante nos artigos 6.º e 9.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho,

VIII. Por violação do princípio da proporcionalidade na restrição dos direitos à reserva da intimidade privada e familiar – artigo 26.º, n.º1, da CRP – ao sigilo das comunicações – artigo 34.º, n.º1 da CRP – e a tutela jurisdicional efetiva – artigo 20.º, n.º1 da CRP –

IX. Normas essas que estabelecem o armazenamento, conservação e transmissão de dados das comunicações durante um ano tendo a "finalidade exclusiva a investigação, deteção e repressão de crimes graves”.

X. E tal decisão assume particular importância não só nos demais casos, mas, essencialmente, no caso presente porquanto, e como melhor infra se aflorará, os presentes autos de processo - crime instaurados contra o aqui Recorrente

XI. E a sua subsequente condenação tiveram por base prova nula, por decorrer do acesso a metadados – e nessa conformidade, acesso ao teor das comunicações estabelecidas pelo aqui Recorrente –

XII. Em plena violação dos princípios da proporcionalidade na restrição dos direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar, ao sigilo das comunicações e a uma tutela jurisdicional efetiva,

XIII. Previstos nos artigos 26.º, n.1, 34.º, n.º1, 20.º, n.º1 e, ainda, 35.º, n.º1, da Constituição da Republica Portuguesa,

XIV. Ainda mais no caso como o presente em que foi através desse acesso que foram obtidos conhecimentos – conhecimentos fortuitos – no qual assentou o presente processo-crime.

XV. Salienta-se, em síntese e em suma, que o efeito prático de tal decisão se prende com a proibição da transmissão dos metadados das comunicações (telefones e internet) às autoridades competentes, visando qualquer investigação criminal, entendendo-se por metadados os dados que permitem saber, entre outros, a identidade do utilizador do telefone ou computador, duração e destino das chamadas e localização.

XVI. Para que melhor se entenda, é através da consulta dos metadados que as autoridades judiciais conseguem ter acesso a informações específicas sobre os telemóveis e os computadores de potenciais suspeitos criminais.

XVII. Isto é, é essencialmente suportando-se na consulta destes dados, que as autoridades e as operadoras de comunicação conseguem ter acesso a informações específicas sobre os telemóveis e os computadores de potenciais suspeitos criminosos,

XVIII. Sendo que, no caso dos telemóveis, podem identificar a duração, a localização e a identidade dos interlocutores de cada chamada; no caso dos computadores (ou qualquer dispositivo que consiga aceder à internet), podem verificar as horas de entrada e saída, a localização e duração dos acessos ou o endereço IP – um número particular a cada dispositivo,

XIX. Excluindo-se, como bem se sabe, o teor das chamadas, sendo que o acesso ao mesmo – através de escuta - carece da autorização do Juiz de Instrução Criminal, sendo apenas equacionada no âmbito de crimes mais graves – artigo 187.º, n.º1, do CPP.

XX. Todavia, importa, nesta senda, frisar que todo este procedimento tem por base o facto das autoridades poderem ter acesso aos dados não só dos suspeitos específicos, mas, também, como é lógico, aos demais cidadãos.

XXI. E foi, na verdade, nessa linha de raciocínio, que a provedora de Justiça requereu, nos termos do disposto na al. d), do n.º2, do artigo 281.º, da Constituição da República Portuguesa, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º, 6.º, e 9.º, da Lei n.º32/2008, de 17 de Julho,

XXII. Por violarem o princípio da proporcionalidade na restrição dos direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar – artigo 26.º, n.º1, da CRP – ao sigilo das comunicações – artigo 34.º, n.º1, da CRP – e a uma tutela jurisdicional efetiva – artigo 20.º, n.º1, da CRP.

XXIII. E foi em consonância com a realidade explanada no pedido de declaração de inconstitucionalidade que o Tribunal Constitucional no Acórdão proferido no âmbito do 828/2019, entendeu:

c) “Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, conjugada com o artigo 6.º, da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4, do artigo 35.º e do n.º1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição”;

d) “Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º, da Lei n.º32/2008, de 17 de Julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º1 do artigo 35.º e do n.º1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º2 do artigo 18.º, todos da Constituição”.

XXIV. E quanto à aplicação de tal decisão ao caso em concreto, que, isso sim, é de extrema essencialidade, cumpre mais uma vez, agora de uma forma algo minuciosa atender à factualidade que pautou o caso em apreço, mormente, naquilo em que assentou o processo-crime instaurado contra o aqui Recorrente.

XXV. O presente processo-crime teve origem na denúncia apresentada, em 19 de Setembro de 2016, pelo Ofendido, BB, na qualidade de proprietário do Estabelecimento de Armas, denominado “C... LDA” sito na rua ..., ..., ...,

XXVI. Relatando a subtração das armas - Arma de fogo - Revólver Calibre: 32, N.º de Livrete: ...8, Marca/Modelo: Rossi, Nº(s) de Arma: ...1; Arma de fogo - Pistola Calibre: 6,35 mm, Marca/Modelo: Astra, Nº(s) de Arma: ...9 e, ainda, Arma de fogo - Pistola Calibre: 6.35mm, N.º de Livrete: ...79, Marca/Modelo: CC, PERS, Nº(s) de Arma: ...80,do referido estabelecimento, as quais se encontravam guardadas dentro de um armário no interior de uma caixa-forte.

XXVII. Perante tal, foi proferido despacho datado de 13 de Outubro de 2016, delegando na PSP a realização do competente inquérito, nos termos do disposto no art.º 270º, n.º1 do Código de Processo Penal e da circular n.º 6/2002, da PGR, por tais factos, em abstrato, serem suscetíveis de integrarem a prático do crime de furto simples, previsto e punido pelo art.º 203º, n.º1 do Código Penal.

XXVIII. No entanto, uma vez que do decurso da investigação levada a cabo, ter resultado poder estar em causa poderá estar aqui em causa o crime de Tráfico de Armas,

XXIX. Nomeadamente, porque os únicos suspeitos da subtração são os funcionários do dito estabelecimento, tendo um deles, inclusive, sido acusado pela prática do crime de tráfico de armas no âmbito do processo n.º 1733/09....,

XXX. Em 21 de Dezembro de 2016, foi proferido despacho indicando que os presentes autos deveriam ser redistribuídos à 10ª secção, uma vez que é essa a secção competente para a investigação do crime que se perspetivava estar sob juízo.

XXXI. Nesse seguimento, tomando a ... secção do DIAP ... as rédeas da investigação, e por, na sua ótica, não ser possível através de outro meio menos intrusivo a descoberta da verdade material,

XXXII. Foi presente a Juiz de Instrução pedido de interceção e gravação de todas comunicações mantidas nos telemóveis já identificados nos autos, o qual, por sua vez, foi alvo de autorização através de decisão proferido em 27 de Dezembro de 2016.

XXXIII. Nessa conformidade, e tendo-se dado início a tais diligências de obtenção de prova, durante um largo período de tempo foi levada a cabo a investigação com consequentes novos pedidos de interceção - sempre alvo de decisão de deferimento por parte do Juiz de Instrução responsável – entre os quais se inseria a interceção de comunicações efetuadas e rececionadas pelo aqui Recorrente.

XXXIV. Desse modo, e porque das mesmas originaram, pelo menos no entendimento dos órgãos de polícia criminal, informações suficientes para se tornar imprescindível a realização da diligência de buscas e apreensão, com vista à recolha de indícios suficientes,

XXXV. Tais diligências foram efetuadas às residências conhecidas do aqui Recorrente, AA, sitas: na Rua ..., ..., ...; na ... andar ..., ...; na ... andar/..., ...; na Rua ..., ...; e na Rua ..., ...; bem como: nas garagens, arrecadações, espaços anexos; e nos veículos utilizados por aqueles,

XXXVI. Diligências essas autorizadas mediante despacho datado de 13 de Novembro de 2017.

XXXVII. Sucede, porém, que, após a realização de tais diligências de interceção e de buscas, pelos órgãos de policia criminal competente, não foram encontrados, quer nas conversações por ele encetadas, quer em todas as residências do aqui Recorrente,

XXXVIII. Quaisquer indícios que o mesmo perpetrou o crime alvo de investigação, ou seja, o crime de recetação ou detenção de arma proibida, p.e.p. pelo artigo 86.º, da Lei n.º n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro

XXXIX. Razão pela qual, em 30 de Outubro de 2020, foi proferido despacho de arquivamento quanto no que a essa matéria diz respeito.

