HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
JULGAMENTO NA AUSÊNCIA DO ARGUIDO
CONDENAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
NULIDADE
TRÂNSITO EM JULGADO
CUMPRIMENTO DE PENA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
INDEFERIMENTO
Sumário


I. Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão de uma das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.
II. Julgado na ausência, o requerente contesta a validade e eficácia da notificação do acórdão condenatório, por não ter sido observado o disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 333.º do CPP, com informação da possibilidade de recorrer e do prazo para o fazer, alegando que esta inobservância fere a “notificação” de “inexistência” e pedindo que este tribunal conheça da “inexistência” ou “nulidade insanável” da notificação, que, a serem reconhecidas, impediriam o trânsito em julgado da condenação por não ter decorrido o prazo de interposição de recurso, declarando a invalidade do ato e do processado subsequente, em que se inclui a emissão do mandado de detenção para cumprimento da pena, e que, num segundo momento, em consequência disso, reconheça a ilegalidade da prisão.
III. A providência de habeas corpus não se destina a apreciar a validade de atos processuais ou a decidir se, na sua execução, ocorreram ou não irregularidades ou nulidades resultantes da inobservância da lei; trata-se de matérias que dispõem de meios próprios de intervenção, reação e decisão no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o disposto nos artigos 118.º a 123.º do CPP, e por via de recurso (artigo 399.º e segs. do CPP). A providência de habeas corpus não constitui um meio de intervenção no processo em que foi proferida a decisão condenatória e no qual foram praticados os atos que o requerente pretende colocar em crise ou uma fase que lhe diga respeito.
IV. As questões relativas à validade e eficácia da notificação do acórdão condenatório do arguido julgado na ausência, em que o requerente funda a sua pretensão, encontram-se subtraídas aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito desta providência.
V. Resultando dos autos que o acórdão condenatório foi notificado ao requerente mediante comunicação executada por agente policial, como a lei permite (artigo 111.º, n.º 2, do CPP), e que não existe decisão, no processo, que reconheça e declare a invalidade desse ato ou de qualquer ato subsequente, não se identifica motivo que tenha obstado ao trânsito em julgado da decisão condenatória, contrariando a informação do tribunal da condenação de que o acórdão transitou em julgado.
VI. Assim, tendo a privação da liberdade para efeitos de cumprimento da pena de prisão sido ordenada pelo juiz competente, em conformidade com o disposto no artigo 27.º da Constituição e nos artigos 467.º, 470.º e 478.º do Código de Processo Penal, e mantendo-se a prisão dentro do prazo fixado por decisão judicial, não se verifica qualquer dos motivos de ilegalidade da prisão previstos nas alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.
VII. Nesta conformidade, carece o pedido de fundamento, devendo ser indeferido [artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP].

Texto Integral

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório

1. AA, arguido nos autos referenciados em epígrafe e aí melhor identificado, vem, nos termos do artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 222.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal, requerer providência de habeas corpus, nos seguintes termos (transcrição):

«1. No âmbito dos presentes autos, encontra-se o Arguido preso, para efeitos de cumprimento de pena definitiva, desde o dia 16 de Agosto de 2022.

2. O Arguido encontra-se nessa situação em consequência do Mandado de Detenção que ordena a sua condução ao Estabelecimento Prisional competente, datado de 14 de Julho de 2022, por referência “a decisão transitada em julgado em 23-05-2018”.

3. Sucede que o trânsito em julgado a que se faz referência, como se verá infra, não ocorreu!

4. A decisão em causa, emanada pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Central Criminal de Sintra – Juiz ... (à data, Varas de Competência Mista de Sintra, ... Vara Mista), a 16 de Abril de 2009, foi proferida após o respectivo julgamento, o qual teve lugar na ausência do Arguido.

5. Já no ano de 2018, o Arguido dirigiu-se a Portugal para visitar um amigo, de seu nome BB, entre os dias 23 de Abril a 6 de Maio.

