DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
INQUÉRITO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
LEITURA PERMITIDA DE AUTO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Sumário

I - Não podem valer em julgamento e servir para formar a convicção do julgador, as declarações anteriormente prestadas pelo arguido perante autoridade judiciária, se não forem reproduzidas ou lidas em audiência, nos termos previstos no artigo 357º, n.º 1, al. b), do CPP.
II - A plenitude do exercício do contraditório sobre as provas, tem lugar na audiência de julgamento e quando estão em causa as declarações anteriormente prestadas pelo arguido, perante a autoridade judiciária, no âmbito dos interrogatórios previstos nos artigos 141º, 145º e 144º, n.º 1, do CPP, o arguido ainda que possa estar inteirado do teor dessas declarações e ciente – por ter sido informado nos termos e para por efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141º do CPP – de que as mesmas poderiam ser utilizadas no processo, o contraditório e as garantias de defesa, só serão plenamente assegurados, relativamente a esse meio de prova, se tais declarações forem reproduzidas ou lidas, em julgamento, mormente, se o arguido estiver presente na audiência de julgamento e optar por prestar declarações, que possam apresentar contradição ou discrepância com as anteriormente prestadas.
III - Todavia, verificando-se esta última situação, se, na audiência de julgamento, o arguido for confrontado, pelo juiz, com a divergência do sentido das suas declarações que anteriormente havia prestado em interrogatório judicial, deve considerar-se observando, dessa forma, o contraditório, mesmo que não exista a leitura dessas declarações.
IV – No caso dos autos, tendo a arguida comparecido na audiência de julgamento, optando por prestar declarações, não tendo sido, nesse ato, reproduzidas, nem lidas as declarações que prestou, em 1º interrogatório judicial, nem tendo a arguida sido confrontada, pelo tribunal, com tais declarações e resultando da sentença recorrida que as mesmas não foram consideradas pelo Tribunal a quo, na formação da sua convicção, não podem ser atendidas, em sede de recurso interposto pelo Ministério Público, na impugnação da matéria de facto, fixada em 1ª instância, as declarações prestadas pela arguida, em sede de 1º interrogatório judicial.

Texto Integral


Acordam, em conferência na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Neste processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, n.º 6/20.3GARMZ, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora – Juízo de Competência Genérica do Redondo, foram os arguidos AA e BB, melhor identificados nos autos, acusados da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21º, n.º 1 e 25º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal.
1.2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença em 13/01/2022, depositada na mesma data, com o seguinte dispositivo:
«(...) decide-se:
Absolver a arguida BB, pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p.p. pelo artigo 21º, nº 1, e 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C do mesmo diploma legal.
Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p.p. pelo artigo 21º, nº 1, e 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C do mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período.
Condenar o arguido AA no pagamento das custas e nos encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça devida em 3(três) UC’s.
• Declarar perdidas a favor do Estado todas as substâncias estupefacientes aprendidas nos autos.
• Determinar a restituição aos arguidos dos objectos identificados no ponto 10) /vi), com sujeição ao regime previsto no art. 186º, nº 3, do Código de Processo Penal.
(…)».
1.3. Inconformados com o assim decidido, recorreram o Ministério Público e o arguido para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação de recurso, as seguintes conclusões:
1.3.1. Conclusões do recurso interposto pelo Ministério Público:
«1. Na douta decisão proferida pelo Tribunal a quo a arguida BB foi absolvida da prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 e 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-C do mesmo diploma legal.
2. Para tanto o Tribunal a quo entendeu dar como não provados os seguintes factos: g) A arguida BB sabia que não estava autorizada a deter canábis por não lhe ser permitido cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou deter produtos estupefacientes, e, ainda assim, decidiu deter tais substâncias, o que representou e quis e h) a arguida BB agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
3. No fundo, o Tribunal a quo, considerou erroneamente que a arguida BB atuou com negligência, uma vez que entendeu que esta não era conhecedora de que a plantação de canábis não estava autorizada pelas entidades competentes e como tal, a mesma atuou com negligência e como o tipo legal em questão não é punível a título de negligência, decidiu absolver a arguida do crime pelo qual a mesma vinha acusada.
4. Todavia, não concordamos com tal decisão, uma vez que é nosso entendimento que a arguida sabia perfeitamente que a plantação de canábis que se encontrava no interior da estufa da Herdade ..., onde reside a arguida, não tinha autorização de nenhuma entidade, nomeadamente do Infarmed para cultivo de canábis para fins medicinais.