XL. Todavia, e salvo o devido respeito por opinião contrária, foi proferido, pelo Ministério Público, na mesma data, despacho de acusação, acusando o aqui Recorrente, AA, do crime de um crime de exercício ilícito da atividade de segurança privada, p. e p. pelo artigo 57º, nº 2, da Lei nº 34/2013, de 16 de maio,

XLI. Quando, na verdade, tal não poderia ter sucedido, por duas ordens de razão,

XLII. Que se prendem, essencialmente, com a forma como o Ministério Público arquitetou tal acusação (através unicamente das escutas telefónicas efetuadas – consulta dos dados armazenados e, assim, disponibilizados às autoridades competentes pela ação penal)

XLIII. E, nessa sequência, com a valoração atribuída aos mesmos, dos quais decorreram os denominados conhecimentos fortuitos que originaram das diligências levadas a cabo.

XLIV. Foque-se, a este propósito e nesta senda, que o processo-crime instaurado contra o aqui Recorrente e que, originou, a condenação supra explanada, para além de advir, única e exclusivamente, dos conhecimentos obtidos através das diligências de interceção das comunicações por ele efetuadas,

XLV. Ou seja, através do acesso, pelas autoridades responsáveis pela ação penal, aos metadados -dados que permitem saber, entre outros, a identidade do utilizador do telefone ou computador, duração e destino das chamadas e localização – e, assim, ao conteúdo das suas comunicações

XLVI. Daí, por sua vez, resultaram, saliente-se, os denominados conhecimentos fortuitos que, contrariamente à sua posição, por diversas vezes manifestada no âmbito dos autos, foram valorados como conhecimentos de investigação

XLVII. Só, assim, sendo possível o resultado que se obteve e se vislumbrou – instauração do processo-crime e subsequente condenação do mesmo.

XLVIII. Quanto ao primeiro aspeto, conforme se depreende do constante dos presentes autos, no seio das diligências de escutas - acesso aos metadados e, nessa conformidade, ao teor das comunicações estabelecidas – e, só nessa sequência, de buscas realizadas,

XLIX. No entendimento do Ministério Público, foram conhecidos factos – os denominados conhecimentos fortuitos- que indicavam a possível prática, pelo arguido, aqui Recorrente, do crime de exercício ilícito de segurança privada.

L. Todavia, ao invés de se ter extraído certidão com vista a abertura de novo processo-crime, como se legalmente impunha, o que, de facto sucedeu, foi a continuação da tramitação dos autos,

LI. Proferindo-se acusação contra o aqui Recorrente pela prática de um crime de exercício ilícito de segurança privada, factualidade essa que, sem sombra de dúvida, implica a nulidade prevista no artigo 119.º, al. d), do CPP e, nessa sequência, a violação dos direitos de defesa constitucionalmente consagrados, do Arguido – artigo 32.º, da CRP.

LII. Quanto ao segundo aspeto, os mesmos apenas e só foram obtidos através do acesso aos metadados e, nessa conformidade, ao teor das comunicações estabelecidas, ao abrigo do disposto nos artigos 4.º, 6.º, e 9.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, à data dos factos constitucional.

LIII. Em consonância com tudo o supra explanado, é possível verificar-se que a pedra basilar dos presentes autos, ou seja, tudo aquilo que suportou o mesmo decorreu das diligências de prova levadas a cabo, mormente, as diligências de interceção das comunicações estabelecidas pelos alegados suspeitos de terem praticado um crime de tráfico de armas,

LIV. E das quais resultou a interceção das comunicações efetuadas pelo aqui Recorrente, que, por sua vez, e na ética das entidades competentes pela ação penal, motivaram a realização de buscas domiciliárias.

LV. Ora, e é precisamente neste ponto que importa mencionar que, pese embora não tenham surgido indícios suficientes da prática pelos suspeitos de qualquer crime de tráfico de armas, levando à subsequente prolação de despacho de arquivamento,

LVI. O certo é que, na ótica de tais entidades, surgiram factos susceptíveis de integrar a prática, pelo aqui Recorrente, do crime de exercício ilícito de segurança privada – conhecimentos fortuitos.

LVII. Isto a significar que os presentes autos configuram um claro exemplo do acesso indevido aos metadados - e, nessa conformidade, ao teor das comunicações estabelecidas pelo aqui Recorrente –

LVIII. Em plena violação dos princípios da proporcionalidade na restrição aos direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar, ao sigilo das comunicações e a uma tutela jurisdicional efetiva,

LIX. Previstos nos artigos 26.º, n.º1, 34.º, n.º1 e 20.º, n.º1, e, ainda 35.º, n.º1 da Constituição da Republica Portuguesa.

LX. Nessa conformidade é que o Arguido, aqui Recorrente, interpõe o presente recurso extraordinário de revisão (até porque o mesmo tem efeitos retroativos, designadamente efeitos desde a entrada em vigor da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, ou seja, desde o anos de 2008),

LXI. Para que esse Supremo Tribunal de Justiça possa, e deva apreciar – como se impõe – a validade da prova obtida nos presentes autos, quanto ao aqui Recorrente, uma vez que se baseou, única e exclusivamente, em metadados,

LXII. Atenta a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional no que concerne esta matéria e que declara inconstitucional com força obrigatória geral, a norma constante do artigo 4.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, conjugada com o artigo 6.º, da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4, do artigo 35.º e do n.º1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição,

LXIII. Bem como a norma do artigo 9.º, da Lei n.º32/2008, de 17 de Julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º1 do artigo 35.º e do n.º1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º2 do artigo 18.º, todos da Constituição,

LXIV. Tornando, no entendimento do aqui Recorrente, nula toda essa prova na qual o Douto Tribunal se suportou para instaurar os presentes autos de processo-crime contra este último e a sua consequente condenação.

LXV. E, nesta perspetiva, ainda cumpre acrescentar que não é pelo facto do aqui Recorrente já ter sido alvo de uma decisão transitada em julgado, que não se verificou uma grave violação dos seus direitos constitucionalmente consagrados,

LXVI. Violação essa manifesta, que se verificou, unicamente, com recurso aos metadados e valoração de factos obtidos – conhecimentos fortuitos - tão só, do teor das comunicações por ele estabelecidas.

LXVII. Como bem indica Dantas Rodrigues “negar direitos a condenados é negar a dignidade humana, o respeito pelas pessoas e pelos direitos humanos que são pertença de todos e de cada um desde que nasce”,

LXVIII. Não sendo tal permissível no caso em apreço, atento tudo o supra explanado.

LXIX. Assim, por tudo o supra exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, devem V/Exas., Venerandos Conselheiros, atenta a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral e com efeitos retroativos – desde 2008 – dos artigos 4.º, 6.º e 9.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho,

LXX. Revogar a decisão condenatória, por assentar em prova nula – obtida unicamente através de metadados -

LXXI. Com o que farão, como sempre, inteira Justiça material e evitando, assim, mais uma vez um ato de denegação de justiça ao aqui Recorrente.”


3. Com o pedido: “Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso extraordinário de revisão nos termos apresentados atenta a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral e com efeitos retroativos – desde 2008 – dos artigos 4.º, 6.º e 9.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, e revogar a decisão condenatória, por assentar em prova nula – obtida unicamente através de metadados.”


4.Admitido o requerimento de revisão o Ministério Público respondeu, e sustentando-a em dois fundamentos, manifestou oposição à pretendida revisão.

Assim:

“Em primeiro lugar, parece-nos que a publicação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 não abalou as decisões já transitadas em julgado, como acontece no presente caso em que o Acórdão condenatório transitou em julgado antes da publicação em Diário da República do supramencionado Acórdão.

Dispõe o artigo 282.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que “A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado”.

Acrescentando-se no seu n.º 3 que “Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.”.

A nosso ver, não promana do Douto Acórdão do Tribunal Constitucional que a decisão aí preconizada abale os casos julgados que nos parece que ficam ressalvados, como é o caso dos autos.

Para além da ressalva do caso julgado, em segundo lugar, sufragamos convictamente o entendimento de que as intercepções telefónicas que serviram de base para prova dos factos que são imputados ao arguido nestes autos foram obtidas legal e validamente ao abrigo de normativos legais que não foram declarados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional e não se enquadram dentro dos chamados “metadados”.