6. Tendo sido abordado pelos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, apresentou uma declaração assinada pelo referido BB, atestando precisamente essa situação, com a assinatura devidamente reconhecida – conforme Documento 1 que se junta.

7. A sua entrada em Portugal foi recusada por “Insuficiência de meios de subsistência para o período e tipo de estada ou para o regresso ao país de origem ou de trânsito” - conforme Documento 2 que se junta.

8. Nesse momento, sem mais, foi entregue ao Arguido, no acto, cópia da decisão proferida nos autos identificados, acompanhados da Notificação a Fls. 494 que abaixo se reproduz:

“—Aos 23 dias do mês de Abril do ano de 2018, no Posto de Fronteira do Aeroporto ..., eu, CC, Inspector do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, no desempenho das minhas funções e a coberto do Processo n.º 2930/4.1GFSNT da Comarca ... – Sintra – Juízo Grande Inst. Criminal – ... Secção – Juiz ..., notifico o cidadão AA, nascido a .../.../1983, de nacionalidade ..., residente na Rua ..., ..., ..., ..., ..., de todo o conteúdo do Acórdão, proferido nos autos acima indicados, cuja cópia se junta para neste acto lhe ser entregue, e que faz parte integrante da presente notificação. Mais se notifica que pode, querendo, contactar a sua defensora oficiosa, Dr.ª DD, com escritório na Av. ...-..., ... .... De todo o conteúdo, declarou estar ciente e ter compreendido o sentido desta notificação, a qual vai comigo assinar e receber um duplicado da mesma”.

9. Após, foi o Arguido encaminhado para regressar para ... na sequência da recusa de entrada em território nacional pelos motivos acima indicados – conforme Fls. 491.

10. Sucede que a notificação acima identificada, levada a cabo pelo SEF, não consubstancia a formal notificação da sentença conforme obriga o artigo 333.º do C.P.P..

11. Isto porque, dispõe o n.º 5 de tal artigo o seguinte:

“5 - No caso previsto nos n.ºs 2 e 3, havendo lugar a audiência na ausência do arguido, a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente. O prazo para a interposição de recurso pelo arguido conta-se a partir da notificação da sentença.”

12. Acrescenta o n.º 6 de tal artigo que “Na notificação prevista no número anterior o arguido é expressamente informado do direito a recorrer da sentença e do respectivo prazo.” – negrito e sublinhado nosso -

13. Ora, a pretensa notificação levada a cabo no dia 23 de Abril de 2018 ou o mandado que a suporta não tem qualquer menção, muito menos uma informação expressa, como a lei exige, (i) da possibilidade de recorrer da decisão e (ii) do prazo para o fazer - já agora, convém rememorar que entre 2010 e 2018, o prazo de recurso ínsito no artigo 411.º do C.P.P. foi inclusivamente alterado pela Lei n.º 20/2013, de 21/02.

14. Tanto assim é, que demonstram os autos que a 8 de Janeiro de 2013 foram emitidos mandados de detenção para o Posto de GNR de ..., nos quais consta a menção a que obriga o n.º 6 do artigo 333.º do C.P.P. – conforme Fls.464.

15. Ora, nem quando o SEF, a 19 de Junho de 2015, solicita ao Tribunal a revalidação do pedido de mandado oportunamente remetido, como assim revelam as Fls. 482 dos autos, foi a presente situação rectificada, pois que o Tribunal apenas informou “que continua a interessar a detenção do arguido AA”, conforme respectiva promoção, despacho e notificação a Fls.483, 484 e 485.

16. Ora, nem sequer foi ordenada a comunicação ao Arguido da possibilidade de apresentar recurso e qual o prazo para o fazer.

17. E nem se diga que a comunicação de tais direitos poderiam advir do contacto com a defensora oficiosa pois que tal não colmataria a inobservância legal da notificação.

