RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
FACTO ILÍCITO
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO AO BOM NOME
DIREITO A HONRA
LIBERDADE DE IMPRENSA
LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO
JORNALISTA
TELEVISÃO
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
COMITENTE
COMISSÁRIO
ÓRGÃO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
CONFLITO DE DIREITOS
INTERROGATÓRIO DE ARGUIDO
Sumário


I - Verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos (art.483.º do CC e art. 70.º, n.º 1, da Lei da Televisão) e a consequente obrigação de indemnizar, quando um jornalista, sem autorização, regista em imagem e áudio o interrogatório de um arguido [comportamento vedado pelo art. 88.º, n.º 2, al. b), do CPP] que, depois, é transmitido numa televisão.
II - Os operadores de televisão respondem objetivamente, na qualidade de comitentes, pelos factos ilícitos praticados pelos seus comissários no exercício das respetivas funções (nos termos do art. 500.º do CC), para além de poderem responder solidariamente por factos ilícitos próprios nos termos do art. 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão (tratando-se de programas previamente gravados).
III - Não é excessiva a indemnização de € 35 000,00 por danos morais causados ao autor, cujo interrogatório foi registado, sem autorização, e transmitido numa televisão.
IV - A informação divulgada numa televisão em “lead” (nota de rodapé), segundo a qual o autor teria sido detido, sendo uma notícia falsa, constitui facto ilícito que responsabiliza o operador ou “detentor” desse órgão de comunicação social (ainda que não seja possível identificar o concreto autor responsável pela origem da notícia e por esse específico modo de divulgação).
V - Não é excessiva a indemnização de € 10 000,00 por danos morais causados ao autor com a publicação televisiva da notícia falsa de que este teria sido detido.
VI - Não existe um concreto conflito entre a liberdade de informação ou de expressão e o direito ao bom nome ou à honra, quando a divulgação de uma informação (ainda que verídica), por um órgão de comunicação social, constitui um ilícito que foi criminalmente punido ou quando é divulgada uma notícia falsa. São comportamentos que estão, indubitavelmente, para além da questão dos limites da liberdade de informação ou de expressão, não havendo, portanto, que proceder a qualquer juízo de prognose sobre o modo como o caso concreto seria apreciado à luz da jurisprudência do TEDH.

Texto Integral




Processo n. 14570/16.8T8LSB.L1.S1

Recorrentes:

- AA

- COFINA MEDIA, S.A

Recorrido:

- BB

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

 I. RELATÓRIO

1. BB propôs ação declarativa sob a forma de processo comum contra: AA, CC, DD, EE e “Cofina Media, S.A.”, pedindo que os réus fossem condenados solidariamente no pagamento ao autor da quantia total de € 200.000,00, sendo € 175.000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais e € 25.000,00 a título de indemnização por danos patrimoniais. Tais danos decorreriam, em síntese, de três tipos de factos: notícias publicadas no jornal C... sobre o autor; transmissão televisiva, não autorizada, de interrogatório não judicial de arguido; e divulgação da noticia da detenção do Autor em noticiário televisivo sem que a mesma tivesse ocorrido.

2. Os réus contestaram, em articulado conjunto, arguindo a exceção da ilegitimidade do réu EE, impugnando os factos alegados e invocando o exercício do direito à informação.

3. A primeira instância julgou a ação parcialmente procedente:

 a) condenando a ré Cofina, S.A. a pagar ao autor quantia de € 55.000,00, correspondendo € 40.000,00 à compensação dos danos não patrimoniais, pela divulgação das imagens do primeiro interrogatório de arguido do autor; e correspondendo €15.000,00 à compensação dos danos não patrimoniais pela divulgação da notícia incorreta de que o autor havia sido detido;

b) absolvendo a ré Cofina, S.A. do demais peticionado;

c) e julgando a ação totalmente improcedente por não provada contra os demais réus, absolvendo-se os mesmos do que mais foi pedido.

4. A sentença foi alvo de recurso de apelação, interposto tanto pelo autor como pela Ré “Cofina S.A.”.

5. O Tribunal da Relação ... proferiu a seguinte decisão:

«acordam os Juízes na ... Secção do Tribunal da Relação ... em, concedendo parcial provimento às apelações de BB e de Cofina Media, S.A:

1. Revogar a sentença apelada no tocante à decisão de condenação da Ré. “Cofina, S.A.” a pagar ao A. BB o montante de €55.000,00, e relativamente à absolvição da Ré AA;

2. Condenar as Rés “Cofina, S.A.” e AA, solidariamente, a pagar ao A. BB o montante de € 35.000.00, a título de indemnização por danos não patrimoniais;

3. Condenar a Ré “Cofina, S.A.” a pagar ao A. BB o montante de € 10.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

 4. Manter a sentença apelada no tocante à decisão de absolvição do pedido dos RR CC, DD e EE.»

6. Inconformados com essa decisão, dela interpuseram recurso de revista, tanto a ré AA como a ré Cofina, S.A.

7. A ré AA apresentou nas suas alegações as seguintes conclusões:

«1. O Autor, ora recorrido, intentou contra a ora Recorrente e ainda contra Cofina Media, S.A., CC, DD e EE, ação declarativa comum, na qual peticionou a condenação solidária no pagamento da quantia de € 175.000,00 (cento e setenta e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais e € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) a título de danos patrimoniais.

2. O Tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré Cofina Media, S.A, a pagar ao Autor a quantia de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), correspondendo a € 40.000,00 de indemnização pela transmissão na C... do interrogatório do A. enquanto arguido no âmbito do processo denominado “V...” e € 15.000,00 de indemnização pela alegada incorreção da notícia que o A. teria sido detido no âmbito do mesmo processo crime, absolvendo os demais Réus.

3. A Ré Cofina Media, S.A. e o Recorrido, apresentaram recurso para o Tribunal a quo, sendo que o acórdão agora em crise concedeu parcial provimento às apelações de cada um, determinando: (i) condenação das Rés Cofina Media, S.A. e AA, solidariamente, a pagar ao Autor o montante de € 35.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, referente à transmissão do interrogatório do Autor na qualidade de arguido no âmbito do processo “V...”; (ii) condenação da Ré Cofina Media, S.A., a pagar ao Autor o montante de € 10.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, na sequência da informação de que o Autor teria sido detido; (iii) manter a sentença apelante no tocante à decisão de absolvição do pedido dos Réus CC, DD e EE.

4. Para o que releva para o presente recurso, e limitando o mesmo apenas à Ré AA, tendo em consideração a alteração do facto n.º 3.48 entendeu o Tribunal a quo condenar a Recorrente nos termos dos artigos artigo 70.º, n.º 1, da Lei da Televisão e 483.º, do C.C.

5. Visto que o Tribunal de 1.ª instância tinha absolvido a ora Recorrente, não existe dupla

conforme, propõe-se, então, a Recorrente demonstrar, o seguinte:

(i) A Recorrente não pode ser responsabilizada pela transmissão em causa por não estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual;

(ii) Interesse público da reportagem transmitida no serviço de programas “C...”, e consequente exclusão da ilicitude por exercício dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa;

(iii) Valor manifestamente excessivo da condenação.

6. Considera a Recorrente essencial referir que na base da reportagem em causa encontra-se a investigação efetuada no denominado processo “V...”, o qual constituiu um dos mais importantes, complexos e mediáticos casos do ano de 2015, estando em causa crimes de corrupção alegadamente praticados por altos funcionários da administração portuguesa.

7. O processo em causa é o maior caso de corrupção conhecido na era da democracia portuguesa. É a primeira vez que nos deparamos com um caso que envolve a constituição de arguidos de altos funcionários da estrutura administrativa e política de Portugal, o que torna este caso verdadeiramente especial e de interesse público.

8. O referido processo gerou inquietação na generalidade das pessoas quanto ao modo de atuação, tratamento e relação da justiça perante pessoas que ocupam ou ocuparam elevados cargos na administração pública.

9. E só ao abrigo do direito à informação é que foi possível dar a conhecer ao cidadão os contornos do processo, a eventual envolvência do Autor no mesmo, sendo esta a única forma de dar a possibilidade ao público de aferir como é que a justiça lidou com este caso.

10. Pelo que, a transmissão de interrogatório de um arguido, com som e imagem, teve como intuito informar a opinião pública dos factos concretos que lhe são imputados, em nada colidindo com a presunção de inocência do mesmo.

11. O estatuto de figuras públicas envolvidas no processo “V...” e a gravidade dos crimes cometidos obriga os jornalistas a cumprirem o seu dever de informação. Pelo que, resulta evidente que a transmissão em causa constitui matéria de interesse público, pelo que, a informação relatada tem interesse jornalístico.

12. Ora, na sequência do recurso interposto pelo Autor, o Tribunal a quo considerou como provado o seguinte facto: «Em blocos noticiosos da autoria e responsabilidade da 1.ª Ré AA, no dia 29 de novembro de 2015 e nos dias imediatamente subsequentes, a “C...” exibiu excertos de imagens e áudio do interrogatório do A. junto do DCIAP, na condição de arguido no âmbito do processo “V...”.» (…) (facto 3.48 do acórdão recorrido).

13. O Tribunal a quo concluiu que a Recorrente praticou um facto ilícito, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, da Lei da Televisão e nos termos do artigo 483.º, do C.C., fazendo alusão ao depoimento das testemunhas FF e DD, ao Acórdão do Tribunal da Relação ..., já transitado em julgado, proferido no âmbito do processo crime n.º 7995/15.... e ao artigo 623.º, do CPC, relativamente à presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal.

14. Ora, salvo o devido respeito, entende a ora Recorrente que não obstante a decisão do processo crime que correu termos sob o n.º de processo 7995/15...., não praticou qualquer facto ilícito, tendo o Tribunal a quo violado as disposições previstas nos artigos 70.º, n.º 1, da Lei da Televisão e 483.º, do C.C.

15. Antes de mais, sempre se diga que, não obstante o Acórdão do Tribunal da Relação ... proferido no âmbito do processo crime n.º 7995/15.... já ter transitado em julgado, a ora Recorrente, apresentou queixa no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que corre termos sob o n.º ...3/20 (AA c. Portugal.

16. Nos termos do artigo 70.º, n.º 1, da Lei da Televisão, na determinação de efetivação da responsabilidade civil emergente de factos cometidos através da televisão, observam-se os princípios gerais, devendo, assim, a responsabilidade do agente aferir-se, nos termos gerais do artigo 483º, do C.C.

17. Porém, entende a Recorrente que no presente caso não se encontram preenchidos os requisitos da responsabilidade extracontratual.

18. Conforme já referido, a reportagem transmitida tem como pano de fundo o processo denominado “V...”, qualificado como sendo o maior caso de corrupção conhecido na era da democracia portuguesa e de especial interesse público.

19. Tendo o Autor exercido o cargo de ... na Assembleia da República, de ... da Justiça e de ... da Administração Interna, é objetivamente relevante, não só do ponto de vista jornalístico como também do interesse para qualquer cidadão, ter conhecimento dos processos judiciais que visem essa figura, assim como, o tratamento que a justiça faz ao mesmo.

20. A democracia depende de uma sociedade civil educada e bem informada cujo acesso à informação lhe permite participar tão plenamente quanto possível na vida pública da sua sociedade e criticar atos de justiça que se considerem injustos e dúbios.

21. Informar sobre factos ocorridos por parte do ora Autor tem inegável interesse público e mais se diga que em nenhum momento é tecido qualquer tipo de comentário desprimoroso, nem tão pouco qualquer juízo sobre a culpabilidade do ora Autor, não violando a sua presunção de inocência.

22. Do ponto de visa constitucional, existe um interesse considerável em garantir aos jornalistas e aos órgãos de comunicação social amplos poderes de cobertura dos processos judiciais, e estando em causa factos com claro relevo social a divulgação é legitimada pelo direito/dever de informação, que impende sobre os jornalistas.

23. O não reconhecimento do direito dos jornalistas em relatarem factos com interesse público, constitui uma patente violação, não só das leis nacionais como dos instrumentos internacionais a que Portugal aderiu e aos quais está vinculado.

24. Existe atualmente uma jurisprudência consolidada do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) sobre o alcance deste direito e, em particular, sobre as restrições que o n.º 2, do artigo 10.º, da CEDH permite, à luz da legislação processual penal vigente entre nós.

25. Resulta desta jurisprudência que só são admissíveis restrições à liberdade de expressão se as mesmas (i) estiverem expressamente previstas na Lei; (ii) se tiverem por objetivo a obtenção dos fins legítimos enumerados no n.º 2, do artigo 10.º, da CEDH e; (iii) se forem necessárias, numa sociedade democrática, para se alcançarem estes fins.

26. Sem prejuízo do que se possa entender quanto à verificação dos dois primeiros requisitos, a verdade é que é manifesto que o último requisito não se encontra preenchido, por não estar em causa uma restrição ao direito de liberdade de expressão que se mostre necessária, numa sociedade democrática, para se alcançarem aqueles fins legítimos porque, o TEDH, tem decidido uniformemente que “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e que as garantias a conceder à imprensa revestem-se pois de uma importância particular” (sentença proferida no processo DD c. Portugal).

27. No caso concreto, está em causa a transmissão de interrogatório não judicial de arguido, ora Autor, ex ... da administração interna, no processo mediático o qual terão estado envolvidos vários titulares de cargos públicos, empresas comerciais e investidores estrangeiros.

28. Na verdade, no caso sub judice, a dimensão do caso a que os eventuais ilícitos respeitam – caso de corrupção – é efetivamente um tema de absoluto interesse público no quadro das preocupações da sociedade. Bem como, no interesse do cidadão comum de acompanhar a forma como a justiça lidera com os “poderosos”. E neste sentido, só através do som e da imagem é que o cidadão comum pôde aferir como é que a justiça lidou com este caso, nunca colocando em causa qualquer direito de personalidade do ora Autor, nem tampouco a presunção da inocência.

29. Ademais, no presente caso é necessário aferir a prevalência do direito de informar sobre o direito de personalidade, se a transmissão do interrogatório de arguido é necessária, adequada e proporcional.

30. Entende a Recorrente que, tendo em consideração que estamos perante um órgão de comunicação social que é a televisão, não há dúvidas que a única maneira de passar a informação aos cidadãos é através do som e da imagem, sendo esse o único meio de dar a conhecer aos cidadãos os contornos do processo e a possibilidade de aferir de que forma a justiça lida com os “poderosos”.

31. Por outro lado, sempre se diga que face aos contornos da temática em causa, designadamente, ao processo “V...” e aos intervenientes em causa, o direito a informar prevalece sobre os direitos de personalidade do ora Autor.

32. Nunca é demais reiterar que, estamos perante o único caso conhecido da democracia portuguesa em que são constituídos vários arguidos que exercem funções de altos cargos da administração o qual merece ser do conhecimento público e objeto de investigação jornalística.

33. A imprensa não deve ultrapassar os limites fixados em vista, nomeadamente, «da protecção da reputação de outrem», incumbe-lhe, no entanto, transmitir informações e ideias sobre questões políticas bem como sobre outros temas de interesse geral. Sobre os limites da crítica admissível eles são mais amplos em relação a um homem político, agindo na sua qualidade de personalidade pública, que um simples cidadão. O homem político expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus factos e gestos, tanto pelos jornalistas como pela generalidade dos cidadãos, e deve revelar uma maior tolerância sobretudo quando ele próprio profere declarações públicas susceptíveis de crítica. Sem dúvida tem direito a protecção da sua reputação, mesmo fora do âmbito da sua vida privada, mas os imperativos de tal protecção devem ser comparados com os interesses da livre discussão das questões políticas, exigindo as excepções à liberdade de expressão uma interpretação restritiva (ver nomeadamente, a sentença Oberschlick c. Áustria (n.º 2), de 1 de Julho de 1997, Recueil des arrêts et décisions 1997-IV, pp. 1274-1275, § 29).

34. A verificação do carácter «necessário numa sociedade democrática» da ingerência litigiosa impõe ao Tribunal que examine se a ingerência correspondia a uma «necessidade social imperiosa», se era proporcionada à finalidade legitima prosseguida e se as razões aduzidas pelas autoridades nacionais para a justificar são pertinentes e suficientes (Sentença Sunday Times c. Reino Unido (n.º 1), de 26 de Abril de 1979, série A n.º 30, p. 38, § 62). Para determinar se tal «necessidade» existe e que medidas devem ser adoptadas como resposta, as autoridades nacionais gozam de uma certa margem de apreciação. Todavia, esta não é ilimitada e deve ser acompanhada por um controlo europeu exercido pelo Tribunal que deve pronunciar-se em última instância se uma restrição se conforma com a liberdade de expressão, tal como o artigo 10.º a protege (ver, entre muitas outras, a sentença Nilsen et Johnsen cit., § 43). Ao Tribunal, quando exerce esta função, não lhe compete de modo nenhum substituir-se às jurisdições nacionais: trata-se apenas de controlar, sob o ângulo do artigo 10.º e à luz do processo no seu conjunto, as decisões proferidas pelas instâncias nacionais no uso do seu poder de apreciação.