Em rigor, o Tribunal Constitucional, por via do supramencionado Acórdão, declarou inconstitucionais as normas da chamada "lei dos metadados" que determinam a conservação dos dados de tráfego e localização das comunicações pelo período de um ano, visando a sua eventual utilização na investigação criminal.

Porém, tal Acórdão não questionou a vigência do artigo 187.º do CPP, ao abrigo do qual foram legitimamente autorizadas pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, a requerimento do Ministério Público, as intercepções telefónicas levadas a cabo nos autos.

Dispõe o artigo 187.º do CPP no seu n.º 1 que «A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:

a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;

(…).» No caso concreto, o crime de exercício ilícito da actividade de segurança privada que é imputado ao arguido AA é punido, em abstracto, com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.

Conclui-se, assim, que estamos em presença de um crime de catálogo, uma vez que é punido com uma pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos, estando verificados todos os pressupostos legais de validade das intercepções e gravações telefónicas.

No caso vertente, as escutas telefónicas foram autorizadas, num primeiro momento, para a investigação de um crime de catálogo (tráfico de armas) e depois continuaram para outro crime de catálogo (exercício ilícito da actividade de segurança privada), verificando-se uma conexão entre uns e outros factos na medida em que, a dada altura da investigação, indiciou-se que as armas que foram ilegitimamente subtraídas da cutelaria dos autos, foram vendidas a seguranças da noite ..., nomeadamente, ao arguido DD que prestou serviços de segurança privada ilícita sob as ordens e orientações do aqui arguido mas esta questão já foi apreciada pelo Tribunal da Relação do Porto, legitimando a legalidade das intercepções realizadas.

No âmbito das intercepções telefónicas estamos perante a recolha de prova em tempo real e para o futuro e não perante qualquer tipo de dado que esteja armazenado e preservado, não consubstanciando, assim, qualquer “metadado”.

Entendemos que, no caso concreto, as intercepções telefónicas autorizadas foram obtidas na sequência de despacho do Meritíssimo Juíz de Instrução Criminal ao abrigo do disposto no artigo 187.º do CPP, cuja validade não foi colocada em causa pelo Tribunal Constitucional.”


 5. Não havendo diligências instrutórias a realizar, a Senhora Magistrada prestou no mesmo ato a informação prevista no art.º 454º n.º 1 do CPP, para concluir pela improcedência da pedida revisão.

Assentou a improcedência nos seguintes fundamentos:

“(…) os fundamentos avançados pelo condenado para o pedido de revisão do acórdão não se enquadram na alínea d) do nº1 do artigo 449º do CPP, podendo, no entanto, subsumir-se às hipóteses contempladas nas alíneas e) e f) do sobredito preceito legal.

Efectivamente, do elenco da prova indicada na motivação da decisão de facto do acórdão condenatório proferido por este tribunal consta prova obtida através de intercepções de conversas telefónicas. Todavia e tal como decorre dos autos, tais intercepções foram solicitadas e autorizadas pelas entidades competentes – Ministério Público e Juiz de Instrução Criminal, respectivamente - tudo ao abrigo do disposto nos artigos 187º, 189º e 269º, nº1, al. e), todos do Código do Processo Penal.

De acordo com o preceituado no nº1 do artigo 187º do C.P.P., “A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:

a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; (…).”. Sendo que, de acordo com o teor do nº1 do artigo 189º do C.P.P., “O disposto nos artigos 187.º e 188.º é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes.”.

A questão que se impõe esclarecer é, então, a de saber se as referidas intercepções de conversas telefónicas e sms, que atingiram o arguido, ora recorrente, foram obtidas com recurso aos apelidados “metadados”.

A Lei n.º32/2008, de 17 de Julho, transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações.

O objecto de tal diploma está consagrado no seu artigo 1º, o qual dispõe o seguinte: “1 - A presente lei regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.

2 - A conservação de dados que revelem o conteúdo das comunicações é proibida, sem prejuízo do disposto na Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, e na legislação processual penal relativamente à intercepção e gravação de comunicações.”.

O artigo 2º do mesmo diploma legal estatui que “Para efeitos da presente lei, entende- se por: “a) «Dados», os dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador; (…)”.

O acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, de 19/04/2022 declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei. Mais declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros.

Conforme sublinhado no citado acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, o que está em causa são os dados que revelem, a todo o momento, aspectos da vida privada e familiar dos cidadãos, permitindo rastrear a localização do individuo ao longo do dia, todos os dias (desde que transporte o telemóvel ou outro dispositivo electrónico de acesso à internet), e identificar com quem contacta (chamada – inclusive as tentadas e não concretizadas - por telefone ou telemóvel, envio ou recepção de de sms, mms, de correio electrónico ou de comunicações telefónicas através de internet), bem como a duração e a regularidade dessas comunicações.

Porque se trata de dados que não abrangem o conteúdo das comunicações, dizendo respeito apenas às suas circunstâncias (marcos ou pontos de referência que lhe dão o respectivo suporte e que permitem circunscrever a informação sob todas as formas), são designados como “metadados”. Também conhecidos como “dados de tráfego”, os mesmos haviam sido já objecto de definição no âmbito do acórdão do Tribunal Constitucional nº 241/2002, de 02/05, segundo o qual encontramos:

- dados de base, relativos à conexão de rede e que permitem, independentemente de qualquer comunicação, a identificação do utilizador de certo equipamento - nome, morada, número de telefone;

- dados funcionais, necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação;

- dados de tráfego, gerados pela utilização da rede (ex: localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência). São dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência). Traduzem-se em elementos da própria comunicação que permitem identificar, em tempo real ou a posteriori, os utilizadores, o relacionamento directo entre uns e outros através da rede, a localização, a frequência, a data, a hora e duração da comunicação.

- dados de conteúdo, relativos ao conteúdo da comunicação ou mensagem.

O artigo 4º da Lei n.º 32/2008 de 17 de Julho, acima referenciada, refere-se aos chamados dados de tráfego ou metadados, assim como aos dados de base.

Volvendo ao caso dos autos, constata-se que o acesso das entidades policiais em sede de investigação se estendeu aos elementos necessários para a realização de intercepções telefónicas para recolha de elementos de prova em tempo real e para o futuro.

Na medida em que o tribunal motivou, em parte, a condenação do arguido AA nessas intercepções e seu conteúdo, as quais foram obtidas pelas autoridades policiais em tempo real e imediato, conclui-se que as mesmas não são prova proibida. Na verdade, não foram solicitados quaisquer dados que tenham sido anteriormente armazenados, estes, sim, abrangidos pela norma julgadas inconstitucionais pelo acórdão do Tribunal Constitucional nº268/2022 - artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugado com o artigo 6.º da mesma lei.

Soçobra, assim, o fundamento invocado no recurso ora interposto dado que as provas a que o tribunal atendeu na sua motivação não constituem prova proibida nos termos alegados pelo recorrente.”

E em nota de rodapé enunciou a falta de “decisão em contrário” do Tribunal Constitucional a que se refere o nº 3 do artigo 282 da CRP. Citando: “Ainda que assim não se entendesse, sempre improcederia o recurso face ao disposto no artigo 282º, nº3 da Constituição da República Portuguesa, o qual ressalva o instituto do caso julgado. Tal preceito, sob a epígrafe “Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade”, estabelece o seguinte: “1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado. 2. Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infração de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última. 3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido. 4. Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excecional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos n.os 1 e 2 » (sublinhado nosso). Ora, analisado o teor do acórdão do Tribunal Constitucional nº268/2022, não se descortina que aí se tivesse excepcionado a ressalva do caso julgado nos termos referidos.” 

6. O Exmo PGA no STJ emitiu o seguinte parecer, nos termos do art. 455.º, n.º 1, do CPP:

“Nos termos do art. 29.º, n.º 6, da Constituição, os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.

Concretizando esse princípio, o art. 449.º, n.º 1, do Código de Processo Penal estabelece que a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado cri-me cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.os 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

No caso em análise, o condenado, muito embora invoque no requerimento de interposição do recurso [e apenas aí] o art. 449.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal, não apresenta quaisquer novos factos ou meios de prova.

As conclusões do recurso são omissas quanto ao concreto fundamento legal da revisão mas apontam para o art. 449.º, n.º 1, als. e) e f), do Código de Processo Penal.

Começando pelo fundamento da al. f) [declaração pelo TC da inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação].