18. Ademais, tal contacto nem sequer era possível, pois apenas foi indicado ao Arguido a morada da Il. Mandatária – desacompanhada de qualquer contacto telefónico – e mesmo o contacto postal nem sequer era possível, pois que a defensora oficiosa constituída nos autos tem a sua inscrição suspensa na Ordem dos Advogados desde o dia ... de Novembro de 2013 – conforme Documento 3 que se junta!

19. Não ignora o ora signatário que o referido n.º 6 do artigo 333.º do C.P.P. foi aditado pela Lei 26/2010 de 30/08, e o Mandado de Detenção para efeitos de notificação emitido pelo Tribunal é datado de 23/06/2010.

20. Porém, quando o SEF se propõe a dar cumprimento à notificação, a Lei 26/2010 já estava em vigor, há oito anos.

21. A referida lei processual é de aplicação imediata (artigo 5.º n.º 1 do C.P.P.), o que sempre deveria determinar, pelo menos por parte do SEF, uma notificação completa, face ao agravamento sensível da situação processual do Arguido que a sua não aplicação implicaria.

22. Veja-se, como lugar paralelo, a ressalva efectuada por Paulo Pinto de Albuquerque quanto à validade dos actos praticados por lei anterior a que se refere o artigo 5.º do C.P.P.: “Caso diferente é o de o arguido ter sido notificado editalmente ao abrigo da lei anterior, que não constitui termo inicial válido para a contagem do prazo para requerer a abertura de instrução, e já à luz da lei nova ser notificado da acusação e data para julgamento, requerendo então a abertura de instrução, como a lei nova prevê. Neste caso deveria aplicar-se a lei nova, porque o acto realizado na vigência da lei anterior não pode validamente ter o efeito de determinar o termo inicial para a contagem do prazo para requerer a abertura da instrução”.

23. E no caso que ora nos ocupa, o mandado e comunicação ao Arguido, nunca podem ter-se como válidos pois que a concreta comunicação da decisão ao Arguido é levada a cabo após a entrada em vigor da Lei 26/2010 de 30/08.

24. O acto, em si, de notificação, não cumpre o disposto nos números 5 e 6 do artigo 333.º do C.P.P..

25. Também não se pode ignorar que na data em que o SEF entrega ao Arguido cópia da decisão condenatória não só não permite a sua entrada em Portugal, como indica a morada de uma defensora oficiosa que não estava sequer já em exercício de funções, inviabilizando o contacto com a mesma (ou sequer a possibilidade de patrocínio, sendo que o artigo 64.º do C.P.P. estabelece no n.º 1 que é obrigatória a assistência do defensor nos recursos ordinários ou extraordinários), de onde resulta o total desconhecimento por parte do Arguido dos seus direitos de defesa.

26. Como decorre do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do Processo n.º 285/14.5PTAVR-A.P1, em que foi Relator o Exmo. Sr. Dr. Juiz Desembargador Luís Coimbra, datado de 23/11/2016:

“(…) existem normativos especiais e específicos a determinar a notificação da sentença ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente, ou seja, a impor a notificação pessoal da sentença ao arguido, sendo que aquando desta notificação (pessoal) também deve ser expressamente informado do direito de recorrer da sentença e do respectivo prazo.” - negrito e sublinhado nosso -

27. Isto porque “Se a lei exige que o arguido julgado na sua ausência seja notificado da sentença pela forma mais formal prevista, então é porque pretende garantir que ele tem efetivo conhecimento dela, para poder, se não instruir, pelo menos discutir com o seu advogado os termos do eventual recurso a interpor. Embora a decisão de interposição do recurso seja uma decisão jurídica e, pois, uma resolução sobretudo do defensor, o arguido deve estar ciente da iminência da reação penal e ter a oportunidade de se pronunciar quanto a ela por via de recurso.”– negrito nosso -

28. Nesse sentido, e de acordo com os normativos legais acima mencionados, o Arguido não foi notificado da decisão condenatória, pelo que a mesma não transitou em julgado.