35. Chama-se, ainda à colação o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 3.º seção, processo n.º 8440/14.1TDLSB.L1 que asseverou o seguinte: “a revelação por atos dos jornalistas de elementos do processo que se encontre ainda em segredo de justiça não constituem crime se a revelação for “legitima”, e esta revelação será legitima quando a quebra do segredo já não pode ser censurada, porque os elementos publicitados já são do conhecimento público (…) Neste sentido tem sido o entendimento da nossa jurisprudência, assim como do TEDH. Este Tribunal tem-se pronunciado contra as restrições à liberdade de expressão que não considera serem necessárias, designadamente quando as informações em causa se tornaram públicas”.

36. A Doutrina e a Jurisprudência têm entendido que, desde que respeitados e preenchidos os limites acima referidos, mesmo que a notícia publicada na imprensa atinja qualquer direito de um terceiro (o que não ocorreu nos presentes autos), o facto não será ilícito, porque o exercício correto da liberdade de imprensa, corresponde ao exercício regular de um direito, que por sua vez, é uma causa justificativa do mesmo.

37. Resulta evidente pela simples análise dos cargos desempenhados pelo Autor e tendo em consideração que é uma figura mediática na sociedade portuguesa, justificando-se a divulgação de informação sobre o seu alegado envolvimento na prática de crimes económicos.

38. De facto, era público que o Autor era arguido naquele processo, que tinha prestado declarações e que tinha sido acusado de vários crimes, informação essa que foi amplamente divulgada nos vários órgãos de comunicação social.

39. Daqui concluímos que a Ré AA (considerada por parte do Tribunal a quo como sendo a responsável pela transmissão da divulgação do interrogatório do Autor), não praticou qualquer facto ilícito.

40. Diga-se ainda, que, relativamente à transmissão dos interrogatórios é de chamar à colação uma situação similar no processo crime que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., sob o n.º de processo 3666/18...., no qual estava em causa a divulgação, no serviço de programas “C...”, na edição online do Jornal C... e na edição online da Revista “...”, do interrogatório dos Arguidos GG e de HH, no âmbito do processo “Operação Marquês”, tendo entendido aquele Tribunal não se verificar o crime de desobediência por estar em causa um caso de inegável interesse público, prevalecendo o direito à informação e à liberdade de expressão.

41. O referido tribunal entendeu que “Na verdade, mal andaria uma sociedade democrática em que, desconsiderando-se qualquer outro interesse – havendo interesse público e não tendo ficado desprotegidos os interesses que com a proibição se pretende evitar – estaria proibida por si a divulgação/difusão/publicação em causa, prejudicando de forma violenta esse interesse superior (o interesse público) que existisse”.

42. Acrescentando ainda que, “mesmo qualquer transcrição ou reprodução que fosse efetuada não permitiria ao cidadão afastar a dúvida de a mesma ser exacta, o pensamento imediato do homem médio “será que foi mesmo assim” (…)”

43. Na verdade, o estatuto de figuras públicas envolvidas no processo “V...” e a gravidade dos crimes cometidos obriga os jornalistas a cumprirem o seu dever de informação.

44. Motivo pelo qual, entende a Recorrente que não foi praticado qualquer facto ilícito, porque o exercício correto da liberdade de imprensa, corresponde ao exercício regular de um direito, que por sua vez, é uma causa justificativa do mesmo.

45. Não obstante a impugnação por parte da Ré Cofina Media, S.A. no recurso interposto para o Tribunal da Relação ..., entenderam o Tribunal de 1.ª instância e o Tribunal a quo considerar como provados que a transmissão na C... concorreu, entre outros, para que o Autor “deixasse de gozar de reconhecimento social, bom nome e de boa imagem”, “sentisse desgosto, irritação, angustia, revolta, ansiedade, sofrimento, consternação, falta de concentração e para que se sentisse ferido na sua honra, estima social e bom-nome” (cfr. pontos 3.85, 3.86, 3.87, 3.88, 3.89, 3.90, 3.91, 3.92 do acórdão recorrido).

46. Ora, na transmissão de interrogatório do A. enquanto arguido não é feito qualquer tipo de comentário desprimoroso, nem tão pouco qualquer juízo sobre a culpabilidade do ora Autor, não violando a sua presunção de inocência.

47. Para se considerarem preenchidos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual, têm de ser alegados factos adequados que comprovem a existência de um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente do facto ilícito e os danos alegadamente sofridos pelo A., o qual competia a este último o ónus de prova, que não logrou fazer.

48. No caso dos presentes autos, resulta evidente que, tendo em conta os “danos” concretamente alegados, para além de não existir, qualquer vínculo causal entre a transmissão das reportagens e a produção destes, estes não têm a gravidade ou intensidade adequada ou merecedora de qualquer indemnização.

49. Nunca foi intenção da Recorrente violar o direito do Autor, mas apenas exercer, dar a conhecer ao cidadão os contornos do processo, a eventual envolvência do Autor no mesmo, assim como, o tratamento que a justiça faz dos “poderosos”, ao abrigo do direito a informar e do direito à liberdade de expressão.

50. Tendo em conta tudo isto, não se pode afirmar que a Recorrente tenha agido com culpa, pois, conforme já referido supra, limitou-se a informar os contornos de um processo crime mediático, o qual figuravam como intervenientes principais altos funcionários de cargos públicos.

51. Tendo em conta o supra exposto, nenhuma responsabilidade pode ser assacada à Recorrente, a título de responsabilidade civil pois não se encontram preenchidos os requisitos previstos no artigo 483.º do Código Civil, por aplicação do artigo 70.º, n.º 1, da Lei da Televisão.

52. Assim, é de concluir que o acórdão faz uma errada e não fundamentada aplicação do Direito, violando o disposto nos artigos 70.º, n.º 1 da Lei da Televisão, 483.º, do C.C., 19.º DUDH, 10.º CEDH, 19.º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, 37.º e 38.º da CRP e 6.º do Estatuto do Jornalista, pelo que deverá ser revogado e substituído por outra que procedendo a uma correta aplicação do Direito, absolva a Recorrente do pedido.

53. Mas mesmo que ainda assim não se entenda, salvo melhor entendimento, a indemnização arbitrada à Recorrente é manifestamente excessiva.

54. Entende o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que a intervenção do Estado na Liberdade de Expressão tem de ser, para além de “necessária”, deverá ser proporcional ao fim pretendido.

55. Entende a Recorrente bem como a maioria da Jurisprudência do TEDH que, a condenação de uma indemnização no montante de € 35.000,00 é manifestamente excessivo e por esse motivo claramente desproporcional, constituindo uma clara violação do artigo 10º da CEDH, em especial, se forem tidas em consideração, por exemplo as indemnizações atribuídas pelo dano morte em Portugal.

56. Diga-se inclusivamente, que, mesmo pela aplicação dos critérios nacionais, a indemnização atribuída foi excessiva e claramente desproporcional.

57. O Recorrido limitou-se a invocar uma dimensão pessoal sobre os alegados efeitos, que não são adequados a preencher os requisitos previstos pelo n.º 1, do artigo 496º, do C.C. sendo que os danos invocados são meramente temporários e passageiros.

58. Por tudo o acima referido, entende a Recorrente que no caso concreto, a atribuição de uma indemnização no montante de €35.000,00 constitui, claramente, uma situação de “compensation lucri cum damno”, pois não foram alegados danos adequados à atribuição de tão elevada compensação, nem as reportagens em causa, tendo em conta os factos, são objetivamente adequados a provocar tal dano.

59.  O Tribunal a quo em nada se pronunciou quanto à situação económica da Recorrente ou do Recorrido, não procedeu a qualquer comparação com situações análogas nem tampouco teve em conta que o Recorrido é uma figura pública em relação às quais “vigora uma conceção mais ampla de liberdade de expressão, no sentido de que estas têm de aceitar um maior grau de crítica ou um escrutínio mais incisivo e duro do que o comum dos indivíduos” (in Acórdão de revista do STJ, de 05.04.2016, proferido no âmbito do processo n.º 755/13.2TVLSB.L1.S1) (…).

60. Note-se que, se tomarmos por referência os Valores Orientadores de Proposta Razoável para Indemnização do Dano Corporal Resultante de Acidente Automóvel, consagrados pela Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, atualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, o valor arbitrado é superior ao dano moral suportado pela vítima em caso de morte ocorrida após 72h a contar do sinistro, fixado em € 7.182,00, ao dano moral por perda de feto, até 10 semanas de gravidez, para ambos os pais, ou após 10 semanas no caso de ser o segundo filho, fixado em € 7.695,00.

61. Assim, é manifesto que o valor fixado viola os princípios da reposição natural da situação do lesado, previsto no artigo 562º, do C.C, da proibição do enriquecimento do lesado, o princípio da proporcionalidade, da equidade, da igualdade e ex aequo et bono.

62. Pelo que, deverá o acórdão ser revogado e substituído por outro que fixe uma indemnização que se coadune com as circunstâncias concretas do caso uma vez que a indemnização arbitrada é manifestamente excessiva, devendo, em consequência, proceder-se a uma elevada redução do montante fixado, como manda a equidade e o prudente arbítrio do julgador.

Nestes termos e nos mais de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido. Pois só se assim se fará a costumada Justiça!»

8. O recorrido respondeu a este recurso, sustentando, em síntese, a improcedência das alegações da recorrente.

*

9. Quanto ao recurso da ré COFINA, S.A.:

Nos pontos n.1 a n.32 das conclusões das suas alegações a recorrente dedica-se a justificar a admissibilidade da revista, quer enquanto revista normal, quer enquanto revista excecional.

Tendo este tribunal entendido que a revista normal não era admissível, porque se verificava dupla conforme (art.671º, n.3 do CPC), a revista veio a ser admitida, pela Formação a que alude o art.672º, n.3 do CPC, como revista excecional (com o âmbito que infra se referirá), pelo que aqui se não transcrevem esses pontos das referidas conclusões.

São as seguintes as demais conclusões das alegações da recorrente:

« 33. O Autor, ora Recorrido intentou contra a ora Recorrente e ainda contra AA, CC, DD e EE, ação declarativa comum, na qual peticionou a condenação solidária no pagamento da quantia de € 175.000,00 (cento e setenta e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais e € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) a título de danos patrimoniais

34. O Tribunal de 1.ª instância julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré Cofina Media, S.A, ora Recorrente, a pagar ao Autor a quantia de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), correspondendo a € 40.000,00 de indemnização pela transmissão na C... do interrogatório do A. enquanto arguido no âmbito do processo denominado “V...” e €15.000,00 de indemnização pela alegada incorreção da notícia que o A. teria sido detido no âmbito do mesmo processo crime, nos termos do artigo 483.º, do Código Civil.

35. Recorrente e Recorrido, apresentaram recurso para o Tribunal a quo, sendo que o acórdão agora em crise concedeu parcial provimento às apelações de cada um, determinando: (i) condenação das Rés Cofina Media, S.A. e AA, solidariamente, a pagar ao Autor o montante de € 35.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, referente à transmissão do interrogatório do Autor na qualidade de arguido no âmbito do processo “V...”; (ii) condenação da Ré Cofina Media, S.A., a pagar ao Autor o montante de € 10.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, na sequência da informação de que o Autor teria sido detido; (iii) manter a sentença apelante no tocante à decisão de absolvição do pedido dos Réus CC, DD e EE.

36. Para o que releva para o presente recurso, e limitando o mesmo apenas à Ré Cofina Media, S.A., considerou o Tribunal a quo, em síntese, que: no que concerne à divulgação do interrogatório do A. enquanto arguido no âmbito do processo denominado “V...” face à alteração da matéria de facto do ponto 3.48, a condenação da ora Recorrente, nos termos do disposto no artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão, asseverando “a existência de uma relação entre a empresa de Televisão e o responsável pela transmissão de materiais, relação aquela que não sendo exatamente coincidente com a que alude o art. 500.º Código Civil, certo é que a ratio e/ou princípio subjacente de ambas as normas legais é o mesmo (…), então face da factualidade provada em 3.1, 3.5, 3.7 e 3.48 [factualidade que ademais preenche em rigor e também os pressupostos de aplicabilidade do regime do artigo 500.º do C.C., designadamente a existência de uma relação de comissão entre o comitente – Cofina Media, S.A., - e o comissário – AA e a circunstância de o facto danoso ter sido praticado no decurso das funções atribuídas ao comissário pelo comitente – acto praticado no exercício das funções] (…)”, e nos termos dos artigos 37.º, n.º 4 e 38.º, n.º 4, ambos da CRP e 70.º, n.ºs 1 e 2, da Lei da Televisão.

37. E quanto à divulgação da informação “BB Detido”: o Tribunal a quo entende que não se podendo integrar na disposição do n.º 2, do artigo 70.º, da Lei da Televisão, “nada obsta a que possa/deva ser ele fonte de obrigação de indemnização ao abrigo de disposição legal do CC integrada na respetiva Secção V, alusiva à responsabilidade civil, e designadamente na respetiva subsecção II reportada à responsabilidade pelo risco (art. 500.º, responsabilidade do comitente).”Assim nada impede que tal facto seja integrado no artigo 500.º do C.C, desde que “tenha o responsável pela referida transmissão agido na qualidade de comitente e tenha o facto danoso sido praticado pelo comissário no exercício da função que lhe foi confiada”.

38. Assim, tendo em consideração a inexistência de dupla conforme, a Recorrente propõe-se a demonstrar, o seguinte:

- A Recorrente não pode ser responsabilizada pelas transmissões em causa;

- Interesse público da transmissão do interrogatório do Autor na qualidade de arguido;

- A não aplicação do artigo 500.º, do C.C., quando existe uma norma especial – artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão -, e mesmo que assim não se entenda, o que não se concede, não se encontram preenchidos os requisitos da responsabilidade pelo risco – responsabilidade do comitente;

- Da exclusão da ilicitude por exercício dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa.

- Valor manifestamente excessivo da condenação.

- Da retificação do acórdão.

39. No caso dos presentes autos consta como provado o ponto 3.83 com a seguinte redação:

“No dia 13 de novembro de 2015 (e não 2014, como por lapso consta da sentença apelada) a C... transmitiu em blocos noticiosos a notícia “BB detido””.

40. Não vislumbrados de onde é que o Tribunal a quo retira que não se trata de blocos noticiosos de 2014, conforme referido na sentença recorrida, mas de 2015, quando o próprio Autor alega que se trata de blocos noticiosos de 2014 (conforme artigos 61.º e 110.º da petição inicial), tendo ainda peticionado a final no seu articulado que os Réus juntassem aos autos “Os excertos das transmissões televisivas da “C...” do dia 13 de novembro de 2014, envolvendo o autor”).

41. A verdade é que também com referência à referida transmissão consta como facto não provado 3.99 a referência ao ano de 2014: “O R. DD tivesse determinado ou acedido à transmissão na “C...” das notícias do dia 13 de novembro de 2014”.

42. Não obstante esse facto ter sido impugnado pela ora Recorrente em sede de recurso de apelação, não tendo o mesmo sido considerado procedente por parte do Tribunal a quo, visto que a mesma reportagem será referida com alguma amplitude ao longo do presente recurso de revista, e considerando que se tenha tratado de um mero lapso por parte do Tribunal a quo, requer-se a respetiva retificação, nos termos do disposto no artigo 614.º, n.º 1, do CPC, desde requerendo a retificação do facto provado n.º 3.83, devendo a mesma a passar a ter a seguinte redação: “No dia 13 de novembro de 2014 a C... transmitiu em blocos noticiosos a notícia “BB detido”.

- Do processo “V...”:

43. Considera a Recorrente essencial referir que na base da reportagem em causa - referimo-nos à transmissão do interrogatório visto que, conforme ficou amplamente explanado nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação ..., a Recorrente sempre defendeu que não foi transmitida a informação de que BB se encontrava detido, mas caso se entenda que efetivamente essa informação foi transmitida - encontra-se a investigação efetuada no denominado processo “V...”, o qual constituiu um dos mais importantes, complexos e mediáticos casos do ano de 2015, estando em causa crimes de corrupção alegadamente praticados por altos funcionários da administração portuguesa.