Nos termos conjugados dos arts. 3.º, n.º 1, al. a), da Lei 28/82, 15.11 [Lei Orgânica do TC], e 1.º, n.º 1, e 3.º, n.º 2, al. h), da Lei 74/98, de 11.11 [Lei que disciplina a publicação, identificação e formulário dos diplomas], a eficácia jurídica das decisões do TC que declaram a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de quaisquer normas depende da sua publicação na 1.ª série do DR.

O acórdão do TC 268/2022, de 19.04.2022 [e não de 13.05.2022, como por lapso refere o recorrente], que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos arts. 4.º, conjugada com o art. 6.º, e 9.º, todos da Lei 32/2008, de 17.07, foi publicado no DR, 1.ª série, n.º 108, de 03.06.2022.

Conforme referido, a condenação do recorrente transitou em julgado em 28.04.2022, ou seja, em data anterior à da publicação do acórdão 268/2022.

De harmonia com o art. 282.º, n.º 1, da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado. Todavia, acrescenta o n.º 3 do mesmo preceito, ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.

Este n.º 3 “contém uma excepção à regra dos efeitos gerais retroactivos da declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) e uma excepção da excepção. A excepção consiste em que o efeito retroactivo da declaração da inconstitucionalidade (ou ilegalidade) não implica a revogação ou modificação das aplicações concretas que tiverem sido feitas da norma considerada inconstitucional (ou ilegal), desde que essas aplicações tenham ganho forma definitiva e irretractável (caso julgado); em contrapartida, a excepção do caso julgado pode ser afastada pelo TC relativamente à declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) de normas penais, disciplinares ou de ilícito de ordenação social, quando elas forem de conteúdo menos favorável ao arguido. O sentido da norma só pode ser este: (1) em princípio, a declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) não implica «revisão» dos casos julgados em que se tenha aplicado a norma declarada inconstitucional (ou ilegal); (2) todavia, os casos julgados que incidam sobre matéria penal, disciplinar ou de mera ordenação social poderão ser revistos, se da revisão resultar (por efeito da desaplicação da norma considerada inconstitucional ou ilegal) uma decisão de conteúdo mais favorável ao arguido (cfr. art. 29.º-4); (3) a possibilidade de revisão de sentenças constitutivas de caso julgado em matéria penal ou equiparada não é automática, pois tem de ser expressamente decidida pelo TC na sentença que declarar a inconstitucionalidade (ou ilegalidade) da norma, não podendo obstar a isso o preceito (de resto, de constitucionalidade muito duvidosa) do art. 2.º, nº 4 do Cód. Penal. Em suma, estabelece-se aqui uma limitação automática dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou da ilegalidade, em homenagem ao princípio do caso julgado (…) limitado este pelo princípio da norma penal (ou equiparada) mais favorável (…)” [J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MO­REIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, Pág. 1041, nota V].

O TC também já teve oportunidade de assinalar a este propósito que “[o] Estado de direito é, também, um Estado de segurança. Por isso, dificilmente se conceberia o ordenamento de um Estado como este que não garantisse a estabilidade das decisões dos seus tribunais. Ao contrário da função legislativa, que, pela sua própria natureza, tem como característica essencial a autorrevisibilidade dos seus actos (nos limites da Constituição), a função jurisdicional, que o artigo 202.º da CRP define como sendo aquela que se destina a “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”, a “reprimir a violação da legalidade democrática” e a “dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”, não pode deixar de ter como principal característica a tendencial estabilidade das suas decisões, esteio da paz jurídica. Por esse motivo, o artigo 282.º ressalvou, como derrogação à regra da eficácia ex tunc das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a intangibilidade do caso julgado, opondo assim ao valor negativo da inconstitucionalidade o valor positivo da questão já decidida pelo tribunal. Ao estabelecer esta oposição, fazendo nela prevalecer a força vinculativa do caso julgado, o legislador constituinte revelou a forma como procedeu à ponderação de dois bens ou valores: entre a garantia da normatividade da constituição, e a consequente forte censura dos actos inconstitucionais, e a garantia da estabilidade das decisões judiciais, especialmente exigida pelo Estado de direito, a constituição optou em princípio pela segunda, salvos os casos, impostos pelo princípio do favor rei, pre­vistos na segunda parte do nº 3 do artigo 282.º” [acórdão 108/2012, MA­RIA LÚCIA AMARAL (relatora), alojado em www.tribunalconstitucional. pt].

Pois bem, no acórdão 268/2022 o TC não afastou a regra da intangibilidade das sentenças transitadas em julgado que hajam aplicado as normas declaradas inconstitucionais.

Daí que, ainda que o tribunal da condenação tivesse lançado mão dos normativos da Lei 32/2008 declarados inconstitucionais [e como a seguir veremos, não o fez], pela via do art. 449.º, n.º 1, al. f), do Código de Processo Penal a revisão sempre teria de ser denegada.

Quanto ao fundamento da al. e) [descobrir-se que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.os 1 a 3 do artigo 126.º do Código de Processo Penal].

Diz o recorrente que a sua identificação foi obtida mercê da utilização de prova proibida [acesso a metadados cuja conservação pelos fornecedores de serviços de comunicações foi declarada inconstitucional pelo acórdão do TC 268/2022].

Como é sabido, “o fundamento de revisão respeitante à condenação com recurso a provas proibidas exige a verificação de dois requisitos:

(i) condenação em provas proibidas, nos termos dos n.os 1 a 3 do artigo 126.º do Código de Processo Penal; e

(ii) superveniência na demonstração de que serviu de fundamento à condenação uma prova proibida”, o que implica que a prova proibida “foi descoberta posteriormente ao trânsito da decisão” [acórdão do STJ de 23.06. 2022, processo 208/19.5GEBRG-N.S1, 5.ª Secção, ORLANDO GON­ÇALVES (relator)].

Nenhum destes pressupostos se verifica no casu sub iudice.

É certo que ao longo da fase de inquérito o MP promoveu, e o JIC determinou, relativamente a diversos números de telemóvel, a identificação dos IMEI dos aparelhos em que eram utilizados cada um dos respectivos cartões, a intercepção e gravação das comunicações e conversações efectuadas e recebidas, o registo de trace back, a localização celular, a indicação da identidade e residência dos seus titulares ou as referências bancárias de eventuais carregamentos, ou seja, promoveu a recolha de informação relativa a dados de base e a dados de tráfego [vd. os despachos reproduzidos nas págs. 91 e segs. da certidão com a ref.ª 10991422].

Transparece igualmente dos autos que na decorrência dessas diligências a investigação foi alargada ao recorrente [cf. as págs. 23-24 do acórdão do TRP de 06.04.2022 que negou provimento ao recurso ordinário interposto pelo recorrente do acórdão da 1.ª instância].

Todavia, o acesso aos referidos elementos foi validamente autorizado por quem de direito [JIC] ao abrigo, entre outro, do art. 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [circunstância que, obviamente, já era conhecida do recorrente antes do trânsito em julgado da sua condenação], o qual, como sagazmente assinala a Sr.ª Procuradora da República na 1.ª instância, não foi beliscado pela declaração de inconstitucionalidade pronunciada pelo acórdão do TC 268/2022.

Ora, o art. 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal permite aceder a dados de tráfego, neste caso, dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações e, por maioria de razão [in eo quod plus est, semper inest et minus (no que é mais está sempre compreendido o que é menos)], a dados de base relacionados com a identificação do titular do cartão de telemóvel [em relação a estes últimos, como se pode ler no acórdão do TC 268/2022, é indiscutível que “o grau de agressão ao direi­to à intimidade da vida privada (…) é menos gravoso do que os demais me­tadados elencados no artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho (pois apenas identificam o utilizador do meio de comunicação em causa)”].

Para efeito do disposto no art. 449.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, constituem provas proibidas “tanto as provas fundadas na violação da integridade física e moral das pessoas (n.os 1 e 2 do art. 126.º), como as provas que violem ilicitamente a sua privacidade (n.º 3 da mesma norma), já que o Estado não deve perseguir criminalmente à margem da ética. No entanto, existe uma diferença entre as provas proibidas dos n.os 1 e 2 e do n.º 3, do art. 126.º do Código de Processo Penal, assente numa diferente natureza dos direitos violados. No primeiro caso, tem como consequência, sempre, a inutilização da prova obtida; no segundo caso, a prova obtida desse modo, pode ser utilizada havendo consentimento ou acordo do visado na limitação dos seus direitos ou mediante autorização das autoridades para o efeito e segundo as formas previstas na lei” [acórdão do STJ de 23.06.2022 previamente citado. Destaques a negrito da nossa autoria].