29. Não tendo a supra referida decisão transitado em julgado, a situação de prisão do Arguido é ilegal.

30. O n.º 6 do referido artigo 333.º do C.P.P. visa, precisamente, garantir que ao Arguido é dado conhecimento não só do teor da decisão proferida contra si em processo julgado na sua ausência, como do seu direito de defesa, e do prazo em que o pode exercer.

31. Não é exigível ao homem médio, sequer a um cidadão português, e muito menos a um cidadão estrangeiro – que ainda para mais nunca se viu envolto nas malhas da justiça, como denuncia o seu CRC junto aos autos– que conheça os seus direitos, sendo precisamente esse o motivo de tal exigência legal (artigo 333.º n.º 5 e 6 do C.P.P.).

32. Pois veja-se que o Arguido, impedido de entrar em Portugal em 2018 pelo SEF por “insuficiência de meios de subsistência para o período e tipo de estada ou para o regresso ao país de origem ou de trânsito”, só regressa novamente ao país em 2022 e, recebendo no seu correio uma convocatória da Polícia de Segurança Municipal, datada de 15 de Agosto de 2022 – conforme Documento 4, com o assunto “Tribunal”, se apresenta logo no dia 16 de Agosto de 2022, data na qual é preso, em total e absoluto desconhecimento da sua condição processual.

33. Decorre, assim, do artigo 333.º n.º 5 e 6 do C.P.P. que o legislador, de forma expressa, indica que a prática do acto processual de impugnação da sentença pelo arguido julgado na ausência está condicionado à verificação de um outro acto anterior, a saber, a efectivação da notificação pessoal da sentença ao arguido que deve indicar desde logo a possibilidade de impugnar a sentença por intermédio de recurso, e o prazo (peremptório) dentro do qual pode o arguido o pode fazer.

34. A notificação processual da sentença só existirá em termos substantivos quando contenha todos os requisitos legais, desde logo, que se trata de uma comunicação feita pela secretaria de um tribunal precedida de um despacho da autoridade judiciária, onde se indique a finalidade da comunicação, impondo-se in casu, a informação expressa do direito a recorrer e do respectivo prazo.

35. O hiato temporal transcorrido desde que o SEF recebeu tal mandado (2010) e o momento em que o pretendeu cumprir (2018) não pode ser impermeável às alterações desde logo legislativas (como a entrada em vigor da Lei 26/2010) como factuais (a suspensão da defensora oficiosa a 19 de Novembro de 2013) que resultam numa pretensa comunicação que não reveste a forma de notificação processual, de conteúdo obsoleto, transmitida a um Arguido que, de si, se viu privado e coarctado de importantes direitos de defesa como seja o direito ao recurso e o direito a ser representado por mandatário, nos termos e para os efeitos do artigo 32.º n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa.

36. Nesse sentido, por não ter sido efectuada a notificação por contacto pessoal conforme exige lei, considera-se a mesma cominada com o vício de inexistência ou, quando assim não se entenda, com a nulidade insanável prevista no artigo 119.º alínea c) do C.P.P. a qual cumpre a este Alto Tribunal conhecer, declarando-se a invalidade do processado subsequente nos termos e para os efeitos do artigo 122.º n.º 1 do C.P.P..

37. E, em consequência, uma vez que o Arguido não foi notificado por contacto pessoal da sentença, ainda não começou a correr o prazo para interposição do recurso, não tendo ainda, sequer, a decisão transitado em julgado, pelo que a sua prisão é manifestamente ilegal a qual não pode, seja de que forma ou com que fundamento for, manter-se.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser determinada a imediata restituição do arguido à liberdade, o que se requer.»