44. O processo em causa é o maior caso de corrupção conhecido na era da democracia portuguesa. É a primeira vez que nos deparamos com um caso que envolve a constituição de arguidos de altos funcionários da estrutura administrativa e política de Portugal, o que torna este caso verdadeiramente especial e de interesse público.

45. Só ao abrigo do direito à informação é que foi possível dar a conhecer ao cidadão os contornos do processo, a eventual envolvência do Autor no mesmo, sendo esta a única forma de dar a possibilidade ao público de aferir como é que a justiça lidou com este caso.

46. O estatuto de figuras públicas envolvidas no processo “V...” e a gravidade dos crimes cometidos obriga os jornalistas a cumprirem o seu dever de informação. Pelo que, resulta evidente que a transmissão em causa constitui matéria de interesse público, pelo que, a informação relatada tem interesse jornalístico.

- Da alegada responsabilidade da recorrente COFINA MEDIA, S.A:

A. Da separação entre a liberdade editorial e o poder económico.

47. A Recorrente entende que, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo faz uma errada interpretação das normas previstas nos artigos 37.º, n.º 4 e 38.º, n.º 4, ambos da CRP, e 70º da Lei da Televisão, omitindo, por completo, o princípio constitucional da separação entre o poder económico e liberdade editorial.

48. A Constituição da República Portuguesa, a Lei da Imprensa e da Televisão e o Estatuto dos Jornalistas preveem a separação entre o poder económico e a liberdade editorial, proibindo que as empresas detentoras das publicações, através da sua administração, interfiram nos conteúdos daquelas.

49. Não cabe à empresa proprietária da publicação ou do serviço de programas orientar, superintender nem determinar o conteúdo do jornal, pelo que não foi a Recorrente quem alegadamente expôs, reproduziu, incumbiu ou lançou no comércio qualquer a notícia objeto dos presentes autos.

50. As revistas, jornais e neste caso, o canal televisivo “C...”, têm total liberdade editorial para publicarem qualquer tema que entendam ser relevante, sem que para tal necessitem de informar a sociedade detentora do programa de televisão.

51. “No nosso ordenamento constitucional existe um princípio de separação entre matéria de gestão empresarial, cuja direcção compete aos órgãos próprios da entidade proprietária do órgão de comunicação social (ainda que com participação dos jornalistas, enquadrada sobretudo pelas competências do conselho de redacção, assim como dos trabalhadores em geral, nos termos do artigo 54.º, n.º 5, alínea b), da CRP), e matéria editorial, a cargo do director e da redacção”.

52. A verdade é que o próprio Estatuto do Jornalista, no artigo 6.º, ao abrigo dos princípios deontológicos prevê a independência, autonomia e liberdade de criação de expressão e criação.

53. Neste sentido, entendemos que o Tribunal a quo fez uma errada apreciação das disposições previstas nos artigos 37.º, n.º 4 e 38.º, n.º 4, da CRP, assim como do princípio da separação entre a liberdade editorial e o poder económico.

B. Do regime previsto no artigo 70.º da lei da televisão:

54. No que ao artigo 70.º, da Lei da Televisão concerne, sempre se diga que estamos perante uma disposição especial, o qual estabelece dois princípios fundamentais: (i) na determinação de efetivação da responsabilidade civil emergente de factos cometidos através da televisão, observam-se os princípios gerais; (ii) os operadores de televisão respondem solidariamente com os responsáveis de programas previamente gravados, com exceção dos transmitidos ao abrigo do direito de antena, de réplica política, de resposta e de retificação ou no decurso de entrevistas ou debates protagonizados por pessoas não vinculadas contratualmente ao operador.

B.1. Da condenação da COFINA MEDIA, S.A., pela transmissão do interrogatório de BB na qualidade de arguido:

55. O Tribunal a quo condena a Recorrente nos termos do artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão, referindo ainda que a factualidade provada preenche os requisitos exigidos no artigo 500.º, do C.C, ou seja, uma relação de subordinação entre o comitente (Cofina Media, S.A) e o comissário (AA).

56. Estando em causa um programa previamente gravado, a responsabilidade civil do operador de televisão afere-se nos termos do artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão, o qual este responde solidariamente com o responsável pela transmissão.

57. Em conformidade com esta norma a empresa proprietária do órgão comunicação social responde solidariamente com os responsáveis de programas, ou seja, ambos são responsáveis por determinada obrigação - a empresa proprietária e os responsáveis pelos programas.

58. Nos termos do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Televisão e do artigo 483.º, do C.C., o responsável pela transmissão de materiais previamente gravados responde civilmente pelos danos que tenha praticado e, só quando este responde, é que o operador de televisão pode responder civilmente.

59. Assim, há que, em primeiro lugar, aferir a responsabilidade do “responsável pela transmissão”, para consequentemente aferir a responsabilidade do operador de televisão, o qual se afere nos termos do artigo 483.º, do C.C., por aplicação do artigo 70.º, n.º 1, da Lei da Televisão.

60. O Tribunal de 1.ª instância foi totalmente omisso quanto à pessoa responsável pela transmissão, porém, o Tribunal a quo considerou-o como sendo a Ré AA, e por isso, decidiu alterar o facto do ponto 3.48.

61. Porém, não se pode entender que a Ré AA era a responsável pela transmissão do programa em causa.

62. A quem é que o legislador se refere quando menciona o “responsável pela transmissão”, nos termos do artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão? O diretor no serviço de programas nos termos o artigo 35.º, n.º 1, da Lei da Televisão visto que este é o “responsável pela orientação e supervisão do conteúdo das emissões”? O diretor de programas nos termos do artigo 35.º, n.º 2, da Lei de Televisão visto que este é o “responsável pela seleção e organização do catálogo de programas”? A pessoa hierarquicamente superior ao jornalista/autor da reportagem em causa (por exemplo: coordenador) que tomou a decisão de determinada reportagem fosse emitida? O jornalista/autor da reportagem em causa, ao abrigo dos princípios deontológicos de independência, autonomia e liberdade de criação de expressão e criação, nos termos do artigo 6.º, do Estatuto do Jornalista? Ou todos os sujeitos referidos?

63. Não obstante entendermos que a Ré AA não pode ser considerada como a “responsável pela transmissão” por não ter sido a própria a tomar a decisão de determinado conteúdo ser emitido, mas mesmo se entendêssemos que o fosse, a mesma não praticou qualquer facto ilícito, por estar em causa o direito à informação e à liberdade de imprensa e de expressão.

64. Se, por outro lado, entendermos que o “responsável pela transmissão” é o diretor do serviço de programas, por ser o “responsável pela orientação e supervisão do conteúdo das emissões”, nos termos do artigo 35.º, n.º1, da Lei da Televisão, a verdade é que não ficou demonstrado nos presentes autos que o Réu EE tenha violado ilicitamente o direito do Autor, nem tão pouco que o mesmo tenha orientado, autorizado e determinado as publicações em causa (cfr. ponto 3.97 dos factos não provados do acórdão recorrido), razão pela qual foi absolvido do pedido.

65. Por fim, se efetivamente considerássemos que qualquer um dos sujeitos referido fosse considerado como o “responsável pela transmissão” não teria sido praticado qualquer facto ilícito, nos termos previstos no artigo 483.º, do C.C.

66. E mesmo que não se tivesse apurado o agente do facto alegadamente ilícito, entende a Recorrente que esta não poderia ser também condenada nos termos do artigo 70.º, nº 2, da Lei da Televisão, pelo motivo de não estarem verificados os pressupostos da responsabilidade pelo facto ilícito previsto no artigo 483.º, do C.C., por aplicação do artigo 70.º, n.º 1, da Lei da Televisão.

- B. 2. Da condenação da COFINA MEDIA, S.A. pela transmissão da informação de que BB teria sido detido:

67. O Tribunal a quo condenou a Recorrente ao pagamento de € 10.000,00, na sequência da transmissão da informação na C... de que BB teria sido detido, com fundamento na responsabilidade pelo risco nos termos do artigo 500.º, do C.C, na sequência da inaplicabilidade do disposto no artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão, no presente caso.

68. O Tribunal a quo, parte da premissa de que o responsável pela transmissão do conteúdo em causa era um jornalista “integrado na estrutura da operadora de televisão”, quando na verdade, não ficou sequer provado no âmbito dos presentes autos quem foi o agente do alegado facto ilícito para posteriormente atestar se esta pessoa integrava ou não na estrutura da operadora de televisão.

69. Não obstante o Recorrente ter impugnado o facto provado 3.83 “No dia 13 de novembro de 2014 a C... transmitiu em blocos noticiosos a notícia “BB Detido”, o Tribunal a quo não considerou procedente a referida impugnação. Assim, ao se considerar que efetivamente tal informação foi transmitida, o que não se concede, em conformidade com o referido pelo Autor e pelas testemunhas por si arroladas, essa informação teria sido transmitida no Jornal ..., e, por isso, trata-se de um programa transmitido em direto.

70. Com referência à prova trazida aos autos por parte do Autor, a informação “BB detido” há de ter surgido em “lead”, que conforme ficou demonstrado tal surgimento não foi orientado, autorizado e determinado pelo Réu EE, nem sequer, foi da autoria dos Réus AA, CC e DD (cfr. pontos 3.97 e 3.98 dos factos não provados do acórdão recorrido).

71. Não temos dúvidas que este caso não se enquadra na previsão do artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão, por estarmos perante uma “nota de rodapé” / ”lead” que alegadamente passou em direto no Jornal .... Contudo, será que podíamos enquadrar no regime geral da responsabilidade do comitente prevista no artigo 500.º, do C.C., conforme o fez o Tribunal a quo? Entendemos que não.

- C. Da não aplicação do artigo 500.º, do C.C. quando existe uma norma especial – artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão:

72. As normas da Lei da Televisão (Lei n.º 27/2007, de 30 de julho) são consideradas especiais, por referência às normas gerais do Código Civil, na matéria de regulação de acesso e exercício de atividades de comunicação social audiovisual, nomeadamente de televisão e de serviços audiovisuais a pedido.

73. É sabido que a lei especial derroga a lei geral, como se evidencia pelo brocardo latido “lex specialis derogat legi generali”.

74. Com efeito, se o legislador entendeu que para a matéria de atividade televisiva ou de serviços audiovisuais a pedido devia haver uma norma especial, deve ser esta a aplicada, e não uma norma geral, por ser a norma especial a que tem em atenção as circunstâncias específicas da sua previsão, e os valores e interesses em causa naquela matéria.

75. “A existência de intenção inequívoca do legislador deve assentar em referência expressa na própria lei ou, pelo menos, em um conjunto de vectores incisivos que a ela equivalham, pelo que, quando se pretenda, através duma lei geral, revogar leis especiais, designadamente quando se vise firmar um regime genérico e homogéneo, há que dizê-lo, recorrendo à revogação expressa ou, no mínimo, a uma menção revogatória clara, do género, são revogadas todas as leis em contrário, mesmo as especiais.”. (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.03.2007, processo n.º 964/07-2).

76. Nenhum dos regimes, nem o 500.º C.C, nem a Lei da Televisão (70.º, n.º 2), fazem qualquer salvaguarda de aplicação de um qualquer regime geral, nos termos em que se exige que seja feito para efeitos de aplicação do n.º 3, do artigo 7.º do C.C.

77. Mas mais. Para se verificar a responsabilidade do comitente, nos termos previstos no artigo 500.º, do C.C é necessário, então, que se verifiquem os seguintes requisitos: (i) a existência de uma relação de comissão entre o comitente e o comissário; (ii) a responsabilidade do comissário pelo ato danoso; (iii) a ocorrência do facto danoso no decurso das funções atribuídas ao comissário pelo comitente (ato praticado no exercício das funções).

78. Por sua vez, para se verificar a responsabilidade do operador televisivo (“comitente”), nos termos previstos no artigo 70.º, n º 2, da Lei da Televisão, é necessário que: (i) estejam em causa programas previamente gravados; (ii) a responsabilidade do responsável pela transmissão.

79. Por aqui, parece que o Tribunal a quo teria razão ao afirmar que a ratio e/ou o princípio destas normas legais é o mesmo, mas não é bem assim.

80. Ao contrário da disposição da norma geral do artigo 500.º, do C.C., o artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão, responsabiliza o comitente sem sequer fazer qualquer referência à existência de uma relação de comissão entre o comitente e o comissário ou uma situação de subordinação ou dependência de um em relação ao outro.

81. Desta forma, não temos dúvidas que a norma do artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão é distinta e especial relativamente ao regime geral consagrado no artigo 500.º do CC, em sede de responsabilidade civil do comitente pelos atos do seu comissário.

82. “Uma regra é especial em relação a outra quando, sem contrariar substancialmente o princípio nela contido, a adapta a circunstâncias particulares” (Professor Oliveira Ascensão, in “O Direito - Introdução e Teoria Geral”, Almedina, Coimbra, 1995, p. 554.)

83. O artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão ao responsabilizar o operador de televisão por conteúdos transmitidos no serviço de programas, está a responsabilizá-la, enquanto comitente, pelos danos causados pelos seus comissários (“responsáveis pela transmissão”), independentemente da culpa na escolha destes, nas instruções que a estes tenham sido dadas ou na fiscalização do exercício da comissão.

84. Enquanto que nos termos do artigo 500.º, do C.C., estamos perante uma relação de dependência do comissário perante o comitente, de subordinação de um ao outro, justificando a responsabilidade deste, independentemente de culpa, por sua vez, nos termos da Lei da Televisão, o operador de televisão pode ser responsabilizado independentemente de uma subordinação e/ou dependência por parte dos “responsáveis pela transmissão”, podendo estes nem sequer integrarem na estrutura do operador de televisão.

85. A verdade é que, segundo a norma do artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão, independentemente de o responsável pela transmissão pertencer ou não à estrutura do operador de televisão, ou seja, mesmo que não exista a relação de comissão, aquela norma não exclui a responsabilidade solidária deste último.

86. Assim já não o é o artigo 500.º, do C.C., que pressupõe sempre a relação de comissão entre comitente e comissário.

87. De facto, o artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão não contém qualquer passagem da qual se possa retirar a exigência de uma verdadeira relação de comissão entre o responsável pela transmissão e o operador de televisão.

88. Assim, não podemos deixar de considerar que a disposição do artigo 70.º, n. 2, da Lei da Televisão é mais ampla do que o regime previsto no artigo 500.º, do C.C., porque dispensa a relação de comissão, enquanto que o regime do Código Civil prevê expressamente essa relação.

89. Por força do artigo 9.º, n.º 2, do C.C o intérprete da norma jurídica não pode considerar o “pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, entendemos, por isso, que não se deve distingui ronde o legislador não fez qualquer distinção.

90. Para perceber melhor este enquadramento, e tendo em consideração a responsabilidade civil da Lei da Imprensa, prevista no artigo 29.º, da Lei 2/99, de 13 de janeiro, tomamos a liberdade de fazer referência ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.05.2013, processo n.º 1755/08.0TVLSB.L1.S1, que refere o seguinte: “Como imediatamente se colhe do transcrito n.º 2 do art. 29º, a hipótese normativa contempla os especificados casos do escrito ou imagem publicados com conhecimento e sem oposição do director, estabelecendo regime de responsabilidade solidária da empresa jornalística e do autor da peça, conferindo-lhes, assim, um tratamento de especialidade relativamente ao que poderia resultar da aplicação dos princípios gerais de responsabilidade civil que o n.º 1 do mesmo artigo prevê como regra. A não ser assim, teria de se admitir que a norma do n.º 2 seria não só completamente inútil como despropositada, entendimento que a lei não consente ao intérprete ao impor-lhe a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º-3 C. Civil). Com efeito, se a norma se o sentido da norma ficasse limitado ao entendimento segundo o qual o seu alcance seria o de afirmar a responsabilidade solidária da empresa com a do autor do escrito ou imagem, quando provada a responsabilidade do director, à luz dos princípios gerais da responsabilidade extracontratual, nada acrescentaria ao regime geral da responsabilidade civil nas relações de comissão (art. 500º C. Civil).” (…).