5. Com efeito, resulta das declarações prestadas pela arguida em audiência e discussão de julgamento, relativamente à plantação de canábis na Herdade ..., a mesma a instâncias do Mmo. Juiz referiu que “Estava ao corrente das plantações, mas não era parte participante” e que tinha acesso à estufa e que inclusive a própria arguida confirmou que regava a plantação de canábis.
6. Mais afirmou a arguida em audiência e discussão de julgamento que estava ao corrente de todo o canábis que se encontrava no interior da sua residência, canábis este que foi apreendido no dia das buscas realizadas à Herdade ... e no qual se encontrava a arguida.
7. Por outro lado, a própria arguida em sede de primeiro interrogatório judicial, a instâncias da Mma. Juiz se a plantação de canábis da Herdade ... tinha ou não licença, a arguida foi perentória a responder que não.
8. Ora, perante esta factualidade, não temos dúvidas de que a arguida BB tinha perfeito conhecimento que a plantação de canábis que se encontrava no interior da Herdade ..., tanto na estufa como no interior da residência, e da qual a mesma procedeu à sua rega, não tinha nenhuma licença emitida por entidade competente, designadamente o Infarmed.
9. Pelo que, não se percebe como é que o Tribunal a quo, perante esta factualidade entendeu que a arguida agiu com negligência, quando é a própria arguida a admitir que não havia qualquer autorização por parte das entidades competentes para plantar o canábis.
10. Sem prescindir, sempre se diga que a arguida, é uma pessoa com formação académica superior, licenciada em direito, que tinha conhecimento das reuniões que o arguido, seu companheiro AA encetou com diversas entidades com vista a obter o licenciamento da plantação de canábis, tendo inclusive a própria, como sócia da empresa F... Lda., titular do projeto ..., ter que entregar o seu certificado de registo criminal, o que a mesma confirmou em sede de audiência e discussão de julgamento, assim como a testemunha CC.
11. Além do mais, a arguida BB, como sócia da empresa F... Lda., tinha a obrigação de saber, confirmar e diligenciar pela obtenção do licenciamento para a plantação de canábis.
12. Até porque, sendo sócia da referida empresa, tendo canábis plantado numa estufa de uma herdade da qual a mesma também é proprietária e procedendo ela mesmo à rega de canábis, não podia descurar de obter a devida autorização das entidades competentes e diligenciar junto das mesmas pela sua obtenção.
13. Pelo exposto, considerando as declarações da arguida BB produzidas em sede de audiência e discussão de julgamento, bem como no primeiro interrogatório judicial, assim como as declarações da testemunha CC e da demais prova documental constante nos autos, entendemos que dever-se-á dar como provado os seguintes factos da acusação:
g) a arguida BB sabia que não estava autorizada a deter canábis por não lhe ser permitido cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou deter produtos estupefacientes, e, ainda assim, decidiu deter tais substâncias, o que representou e quis.
h) A arguida BB agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
14. E em consequência a arguida BB ser condenada pela prática, em co-autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 e 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-C do mesmo diploma legal.
15. Quanto à pena a aplicar em concreto à arguida BB, atendendo aos critérios estabelecidos no artigo 71.º do Código Penal e uma vez que o crime em questão é apenas punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, tendo em conta que a prevenção geral é alta, mas considerando que a prevenção especial se mostra reduzida atento a que a arguida se encontra pessoal, familiar e socialmente integrada e a ilicitude também se mostra reduzida, considerando as motivações que estavam inerentes à plantação do canábis, entendemos que a deverá a arguida BB ser condenada na pena de 1 ano e 1 mês de prisão.
16. Relativamente à suspensão da execução da pena de prisão, uma vez que se encontram reunidos os pressupostos do artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal, atendendo ao facto de a arguida não ter antecedentes criminais, de se encontrar inserida profissional e socialmente, entendemos que a referida pena de prisão deverá ser suspensa na sua execução por igual período.
Nestes termos e nos mais de Direito, requer-se Mui Respeitosamente a V. Exas. que seja dado provimento ao presente Recurso e a Douta Decisão Recorrida seja revogada e substituída por outra que dê como provados os factos constantes dos pontos G) e H) da matéria de facto dada como não provada na sentença ora recorrida (essencialmente no que ao tipo subjetivo diz respeito) e assim se condenando a arguida BB pela prática, em co-autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 e 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-C do mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 1 (um) mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
V. Exas, porém, e como sempre, farão Justiça!»
1.3.2. Conclusões do recurso interposto pelo arguido:
a) O arguido foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 25.º, do Decreto-Lei n.º 15/03, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C do mesmo diploma legal, na pena de um ano e dois meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo.