Donde que o acórdão revivendo também não se tenha fundado em provas proibidas [e muito menos supervenientemente proibidas].”


7. O recorrente tem legitimidade – artigo 450, nº 1, al. c), do CPP.


8. Colhidos os vistos e após a realização da conferência cumpre decidir.


II-FUNDAMENTAÇÃO

9. Objeto do recurso de revisão

É objecto de recurso de revisão o acórdão condenatório da Relação do Porto de 09/11/2021 e transitado em julgado a 28/04/2022, em que foi o arguido AA condenado, pela prática de um crime de exercício ilícito da actividade de segurança privada, p. e p. pelo artigo 57º, nº2 da Lei nº34/2013, de 26/05, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova.

São fundamentos invocados de revisão os fundamentos contemplados nas alíneas e) e f) do sobredito preceito legal do artigo 449, nº 1, do CPP:

“ e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.os 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;”


O Requerente, como mais explanado está nas suas conclusões, avança como fator determinante da revisão a sobrevinda publicação, em 03/06/2022, do acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, ao declarar com força obrigatória geral (i) a norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei; (ii) a norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros.

Normas que invoca terem servido de fundamento à condenação e de conteúdo menos favorável ao arguido e, nessa medida, por proibidas não poderem servir à condenação. Nas suas palavras pede para “revogar a decisão condenatória, por assentar em prova nula – obtida unicamente através de metadados.”

O acórdão revidendo transitou em julgado em 28/04/2022 e o acórdão do TC foi publicado em 03/06/2022.

Donde a questão a decidir é a de saber se está verificado algum dos pressupostos de revisão previstos na al. f) ou na al. e), do artigo 449, nº 1, do CPP.


10. No para aqui pertinente transcreve-se a matéria de facto dada como provada, pela 1ª instância, que a Relação não alterou:

“12. Durante o ano de 2017, o arguido AA dedicou-se à prestação de serviços de segurança , a pessoas singulares ou colectivas, quer pessoalmente, quer através de pessoas das suas relações de amizade, que contratava para o efeito, mediante o pagamento de uma quantia em dinheiro correspondente ao serviço a prestar, que previamente era indicada por ele e aaceuite pelos contratados. ,  

13. Uma dessas pessoas foi o arguido DD.

14. O arguido AA foi contratado pela firma “O...” para levar a cabo a vigilância e protecção de todo o material do evento “...”, que se encontrava nas suas instalações, situadas no ..., ..., ..., nos dias 19 e 21 de Maio de 2017, e foi o arguido DD quem realizou tal tarefa, com a supervisão daquele, tendo sido pago por este trabalho.

15. E o mesmo aconteceu entre os dias 9 e 11 de Junho do mesmo ano, em que o arguido DD fez vigilância noturna na “...”, para empresas de ..., nas instalações da “...”, situadas em ..., contratado pelo arguido AA para o efeito, agindo em conformidade com as suas ordens e instruções, e pago para tal.

16. Durante o indicado período de tempo, o arguido AA, juntamente com outros indíviduos que ele contratou para o efeito, fez segurança nas discotecas “...”, “...” e “...”.

17. e foi contactado para fazer a segurança, caso o ... viesse a ganhar as eleições para o ..., tende aceite e, em consequência, fez contactos para recrutar pessoas da sua confiança para levar a cabo o trabalho.

18. Os arguidos AA e DD não estavam licenciados para realizar trabalho de segurança privada e sabiam que para tal lhes era legalmente exigível estarem habilitados com cartão profissional, o que não era o caso de ambos.

19. Atuaram os arguidos AA E DD da forma descrita, com o propósito de exercerem a atividade de segurança privada sem possuírem as condições legais necessárias, o que conseguiram.

20. Os arguidos AA e DD agiram de forma livre , deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”


11. Igualmente por pertinente assinala-se na parte que interessa á economia da decisão a motivação de facto:

“Na formação da sua convicção, baseou-se este Tribunal Colectivo na análise conjugada de toda a prova produzida, valorada à luz das regras de normalidade e de experiência comum, tendo atendido, desde logo à prova documental constante dos autos, nomeadamente: Buscas, revistas e apreensões: (Fls (…). Exames: (fls (,,,). Documentos: Fls (…). Escutas Telefónicas: Anexo D (…). E mais adiante: “No que tange ao exercício ilícito da actividade de segurança privada imputado ao arguido AA, baseou-se o Tribunal nas diversas conversas telefónicas mantidas pelo mesmo e que se encontram transcritas nos autos (…)”. Concretizando a seguir quais, sejam por telefone ou SMS, em que tempo, com quem e o que delas se extrai. E conclui que “Relacionando entre si todas estas conversas e mensagens, é por demais evidente que era o arguido AA quem estabelecia contacto com as entidades requisitantes dos serviços de segurança privada; quem acordava o número de vigilantes/seguranças; quem coloca os vigilantes/seguranças nos locais; quem emite as ordens e orientações para a prestação dos serviços; quem contrata e despede os vigilantes/seguranças, sendo a pessoa que procede aos pagamentos aos vigilantes/seguranças, pelos serviços de segurança privada executados pelos mesmos. Em suma, era o arguido AA quem tratava de todas as questões relativas aos serviços de segurança a prestar nos diversos locais, (…).  (sublinhado nosso)

Motivação de facto que se manteve inalterável em sede de recurso para a Relação. E que assentou, como o diz o acórdão, em “diversas conversas telefónicas” e em mensagens SMS, recolhidas através do meio de prova de escutas telefónicas cuja legalidade não vem posta em causa.,  


12. Notas prévias:

(i) O recorrente invoca ab initio a al, d) do artigo 449 do CPP como sustento legal do seu recurso. Todavia, como da leitura da motivação do recurso e das subsequentes conclusões se extrai o pressuposto da revisão trazido ao STJ é a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral dos artigos 4º, 6º e 9º da L. 32/2008, de 17/07, a chamada lei dos metadados.

Donde necessariamente a apreciação deste Tribunal assentará no exame da verificação ou não do pressuposto da al. f), com referência outrossim à verificação ou não do pressuposto da alínea e).

(ii) Depois o Supremo não apreciará aquilo que não é de conhecer no objecto de um recurso de revisão, como bem o surpreendeu o tribunal de 1ª instância,

E surpreendeu-o bem nesta síntese: “No seu pedido de revisão de sentença o arguido suscita também duas questões que já foram objecto de decisão por parte do Tribunal da Relação do Porto e que não constituem fundamento para revisão de sentença nos termos expressamente consignados no artigo 449.º do CPP. Com efeito, o arguido traz novamente à colação a questão da nulidade decorrente da deficiência da gravação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e ainda a questão, já decidida, de que o Tribunal a quo não poderia ter firmado a sua convicção com base nas escutas telefónicas juntas aos autos uma vez que consubstanciam conhecimentos fortuitos que deveriam ter sido objecto de investigação autónoma por parte do Ministério Público. Ora, estas questões já foram objecto de decisão por parte do Tribunal da Relação do Porto e não constituem qualquer fundamento para revisão de sentença, razão pela qual este Tribunal não se irá pronunciar sobre as mesmas.”

(iii) Assim como não é o recurso de revisão o lugar processualmente adequado para conhecer da invocada “proibição de valoração dos conhecimentos fortuitos decorrentes das diligências de escutas e – decorrente destas últimas – de buscas ocorridas nos autos.” (v., por exemplo, “68” e “141” do Recurso). A Relação conheceu da questão, começando por assinalar a diferença de conceitos entre conhecimentos de investigação e conhecimentos fortuitos, para concluir que “o crime inicialmente investigado (de tráfico de armas) e o crime evidenciado (de exercício ilícito de actividade de segurança privada) apresentam uma relação de inclusão sob o ponto de vista do objecto de investigação, o primeiro consiste num holónimo de várias actividades relativas à detenção e utilização de armas pelo que, entre outros comportamentos associados a essa detenção/utilização (seus merónimos), seguramente o exercício da actividade de segurança privada nela se integra, se inclui.”