91. Veja-se ainda o referido por Raquel Ferreira Carlos (in “Responsabilidade civil na imprensa – em especial, a responsabilidade do director da publicação periódica e da empresa jornalística”, pág. 86 e 87): “Uma vez que o autor dos conteúdos divulgados na publicação periódica pode ser alguém sem qualquer tipo de relação de subordinação ou dependência com a empresa jornalística, e tendo apenas o legislador afirmado a responsabilidade solidária desta com “o autor pelos danos que tiverem causado” (cf. artigo 29.º, n.º 2, da LI), entendemos que o legislador não quis exigir como pressuposto de aplicação deste regime a existência de uma relação de comissão entre a empresa jornalística e o autor dos conteúdos danosos  publicados. Mesmo nos casos mais comuns em que o autor do escrito ou imagem inseridos na publicação periódica seja um jornalista integrado na estrutura desta, poder-se-ia considerar não existir, materialmente, em rigor, uma relação de dependência ou de subordinação entre este e a empresa jornalística, ao abrigo dos princípios deontológicos de independência, autonomia e liberdade de criação de expressão e criação que resultam do estatuto destes profissionais liberais (cf. artigo 6.º do EJ) – e, ainda assim, não deixaria a empresa jornalística de ser solidariamente responsável com o autor.” (…).

92. A lógica aplicável à responsabilidade civil prevista na Lei da Televisão é exatamente a mesma. Ou seja, o n. º 2, do artigo 70.º, da Lei da Televisão ao estabelecer um regime de responsabilidade solidária do operador televisivo e do responsável pela transmissão, confere um tratamento especial relativamente ao que poderia resultar da aplicação dos princípios gerais de responsabilidade civil que o n.º 1 do mesmo artigo prevê como regra.

93. E a verdade é que a não ser assim, a disposição prevista pela norma do n.º 2 seria completamente inútil e despropositada.

94. Tendo em consideração tudo o que foi exposto, não se pode considerar que ao não aplicar o artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão, por não se tratar de um programa previamente gravado, possa a Recorrente a ser responsável nos termos do artigo 500.º, do C.C., quando aquela se trata de uma norma especial face a esta que é geral e que, não obstante, o principio parecer ser o mesmo, a interpretação é totalmente distinta.

95. O mesmo se dizendo relativamente aos programas previamente gravados, não se podendo retirar da norma do artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão o pressuposto da relação de comissão entre o comitente e o comissário, nos mesmos termos que os previstos no artigo 500.º, do C.C., quando aquela norma não o expressa, tendo ainda em conta os princípios de independência e de autonomia que regem a atividade deontológica dos jornalistas.

96. Entendemos, assim, que o Tribunal a quo violou a disposição prevista no artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão, assim como, o artigo 500.º, do C.C., bem como o princípio lex specialis derogat legi generali, devendo, assim, ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente Cofina Media, S. A.

- D. Do não preenchimento dos requisitos exigíveis para responsabilidade do comitente (artigo 500.º, do C.C.) / Da inexistência da obrigação de indemnizar por parte do “responsável pela transmissão”.

97. Mesmo que se entenda que se aplica ao presente caso o regime do artigo 500.º, do C.C., o que não se concede, a responsabilidade objetiva do comitente/operador de televisão, só existe quando ocorra responsabilidade subjetiva do agente/comissário nos termos do artigo 483.º, do C.C. (artigo 500.º, n.º 1, do C.C. e artigo 70.º, n.º 1, da Lei da Televisão), e tal não acontece no presente caso.

98. Assim, analisaremos se recaía ou não a obrigação de indemnizar do responsável pela transmissão nos programas em causa (por um lado da Ré AA e por outro pelo agente que não foi possível identificar), para consequentemente aferir se o operador de Televisão, ora Recorrente, poderia ou não ser civilmente responsável.

99. Conforme já referido, os presentes autos têm como pano de fundo o processo denominado “V...”, qualificado como sendo o maior caso de corrupção conhecido na era da democracia portuguesa e de especial interesse público.

100. Tendo o Autor exercido o cargo de ... na Assembleia da República, de ... da Justiça e de ... da Administração Interna, é objetivamente relevante, não só do ponto de vista jornalístico como também do interesse para qualquer cidadão, ter conhecimento dos processos judiciais que visem essa figura, assim como, o tratamento que a justiça faz ao mesmo.

101. A democracia depende de uma sociedade civil educada e bem informada cujo acesso à informação lhe permite participar tão plenamente quanto possível na vida pública da sua sociedade e criticar atos de justiça que se considerem injustos e dúbios.

102. Informar sobre factos ocorridos por parte do ora Autor tem inegável interesse público e mais se diga que em nenhum momento é tecido qualquer tipo de comentário desprimoroso, nem tão pouco qualquer juízo sobre a culpabilidade do ora Autor, não violando a sua presunção de inocência.

103. Do ponto de visa constitucional, existe um interesse considerável em garantir aos jornalistas e aos órgãos de comunicação social amplos poderes de cobertura dos processos judiciais. Está superada a ideia tradicional nos termos da qual as críticas ao poder judicial devem ser proscritas por contribuírem para denegrir a sua autoridade e credibilidade a longo prazo.

104. A liberdade de expressão em sentido amplo constitui um indispensável instrumento de controlo, de aperfeiçoamento e de reforma das instituições policiais e jurisdicionais.

105. Portugal aderiu a todos os instrumentos internacionais, pelo que, o não reconhecimento do direito dos jornalistas em relatarem factos com interesse público, constitui uma patente violação, não só das leis nacionais como dos instrumentos internacionais a que Portugal aderiu e aos quais está vinculado.

106. Existe atualmente uma jurisprudência consolidada do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) sobre o alcance deste direito e, em particular, sobre as restrições que o n.º 2, do art. 10.º da CEDH permite, à luz da legislação processual penal vigente entre nós.

107. Resulta desta jurisprudência que só são admissíveis restrições à liberdade de expressão se as mesmas (i) estiverem expressamente previstas na Lei; (ii) se tiverem por objetivo a obtenção dos fins legítimos enumerados no n.º 2, do art. 10.º, da CEDH e; (iii) se forem necessárias, numa sociedade democrática, para se alcançarem estes fins.

108. Sem prejuízo do que se possa entender quanto à verificação dos dois primeiros requisitos, a verdade é que é manifesto que o último requisito não se encontra preenchido, por não estar em causa uma restrição ao direito de liberdade de expressão que se mostre necessária, numa sociedade democrática, para se alcançarem aqueles fins legítimos porque, o TEDH tem decidido uniformemente que “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e que as garantias a conceder à imprensa revestem-se pois de uma importância particular” (sentença proferida no processo DD c. Portugal).

109. Na verdade, no caso sub judice, a dimensão do caso a que os eventuais ilícitos respeitam – caso de corrupção – é efetivamente um tema de absoluto interesse público no quadro das preocupações da sociedade. Bem como, no interesse do cidadão comum de acompanhar a forma como a justiça lidera com os “poderosos”.

110. Para além da existência de um valor socialmente relevante, a nossa Doutrina e Jurisprudência têm entendido que, a revelação dos factos deve ser feita com moderação. “A notícia deve ser dada com adequação do meio (contenção, moderação, urbanidade) (…) por forma a não lesar o bom-nome das pessoas mais do que o necessário relato dos factos.”

111. Ademais, no presente caso é necessário aferir a prevalência do direito de informar sobre o direito de personalidade, se as transmissões são necessárias, adequadas e proporcionais.

112. Entende a Recorrente que, tendo em consideração que estamos perante um órgão de comunicação social que é a televisão, não há dúvidas que a única maneira de passar a informação aos cidadãos é através do som e da imagem, sendo esse o único meio de dar a conhecer aos cidadãos os contornos do processo e a possibilidade de aferir de que forma a justiça lida com os “poderosos”.

113. Por outro lado, sempre se diga que face aos contornos da temática em causa, designadamente, ao processo “V...” e aos intervenientes em causa, o direito a informar prevalece sobre os direitos de personalidade do ora Autor.

114. Em momento algum é feito qualquer tipo de comentário desprimoroso, nem tão pouco qualquer juízo sobre a culpabilidade do ora Autor, não violando a sua presunção de inocência. Prova disso é que o Autor veio a ser absolvido dos crimes de que vinha acusado.

115. Obriga o último requisito que, a informação veiculada ao abrigo do direito à informação seja verdadeira.

116. “Uma consolidada orientação da jurisprudência vem, legitimamente, esclarecendo, em particular, que não podem considerar-se lesivos da honra e da reputação de uma pessoa afirmações ainda que vivamente criticas desta última - se bem que ou ainda que, considerada em abstracto, possa ser considerada difamatória - e aquelas que ainda assim versem sobre argumentos de seguro relevo social, não alterem a verdade dos factos ou não se afastem de um juízo em termos de verdade e possam considerar-se contidas do ponto de vista da forma expositiva: este último requisito deve valorar-se tendo encontra o particular âmbito em que se inserem as próprias afirmações”.

117.  Chama-se, ainda à colação o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 3.º seção, processo n.º 8440/14.1TDLSB.L1 que asseverou o seguinte: “a revelação por atos dos jornalistas de elementos do processo que se encontre ainda em segredo de justiça não constituem crime se a revelação for “legitima”, e esta revelação será legitima quando a quebra do segredo já não pode ser censurada, porque os elementos publicitados já são do conhecimento público (…) Neste sentido tem sido o entendimento da nossa jurisprudência, assim como do TEDH17. Este Tribunal tem-se pronunciado contra as restrições à liberdade de expressão que não considera serem necessárias, designadamente quando as informações em causa se tornaram públicas”.

118. A Doutrina e a Jurisprudência têm entendido que, desde que respeitados e preenchidos os limites acima referidos, mesmo que a notícia publicada na imprensa atinja qualquer direito de um terceiro (o que não ocorreu nos presentes autos), o facto não será ilícito, porque o exercício correto da liberdade de imprensa, corresponde ao exercício regular de um direito, que por sua vez, é uma causa justificativa do mesmo.

119. Resulta evidente pela simples análise dos cargos desempenhados pelo Autor e tendo em consideração que é uma figura mediática na sociedade portuguesa, justificando-se a divulgação de informação sobre o seu alegado envolvimento na prática de crimes económicos.

120. De facto, era público que o Autor era arguido naquele processo, que tinha prestado declarações e que tinha sido acusado de vários crimes, informação essa que foi amplamente divulgada nos vários órgãos de comunicação social.

121. Daqui concluímos que nem a Ré AA (considerada por parte do Tribunal a quo como sendo a responsável pela transmissão da divulgação do interrogatório do Autor), nem o agente não identificado (considerado por parte do Tribunal a quo como sendo o responsável pela transmissão da informação de que BB teria sido detido), praticaram qualquer facto ilícito.

122. Diga-se ainda, que, relativamente à transmissão dos interrogatórios é de chamar à colação uma situação similar no processo crime que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., sob o n.º de processo 3666/18...., no qual  estava em causa a divulgação, no serviço de programas “C...”, na edição online do Jornal C... e na edição online da Revista “..., do interrogatório dos Arguidos GG e de HH, no âmbito do processo “Operação Marquês”, tendo entendido aquele Tribunal não se verificar o crime de desobediência por estar em causa um caso de inegável interesse público, prevalecendo o direito à informação e à liberdade de expressão.

123. O referido tribunal entendeu que “Na verdade, mal andaria uma sociedade democrática em que, desconsiderando-se qualquer outro interesse – havendo interesse público e não tendo ficado desprotegidos os interesses que com a proibição se pretende evitar – estaria proibida por si a divulgação/difusão/publicação em causa, prejudicando de forma violenta esse interesse superior (o interesse público) que existisse”. Acrescentando ainda que, “mesmo qualquer transcrição ou reprodução que fosse efetuada não permitiria ao cidadão afastar a dúvida de a mesma ser exacta, o pensamento imediato do homem médio “será que foi mesmo assim” (…)”

124. Veja-se, ainda, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 3.º seção, processo n.º 8440/14.1TDLSB.L1, o qual estava em causa a condenação de três jornalistas por violação de segredo de justiça no âmbito do processo denominado “Operação Marquês”, na qual a Relação acabou por absolver, asseverando que, “sendo este um caso singular, em que estão em causa várias figuras públicas de relevo, um ex-..., a quem alegadamente são imputados factos graves é natural que vários órgãos de informação da comunicação social venham revelar informações de idêntica natureza, caindo no domínio público”.

125. Na verdade, o estatuto de figuras públicas envolvidas no processo “V...” e a gravidade dos crimes cometidos obriga os jornalistas a cumprirem o seu dever de informação.

126. Motivo pelo qual, entende a Recorrente que não foi praticado qualquer facto ilícito, porque o exercício correto da liberdade de imprensa, corresponde ao exercício regular de um direito, que por sua vez, é uma causa justificativa do mesmo.

127. Mais se refira que, não obstante a impugnação por parte da Ré Cofina Media, S.A. no recurso interposto para o Tribunal da Relação ..., entenderam o Tribunal de 1.ª instância e o Tribunal a quo considerar como provados que a transmissão na C... concorreu, entre outros, para que o Autor “deixasse de gozar de reconhecimento social, bom nome e de boa imagem”, “sentisse desgosto, irritação, angustia, revolta, ansiedade, sofrimento, consternação, falta de concentração e para que se sentisse ferido na sua honra, estima social e bom-nome” (cfr. pontos 3.85, 3.86, 3.87, 3.88, 3.89, 3.90, 3.91, 3.92 do acórdão recorrido).

128. Além de que, não nos querendo tornar repetitivos, a verdade é que o envolvimento do Autor no processo “V...” foi divulgado nos mais variados órgãos de comunicação social. E todo o mediatismo e gravidade do referido processo certamente que terão afetado a sua vida pessoal e profissional, não podendo imputar esses danos às transmissões em causa.

129. Ademais, sempre se diga que em momento algum é feito qualquer tipo de comentário desprimoroso, nem tão pouco qualquer juízo sobre a culpabilidade do ora Autor, não violando a sua presunção de inocência.

130. No caso dos presentes autos, resulta evidente que, tendo em conta os “danos” concretamente alegados, para além de não existir, qualquer vínculo causal entre a transmissão das reportagens e a produção destes, estes não têm a gravidade ou intensidade adequada ou merecedora de qualquer indemnização.

131. Nunca foi intenção da jornalista AA (apelidada como sendo a responsável pela transmissão da reportagem referente à transmissão do interrogatório), nem do agente não apurado responsável pela transmissão da informação de que BB estaria detido, ora comissários, de violar o direito do Autor, mas apenas dar a conhecer ao cidadão os contornos do processo, a eventual envolvência do Autor no mesmo, assim como, o tratamento que a justiça faz dos “poderosos”.

132. Tendo em conta tudo isto, não se pode afirmar que os responsáveis pela transmissão tenham agido com culpa, pois, conforme já referido supra, limitaram-se a informar os contornos de um processo crime mediático, o qual figuravam como intervenientes principais altos funcionários de cargos públicos.

133. Assim, só podemos concluir que, não tendo o “responsável pela transmissão” praticado qualquer facto ilícito, consequentemente não pode ser assacada qualquer responsabilidade à ora Recorrente.

134. Face ao supra exposto, nenhuma responsabilidade pode ser assacada aos “comissários”, a título de responsabilidade civil pois não se encontram preenchidos os requisitos previstos no artigo 483.º do C.C, por aplicação do artigo 70.º, n.º 1, da Lei da Televisão e, consequentemente do artigo 500.º, do C.C., devendo a Recorrente ser absolvida.

135. Sendo, assim, de concluir que o acórdão recorrido faz uma errada e não fundamentada aplicação do Direito, violando o disposto nos artigos 19.º DUDH, 10.º CEDH, 19.º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, 37.º e 38.º da CRP e 6.º do Estatuto do Jornalista, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que procedendo a uma correta aplicação do Direito, absolva a Recorrente do pedido.

- Do montante indemnizatório fixado pelo tribunal a quo:

136. Mas mesmo que ainda assim não se entenda, salvo melhor entendimento, a indemnização arbitrada à Recorrente é manifestamente excessiva.

137. Entende o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que a intervenção do estado na Liberdade de Expressão tem de ser, para além de “necessária”, deverá ser proporcional ao fim pretendido.

138. Entende a Recorrente bem como a maioria da Jurisprudência do TEDH que a condenação de uma indemnização no montante de € 45.000,00 é manifestamente excessivo e por esse motivo claramente desproporcional, constituindo uma clara violação do artigo 10º da CEDH, em especial, se forem tidas em consideração, por exemplo as indemnizações atribuídas pelo dano morte em Portugal.

139. Diga-se inclusivamente, que, mesmo pela aplicação dos critérios nacionais, a indemnização atribuída foi excessiva e claramente desproporcional.

140. O Recorrido limitou-se a invocar uma dimensão pessoal sobre os alegados efeitos, que não são adequados a preencher os requisitos previstos pelo n.º 1, do artigo 496º, do C.C. sendo que os danos invocados são meramente temporários e passageiros.