2. Da informação prestada pela Senhora Juíza do processo (em turno), a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), sobre as condições em que foi efetuada e se mantém a prisão, consta o seguinte (transcrição):

«1. Por acórdão de 16.04.2009, o arguido AA foi condenado na pena de três anos e seis meses de prisão (fls. 388 a 395 dos autos principais);

2. O arguido foi julgado na ausência e não esteve presente na leitura do acórdão condenatório (vd. fls. 396 dos autos principais);

3. Por despacho de 22.06.2010, o arguido foi declarado contumaz (vd. fls. 427 dos autos principais);

4. Em 23.04.2018, em cumprimento do mandado de detenção que tinha sido emitido, o arguido foi detido no aeroporto ..., tendo sido recusada a sua entrada em território nacional. Na mesma ocasião, o arguido foi notificado, além do mais, “de todo o conteúdo do acórdão, proferido nos autos acima indicados, cuja cópia se junta para neste acto lhe ser entregue, e que faz parte integrante da presente notificação.” (vd. fls. 491 a 497 e despacho com a ref.ª 112807365 dos autos principais).

5. Por despacho de 13.07.2018, determinou-se a emissão de mandados de detenção do arguido, para cumprimento da pena de prisão na qual fora condenado, mantendo-se a situação de contumácia até à sua captura (vd. ref.ª 114159642 e 114245383 dos autos principais).

6. Em 14.07.2022 foram emitidos novos mandados de detenção do arguido, para cumprimento da pena, por referência a nova morada entretanto apurada, os quais foram cumpridos em 16.08.2022 (vd. fls. 502 a 509 dos autos principais).

7. O arguido encontra-se preso à ordem destes autos desde 16.08.2022, tendo-se procedido à liquidação da respectiva pena (vd. fls. 510 a 512 dos autos principais).»

3. O processo encontra-se instruído com documentação dos atos processuais relevantes para a decisão do pedido de habeas corpus, nomeadamente dos seguintes:

(a) Acórdão de 16.4.2009, das Varas de Competência Mista de Sintra, ... Vara Mista, proferido no processo n.º 2930/041.GFSNT, que condenou o requerente pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz, p. e p. pelo artigo 165.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.

(b) Ata de audiência (leitura do acórdão), de 16.4.2009, da qual consta que o arguido não esteve presente no ato.

(c) Despacho de declaração de contumácia de 22.6.2010 e despacho de cessação de contumácia de 22.8.2022.

(d) Comunicação do SEF ao tribunal da condenação, de 23.4.2018, informando que o arguido se encontrava, nessa data, nas instalações equiparadas a centro de instalação temporária no aeroporto ..., destinada a passageiros chegados por via aérea, a aguardar embarque no voo de regresso ..., por, nessa data, ter sido recusada a sua entrada em território nacional.

(e) Mandado de detenção do arguido, emitido pelo juiz do processo, em 23.6.2010, pelo tempo necessário à prestação de termo de identidade e residência (TIR) e à “notificação”, que era ordenada, “do acórdão proferido em 16.4.2009, cuja cópia vai junta para lhe ser entregue”, com indicação de que esta pessoa se encontrava “acusada da prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência p. e p. pelo artigo 165.º do C. Penal, praticado em 23.12.2004”, da identidade e dados de contacto do seu defensor oficioso e de que lhe deveria ser entregue um duplicado do mandado no ato de detenção.

(f) Certidão, emitida em 23.4.2018, de que, em cumprimento do mandado de detenção, o inspetor do SEF procedeu à detenção do arguido no posto de fronteira e de que este foi restituído à liberdade após prestação do TIR, bem como certidão, assinada pelo arguido, de que recebeu cópia do mandado de detenção, ficando ciente de todo o seu conteúdo.

(g) “Notificação”, na mesma data (23.4.2018), assinada pelo arguido, do acórdão condenatório, do seguinte teor: “Aos 23 dias do mês de Abril do ano de 2018, no Posto de Fronteira do Aeroporto ..., eu, CC, Inspector do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, no desempenho das minhas funções e a coberto do Processo n.º 2930/4.1GFSNT da Comarca ... – Sintra – Juízo Grande Inst. Criminal – ... Secção – Juiz ..., notifico o cidadão AA, nascido a .../.../1983, de nacionalidade ..., residente na Rua ..., ..., ..., ..., ..., de todo o conteúdo do Acórdão, proferido nos autos acima indicados, cuja cópia se junta para neste acto lhe ser entregue, e que faz parte integrante da presente notificação. Mais se notifica que pode, querendo, contactar a sua defensora oficiosa, Dr.ª DD, com escritório na Av. ...-..., ... .... De todo o conteúdo, declarou estar ciente e ter compreendido o sentido desta notificação, a qual vai comigo assinar e receber um duplicado da mesma”.