A conhecer de uma coisa ou de outra neste recurso de revisão estar-se-ia a adulterar a sua finalidade e transformar-se-ia um recurso extraordinário de revisão numa “apelação disfarçada”. Proibição de transformação que, aliás, consagrada está no nº 3 do artigo 449 para a al. d), e que não pode deixar de ter-se como regra geral.


13. Da natureza do recurso de revisão

 

13.1. Teleologicamente o recurso de revisão visa a reposição da verdade e, por ela, da justiça, no dirimir da tensão entre a segurança do caso julgado e a justiça do caso concreto. Por isso é que já Luis Osório, in “Comentário ao Código de Processo Penal”, VI, 402, sublinhava que “O princípio da res judicata pro veritate habetur (tem-se por verdade a coisa julgada) é um princípio de utilidade e não de justiça e assim não pode impedir a revisão da sentença quando haja fortes elementos de convicção de que a decisão proferida não corresponde em matéria de facto à verdade histórica que o processo penal quer e precisa em todos os casos alcançar. Se o processo civil admite a revisão do caso julgado, com mais razão a deve admitir o processo penal.” E no âmbito do processo civil já o Professor Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil, Anotado”, Volume V, Coimbra Editora, 1984, pág. 158, ensinava: “Estes recursos pressupõem que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas susceptíveis de produzir injustiça clamorosa. O recurso extraordinário visa eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça.”.

Claro que a latitude a fornecer ao recurso de revisão será definida pelo legislador sobretudo tendo em conta os princípios da justiça e da proporcionalidade (29, nº 6, da CRP: “nas condições que a lei prescrever”, em conferida liberdade de conformação ao legislador). E que vai mudando tanto quanto o princípio da justiça o imponha, por direito dos “cidadãos injustamente condenados” (citado nº 6). Para o caso que aqui interessa a alínea f) foi acrescentada com a reforma do CPP em 2007, por via da L. 48/2007, de 29/08.

Trata-se de recurso extraordinário que o texto constitucional consagrou no artigo 29, nº 6, e, na decorrência, se suporta nos fundamentos taxativamente fixados no artigo 449, nº 1, do CPP. Secundando a norma constitucional interna, no Direito Europeu também o artº. 4º, nº. 2, do protocolo adicional nº. 7 à CEDH prevê que a descoberta de factos novos ou recentemente revelados ou a existência de um vício fundamental no processo anterior permite a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa.

Fundamentos da revisão, em enumeração fechada, orientados uns pro societate, als a) e b), e visando outros finalidades pro reo, as demais alíneas.

Pode ser objeto de revisão qualquer sentença penal, singular ou colegial, desde que transitada em julgado, bem como qualquer despacho que tenha posto fim ao processo (nºs 1 e 2).

Tal recurso extraordinário constitui-se meio processual especialmente vocacionado para reagir contra clamorosos e intoleráveis erros judiciários ou casos de flagrante injustiça. Só deverá ser excecionalmente admitido naqueles casos que se apresentem com probabilidade séria de ter havido erro na decisão. O carácter extraordinário na forma e excecional na admissão há de levar inelutavelmente a um grau de exigência incompatível com uma leviana e generalizada aceitação do mesmo. Como comumente o tem adiantado a doutrina e a jurisprudência, só circunstâncias substantivas e imperiosas levarão à quebra do caso julgado, não se aceitando que tal recurso extraordinário se transforme em apelação disfarçada ou em adicional recurso de impugnação do decidido para nova reapreciação do anterior julgado. É a própria Lei fundamental que autonomiza o recurso de revisão do recurso normal, prevendo-os respetivamente nos artigos 29, nº 6, e 32, nº 1, e é a jurisprudência constitucional que afirma a necessidade da sua não banalização e não desvalorização do recurso (cfr ac. do TC nº 376/200).

Depois necessário é que se invoque e se demonstre que um daqueles vícios/fundamentos foi determinante da injustiça cometida seja de condenação ou de absolvição.

Para o nosso caso vem invocado como sustento da revisão da condenação o acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022.

O citado acórdão “Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei; declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros”

14.1. Tem o acórdão força de revisão sobre a decisão condenatória?

Não tem, perante a inexistência de “decisão em contrário” do Tribunal Constitucional.  O disposto no artigo 282º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa ressalva o instituto do caso julgado, a não ser que expressamente o Tribunal Constitucional diga outra coisa. Tal preceito, sob a epígrafe “Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade”, estabelece o seguinte: “1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado. 2. Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infração de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última. 3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido. 4. Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excecional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos n.os 1 e 2 ».

Ora, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022 não excecionou a ressalva dos casos julgados nos termos referidos (artigo 282, nº 3, 2ª parte). A publicação do acórdão do TC é posterior ao trânsito em julgado da sentença revidenda, sendo que é com a publicação oficial que ganhou eficácia jurídica, nos termos dos artigos 1, nº 1, e 3, nº 2, al. h), da L. 74/98, de 11/11, e 3º, nº 1, al. a), da L. 28/82, de 15/11.

Como já o apontou Exmo PGA, “O sentido da norma do 282, nº 3, da CRP só pode ser este: (1) em princípio, a declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) não implica «revisão» dos casos julgados em que se tenha aplicado a norma declarada inconstitucional (ou ilegal); (2) todavia, os casos julgados que incidam sobre matéria penal, disciplinar ou de mera ordenação social poderão ser revistos, se da revisão resultar (por efeito da desaplicação da norma considerada inconstitucional ou ilegal) uma decisão de conteúdo mais favorável ao arguido (cfr. art. 29.º-4); (3) a possibilidade de revisão de sentenças constitutivas de caso julgado em matéria penal ou equiparada não é automática, pois tem de ser expressamente decidida pelo TC na sentença que declarar a inconstitucionalidade (ou ilegalidade) da norma. (in J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MO­REIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, Pág. 1041, nota V).”


No mesmo sentido, para o aqui a decidir, somamos a nota ao artigo 282, in “Constituição Portuguesa Anotada”, UC Editora, 2ª edição, Jorge Miranda e Rui Medeiros,:

“A primeira parte do nº 3 do artigo 282 do texto constitucional atual estabelece, como limite geral aos efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a ressalva dos casos julgados.

O fundamento último da solução consagrada na primeira parte do nº 3 do artigo 282 da Constituição não se encontra só no respeito pela autoridade própria dos tribunais ou num princípio de separação de poderes, estando indissociavelmente ligado a uma exigência de segurança jurídica. “Colocado entre dois campos de interesses opostos – de um lado a consideração do interesse da certeza e segurança jurídicas, a demandar o respeito pelo caso julgado, com a sua natureza definitiva, e do outro o interesse do respeito pela legalidade constitucional, a solicitar a reconstituição da ordem jurídica constitucional mediante o afastamento da norma que a violava e de todos os efeitos jurídicos produzidos á sua sombra -, o legislador constitucional sobrepôs o primeiro ao segundo, pondo como limite ao efeito ex tunc da inconstitucionalidade a existência de caso julgado formado relativamente a situação em que tenha ocorrido a aplicação da norma declarada inconstitucional” (acórdão nº 232/04). E não se diga que, por esta via, se verifica “um verdadeiro fenómeno de autoderrogação constitucional”, admitindo-se a derrogação do princípio de que a validade de todos os atos do poder público depende da sua conformidade com a Constituição (PAULO OTERO, Ensaio, pag. 89). É que, em rigor, o problema não está na opção entre privilegiar a plenitude da Constituição ou, ao invés, a certeza do direito declarado judicialmente, porquanto a certeza do direito declarado judicialmente (ainda que inconstitucional …) é, ela própria, uma das formas de que se reveste a certeza constitucional. Nesta perspetiva, num Estado de Direito, que protege a confiança e tutela a segurança jurídica, a ressalva dos casos julgados constitui ainda uma forma de assegurar a primazia da ordem constitucional (cfr, para maiores desenvolvimentos, JORGE MIRANDA; Fiscalizaçõa da Constitucionalidade, pags 335 e segs; RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pags 548 e segs – cfr ainda, na jurisprudência mais recente, Acórdãos nºs 108/12 e 680/15).” 

Na inexistência de “decisão em contrário” do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 282, nº 2, 2ª parte, deve manter-se o caso julgado.

14.2. De todo o modo, avançando, diremos já que o alegado aproveitamento ou transmissão de metadados ao abrigo das normas declaradas inconstitucionais, não foi causal da condenação que aqui se pretende rever.