141. Por tudo o acima referido, entende a Recorrente que no caso concreto, a atribuição de uma indemnização no montante de €45.000,00 constitui, claramente, uma situação de “compensation lucri cum damno”, pois não foram alegados danos adequados à atribuição de tão elevada compensação, nem as reportagens em causa, tendo em conta os factos, são objetivamente adequados a provocar tal dano.

142. O Tribunal a quo em nada se pronunciou quanto à situação económica da Recorrente ou do Recorrido, não procedeu a qualquer comparação com situações análogas nem tampouco teve em conta que o Recorrido é uma figura pública em relação às quais “vigora uma conceção mais ampla de liberdade de expressão, no sentido de que estas têm de aceitar um maior grau de crítica ou um escrutínio mais incisivo e duro do que o comum dos indivíduos” (in Acórdão de revista do STJ, de 05.04.2016, proferido no âmbito do processo n.º 755/13.2TVLSB.L1.S1) (…).

143. Note-se que, se tomarmos por referência os Valores Orientadores de Proposta Razoável para Indemnização do Dano Corporal Resultante de Acidente Automóvel, consagrados pela Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, atualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, o valor arbitrado é superior ao dano moral suportado pela vítima em caso de morte ocorrida após 72h a contar do sinistro, fixado em € 7.182,00, ao dano moral por perda de feto, até 10 semanas de gravidez, para ambos os pais, ou após 10 semanas no caso de ser o segundo filho, fixado em € 7.695,00.

144. Assim, é manifesto que o valor fixado viola os princípios da reposição natural da situação do lesado, previsto no artigo 562º, do C.C, da proibição do enriquecimento do lesado, o princípio da proporcionalidade, da equidade, da igualdade e ex aequo et bono.

145. Pelo que, deverá o acórdão ser revogado e substituído por outro que fixe uma indemnização que se coadune com as circunstâncias concretas do caso uma vez que a indemnização arbitrada é manifestamente excessiva, devendo, em consequência, proceder-se a uma elevada redução do montante fixado, como manda a equidade e o prudente arbítrio do julgador.

146. Caso se entenda que existe dupla conforme entre a decisão da 1.ª instância e a do acórdão recorrido, o que apenas se concede por mero dever de patrocínio, o presente recurso deverá ser de revista excecional, nos termos do artigo 672.º, n.º 1, alínea a) e b) o CPC, por estarmos perante uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e interesses de particular relevância social.

[…]

Nestes termos e nos mais de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido. Pois só se assim se fará a costumada Justiça!»

Nos pontos n.148 a n.196 das conclusões das alegações, a recorrente limita-se a repetir textualmente o que já se encontra afirmado em pontos anteriores, pelo que, dada tal redundância, não se procede aqui à respetiva transcrição. 

10. O recorrido respondeu ao recurso da COFINA, S.A., defendendo, em síntese, a inadmissibilidade da revista e, em caso de ser admitida, sustentando a improcedência das alegações da recorrente.

11. Como supra referido, o recurso da ré COFINA S.A. foi admitido como revista excecional, com base nas alíneas a) e b) do n.1 do art.672º do CPC, apresentando o acórdão da Formação a que alude o art.672º, n.3 do CPC a seguinte fundamentação:

«as questões em apreço reúnem características de complexidade, discutibilidade e novidade com alcance suficiente para justificar a revista excecional nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

Ademais, são questões com inegável relevo comunitário no âmbito de atividade de comunicação social por via televisiva, em que estão em equação a liberdade de expressão e informação através do largo espectro dos meios televisivos e as garantias dos direitos fundamentais dos cidadãos, mormente os direitos à privacidade, ao bom nome e reputação para o que importa assegurar uma definição tão clara quanto possível dos parâmetros jurídicos da responsabilidade civil dos agentes de informação.

Termos em que também não poderão deixar de ser qualificadas como interesse social típico relevante nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 672.º do CPC

Cabe apreciar.

*

II. FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto dos recursos.

1.1. Quanto à revista normal, interposta por AA: tendo o acórdão recorrido revogado a decisão da primeira instância em sentido desfavorável à recorrente, a revista é admissível, nos termos do art.671º, n.1 do CPC. O objeto deste recurso, delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (art.635º, n.4 do CPC), comporta dois pontos: o de saber se os pressupostos da responsabilidade civil se verificam em relação à recorrente, com a consequente obrigação de indemnizar; e, caso assim se entenda, se o montante indemnizatório fixado no acórdão recorrido é excessivo.

1.2. O recurso interposto pela ré “Cofina, S.A.” foi admitido pela Formação a que alude o art.672º, n.3 do CPC como revista excecional, por se ter entendido que «importa assegurar uma definição tão clara quanto possível dos parâmetros jurídicos da responsabilidade civil dos agentes de informação.»

 

2. A factualidade provada:

Após algumas alterações operadas na decisão sobre a matéria de facto pela segunda instância, os factos provados passaram a ser os seguintes:

«-1. A R. AA é jornalista do jornal C..., assumindo a função de redactora principal do jornal e da "C..." (docs. 1 e 2).

- 2. O R. CC é jornalista do Jornal C..., assumindo a função de editor de secção do jornal e da "C..." (docs. 1 e 2).

- 3. O R. DD é jornalista do jornal "C...", assumindo a função de Director-Adjunto do jornal e da "C..." (does. 1 e 2).

- 4. O R. EE é jornalista do Jornal C..., assumindo a função de Director do jornal e da "C..." (does. 1 e 2).

- 5. A 5.a R. "COFINA MEDIA S.A." é uma sociedade anónima, do "Grupo COFINA", detida pela holding COFINA, SGPS., S.A., que também tem por objecto a actividade de comunicação social, designadamente televisão e radiodifusão, edição, electrónica ou não, publicação, comercialização e distribuição de publicações periódicas e não periódicas (docs.3 e 4)

- 6. A 5.a R. "Cofina" é líder de mercado nesta área, publicando, comercializando e distribuindo cinco jornais diários e seis revistas, entre os quais o Jornal "C...".

- 7. Em 2013, lançou um canal de televisão no cabo, designado "C...", do qual é proprietária.

- 8. No âmbito do objecto prosseguido por esta sociedade insere-se, designadamente, a produção e a comercialização do jornal "C...".

- 9.  Em 5 de Novembro de 2015, e na sua edição n.º ...2, o Jornal "C..." titula na sua l.a página: “NEGÓCIO DE 196 MILHÕES SOB SUSPEITA”, surgindo a imagem do A..

-10. Na capa do jornal do referido dia 5 de Novembro, refere-se: “CONCURSO DE HELICÓPTEROS: ... AVISOU ANTIGO SÓCIO” (doc. 5).

-11. Na notícia, com desenvolvimento na página 6 da respectiva edição, da autoria da 1.ª R., escreve-se, designadamente, que "o C... sabe que as autoridades detectaram a passagem de informação sobre o concurso, que terá sido dada por BB, meses antes de se ter tornado público. O receptor da informação foi II, empresário e ex-sócio do ... (...).

-12.  Na edição do dia 8 de Novembro de 2015 (n.º ...5) do jornal "C..." titula-se na l.a página “BB INVESTIGADO POR CORRUPÇÃO” (does. 7 e 8).

-13. Consta na capa do jornal, com a fotografia do A., “EMAIL TRAMA EX- .... JUDICIÁRIA DESCOBRE QUE QUATRO MESES ANTES DE O CONCURSO DOS HELI TER SIDO ABERTO ENVIOU CADERNO DE ENCARGOS A EMPRESÁRIO AMIGO”.

-14. A notícia vem desenvolvida na página 28, da edição do jornal "C..." do dia 8 de Novembro de 2015, da respectiva versão impressa e da versão e-paper (doc. 9).

-15. Na referida página 28 do Jornal, surge a fotografia do A., com a seguinte legenda: "BB está a ser investigado por corrupção".

-16. Nessa mesma página, titula-se “BB SUSPEITO DE RECEBER LUVAS”, com o seguinte subtítulo "Favorecimento a empresa de JJ investigado. Email enviado a amigo de II - arguido no mesmo caso - trama ex-...".

-17. No texto desenvolvido na referida página 28 da edição do C... do dia 8 de Novembro de 2015, a lª e o 2.° RR., autores da notícia, referem, designadamente, que: “(...) A Judiciária suspeita de actos de corrupção no negócio. Que BB possa ter recebido contrapartidas para informar antecipadamente o concorrente. As "provas" estavam no computador do ex-... da coligação. Quatro meses antes de o concurso ter sido aberto, BB mandou um email ao empresário II - também arguido nos casos V... - dando-lhe conta de que o mesmo concurso ia ser aberto. Enviou-lhe o caderno de encargos, deu-lhe conta de que para qualquer empresa concorrer só teria de se legalizar no momento em que apresentasse os helicópteros (...)”.

-18. Na parte inferior da página 28, a 1.ª e o 2.º RR. escrevem acerca do processo “V...”, dando nota de que o mesmo se encontrava na recta final, uma vez que "a investigação está concluída. PJ e MP preparam o documento final que deverá levar BB a julgamento".

-19. No dia 11 de Novembro de 2015, na edição n.º 13298, o Jornal "C..." faz menção, na sua l.a página, a “JJ PEDIU AJUDA A BB” (doe. 10).

– 29. Na página 26, em artigo da autoria da 1.ª R (doc. 11), titula-se “JJ PEDIU AJUDA A BB: amizade entre o ex-... e o empresário de ... é antiga. No caso dos V..., é investigado o favorecimento à E..., do ...”.

– 21. No texto, consta, nomeadamente, “a amizade entre JJ e BB é antiga. E a ligação entre ambos está a ser investigada no processo dos V..., já que o empresário de ... é actualmente o dono da empresa que ganhou o concurso dos helicópteros ... - concurso no qual as autoridades investigam suspeitas de corrupção, depois de terem encontrado um e-mail do então ... para um empresário a fornecer elementos do concurso antes de aquele ser conhecido. A primeira ligação entre JJ e BB remonta ao processo no qual JJ foi condenado por corrupção - em 2006 tentou subornar o vereador KK através do seu irmão, o advogado LL (...)".

- 22.  Na imagem, vê-se o A. lado a lado com JJ, com a seguinte legenda: “BB era ... do ... quando JJ lhe pediu ajuda”.

- 23. Em caixa, colocada ao lado da imagem, alude-se ao “maior concurso”, ao montante de 196 milhões como "o valor total do concurso de aquisição dos ..." e à quantia de 90 milhões, "montante dos dois lotes do concurso que foram ganhos por JJ".

- 24. No dia 12 de Novembro de 2015, o C..., na sua edição em formato de papel com o n.º 13.299, divulga notícia com imagem do A. na Capa e com o título “BB ACUSADO DE QUATRO CRIMES”, fazendo referência, na lª página, a “suspeitas de corrupção separadas e investigadas num novo processo” - doc. 12.

- 25. A notícia da capa tem desenvolvimento na página 26 (doc. 13), em artigo da autoria da 1.ª e 2.ª RR., de onde consta, designadamente, que “(...) [a] investigação do processo V... está terminada. Foi apurada matéria criminal para indiciar o ex-... da Administração Interna BB por quatro crimes: três de tráfico de influências e um de prevaricação de titular de cargo público. O MP ultima a acusação que amanhã será conhecida. (...) O C... sabe que o caso mais grave - corrupção, a propósito dos concursos dos helicópteros - será autonomizado. Ficará apenas neste processo o e-mail enviado pelo ex-... para um empresário, também arguido, a dar-lhe conta do caderno de encargos, antes de o concurso ser lançado.”

- 26. Na mesma página vê-se a imagem do A..

- 27.  No dia 13 de Novembro, na sua edição com o n.º ...0, o Jornal "C..." coloca na l.a página a seguinte caixa: “HELICÓPTEROS: CONCURSO INVESTIGADO ANTES DOS V.... DENÚNCIA CHEGOU A BB”, vendo-se a imagem do A. (doc. 14)

- 28.  A notícia, com desenvolvimento na página 26, da autoria da 1.ª R, titula “DIAP INVESTIGA DOCUMENTAÇÃO. QUEIXA DENUNCIAVA FALSIFICAÇÃO DE MANUAIS DOS HELICÓPTEROS PELA E... GABINETE DE MM TAMBÉM RECEBEU AVISO, MAS BB NADA FEZ”

- 29. No texto refere-se, designadamente, que “o DIAP já estava a investigar o concurso dos helicópteros quando a Polícia Judiciária detectou o e-mail enviado por BB a II, dando-lhe conta do caderno de encargos para o concurso que ainda não tinha sido lançado. A investigação dos V... cruzou-se com outro processo já existente e poderá ser agora centralizado num só (...)”.

– 30. Na referida página 26, a imagem do A. surge com a legenda “BB enviou e-mail com caderno de encargos de concurso público ainda por lançar”.

– 31. No dia 14 de Novembro de 2015, o jornal C..., na sua edição em formato impresso com o n.º 13.301, publica na página 8 (docs. 15 e 16) o seguinte título: “CORRUPÇÃO: LUVAS E PRENDAS EM NEGÓCIO DE 40 MILHÕES”, colocando, por debaixo deste “lead”, a fotografia do Autor.

– 32. No texto, da autoria da lª e 2.º RR., consta, designadamente, “São luvas milionárias que foram detectadas pela Polícia Judiciária no âmbito do processo dos V.... Podem estar em causa negócios superiores a 40 milhões de euros, mais de 80 vistos em que foram pagas comissões para que os processos fossem acelerados (...) BB, ex-... da Administração Interna, será acusado pelo Ministério Público. Estão em causa vários crimes de tráfico de influências e prevaricação de titular de cargos públicos - punidos até oito anos de prisão.

- 33. Nessa mesma página, em caixa intitulada “V... – C...”, escrevem os 1.° e 2.° RR.: “Há novos desenvolvimentos na investigação à teia de angariação de favores, abuso de poder, tráfico de influências e corrupção no processo V.... Um ... e altos funcionários do Estado estão entre os suspeitos (...) Especial C... "V...”, hoje, às 22h56, na C....

- 34. No jornal C..., no dia 23 de Novembro de 2015, na versão impressa com o n.º ...0, consta, em manchete, na 1.ª página: “ESCÂNDALO NOS V...: BB VENDIA INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA POR COMISSÃO DE 7%” (doc. 17), com menção para o desenvolvimento da publicação na página 6.

- 35. Na página 6 desta edição do C..., em artigo da autoria da 1.ª e do 3.º RR. (doc. 18), consta a imagem do A. numa caixa de texto com o seguinte título: “BB VENDIA FACILIDADES EM TROCA DE COMISSÕES”, referindo-se, em letra mais pequena, que “dados não foram considerados para a acusação e ficaram em apenso”.

- 36. No texto, da autoria da l.ª e do 3.º RR., consta, assinaladamente: "BB, ex-... da Administração Interna, negociava “facilidades” em troca de comissões. Foi esta uma das actividades investigadas no âmbito do processo V..., mas referente a um momento em que BB era apenas .... Estávamos em 2008, com José Sócrates como 1.º ministro, e BB e II - o empresário também acusado no processo - assinaram um protocolo com uma empresa em que prometiam então "estabelecer contactos junto de diversas entidades públicas e privadas que estão a abrir concursos, quer para os apresentar à empresa, quer para ter acesso a informação privilegiadas obre a abertura de concursos". Toda esta informação foi anexada num apenso do processo, onde constam diversos e-mails que não deixam dúvidas. (...) A empresa de BB e II receberia sete por cento de comissões pelas suas intervenções nos negócios públicos.”

-37. As publicações em causa, dos dias 5, 11 e 13 de Novembro de 2015, são da autoria da 1.ª R..

-38. As publicações em causa dos dias 8, 12 e 14 de Novembro de 2015 são da autoria da 1.ª e do 2.º RR..

- 39. A publicação referente ao dia 23 de Novembro de 2015 é da autoria da 1.ª e do 3.º RR..

- 40.  No dia 13 de Novembro de 2015 foi deduzida e foi tornado público o teor da acusação pública referente ao processo n.º 3902/13...., de acordo com a qual o aqui A. foi acusado de três crimes de prevaricação de titular de cargo público e de um crime de tráfico de influências (doc. 2 da contestação).

- 41. Os contornos referentes ao procedimento concursal dos helicópteros “...” (modelo ...) Concurso Público Internacional com anúncio de Procedimento n.º ...4, com publicação em Diário da República, 2.ª Série, n.º 123, de 30 de Junho de 2014 e com Publicidade Internacional no Jornal oficial da União Europeia com a referência ...14 - constam da acusação pública - fls. 20.361 a 20.368 do processo n.º 3902/13.... (páginas 496 a 503 da acusação pública) - doc. 19.