(h) Mandado emitido pelo juiz do processo, em 14.7.2022, para detenção e condução do arguido ao estabelecimento prisional para cumprimento da pena de 3 anos e 6 meses de prisão, do qual consta que a sentença transitou em julgado em 23.5.2018, com certificação de cumprimento pela PSP ... em 16.8.2022, bem como da entrada no estabelecimento prisional ... na mesma data.

(i) Despacho de liquidação da pena, de 22.8.2022, do qual se extrai que, tendo o arguido sido detido em 16.8.2022 e havendo que descontar 2 dias por detenções anteriores, o meio da pena será atingido em 14.5.2024, os dois terços da pena em 14.12.2024, os cinco sextos em 14.7.2025 e o termo da pena em 14.2.2026.

4. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Após o que a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.

II. Fundamentação

5. O artigo 31.º, n.º 1, da Constituição da República consagra o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegais.

O habeas corpus consiste numa providência expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344).

Nos termos do artigo 27.º da Constituição, todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança privativa da liberdade (n.ºs 1 e 2), excetuando-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3. A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos neste preceito constitucional.

O direito à liberdade consagrado e garantido no artigo 27.º da Constituição, que se inspira diretamente no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e em outros textos internacionais, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 9.º), que vinculam Portugal ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, é o direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar [assim, por todos, o acórdão de 11.05.2022 (proc. 72/18.1T9RGR-F.S1), em www.dgsi.pt].

Estando em questão uma situação de alegada prisão ilegal, que não de detenção, é aplicável o artigo 222.º do CPP, que dispõe:

«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

  2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

6. Como se tem sublinhado em jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus constitui uma medida extraordinária ou excecional de urgência – no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de reagir contra a prisão ilegal – perante ofensa grave à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei, referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

A providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial, um meio de reação tendo por objeto atos do processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido ou um «sucedâneo» dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (artigos 399.º e segs. do CPP). A providência não interfere nem é incompatível com o recurso ordinário de decisões com efeitos de privação da liberdade, sendo diferentes os seus pressupostos. A diversidade do âmbito de proteção do habeas corpus e do recurso ordinário configuram diferentes níveis de garantia do direito à liberdade, em que aquela providência permite preencher um espaço de proteção imediata perante a inadmissibilidade legal da prisão.

A providência não se destina a apreciar alegados erros de direito, irregularidades ou nulidades de atos processuais, que dispõem de regime de arguição e conhecimento processual próprio (artigos 118.º a 123.º do CPP), nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade. Os seus fundamentos “revelam que a ilegalidade da prisão que lhes está pressuposta se deve configurar como violação direta e substancial e em contrariedade imediata e patente da lei: quer seja a incompetência para ordenar a prisão, a inadmissibilidade substantiva (facto que não admita a privação de liberdade), ou a direta, manifesta e autodeterminável insubsistência de pressupostos, de simples e clara verificação material (excesso de prazo)» (assim, nomeadamente, de entre os mais recentes, os acórdãos de 11.5.2022, citado, de 9.3.2022, 816/13.8PBCLD-A.S1, e de 29.12.2021, proc. 487/19.8PALSB-A.S1, citando os acórdãos de 04.01.2017, proc. 109/16.9GBMDR-B.S1, de 02.11.2018, proc. 78/16.5PWLSB-B.S1, e de 16-05-2019, proc. 1206/17.9S6LSB-C.S1, em www.dgsi.pt).