A inaplicabilidade do acórdão ao caso é evidente. É que a condenação não assentou no meio de prova de recolha e transmissão de metadados. Nos termos do artigo 6.º da L. 32/2008, de 17/07, os fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações têm o dever de conservar pelo período de um ano, os dados de tráfego e de localização de todas as comunicações eletrónicas, os quais vêm especificados no artigo 4º do mesmo diploma.

Fora da obrigação de conservação dos dados estão os dados relativos ao conteúdo das comunicações, porquanto, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 1º, a conservação de tais dados é expressamente proibida.

É logo o artigo 1º da L. 32/2008 que, sob a epígrafe “Objeto”, opera a diferença entre o seu objecto,  nº 1, - “a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas” -, e a interceção e gravação de comunicações, de que não cura, estabelecendo, nº 2, que “a conservação de dados que revelem o conteúdo das comunicações é proibida, sem prejuízo do disposto na Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, e na legislação processual penal relativamente à interceção e gravação de comunicações.”

O acórdão do Tribunal Constitucional visou apenas os artigos 4º, 6º e 9º da L. 32/2008, a chamada lei dos metadados, no que tange ao seu armazenamento, no primeiro segmento decisório, e à sua transmissão, no que toca ao segundo segmento do dispositivo. Metadados por, não abrangendo o conteúdo das comunicações, dizerem respeito apenas às suas circunstâncias, por isso se fala em dados sobre dados, que são os marcos ou pontos de referência que lhe dão o respectivo suporte e que permitem circunscrever a informação sob todas as formas, e que acabam num registo arquivístico do tráfego. Como o assinalou o Tribunal Constitucional o que está em causa nos metadados é que são dados que revelam, a todo o tempo, aspectos da vida privada, familiar e social dos cidadãos, permitindo rastrear a localização do indivíduo ao longo do dia, todos os dias, desde que transporte o telemóvel e identificar quem contactou, quando, duração e regularidade.

De todo o modo, o ac. do TC faz questão de distinguir os dados de base dos dados de tráfego.

“Ora, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, a tutela constitucional dos metadados das comunicações (dados que não abrangem o conteúdo das comunicações, mas dizem respeito somente às suas circunstâncias) não é uniforme: a distinção entre dados de base, relativos à identificação dos sujeitos que se conectam à rede, e dados de tráfego — «os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência)» — tem refração nos parâmetros convocáveis. Deste modo, o padrão invocado pela requerente (o direito à inviolabilidade das comunicações, consagrado no artigo 34.º da Constituição) não protege os dados de base, como se concluiu nos Acórdãos n.ºs 486/2009 e 403/2015, e se reiterou no Acórdão n.º 463/2019:

«Assim, quer os dados de base, quer os dados de localização de equipamento, a que se refere o artigo 3.º da Lei Orgânica, n.º 4/2017, não devem ser considerados como dados atinentes a uma comunicação, já que tanto nuns quanto noutros inexiste qualquer dimensão subjetiva inerente à comunicação. Os primeiros são, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º da mesma Lei, dados escritos atinentes a uma relação contratual entre uma pessoa e uma empresa operadora de telecomunicações, referindo-se à identificação e morada do titular e ao próprio contrato de ligação à rede; os segundos abrangem a deteção de dados de localização a partir de um telefone ligado, mas em stand by, e/ou através do sistema de satélite GPS ou outro (ver, neste sentido, Manuel da Costa Andrade, “Comentário ao artigo 194.º do Código Penal”, in J. Figueiredo Dias (direção), Comentário Conimbricense do Código Penal — Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 1104)».

Neste contexto, nem todos os dados a que se refere o artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, estão protegidos pelo disposto nos números 1 e 4 do artigo 34.º da Constituição. De acordo com a jurisprudência reiterada deste Tribunal, aquele parâmetro abrange os dados de tráfego quando pressuponham uma comunicação entre pessoas, mas já não os dados que, independentemente de qualquer comunicação, sejam atinentes à conexão de certo equipamento a uma rede de comunicações ou à mera identificação de um utilizador a quem estava atribuído um determinado número de telefone ou um endereço de protocolo IP estático (dados de base — cfr. Acórdão n.º 420/2017); nem os dados de tráfego gerados pela comunicação entre um sujeito e uma máquina — v. g., a consulta de sítios da internet.”


Ou seja, na síntese efetuada no voto de vencido, a primeira conclusão a extrair do acórdão é a de que, “no que respeita à obrigação dos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas conservarem os dados de base que não pressupõem a análise de quaisquer comunicações (incluindo os endereços de protocolo IP que identificam a fonte de comunicação), “o Direito da União Europeia não põe em causa a ponderação de proporcionalidade feita pelo Tribunal Constitucional no Acórdão 420/2017, sendo esta conforme ao parâmetro europeu, cujo sentido foi clarificado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.”

Perante a diversidade de meios de prova vêm a doutrina e a jurisprudência assinalando que, em termos de unidade do sistema jurídico, se impõe a necessidade de harmonização entre o regime dos artigos 187º a 189º, do CPP e o regime da Lei nº 32/2008, de 17/07, donde resulta que o daquele se aplica à interceção de comunicações, obtida em tempo real, a decorrer, e interceção das comunicações entre presentes, enquanto o desta tem como âmbito de aplicação a obtenção de dados que concernem a comunicações relativas ao passado ou seja, conservadas ou armazenadas, em arquivo, como se extrai até do consagrado no seu artigo 1º, nº 1. Os arts.187 a 189, do CPP, regulam o recurso aos dados relativos a conversações ou comunicações telefónicas em tempo real, enquanto o acesso aos dados conservados pelas operadoras por conversações ou comunicações telefónicas passadas é regulado pela Lei nº32/2008, de 17 Julho; O nº1, do art.187 citado, delimita o objeto dessa regulação, “a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas”, seja, o que diz respeito a comunicações a ocorrer, a conversações ou comunicações telefónicas em tempo real. O que aí se visa é a interceção e a gravação de dados de conteúdo das ditas conversações ou comunicações telefónicas em tempo real. Por isso, seja conversação ou comunicação e o que lhe é conexo, necessariamente, a fonte telefónica ou informática, caberá nas normas dos artigos 187 a 189. Já se o que interessa são comunicações passadas, localizadas no tempo e no espaço, chama-se à colação a Lei nº32/2008, de 17 de Julho, que define o seu objeto no seu art.1 "… regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves…", e enuncia no seu art. 4, as categorias de dados a conservar e, no art.6º, o período de conservação (um ano a contar da data da conclusão da comunicação).


O meio de prova de transmissão desses dados só pode ser autorizado, por despacho fundamentado do JIC, como prevê o art. 9, nº 1, daquela Lei "… se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves". Mas no caso sub judicio, porque a transmissão dos metadados não estava em causa, o despacho adrede nunca viu a luz do dia. Nem poderia ter visto uma vez que o crime por que foi condenado foi o de exercício ilícito da atividade de segurança privada p. e p. no artigo 57, nº 2, da L. 34/2013, de 16/05, punido em abstrato “com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.” E, sendo esse o crime imputado, estava fora do catálogo de “crimes graves” que apertis verbis estão elencados no artigo 2º, nº 1, al. g), da L. 32/2008.


E só para estes, acrescentamos nós. Leque de infracções mais restrito do que aquele que admite a interceção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas, determinada pelo juiz num processo penal em curso (187 do CPP).  

E, se tal despacho tivesse surgido no decurso do processo, não se dispensaria o arguido, aí sim com razão, de impugnar especificamente esse meio de obtenção de prova.

São, pois, dois meios de prova diferentes, um as escutas telefónicas, outro a conservação e transmissão dos dados. O primeiro regulado nos arts 187 a 190 do CPP. O segundo previsto nos artigos 4º, 6º e 9º da L. 32/2008, agora declarados inconstitucionais nos termos do acórdão nº 268 do Tribunal Constitucional.


O acórdão do TC não tem força de revisão claramente no segundo segmento de declaração de inconstitucionalidade, no que tange ao artigo 9º porque não se vislumbra que a falta de notificação de qualquer dado armazenado tenha estado na base da condenação, tenha sido causal da mesma. Aliás, nem tal vem invocado.

E também não tem virtualidade para revisão o primeiro segmento de tal acórdão. Por uma razão simples. O meio de obtenção de prova que conduziu à condenação não foi o aproveitamento ou transmissão dos metadados a que os artigo 4º e 6º se referem.