b) Na sua contestação foram invocadas questões de Direito, mormente nulidades e inconstitucionalidades, cuja resposta lhe parece importante, e porque aí foram invocadas. Estarão sujeitas ao conhecimento do tribunal todas as matérias que não sendo irrelevantes (claro está), são levadas ao conhecimento do tribunal pelo arguido, que considera, naturalmente, importantes as nulidades, ilegalidades e inconstitucionalidades que invocou junto do tribunal.
c) da notícia do crime: no dia 11 de Julho, a notícia do alegado crime foi dado por um terceiro, que alertou o posto da GNR local para comunicar que ouviu, em conversa com mais dois amigos, estes lhe terão dito que se deslocaram ao local e viram uma estufa com 20m por 20m na qual estariam a ser cultivadas plantas de canábis. Nunca foram ouvidas as duas pessoas, tendo a notícia do crime sido levada ao conhecimento da GNR através da espontaneidade de um terceiro sem conhecimento directo dos factos; limitou-se a contra o que ouviu de terceiros, sem nunca estes mesmos terceiros terem sido ouvidos. Ao contrário do que exige o artigo 95.º, n.º 3, do CPP, nunca a GNR declarou no auto a impossibilidade ou a recusa do denunciante em assinar a mesma; em bom rigor não foram cumpridos os n.ºs 2 e 3 do já citado artigo 246.º, do mesmo diploma legal. Se bem que perante um crime público, tal não deverá nunca significar que não se devam cumprir os preceitos que garantam direitos, liberdades e garantias.
d) Estamos perante uma violação directa dos n.º 2 e 3 do já citado artigo 246.º, do mesmo diploma legal, que poderá determinar a posterior identificação dos arguidos, tal como esta veio a ser feita: através de um contacto privado retirado de um telemóvel: De facto, nos termos dos artigos 26º, n.º 1 e 32.º, n.º 8, da CRP, são nulas todas as provas obtidas (...), abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência, ou telecomunicações, e violação do disposto no art.º 126.º, n.º 3, do CPP. Encontramos aqui tanto uma nulidade como uma inconstitucionalidade, que merecem a pronúncia do Tribunal, e que foram invocadas.
e) As fotos constantes a fls. 18 e 19 dos autos, e obtidas no dia 16 de Julho de 2020 demonstram bem que foram retiradas no interior da propriedade: tal como foi inclusivamente confirmado pela prova produzida (desde o ângulo, a sombra da árvore que se encontra no interior da propriedade, a qualidade da imagem, etc. Não existindo mandado, as fotografias tiradas são ilícitas, nos termos do artigo 167.º, n.º 1 do CPP, implicando a nulidade da prova obtida, também aqui se verificando a violação direta dos já citados artigos 26º, n.º 1 e 32º, n.º 8, da CRP.
f) A fls. 26, deparamo-nos com a informação e transcrição do «Art.º 6-A do Decreto-Lei n.º 8/2019, de 15 de Janeiro»: não existe! No entanto, esta informação irá estar presente ao longo de toda a investigação, e que resultou num despacho de acusação, devidamente recebido pelo Tribunal, e submeter os arguidos a julgamento. Violação do princípio da legalidade, 120.º insuficiência do inquérito.
g) Ressalvado o devido respeito, e à luz dos preceitos contidos no artigo 32.º da CRP e à leitura dos artigos 61º, n.º 1, 144.º, 262.º e 263.º do Código de Processo Penal, todos conjugados, na poderemos concordar com a leitura no sentido em que o arguido que requer ser ouvido em interrogatório complementar (ou mesmo, e existindo novas provas que corroboram a sua defesa, requer ser ouvido para efeitos de revisão da medida de coação) na fase de inquérito, não tem esse direito, por se considerar que a necessidade ou não de proceder a interrogatórios complementares é meramente uma prerrogativa conferida, nos termos do artigo 144.º, exclusivamente ao Ministério Público.
h) Nos termos dos artigos 61.º, n.º 1, al. g) do CPP e 144.º, 118.º, 120.º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Penal e do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, encontramos na decisão uma nulidade, uma vez que o indeferimento do requerido interrogatório complementar comporta necessariamente uma omissão da produção de um meio de prova essencial à descoberta da verdade material.
i) A fls. 24, 25 e 26, consta a informação de que é à DGAV que compete instruir e emitir o licenciamento para o cultivo de cânhamo; não obstante, e conforme sempre afirmou – por ser verdade – o arguido, as plantas de canábis destinavam-se a fins de investigação científica medicinais, não para fins industriais, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 08/2019, de 15 de janeiro. Mais se afirma (e inclusivamente se transcreve) o disposto no artigo “6.º-A” deste decreto-lei, algo que se vai repetindo ao longo de todo o processo. No entanto, não existe qualquer artigo 6.º-A no decreto-Lei 08/2019! é uma informação juridicamente errada que as entidades contactadas carrearam aos presentes autos.