7. Os motivos de «ilegalidade da prisão», que constituem fundamento do habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se tem afirmado em jurisprudência uniforme e reiterada, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar: (a) se a prisão, em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível e ordenada por entidade competente; (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite; e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (assim, de entre os mais recentes, os acórdãos de 11.5.2022, citado, de 9.3.2022, proc. 816/13.8PBCLD-A.S1, e de 29.12.2021, proc. 487/19.8PALSB-A.S1, também citado).

O habeas corpus pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que a petição é apreciada, como também tem sido reiteradamente sublinhado (assim, os citados acórdãos de 11.5.2022, de 9.3.2022 e de 29.12.2021, bem como, de entre outros, os acórdãos de 21.11.2012, proc. n.º 22/12.9GBETZ-0.S1, 09.02.2011, proc. n.º 25/10.8MAVRS-B.S1, de 11.02.2015, proc. n.º 18/15.9YFLSB.S1, e de 17.03.2016, proc. n.º 289/16.3JABRG-A.S1, em www.dgsi.pt).

8. Da petição, da informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP e dos documentos juntos (supra, 3), resulta esclarecido, em síntese, com relevância para a decisão, que:

¾ O arguido foi julgado na ausência e o acórdão condenatório, que lhe aplicou a pena de 3 anos e 6 meses de prisão, foi proferido em audiência em que não esteve presente;

¾ O acórdão foi comunicado pessoalmente ao requerente, com entrega de cópia, por inspetor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), em cumprimento de mandado emitido pelo juiz do processo, em 23.4.2018, nos termos que constavam do mandado e exarados na “notificação” de 23.4.2018;

¾ De acordo com a informação do tribunal da condenação, o acórdão condenatório transitou em julgado em 23.5.2018;

¾ Em 14.7.2022 foram emitidos, pelo juiz do processo em que foi proferida a decisão de condenação, mandados de detenção e condução do requerente ao estabelecimento prisional para cumprimento da pena de prisão aplicada;

¾ O requerente encontra-se preso em cumprimento de pena desde o dia 16.8.2022, data em que foi detido em cumprimento do mandado de detenção;

¾ De acordo com o despacho judicial de liquidação da pena, o termo de cumprimento desta terá lugar no dia 14.2.2026.

9. Na petição da presente providência de habeas corpus, o arguido vem colocar em causa o trânsito em julgado da condenação; na sua alegação, o acórdão condenatório não transitou em julgado, pelo que a pena de prisão não pode ser executada. A prisão, em que atualmente se encontra, é, por conseguinte, em seu entender, ilegal, por ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite, o que, nesse entendimento, constitui o fundamento de habeas corpus indicado na al. b) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Embora reconhecendo que lhe “foi entregue” “cópia da decisão proferida nos autos”, acompanhada da “notificação” de 23.4.2018, elaborada pelo SEF, cujo teor reproduz na petição, o requerente contesta a validade e eficácia dessa “notificação” por não ter sido observado o disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 333.º do CPP, em particular o disposto neste n.º 6 – informação da possibilidade de recorrer da decisão e do prazo para o fazer –, alegando que esta inobservância fere a “notificação” de “inexistência” –, pois, diz, “não consubstancia a formal notificação da sentença conforme obriga o artigo 333.º do CPP – ou, se assim não se entender, da “nulidade insanável prevista no artigo 119.º alínea c) do C.P.P” (ausência do arguido em caso em que a lei exige a sua comparência), “a qual cumpre a este Alto Tribunal conhecer, declarando-se a invalidade do processado subsequente nos termos e para os efeitos do artigo 122.º n.º 1 do C.P.P..”.

O requerente pede, assim, que este tribunal, num primeiro momento, instrumental do segundo, conheça da “inexistência” ou “nulidade insanável” da notificação, que, a serem reconhecidas, impediriam o trânsito em julgado da condenação por não ter decorrido o prazo de interposição de recurso, declarando a invalidade do ato e do processado subsequente, em que se incluem a emissão do mandado de detenção para cumprimento da pena, e que, num segundo momento, em consequência disso, reconheça a ilegalidade da prisão para cumprimento da pena.