- 42. Nos termos de fls. 18645 a 18646 do volume 53 do processo n.º 3902/13.... (doc. 13 da contestação; ponto 1990 da acusação deduzida no âmbito do processo n.º 3902/13...., junto como doc.2 da contestação), em 6 de Março de 2014, o A. terá enviado um e-mail a NN com o caderno de encargos referente ao concurso público internacional constante do anúncio de Procedimento n.º ...4.

- 43. O referido caderno de encargos foi tornado público e disponibilizado a 30 de Junho de 2014, através da sua divulgação no Diário da República, 2.ª Série, n.° 123 (relatório 27, elaborado pela Policia Judiciária, constante do Apenso "P" do processo n.º 3902/13....).

- 44. No dia 14 de Novembro de 2015, da autoria da 1.ª e 2.º RR., na página 8 do C..., consta: «INVESTIGAÇÃO: ACUSAÇÃO DEDUZIDA ONTEM\ titulando: “CORRUPÇÃO: LUVAS E PRENDAS EM NEGÓCIO DE 40 MILHÕES”.

- 45. Na sua edição do dia 23 de Novembro de 2015, o "C..." coloca em l.ª página “BB VENDIA INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA POR COMISSÃO DE 7%”,

- 46. Acrescenta-se na página 6, em texto da autoria da 1.ª e do 3.º RR., que “BB VENDIA FACILIDADES EM TROCA DE COMISSÕES”.

- 47. Em letras mais "pequenas" consta que “DADOS NÃO FORAM CONSIDERADOS PARA A ACUSAÇÃO E FICARAM EM APENSO”.

- 48. - Em blocos noticiosos da autoria e responsabilidade da 1.ª Ré AA, no dia 29 de Novembro de 2015 e nos dias imediatamente subsequentes, a “C...” exibiu excertos de imagens e áudio do interrogatório do A. junto do DCIAP, na condição de arguido no âmbito do processo “V...”. – redação dada após alteração efetuada pelo acórdão recorrido.

- 49.  No dia 30 de Novembro de 2015, a Procuradoria-Geral da República anunciou a abertura de um inquérito para investigar os factos relacionados com a divulgação pela "C..." do registo audiovisual dos interrogatórios a arguidos do processo dos "V...", pendente no DIAP ..., com o n.° NUIPC7995/15.....

- 50. Na sequência de tal divulgação, a ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social) desencadeou um processo de averiguações tendente ao apuramento de responsabilidades decorrente da divulgação ilícita de tais conteúdos (doc.20).

- 51. O C... é um jornal fundado em 1979 e adquirido pela 5.ª R em 2000.

- 52. O C... é líder de mercado em Portugal, tendo reforçado, ao longo do ano de 2015, esta mesma liderança, aumentando a quota de mercado relativamente ao ano de 2014 em 1,2%, para um valor de 57,9% (docs. 27 a 32).

- 53. Segundo os dados divulgados pela Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT), em 2015 o "C..." vendeu em banca a média de 105973 exemplares (doc. 33).

- 54. O C... lançou em Março de 2013 um canal generalista, chamado “C... (C...)”, com emissão 24 horas por dia na plataforma ... e disponível, desde 2016, para clientes da ....

- 55. A audiência da C... obteve, em 2015, uma média de 15 128 espectadores por minuto, o que representa um share de 0,79%,

- 56. Registou uma subida de 41% face ao ano anterior (doc. 34)

- 57. O C... foi lançado em formato e-paper, aplicações para mobile, iPhone, iPad e Android.

- 58. Segundo o ranking Netscope (que efectua uma medição auditada de entidades web), as aplicações online do "C..." tiveram, em Novembro de 2015, 16.220.165 visitas e 73.533.075 page views, ocupando o 4.º lugar entre todas as entidades que maior tráfego web registou em Novembro de 2015.

- 59. Tendo por referência as entidades que fazem parte do Grupo Cofina, a 5.ª R., este grupo ocupa o 2.º lugar do ranking, com 45.434.371 visitas e 238.569.986 page views (doc. 35).

- 60. O sítio do C..., disponível em ..., tem a liderança dos jornais generalistas na Internet, tendo registado, em Junho de 2015 mais de 15,6 milhões de visitas, mais de 16 milhões de visitas em Novembro e 16,7 milhões de visitas em Dezembro de 2015 (cf. docs. 36, 37).

- 61. O C... tem mais de 1.000.000 de seguidores no facebook (doc.38).

- 62. A “C...” tem cerca de 346.000 seguidores no facebook (doc.39).

- 63. Através das redes sociais, o C... e a “C...”, reproduzem e divulgaram parte dos seus conteúdos e publicações referentes ao A.

- 64. A notícia do dia 5 de Novembro de 2015 (“Negócio de 196 milhões sob suspeita”), mereceu 410 gostos, 159 partilhas (doc.40) e 85 comentários (doc.41).

- 65.  Tais notícias permanecem, até à presente data, disponíveis no site do C..., da C..., nas respectivas redes sociais e nas várias aplicações para mobile, iPhone, iPad, Android.

- 66. A 1.ª R., AA, é autora da notícia publicada na página 6 do jornal C... do dia 5 de Novembro; da publicação constante da página 28 do jornal "C..." do dia 8 de Novembro de 2015; da publicação do artigo da página 26 do jornal C... do dia 11 de Novembro de 2015; da publicação do artigo da página 26 do jornal C... do dia 12 de Novembro de 2015, da publicação do artigo da página 26 do jornal C... do dia 13 de Novembro de 2015, do artigo publicado na página 8 do jornal C... do dia 14 de Novembro de 2015 e da publicação do artigo da página 6 do jornal C... do dia 23 de Novembro.

- 67. O 2.º R., CC, é A. da notícia publicada na página 28 da edição do jornal "C..." do dia 8 de Novembro de 2015, da publicação do artigo da página 26 do jornal "C..." do dia 12 de Novembro de 2015 e da publicação da página 8 da edição do jornal "C..." do dia 14 de Novembro de 2015.

- 68. O 3.º R, DD, é A. da notícia publicada na página 6 da edição do jornal "C..." do dia 23 de Novembro de 2015.

- 69. Em 9 de Novembro de 2015, no Jornal "P", foi publicado artigo com o título "JJ comprou a ... dias antes da assinatura de contrato de milhões", disponível em 12 (doc. 17 da contestação).

-70. Em 9 de Novembro de 2015, foi publicado artigo na página electrónica do “P...” com o título "JJ investigado pela compra da ...", disponível em ... (doc. 18 da contestação).

- 71. Em 5 de Novembro de 2015, foi publicado na "...", com o título "...96   milhões   sob   suspeita   em   concurso   de   helicóptero",   disponível   em ...- 88638 (doc. 27 da contestação).

-72. Em 17 de Novembro de 2015 foi publicada notícia no Jornal "S...", de acordo com a qual "BB foi também acusado pelo MP de ter estado envolvido numa parceria informal com o arguido NN, empresário seu amigo, que terá trazido lucros. Segundo o MP, BB entregou antecipadamente a NN o caderno de encargos do concurso público internacional lançado pelo Estado para aquisição de serviços de operação e manutenção dos helicópteros ..., de combate a incêndios. Tal conduta, diz o MP, terá beneficiado NN - um dos interessados e que assim teve conhecimento das condições antes ainda da abertura do concurso"

 (disponível em ...) (doc. 28 da contestação).

-73. Em 11 de Setembro de 2015 foi publicada notícia no Jornal "P", como título “...: MP quer acusação pronta daqui a dois meses”, nos termos da qual “Os investigadores suspeitam também que BB terá passado informação privilegiada a NN, seu antigo sócio, num concurso internacional, dando-lhe acesso a documentação” (disponível em ...) (doc. 29 da contestação ).

- 74. Em 17 de Novembro de 2015 foi publicada notícia no Jornal "P", com o título “BB acusado de influenciar vários colegas de Governo”, disponível em ... influencias -nos-V...-1714702) (doc. 30 da contestação).

- 75. O A. é licenciado em ... pela Faculdade de Direito da Universidade de ....

- 76. O A. foi dirigente da Associação ... e militante da Juventude ... aderindo posteriormente ao ....

- 77. O A. exerceu o cargo de ... da Assembleia da República, eleito pelo círculo de ....

- 78. O A. foi membro da Assembleia Municipal ..., entre 1989 e 1993 e entre 1997 e 2011 e vereador da Câmara Municipal do mesmo concelho, entre 1993 e 1997.

- 79. Entre 2005 e 2007, o A. ocupou o cargo de ... do ... e em Abril de 2010 passou a liderar o Grupo Parlamentar do ....

- 80. Nas eleições legislativas de 2011, o A. encabeçou a lista do ... no círculo eleitoral de ..., sendo depois nomeado ... da Administração Interna do ... Governo Constitucional.

- 81. A psicóloga OO emitiu relatório de avaliação psicológica referente ao A. em que reporta “dificuldades emocionais e no funcionamento da personalidade reportadas pelo próprio” e “a presença de afecto e humor disfórico, perturbação dos processos de pensamento (com características de desconfiança, confusão mental e ruminações), ansiedade (com características de pânico), necessidade de verificar várias vezes as suas acções, inquietação e sensibilidade interpessoal aumentada”, “problemas somáticos graves, reacção de conversão perante stress ( com o desenvolvimento de sintomas físicos, tais como problemas de sono), reacções de pânico, sentimentos de vergonha e de desconfiança”, "associada especificamente à reacção psicológica à divulgação do Jornal C... de notícias falaciosas sobre corrupção a si atribuídas e à cobertura audiovisual do Inquérito a si realizado pelo Ministério Público, sentindo-se ofendido na sua integridade moral e desenvolvendo um conjunto de sintomas psicopatológicos que interferem significativamente com o seu funcionamento adaptativo" (doc. 44).

- 82. O médico psiquiatra PP emitiu relatório em que, assinaladamente, por referência ao A., se lê: “apresentar modificações intelectuais, com manifesta diminuição do seu nível de eficiência pessoal e profissional, aparentemente consequentes à difusão pelo jornal diário C..., em 5 e 8 de Novembro de 2015, de um conjunto de delações, traduzindo no seu entender uma campanha infundada e caluniosa dirigida contra si próprio, que haveria de culminar com a divulgação das imagens, pela C..., do seu interrogatório no DCIAP, em 29 de Novembro de 2015”; “cortejo sintomatológico objectivo e subjectivo, onde predominam as manifestações de ansiedade e depressão grave, entendíveis num contexto de Transtorno de Stress Pós-Traumático (...), estreitamente relacionado, cronologicamente e pelo seu conteúdo, com os acontecimentos que foram noticiados pelo C..., em Novembro de 2015, os quais, entendidos como excepcionalmente ameaçadores e atentatórios da sua honra, status social e respeitabilidade política e profissional, lhe vêm comprometendo (em grau importante) o seu nível de eficiência pessoal e ocupacional"; "regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico”, como forma de influenciar positivamente (e na medida do possível) o prognóstico “reservado, em qualquer caso, face às condicionantes psicológicas em presença e à tendência para a perpetuação dos factores de stress em causa, com reflexos pessoais negativos marcantes (doc. 45).

- 83. No dia 13 de Novembro de 2015 (e não 2014, como por lapso consta da sentença apelada) a C... transmitiu em blocos noticiosos a notícia “BB detido”.

- 84. As publicações em causa, quanto aos títulos, subtítulos, “leads”, manchetes de primeira página, caixas de texto, escolha das imagens e respectivas legendas foram orientadas, autorizadas e determinadas pelas pessoas, cuja identidade em concreto não foi possível apurar, e no exercício da sua actividade profissional ao serviço da Ré “Cofina Media”, com o esclarecimento que, as mesmas publicações, já no que ao respectivo texto concerne, foram orientadas, autorizadas e determinadas pelo 3.º R. DD, e aquando do desempenho pelo mesmo da sua actividade profissional ao serviço da Ré “Cofina Media, S.A.”. redação dada após alteração efetuada pelo acórdão recorrido.

- 85. Previamente às notícias transmitidas pelo "C...", na "C...", noutros meios de comunicação social e aos processos crime em que o A. foi visado, este gozava de consideração e apreço sociais, de boa imagem e de bom nome.

- 86. As publicações no C... e as transmissões na C... concorreram para que o A. deixasse de gozar de reconhecimento social, de bom nome e de boa imagem.

- 87. As publicações no C... e as transmissões na C... concorreram para que o A. sentisse desgosto, irritação, angústia, revolta, ansiedade, sofrimento, consternação, falta de concentração e para que se sentisse ferido na sua honra, estima social e bom-nome.

- 88. As publicações no C... e as transmissões na C... concorreram para que o A. se sentisse inibido de sair à rua e de frequentar locais públicos.

- 89. As publicações no C... e as transmissões na C..., ao longo de Novembro de 2015 e nos dias que se lhe seguiram, concorreram para que o A. dormisse mal e para que tomasse medicação para dormir.

- 90. O acompanhamento e sofrimento da filha e da mãe do A. das publicações no C... e das transmissões na C... concorreram para fragilizar emocional e psiquicamente o A.

- 91. As publicações no C... e as transmissões na C... concorreram para que o A. ficasse incapaz de recuperar a sua credibilidade junto do eleitorado.

- 92. As publicações no C... e as transmissões na C... concorreram para que o A. passasse a ser conotado como uma figura ligada à corrupção em Portugal.

- 93. Os AA. das notícias procederam a investigação jornalística circunstanciada antes da publicação das notícias.

- 94. Houve tentativa de contacto prévio com o A. em moldes e frequência não apurados.

- 95. As imagens divulgadas, com excepção das que se referem ao primeiro interrogatório de arguido detido, foram obtidas durante aparições públicas do A..

- 96. As imagens divulgadas foram obtidas durante aparições públicas do A., com excepção das referentes ao primeiro interrogatório»

A esta lista deve acrescentar-se, com relevo para a factualidade a ter em conta nos presentes autos, a cópia do acórdão do TR... (já transitado em julgado), proferido no processo n.7995/15...., em 29.01.2020, e confirmativo da decisão da primeira instância, no qual a ré AA foi condenada pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 88º, n. 2, al. b) do CPP e 348º, n. 1, al. a), do CP, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 11,00, pela divulgação das imagens do interrogatório não judicial do autor. A cópia desse acórdão foi junto aos autos por requerimento de 31.01.2020, com a referência eletrónica ...87.

*

3. O direito aplicável.

3.1. Como é entendimento jurisprudencialmente pacífico, no recurso de revista cabe ao tribunal analisar e decidir questões jurídicas, não tendo que rebater todo e qualquer ponto dogmático ou opinativo do argumentário recursório apresentado pelos recorrentes. Também não cabe a este tribunal reapreciar o decidido sobre a matéria de facto, a qual se considera definitivamente assente, nos termos do art.682º do CPC.

No que à apreciação dos presentes recursos interessa, importa ter presente que a segunda instância, revogando parcialmente a sentença, procedeu à alteração parcial da matéria de facto e concedeu parcial provimento às apelações.

Concretamente, o acórdão recorrido condenou as rés Cofina, S.A. e AA, solidariamente, a pagarem ao autor o montante de € 35.00,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais pela divulgação das imagens do primeiro interrogatório de arguido do autor; e condenou a ré Cofina, S.A. a pagar ao autor o montante de € 10.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais pela divulgação da notícia incorreta de que o autor havia sido detido.

Vejamos, em revista, se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito.

3.2. Quanto à revista normal, interposta pela ré AA:

3.2.1. A recorrente sustentou as suas alegações em duas ordens de razões:

- Por um lado, não se encontrariam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, não tendo a recorrente praticado qualquer ato ilícito nem culposo; e sempre o exercício dos direitos de liberdade de expressão e liberdade de imprensa constituiria uma causa de exclusão da ilicitude.

- Por outro lado, ainda que assim não se entendesse, a indemnização arbitrada seria manifestamente excessiva, tendo em consideração indemnizações arbitradas noutros processos.

Invocou a existência de erro na apreciação do direito, por violação do art.70º, n. 1, da Lei da Televisão (Lei n. 27/2007, de 30 de julho), dos artigos 483º e 496º do CC, 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), 10º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), 19º do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos, 37º e 38º da CRP, e 6º do Estatuto do Jornalista.