O artigo 4.º identifica as categorias de dados a armazenar pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações; o artigo 6.º determina a obrigação da sua conservação pelo período de um ano, a contar da data da conclusão da comunicação; e o artigo 9.º estabelece as condições de transmissão de dados armazenados ao Ministério Público ou à autoridade de polícia criminal competente:


O que determinou a condenação, a sua ratio decidendi, no caso revidendo não foi o aproveitamento ou a transmissão dos metadados armazenados ao abrigo das normas agora declaradas inconstitucionais,. O acórdão condenatório revidendo não se aproveitou da aplicação dessas normas. Nem as invocou. O Recorrente também não lhe aponta tal aproveitamento aplicativo. Nem sequer houve despacho judicial exigido pelo artigo 9º.

Como expressamente se extrai da motivação da decisão de facto, “na formação da sua convicção, baseou-se este Tribunal coletivo na análise conjugada de toda a prova produzida, valorada à luz das regras de normalidade e de experiência comum, tendo atendido, desde logo à prova documental constante dos autos, nomeadamente: Buscas, revistas e apreensões: (Fls (…). Exames: (fls (,,,). Documentos: Fls (…). Escutas Telefónicas: Anexo D (…). E mais adiante: “No que tange ao exercício ilícito da actividade de segurança privada imputado ao arguido AA, baseou-se o Tribunal nas diversas conversas telefónicas mantidas pelo mesmo e que se encontram transcritas nos autos (…). Concretizando a seguir quais, sejam por telefone ou SMS, em que tempo, com quem e o que delas se extrai. E conclui que “Relacionando entre si todas estas conversas e mensagens, é por demais evidente que era o arguido AA quem estabelecia contacto com as entidades requisitantes dos serviços de segurança privada; (…) Em suma, era o arguido AA quem tratava de todas as questões relativas aos serviços de segurança a prestar nos diversos locais, (…).” (sublinhado nosso) 

Motivação de facto que se manteve inalterável em sede de recurso para a Relação.


Dispõe o artigo 187.º, nº1, do CPP,: «A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:

a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;”


Ora, ao crime de exercício ilícito da atividade de segurança privada por que o recorrente acabou condenado cabe, em abstrato, pena de prisão até 4 anos ou pena de multa até 480 dias. Integrando-se, pois, no catálogo de crimes, susceptíveis de serem investigados por via de escutas, desde que preenchidos todos os pressupostos legais de validade das intercepções e gravações telefónicas. Como no caso estiveram, com promoção do MP e autorização do JIC, nos termos dos arts 187 a 189 e 269, nº 1, al. e).


Com o que, forçoso é concluir, falta descoberta de provas proibidas nos termos dos nºs 1 a 3 do artigo 126 que tivessem servido de fundamento á condenação. O que determinou a condenação foi, pois, um meio de prova diferente, as escutas telefónicas, como o Recorrente, aliás, o reconhece. Escutas telefónicas cuja legalidade não vem atacada. E, destarte, não afirmada a respetiva interceção como prova proibida. Com o que não se verifica outrossim o fundamento da al. e). desde logo porque descoberta não houve de provas proibidas elencadas nos números 1 a 3 do artigo 126 do CPP que tivessem servido de fundamento á condenação. Ora, como disse o STJ in ac. de 14/03/2013, proc. 158/09, “as provas proibidas, a que alude a al. e) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, devem ter sido descobertas já depois da decisão a rever.” E, secundando-o, também aqui, a utilização de métodos de prova alegadamente proibidos nada tem de novo, pelo que o uso e a valoração das provas alegadamente proibidas não relevam nesta sede de revisão de sentença, pois que não foram descobertas posteriormente à decisão condenatória. O que o acórdão de 03-05-2018, proc. n.º 10939/16, repetiu desta forma:

«I - Só as provas proibidas mencionadas no art.126.º, n.ºs 1 a 3, do CPP que hajam servido de suporte à condenação possibilitam a revisão, ou seja, «provas obtidas por métodos violentos ou insidiosos, com ofensa à integridade física ou moral das pessoas nomeadamente de interrogatório ou inquirição. II - Não basta a invocação do uso de prova proibida. É preciso que esse uso seja descoberto em momento posterior à decisão revidenda e isso confirmado de modo inequívoco. Este dado da descoberta posterior é fundamental pois se o uso de prova proibida é conhecido, no limite, até ao momento de ser proferida decisão final o meio próprio de a tal obstar é o recurso ordinário. Nunca o recurso extraordinário».

Não se mostra preenchido o pressuposto de revisão da alínea e) citada.

Escutas telefónicas como meio de obtenção de prova, nos termos do CPP, e aproveitamento e transmissão dos metadados ao abrigo da L. 32/2008 são meios diferentes de obtenção de prova, com pressupostos de utilização diferentes, teleologicamente orientados para finalidades diversas, obtenção de dados de conteúdo no primeiro caso e obtenção de dados de identificação, tráfego ou localização no segundo. Obtenção de conteúdo em tempo real no primeiro caso, aproveitamentos de dados armazenados no segundo, Não são, pois, confundíveis. E um e outro têm assento legal distinto.

Poder-se-ia até, no domínio da prova digital, elaborar elenco ainda mais completo integrando, ao lado destes dois meios de obtenção de prova, também aqueloutro de obtenção de prova electrónica preservada ou conservada em sistemas informáticos previsto nos artigos 11º a 19º da denominada Lei do Cibercrime.

In “Prova digital: as leis que temos e a lei que devíamos ter”, “Revista do Ministério Público”, nº 139, 29 e segs, também a doutrina pela pena de João Conde Correia, aliás criticando o excesso, aponta a trilogia das fontes da prova digital, a saber, CPP, artigos 187 a 190, Lei 32/2008, de 17/07, a denominada lei dos metadados, e a Lei 109/2009, de 15/09, Lei do Cibercrime. “três diplomas legais para regular aspetos parcelares da mesma realidade concreta.” Não pode, portanto, confundir-se o que inconfundível é.

Todavia, porque para a economia da decisão é supérfluo, utilizando discurso geométrico, não vamos verificar se a conexão entre tais circunferências normativas se configura como de secantes, tangentes, externas, internas, concêntricas ou coincidentes.   

As interceções realizadas ao abrigo do normativo do CPP visaram captar e gravar conversações ou comunicações em trânsito, a ocorrerem, em tempo real. Não visaram conversações já realizadas nem objetivaram obtenção de dados de tráfego.

O acórdão do TC não bole em mínima medida sequer com o regime processual penal das interceções telefónicas. Nem tal acórdão visou qualquer das normas em que assentam, nem o objeto de análise do acórdão era a obtenção de dados de conteúdo em tempo real.

A ratio decidendi da condenação não assentou na L. 32/2008 nem se prevaleceu do disposto nos seus  artigos 4º, 6º e 9º.

Forçoso é, pois, concluir que o tribunal da condenação não se prevaleceu para tanto de provas proibidas nem o acórdão do TC obriga à peticionada revisão.  

Por todo o exposto, a pretensão do recorrente não tem fundamento legal, por não se subsumir nem na al. e) nem na al. f) do artigo 449 do CPP.

Com o que o recurso de revisão tem de improceder.

15. Quanto a custas e sanções processuais

Nos termos do disposto no artigo 456.º do CPP, se o Supremo Tribunal de Justiça negar a revisão pedida pelo assistente, pelo condenado ou por qualquer das pessoas referidas no n.º 2 do artigo 450.º, condena o requerente em custas e ainda, se considerar que o pedido era manifestamente infundado, no pagamento de uma quantia entre 6 UC a 30 UC.

De acordo com o artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e da Tabela III em anexo, a taxa de justiça é fixada entre 1 e 5 UC, tendo em conta a complexidade do processo.

III Decisão:

Pelo exposto, em conferência, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em

a) Julgar o recurso improcedente e denegar a revisão da sentença condenatória requerida pelo Recorrente.

b) Julgar o pedido de revisão manifestamente infundado.

c) Condenar o requerente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

d) Condenar o requerente na quantia de 6 UC, por o pedido de revisão ser manifestamente infundado.

Supremo Tribunal de Justiça, em 06/09/2022.


Ernesto Vaz Pereira (Relator)

Lopes da Mota (1º Adjunto)

Conceição Gomes (2ª Adjunta)

Nuno António Gonçalves (Presidente da Secção)