10. Dispondo o n.º 1 do artigo 467.º do CPP que as decisões penais condenatórias transitadas em julgado têm força executiva em todo o território português e o artigo 478.º que os condenados em pena de prisão dão entrada no estabelecimento prisional por mandado do juiz competente, que é o do tribunal da condenação, para execução da pena aplicada, e não tendo ocorrido o trânsito em julgado, a prisão para execução da pena seria, na tese do requerente, ilegal.

A decisão condenatória considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário (artigo 628.º do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP), o qual deve ser interposto no prazo de trinta dias (artigo 411.º, n.º 1, do CPP), a contar da data da notificação ao arguido, no caso de julgamento na ausência (artigo 333.º, n.º 5, do CPP).

11. Relembrando o que anteriormente se esclareceu (supra, 6), a providência de habeas corpus não se destina a apreciar a validade de atos processuais ou a decidir se, na sua execução, ocorreram ou não irregularidades ou nulidades resultantes da inobservância da lei. Trata-se de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção, reação e decisão no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o estabelecido nos artigos 119.º a 123.º do CPP, e por via de recurso para os tribunais superiores (artigo 399.º e segs. do CPP).

Nos termos do artigo 118.º, n.ºs 1 e 2, do CPP a violação ou inobservância da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando essa for expressamente cominada na lei e, nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular, carecendo, assim, de qualquer fundamento legal a alegação de que a notificação do acórdão se mostra ferida do vício de inexistência.

Se a não observância da lei determinar uma “nulidade insanável”, tal nulidade deve ser declarada no processo – “em qualquer fase do procedimento”, como impõe o artigo 119.º do CPP.

Como anteriormente se afirmou (supra, 5 e 6), a providência de habeas corpus não constitui um meio de intervenção no processo em que foi proferida a decisão condenatória e no qual foram praticados os atos que o requerente pretende colocar em crise ou uma fase que lhe diga respeito.

Por conseguinte, as questões relativas à validade e eficácia da notificação do acórdão, em que o requerente funda a sua pretensão, encontram-se subtraídas aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito desta providência.

12. Resulta dos autos, como se viu (supra, 8), que o acórdão condenatório foi notificado ao requerente mediante comunicação executada por agente policial, como a lei permite (artigo 111.º, n.º 2, do CPP), e que não existe decisão, no processo, que reconheça e declare a invalidade desse ato ou de qualquer ato subsequente, não se identificando, por conseguinte, motivo que tenha obstado ao trânsito em julgado da decisão condenatória, contrariando a informação do tribunal da condenação de que o acórdão transitou em julgado em 23.5.2018.

Assim, tendo a privação da liberdade para efeitos de cumprimento da pena de prisão sido ordenada pelo juiz competente, em conformidade com o disposto no artigo 27.º da Constituição e nos artigos 467.º, 470.º e 478.º do Código de Processo Penal, conclui-se que não se verifica qualquer dos motivos de ilegalidade da prisão previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Tendo o tempo de prisão que o requerente atualmente cumpre, a partir de 16.8.2022, a duração de 3 anos e 6 meses, a prisão mantém-se dentro do prazo fixado por decisão judicial, cujo termo se prevê que venha a ocorrer em 14.2.2026. Pelo que também não se verifica o motivo de ilegalidade previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Nesta conformidade, carece o pedido de fundamento, devendo ser indeferido [artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP].

III. Decisão

13. Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.ºs 3 e 4, alínea a), do artigo 223.º do Código de Processo Penal (CPP), acordam os juízes da 3.ª Secção Criminal em indeferir o pedido por falta de fundamento bastante.

Custas pelo peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de setembro de 2022.


José Luís Lopes da Mota (Relator)

Maria da Conceição Simão Gomes

Paulo Ferreira da Cunha

Nuno António Gonçalves