3.2.2. A responsabilidade civil da recorrente.

Neste ponto está em causa apurar apenas a responsabilidade civil da recorrente pelos factos descritos no n.48 da factualidade assente, o qual tem o seguinte teor:

«Em blocos noticiosos da autoria e responsabilidade da 1.ª Ré AA, no dia 29 de novembro de 2015 e nos dias imediatamente subsequentes, a “C...” exibiu excertos de imagens e áudio do interrogatório do A. junto do DCIAP, na condição de arguido no âmbito do processo “V...” (redação dada após alteração da matéria de facto operada pelo acórdão recorrido)

3.2.2.1. Segundo a alegação da recorrente [particularmente nos pontos 14, 17, 47, 48, 50, 51 das suas conclusões], o acórdão recorrido teria feito errada aplicação do art.70º, n.1 da Lei da Televisão bem como do art.483º do Código Civil, pois não estariam preenchidos os requisitos cumulativos para a sua responsabilização pelos danos invocados pelo autor.

Vejamos:

Estabelece a Lei da Televisão (Lei n.27/2007), no seu art.70º (com as alterações introduzidas pela Lei n. 8/2011)

«Responsabilidade civil

1- Na determinação das formas de efectivação da responsabilidade civil emergente de factos cometidos através de serviços de programas televisivos ou de serviços audiovisuais a pedido observam-se os princípios gerais.

2 - Os operadores de televisão ou os operadores de serviços audiovisuais a pedido respondem solidariamente com os responsáveis pela transmissão de materiais previamente gravados, com excepção dos transmitidos ao abrigo do direito de antena, de réplica política, de resposta e de rectificação ou no decurso de entrevistas ou debates protagonizados por pessoas não vinculadas contratualmente ao operador

Esta disposição remete, assim, para as regras gerais da responsabilidade civil, previstas, centralmente, no art.483º do Código Civil. Nos termos de tal regime, a responsabilidade civil do agente pressupõe que este tenha praticado um facto voluntário, ilícito (por violação de um direito absoluto ou de uma norma que protege interesses alheios), que lhe seja subjetivamente imputável (culposo) e que tenha, pela sua natureza, aptidão para produzir os danos alegados pelo lesado (nexo de causalidade)[1].

Como se encontra provado, em consequência da transmissão televisiva do interrogatório do autor (referido no facto provado n.48), este sofreu os danos morais que se deram como assentes nos pontos 81 e 82 e nos pontos 86 a 92 da factualidade provada.

Deste modo, dúvidas não existem de que aquela transmissão televisiva violou direitos de personalidade do autor (art.70º do CC), nomeadamente o direito à honra e ao bom nome. E também não existe dúvida quanto à culpabilidade do comportamento da recorrente, pois a recolha de imagens e som do interrogatório do autor no DCIAP (que depois foi difundida através da televisão) foi criminalmente sancionada através de decisão já transitada em julgado, proferida no processo n.7995/15...., cujo acórdão confirmativo (cópia) foi junto aos autos por requerimento de 31.01.2020, com a referência eletrónica ...87[2].

Deste modo, por aplicação do art.623º do CPC, o comportamento já julgado ilícito e culposo naquele processo crime releva nos presentes autos, sem necessidade de nova reapreciação desses pressupostos.

De todo o modo, ainda que tal processo não tivesse existido, sempre dos presentes autos resultaria suficiência probatória para se concluir que o comportamento da recorrente, ao captar e divulgar imagens e som em circunstâncias nas quais tal lhe era expressamente vedado pelo art.88º, n.2, al. b) do CPP, seria um comportamento ilícito e culposo e com aptidão para produzir o tipo de danos que o autor sofreu. Conclui-se, portanto, sem necessidade de maior explanação teórica sobre os fundamentos e os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, que a recorrente se tornou responsável pelos danos que o autor sofreu, nos termos do artigo 70º da Lei da Televisão e dos artigos 483º, 562º, 563º, 564º, 494º, 496º do CC.

3.2.2.2. A invocada causa de exclusão da ilicitude:

Alega a recorrente [nomeadamente nos pontos 36, 39, 44, 52 das suas conclusões] que o seu comportamento estaria justificado pela presença de uma causa de exclusão da ilicitude, que consistiria no exercício dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa.

No que respeita à exclusão da ilicitude, para além das causas especiais justificativas (ação direta, legítima defesa, estado de necessidade, consentimento do lesado), tal pode ainda verificar-se quando «(…) o facto, embora prejudicial aos interesses de outrem ou violando o interesse alheio, se considera justificado, e por consequência lícito, sempre que é praticado no exercício regular de um direito (…) ou no cumprimento de um dever. Essencial é que o dever aparentemente infringido pelo agente seja afastado ou neutralizado, definitiva ou temporariamente, por um outro dever ou que a violação (real ou aparente) tenha sido cometida no exercício de um direito.» [3]

O exemplo típico de exclusão da ilicitude de um comportamento por força do cumprimento de um dever do agente é a hipótese da atuação no dever de obediência ao cumprimento das instruções de um superior hierárquico[4]. Neste tipo de hipóteses, o agente não é inteiramente livre (sem consequências) de decidir adotar um comportamento diverso.

Ora, não consta da factualidade assente (nem tal foi alegado) que à recorrente tivesse sido imposto (nomeadamente pela segunda ré, para a qual trabalha) o comportamento lesivo dos direitos do autor. 

Por outro lado, não caberia à recorrente qualquer direito, nomeadamente o direito de informar, cujo regular exercício se sobrepusesse aos direitos do autor, dada a existência de norma expressamente proibitiva do seu comportamento.

Efetivamente, como supra referido, o art.88º, n.2, alínea b) do CPP estabelece claramente que não é autorizada, sob pena de desobediência simples: a transmissão ou registo de imagens ou de tomadas de som relativas à prática de qualquer acto processual, nomeadamente da audiência, salvo se a autoridade judiciária referida na alínea anterior, por despacho, a autorizar; não pode, porém, ser autorizada a transmissão ou registo de imagens ou tomada de som relativas a pessoa que a tal se opuser.

Procura a recorrente escudar as suas alegações na invocação de instrumentos legais internacionais aos quais o Estado português se encontra vinculado, nomeadamente no art.10º, n.1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o qual estabelece que:

«Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia

Todavia, tal norma não consagra um acesso ilimitado à informação, pois no seu n.2 reconhece como legítima a existência de restrições e condicionamentos impostas por cada Estado subscritor, ao estabelecer que:

«O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial

A recorrente invoca também o disposto no art.19º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, nos termos do qual: «Toda a pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito compreende a liberdade de procurar, receber e divulgar informações e ideias de toda a índole sem consideração de fronteiras, seja oralmente, por escrito, de forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo que escolher

Porém, também esta liberdade não é ilimitada, pois esse artigo determina que o exercício do direito nela previsto «(…) implica deveres e responsabilidades especiais. Por conseguinte, pode estar sujeito a certas restrições, expressamente previstas na lei, e que sejam necessárias para:

«a) Assegurar o respeito pelos direitos e a reputação de outrem

b) A protecção da segurança nacional, a ordem pública ou a saúde ou a moral públicas

Procura ainda a recorrente justificar a sua tese com base nos artigos 37º da Constituição da República Portuguesa, que consagra a liberdade de expressão e informação. Todavia, dessa norma não emerge qualquer suporte para a pretensão de exclusão da ilicitude do comportamento da recorrente, pois no n.3 dessa disposição encontra-se expressamente previsto o sancionamento dos comportamentos que infrinjam os limites desse direito.

Em resumo, constata-se que, contrariamente ao que emerge das alegações da recorrente, no caso concreto, não está em causa nenhuma questão que coloque o tribunal (nem sequer aparentemente) perante a tarefa de analisar os limites à liberdade de informar, para a qual seria de grande préstimo convocar o abundante património doutrinal que sobre o tema tem sido publicado[5], bem como a jurisprudência do TEDH que se tem formado sobre a aplicação do art.10º da CEDH.

No caso concreto, e tendo em conta o afunilamento que o objeto decisório foi sofrendo no trajeto processual até ao presente momento, conclui-se que o apuramento da responsabilidade civil da agora recorrente não convoca a apreciação de qualquer questão respeitante aos limites da liberdade de informar.

Efetivamente, o ato de recolher e divulgar informação não autorizada, criminalmente punido por decisão transitada em julgado, não suscita qualquer conflito entre o direito ou liberdade de informação, por um lado, e direito à honra ou ao bom nome, por outro, pois trata-se de um comportamento que (pelo seu sancionamento criminal) está indubitavelmente para além dos limites da liberdade de informação. 

Deste modo, não há que convocar a jurisprudencial que se tem firmado no quadro do TEDH sobre a aplicação do art.10º da CEDH, nem, consequentemente, proceder a qualquer juízo de prognose sobre o modo como o caso concreto seria apreciado à luz dessa jurisprudência, diferentemente do que se verificaria caso estivesse, verdadeiramente em causa, um problema de limites entre a liberdade de informação e o direito à honra ou ao bom nome[6].

Encontrando-se verificados os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos em relação à recorrente e resultando da matéria de facto provada que ela tinha a qualidade de comissária da segunda recorrente – Cofina S.A. –  também esta será responsabilizada na qualidade de comitente (como se verá na apreciação do recurso da Cofina).

*

3.2.3. Quanto ao montante indemnizatório.

Concluindo-se que se verificam os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, com a consequente obrigação de indemnizar, tendo o acórdão recorrido feito, neste ponto, a correta aplicação do direito, cabe apreciar agora se o montante indemnizatório fixado nessa decisão se deve considerar excessivo, como sustenta a recorrente [no ponto 53 e seguintes das suas conclusões]

Constata-se que, na fixação dos montantes indemnizatórios, o acórdão recorrido procedeu à enunciação e concreta demonstração dos critérios decisórios previstos nos artigos 496º, n.4 e 494º do CC, que sustentam a decisão segundo a equidade, face à factualidade provada (particularmente a constante dos pontos 85 a 92 dos factos assentes).

Deste modo, a decisão recorrida fixou em €35.000,00 a compensação pelos danos morais invocados pelo autor, decorrentes da factualidade constante do ponto n.48 dos factos provados.

Entende a recorrente que esse valor é excessivo, mesmo não tendo sido condenada em exclusivo no seu pagamento (dado que o acórdão recorrido estabeleceu a solidariedade com a ré “Cofina, S.A.” no pagamento dessa compensação, o que se analisará infra).

 Por se tratar de uma indemnização determinada segundo o critério da equidade, não cabe ao STJ substituir-se ao tribunal recorrido na reponderação da concreta aplicação desse critério. Cabe-lhe, sim, concluir se os montantes indemnizatórios se encontram dentro dos limites que em situações tipologicamente equiparáveis têm sido admitidos pelo STJ, tendo em vista a aplicação uniforme do direito, como previsto no art.8º, n.3 do CC.

Este critério de ponderação decisória tem sido reiteradamente seguido pelo STJ, como se exemplifica com as seguintes decisões:

- Acórdão do STJ, de 24.01.2019 (relatora Rosa Ribeiro Coelho), no processo n. 948/14.5TVLSB.L1.S1:

«O STJ tem vindo a entender que lhe não cabe a determinação exata do quantitativo a arbitrar como indemnização pelos danos não patrimoniais, mas, antes, apreciar se os valores arbitrados se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência atualista, devem ser seguidos em situações análogas ou equiparáveis

- Acórdão do STJ, de 09.07.2020 (relatora Graça Amaral), no processo n. 3015/06.1TBVNG.P1.S1:

«Na avaliação e ponderação do montante dos danos não patrimoniais, o juízo de equidade levada a cabo pelas instâncias é sindicável pelo STJ em termos muito limitados, incidindo apenas sobre a verificação dos pressupostos da fixação equitativa da indemnização, em determinar se a relevância dos danos é legalmente admitida e se essa avaliação segue os critérios legais e/ou jurisprudenciais que para tal deveriam ser considerados (proporcionalidade na fixação da indemnização, recorrendo ao que é decidido, especialmente pelo STJ, em casos análogos).»

Não se identificam na jurisprudência mais recente do STJ casos idênticos ao dos presentes autos, que possam servir como um exato padrão comparativo. Todavia, identificam-se casos tipologicamente próximos, nos quais se decidiu sobre a lesão do mesmo tipo de direitos, através de meios de comunicação social.

Aplicando, embora, a anterior Lei da Televisão, merece referência o acórdão do STJ, de 23.10.2012 (relator Mário Mendes), no proc. n.2398/06.8TBPDL.L1.S1, no qual se considerou adequada a indemnização de € 50.000,00 « (…) pela imputação, pública e reiterada, através de um órgão de comunicação social (no caso, um relevante canal de televisão) a um cidadão (em concreto um cidadão com demonstrada e reconhecida intervenção a nível cívico, público e político) de envolvimento em actos de pedofilia e envolvimento sexual com menores, ainda que objecto de posterior rectificação, constitui, no seu conjunto, muito mais do que meros incómodos destituídos de relevância jurídica[7]

No que respeita à imprensa escrita, veja-se, o acórdão do STJ, de 02.12.2020 (relatora Fátima Gomes), no processo n. 24555/17.1T8LSB.L1.S1, no qual se confirmou a condenação de um jornalista e a indemnização atribuída pela segunda instância:

«Num quadro em que foram produzidas afirmações com animosidade e intenção ofensiva, cuja falsidade a ré não podia razoavelmente ignorar e sendo objectivamente passíveis de, quer pelo conteúdo quer pela forma, denegrirem a honra e o bom nome do autor, no domínio da vida privada deste, ponderando casos congéneres e as demais circunstâncias do caso, tem-se por adequado fixar a indemnização em € 25.000.00[8]

Abstraindo das especificidades factuais de cada caso referido, em ambos se identifica a divulgação ilícita de factos que afetaram o bom nome dos visados, tendo a sua divulgação (pela própria natureza dos meios utilizados) atingido um número indefinido de pessoas (espetadores ou leitores).

Diferentemente dos casos nos quais a ofensa do bom nome se projeta num circulo limitado de pessoas, tornando mais fácil a reabilitação desse valor (por acesso a informação em sentido contrário), nos casos em que tal tipo de ofensa é perpetrado através de um meio de comunicação social, e sobretudo de um órgão de comunicação que é líder de audiências (como consta dos factos provados), a reabilitação integral torna-se praticamente impossível, dado o número indeterminado de sujeitos que recebem a informação lesiva do bom nome do visado.

Neste quadro, por todas as considerações expostas, entende-se que não merece censura a decisão recorrida quando fixou o montante indemnizatório, pelos factos supra referidos, em €35.000,00, que, assim, deve ser confirmada.

3.2.4. Em resumo, quanto à revista normal, interposta pela ré AA, conclui-se que o acórdão recorrido não merece censura, nem quanto à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil e consequente obrigação de indemnizar, nem quanto ao seu montante.

*

3.3. A revista excecional interposta pela ré “Cofina, S.A.”

A revista foi admitida, a título excecional, com base nas alíneas a) e b) do art.672º, n.1 do CPC, por a Formação ter entendido que «importa assegurar uma definição tão clara quanto possível dos parâmetros jurídicos da responsabilidade civil dos agentes de informação.»

3.3.1. A recorrente pretende revista do acórdão recorrido quanto aos seguintes pontos:

«-A Recorrente não pode ser responsabilizada pelas transmissões em causa;

- Interesse público da transmissão do interrogatório do Autor na qualidade de arguido;

- A não aplicação do artigo 500.º, do C.C., quando existe uma norma especial – artigo 70.º, n.º 2, da Lei da Televisão -, e mesmo que assim não se entenda, o que não se concede, não se encontram preenchidos os requisitos da responsabilidade pelo risco – responsabilidade do comitente;

- Da exclusão da ilicitude por exercício dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa.

- Valor manifestamente excessivo da condenação.

- Da retificação do acórdão.»

Deve, aqui, reafirmar-se que a este tribunal cabe dar resposta a questões jurídicas, não tendo de rebater todo e qualquer argumento ou fundamento invocado pela recorrente para sustentar a sua posição, devendo ainda ter-se presente o âmbito de admissibilidade do recurso traçado pela Formação.

3.3.2. Entende a recorrente que o acórdão recorrido fez errada aplicação da lei ao condená-la na qualidade de “comitente” pelo facto referido no ponto 48 da factualidade provada, praticado pela ré AA, na qualidade de “comissária”.

Tendo-se já concluído, no recurso da ré AA, que em relação a esta se verificam todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos (nos termos dos artigos 70º, n.1 da Lei da Televisão e 483º do CC) e concluindo-se que, à data dos factos, esta trabalhava para a “Cofina S.A.”, o que configura uma relação de comissão, tendo aqueles factos ocorrido no exercício das suas funções, tem aplicação o disposto no art.500º do CC, nos termos do qual a ré “Cofina S.A.” responde objetivamente na qualidade de comitente[9].

Efetivamente, a relação de comissão entre a ré AA e a ré “Cofina S.A.” encontra-se inequivocamente demonstrada nos seguintes pontos da factualidade provada:

 «n.1- A R. AA é jornalista do jornal C..., assumindo a função de redactora principal do jornal e da "C..." (docs. 1 e 2).

n.5 - A 5ª R. “COFINA MEDIA S.A.” é uma sociedade anónima, do “Grupo COFINA”, detida pela holding COFINA, SGPS., S.A., que também tem por objecto a actividade de comunicação social, designadamente televisão e radiodifusão, edição, electrónica ou não, publicação, comercialização e distribuição de publicações periódicas e não periódicas (docs.3 e 4)

- n.7 - Em 2013, lançou um canal de televisão no cabo, designado “C...”, do qual é proprietária.

- n. 48 - Em blocos noticiosos da autoria e responsabilidade da 1.ª Ré AA, no dia 29 de Novembro de 2015 e nos dias imediatamente subsequentes, a “C...” exibiu excertos de imagens e áudio do interrogatório do A. junto do DCIAP, na condição de arguido no âmbito do processo “V...”.»

O art.70º, n.1 da Lei da Televisão, ao remeter para as regras gerais da responsabilidade civil, não estabelece qualquer restrição quanto à aplicação desse regime, que levasse a concluir que o art.500º do CC não tivesse aplicação no domínio da responsabilidade civil dos operadores televisivos ou da atividade televisiva em geral.

Como afirma Antunes Varela sobre o caráter objetivo da responsabilidade do comitente, consagrada no art.500º do CC: «(…) trata-se de a responsabilidade prescindir da existência de culpa, nada adiantando, por isso, a prova de que o comitente agiu sem culpa (…)[10]»

O n.2 do artigo 70º da Lei da Televisão amplia a responsabilidade dos operadores de televisão (por confronto com o âmbito de aplicação do art.500º do CC), responsabilizando-os também por factos ilícitos próprios (e não apenas pelo risco como no art.500º do CC), quando esteja em causa a exibição de programas previamente gravados, pois em tal hipótese o operador televisivo tem a possibilidade de controlar ou supervisionar previamente os conteúdos dos programas que serão posteriormente exibidos.

A este propósito deve ter-se presente que o art.27º da Lei da Televisão estabelece limites à liberdade de programação, que devem ser observados pelo operador televisivo, ao dispor que: «A programação dos serviços de comunicação social audiovisual deve respeitar a dignidade da pessoa humana, os direitos específicos das crianças e jovens, assim como os direitos, liberdades e garantias fundamentais»

Ao não impedir que seja exibido um programa que pode lesar direitos fundamentais de terceiro, o operador televisivo concordará (pelo menos tacitamente) com esse conteúdo, pelo que, nos termos do n.2 do art.70º da Lei da Televisão se torna solidariamente responsável com o comissário pela transmissão dos materiais previamente gravados.

A aplicação do n.2 do art.70º da Lei da Televisão terá como consequência prática a aplicação do disposto na última parte do n.3 do art.500º do CC, no que respeita à extensão do direito de regresso do comitente que paga ao terceiro lesado em vez do comissário.

Não se tratando de uma responsabilidade totalmente objetiva do comitente (ou seja, por facto ilícito apenas do seu comissário), mas também (e simultaneamente) de uma responsabilidade por facto ilícito próprio do comitente, que responde solidariamente com o comissário (ex vi do n.2 do art.70º da Lei da Televisão), o posterior direito de regresso operar-se-á nos termos do art.500º, n.3, última parte (onde expressamente se prevê a hipótese de existir também culpa do comitente), tendo aplicação o n.2 do art.497º do CC.

Afirma Antunes Varela, sobre a hipótese de haver também culpa do comitente: «(…) apesar de não ser requisito essencial da responsabilidade do comitente, a culpa deste pode influir no regime dela.

Se houver culpa, tanto do comitente como do comissário, qualquer deles responde solidariamente perante o lesado, mas o encargo da indemnização será depois repartido entre eles (art.497º, 2 ex vi do art.500º, 3), na proporção das respetivas culpas. Havendo só culpa do comitente, apenas ele será obrigado a indemnizar, nos termos da responsabilidade por factos ilícitos.

Se houver apenas culpa do comissário, o comitente que houver pago poderá exigir dele a restituição de tudo quanto pagou (art.500º, 3).[11]»

Conclui-se, portanto, que, contrariamente à tese sustentada pela recorrente, o disposto no n.2 do art.70º da Lei da Televisão não afasta a aplicação do art.500º do CC; antes se harmoniza com ele.

No que respeita aos programas previamente gravados (para posterior exibição) deve entender-se que o n.2 do art.70º da Lei da Televisão estabelece uma presunção de culpa do operador televisivo (o comitente) que teve a possibilidade de previamente decidir a não exibição de determinado programa, mas não o fez. Tal significa que se conformou com o conteúdo desse programa, dando o seu assentimento (pelo menos tácito) à respetiva exibição.

No caso concreto, caberia à “Cofina, S.A.”, para afastar a sua responsabilidade direta, ter ilidido aquela presunção de culpa, demonstrando, por exemplo, a impossibilidade de ter tido prévio conhecimento do conteúdo do programa. Em tal hipótese, continuaria a responder perante o terceiro lesado, mas apenas objetivamente (por facto ilícito do seu comissário), e não também por facto ilícito próprio (o que tem diferentes consequências ao nível do direito de regresso).

Sobre as diferentes hipóteses de configuração de culpa própria do comitente, afirma Antunes Varela: «A culpa do comitente pode refletir-se tanto na escolha da pessoa do comissário (culpa in elegendo), como nas instruções ou nas ordens dadas para a comissão (culpa in instruendo) ou na fiscalização da atividade do comissário (…)[12]»

Conclui-se, em resumo, que os operadores de televisão respondem objetivamente, na qualidade de comitentes, pelos factos ilícitos praticados pelos seus comissários no exercício das respetivas funções (nos termos do art.500º do CC), para além de poderem responder solidariamente por factos ilícitos próprios nos termos do art.70º, n.2 da Lei da Televisão, quando se trate de programas previamente gravados.

*

3.3.3. Quanto à responsabilidade pelo facto que se deu como assente no ponto 83 da factualidade provada [«No dia 13 de novembro de 2015 (e não 2014, como por lapso consta da sentença apelada) a C... transmitiu em blocos noticiosos a notícia “BB detido»], sustenta a recorrente que não poderia ter aplicação o disposto no art.70º, n.2 da Lei da Televisão, por não se tratar de um programa previamente gravado, mas sim de uma notícia em “lead” (como admite no ponto n.71 das conclusões das suas alegações), ou seja, em nota de rodapé e, como tal, uma notícia em direto. Entende também a recorrente que as regras gerais da responsabilidade civil, e concretamente o art.500º do CC, não teriam aplicação a tal hipótese. Como não consta da factualidade provada a concreta identidade da pessoa que praticou o facto danoso, ou seja, que decidiu emitir, em nota de rodapé de um serviço noticioso, a informação “BB detido”, na tese da recorrente não seria possível responsabilizar ninguém pela divulgação dessa notícia.

Se assim fosse ter-se-ia de concluir que a ordem jurídica comportaria uma lacuna de previsão normativa. E estaria, certamente, encontrado o caminho para a publicação de toda e qualquer notícia falsa ou ofensiva de direitos fundamentais de terceiro, sem que o órgão de comunicação social pudesse ser responsabilizado, pois seria quase impossível aos lesados identificarem o concreto jornalista (ou outra pessoa) que tivesse tomado a decisão de publicar tal tipo de notícias.

Ora, é do mais elementar senso de justiça concluir que não poderia ser assim. Nem o sistema jurídico apresenta qualquer lacuna nesta matéria, dada a remissão ampla que é feita pelo n.1 do art.70º da Lei da Televisão para as regras gerais da responsabilidade civil.

A ré “Cofina S.A.”, sendo uma pessoa coletiva responde perante terceiros, em regra, como responderia uma pessoa singular. Efetivamente, como afirmam P. Pais de Vasconcelos e P.L. Pais de Vasconcelos: «Tal como as pessoas singulares – analogamente – as pessoas coletivas são responsáveis pelos seus atos e pelas consequências do seu agir»[13].

Sobre a responsabilidade civil das pessoas coletivas, estabelece o art.165º do CC que: «As pessoas coletivas respondem civilmente pelos atos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos atos ou omissões dos seus comissários». Idêntica solução é particularizada pelo artigo 998º do CC, tratando-se de sociedades civis, e pelo art.6º, n.5 do Código das Sociedades Comerciais, quanto a este tipo de sociedades. 

Trata-se, portanto, de preceitos que “contêm uma remissão implícita para o art.500º do Código Civil[14].

Como supra referido, o próprio art.500º, n.3, in fine prevê a hipótese de existir culpa do comitente, ainda que os factos diretamente lesivos dos direitos de terceiro sejam praticados por um comissário.

O facto de não ser possível apurar a identificação da pessoa (comissário) que, em concreto, praticou o facto lesivo torna-se irrelevante na hipótese, como a dos presentes autos, na qual se procura aferir da responsabilidade direta do comitente. Como já se deixou referido, aquele que encarrega outrem de prosseguir determinada atividade no seu interesse (comitente) pode responder por culpa própria (e não apenas por facto ilícito do comissário), nomeadamente pela escolha dessa pessoa (a denominada culpa in eligendo) ou pela omissão na fiscalização da sua atividade, que vem a causar danos a terceiro (culpa in vigilando).

No caso concreto, a decisão de publicar a notícia “BB detido”, em nota de rodapé na C..., só pode ter sido tomada (pela própria natureza das coisas) por alguém pertencente à organização da recorrente, e não por um qualquer terceiro sem ligação funcional a esta recorrente. Deste modo, a prática do facto danoso tem de ser imputada à recorrente, a título de culpa in eligendo, culpa in instruendo ou culpa in vigilando.

A notícia da detenção do autor, tratando-se de uma notícia falsa, vista por um número indeterminado de telespetadores, num canal que é líder de audiências (como consta da matéria provada) constitui um facto lesivo de direitos fundamentais do autor, concretamente do direito ao seu bom nome (protegido pela tutela geral da personalidade – art.70º do CC), pelo que se trata, inequivocamente, de um facto ilícito. E trata-se de um facto que, pela sua própria natureza, tem aptidão para produzir o tipo de danos que o autor sofreu (nexo de causalidade).

O STJ já se pronunciou neste sentido (embora no domínio aplicativo da anterior lei da televisão) no acórdão de 23.10.2012 (relator Mário Mendes), no processo n.2398/06.8TBPDL.L1.S1, nos seguintes termos: «Estando-se perante uma situação onde não seja possível apurar a responsabilidade individual e subjectiva dos jornalistas que actuaram no interesse e por conta do operador de televisão, deverá a decisão ser ponderada e tomada por recurso ao disposto nos arts. 165.º e 500.º, n.º 2, do CC. Ou seja, havendo responsabilidade solidária entre a pessoa colectiva e o órgão, agente ou mandatário, responderá apenas a sociedade se não for possível determinar em concreto o agente culpado do acto

Em resumo, não merece censura o acórdão recorrido ao ter condenado a recorrente a pagar ao autor o montante de €10.000 como compensação pelos danos morais causados pela publicação daquela notícia falsa.

3.3.4. Quanto à alegação da recorrente no sentido de que os montantes indemnizatórios seriam excessivos, convocam-se, a este propósito, todas as considerações que já se deixaram expostas na fundamentação do recurso interposto pela ré AA, que aqui se dão como reproduzidas, quanto ao montante de €35.000. E dão-se, igualmente, como reproduzidas todas essas considerações quanto ao montante de €10.000 (que apenas a ré “Cofina S.A.” foi condenada a pagar), até por maioria de razão, porquanto se trata de um valor que é significativamente inferior aos montantes que os tribunais têm concedido noutros casos de ofensa do direito à honra e ao bom nome.

3.3.5. No que respeita à invocação da liberdade de expressão ou da liberdade de imprensa, extensamente alegadas pela recorrente, com base nos instrumentos legais internacionais onde esses valores se encontram consagrado, bem como com base na CRP, enquanto fundamento desculpante ou legitimador dos seus comportamentos, cabe reafirmar, neste ponto, todas as considerações já expostas na fundamentação do recurso interposto pela ré AA, que aqui se dão como reproduzidas. Efetivamente, como supra referido, todos esses instrumentos legais consagram limites à liberdade de expressão e de informação, nomeadamente para evitar intoleráveis violações de direitos fundamentais de outrem. A publicação de uma notícia falsa, pela própria natureza das coisas, não pode encontrar cobertura normativa em nenhuma interpretação (ainda que bastante ampla) dos conceitos de liberdade de expressão ou de informação ou de liberdade de imprensa.

A liberdade de informação, pelos seus limites normativos, não pode deixar de ser um poder teleologicamente vinculado pelos valores da verdade e da correção dos conteúdos noticiosos em que se materializa.

3.3.6. Quanto à retificação do acórdão, requerida pela recorrente, no que respeita à data da transmissão da notícia da detenção do autor – facto provado n.83, com o seguinte teor: «No dia 13 de Novembro de 2015 (e não 2014, como por lapso consta da sentença apelada) a C... transmitiu em blocos noticiosos a notícia “BB detido”», não cabendo a este tribunal proceder a alterações da matéria de facto, como decorre do art.682º do CPC. Aliás, a data da ocorrência desse facto é facilmente percetível no contexto de toda a factualidade provada.

Em resumo, quanto à revista interposta pela ré Cofina S.A., conclui-se que a decisão recorrida não merece censura, pois encontrou as soluções legalmente adequadas face aos factos que se encontram provados.

*

DECISÃO:

- Quanto à revista normal – interposta por AA: face ao exposto, acorda-se em julgar a revista improcedente, mantendo o acórdão recorrido.

- Quanto à revista excecional – interposta por COFINA S.A.: face ao exposto, acorda-se em julgar a revista improcedente, mantendo o acórdão recorrido.

Custas na revista:

- Na revista normal: a cargo da recorrente AA.

- Na revista excecional: a cargo da recorrente COFINA S.A.

Lisboa, 24.05.2022

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Sobre os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, veja-se, entre outros, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I (10ª ed), pág.525 e seguintes.
[2] Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29.01.2020, foi a ré Tânia Laranjo condenada pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 88º, n. 2, al. b) do CPP e 348º, n. 1, al. a), do CP, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 11,00, pela divulgação das imagens do interrogatório não judicial do autor.
[3] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I (10º ed.), pág.552.
[4] Vd. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, página 553.
[5] Vejam-se, a título de exemplo, as seguintes referências:
- António Henriques Gaspar, “A Influência da CEDH no Diálogo Interjurisdicional – A Perspectiva Nacional ou o Outro Lado do Espelho”, Revista Julgar n. 7 (2009);
- Francisco Teixeira da Mota, “Liberdade de Expressão – A Jurisprudência do TEDH e os Tribunais Portugueses”, Revista Julgar n. 32 (2017);
- Moreira das Neves, “A tutela da Honra frente à Liberdade de Expressão numa Sociedade Democrática”, Data Venia, Ano 4, n. 5 (2016), acessível em
https://www.datavenia.pt/ficheiros/edicao05/datavenia05_p073-096.pdf
[6] Como a jurisprudência do STJ tem reiteradamente entendido, estando em causa um conflito entre a liberdade de expressão e o direito à honra ou ao bom nome, devem os tribunais nacionais proceder a um juízo de prognose, balizado pela conhecida jurisprudência do TEDH, no sentido de se prever como a questão poderia ser decidida por esse tribunal, caso lhe fosse colocada. Neste sentido veja-se, por exemplo, o ac. do STJ, de 13.07.2017 (relator Lopes do Rego), no proc. n.1405/07.1TCSNT.L1.S1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3d6c378c4e3c6cff8025815c0048886d?OpenDocument.
[7] Texto integral acessível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a595dbd318f964fa80257aa30034741f?OpenDocument&ExpandSection=1.
[8] Texto integral do acórdão acessível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3aaf63c7a2a548cf802586650042f380?OpenDocument&Highlight=0,difama%C3%A7%C3%A3o.
[9] Sobre o fundamento da responsabilidade do comitente, afirma Antunes Varela: «O comitente age na posição de garante perante o terceiro lesado (…)», Das Obrigações em Geral, Vol. I (10ª ed.), pág.646.
[10] Das Obrigações em Geral, Vol. I (10ª ed), pág.638 e 639
[11] Das Obrigações em Geral, Vol. I (10ª ed.), pág.639.
[12] Das Obrigações em Geral, Vol. I (10ª ed.), pág.639, nota 3.
[13] Teoria Geral do Direito Civil (9ª ed), pág.184.
[14] Como afirmam Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil (9ª ed), pág. 186.