j) estas questões não foram sumariadas e, bem assim, decididas na douta sentença ora recorrida, que – salvo o devido respeito por melhor opinião – deveriam ter sido apreciadas pelo tribunal, por atempadamente suscitadas e podendo, através da sua decisão, influir na decisão final, representando ainda uma necessidade premente num daquele que também é um dos objectos do processo penal: a garantia e efectivação dos direitos do arguido ao longo de um processo unitário.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso proceder, por provado, substituindo-se a sentença por outra que conheça sobre as questões de Direito suscitadas em sede de contestação, declarando as invocadas nulidades e inconstitucionalidades, fazendo-se, assim, a costumada Justiça.»
1.4. A arguida respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público, pugnando para que seja negado provimento ao mesmo e mantida a sentença recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
«A. A Recorrida foi absolvida.
Mas o Ministério Público sustenta que a Recorrida devia ter sido condenada, o que funda na circunstância de entender que, ao contrário do que consta da sentença recorrida, se deve dar como provado o seguinte:
A arguida BB sabia que não estava autorizada a deter canábis por não lhe ser permitido cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou deter produtos estupefacientes, e, ainda assim, decidiu deter tais substâncias, o que representou e quis.
A arguida BB agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
B. O Ministério Público sustenta a sua posição no seguinte: i) nas declarações prestadas pela Arguida em audiência de julgamento; ii) nas declarações prestadas pela testemunha CC em audiência de julgamento; iii) nas declarações prestadas pela Arguida aquando do primeiro interrogatório judicial, em inquérito.
C. À luz da factualidade dada como assente e não impugnada, importa sublinhar o seguinte:
i) no projecto levada a cabo na Herdade ..., a Arguida tratava da produção dos produtos biológicos (alimentares e cosméticos) que lá eram cultivados, a que se reportam os docs. 2 a 20 juntos com o requerimento da ora Recorrida de fls. 515 e ss. (cfr. factos provados n.ºs 3, 4 e 27);
ii) era o Arguido AA quem tratava do cultivo da canábis e da investigação medicinal que a partir daí fazia (cfr. factos provados n.ºs 5, 20 e 21);
iii) ainda que, como consta do art. 17.º da contestação da Recorrida, se tivesse em mente, no futuro, a produção da canábis (visando a sua comercialização para fins medicinais), na fase em que a exploração se encontrava, tal como resulta dos factos provados, AA limitou-se a utilizar a canábis para fins de investigação medicinal (cfr. factos provados n.ºs 6, 20 e 21).
D. É assim que se tem de compreender a razoável, sensata e justa conclusão do Tribunal, no sentido de que não se pode dar como assente que a Arguida tinha efectivo conhecimento de que o cultivo da canábis levado a cabo pelo Arguido AA para desenvolver uma investigação medicinal não estaria legalmente autorizado (como ele sempre lhe assegurou que estava). Como de facto não era do seu conhecimento.
E. Ora, a argumentação do Ministério Público não só não impõe uma resposta diferente do Tribunal – como, para que o recurso tivesse sucesso, teria de impor à luz do art. 412.º, n.º 3-b) do CPP –, como nem sequer a permite.
F. Relativamente às declarações prestadas em audiência de julgamento, a Arguida limitou-se a confirmar – o que nunca negou – que tinha conhecimento e estava ao corrente do cultivo da canábis, que AA fazia, no âmbito das experiências de investigação medicinal que tinha em curso, processo em que ela não participava e que acompanhava no pressuposto de que os procedimentos eram legais, como o seu companheiro sempre lhe assegurou e em quem ela confiava.
Assim sendo, é evidente que dessas declarações não se pode retirar – a não ser por pura e inadmissível especulação – o que quer que seja quanto ao conhecimento da Arguida de que esses procedimentos não eram legais.
G. Relativamente às declarações prestadas pela testemunha CC, nem sequer se compreende aquilo que o Ministério Público delas pretende extrair.
Está assente que a I..., de CC, celebrou um acordo de confidencialidade com a “F... Lda”, de que os Arguidos eram sócios, com vista à prossecução de um projecto relativo à produção de canábis. Foi o Arguido AA que subscreveu esse acordo (cfr. fls. 793), sendo nesse âmbito, para instruir esse processo, que CC solicitou os certificados do registo criminal aos dois sócios da sociedade, como era natural que o fizesse, uma vez que se queria assegurar da boa reputação dos sócios da sociedade com quem estabelecera o acordo.
De resto, CC não conhecia sequer, nem nunca falou ou viu a ora Recorrida.
H. Resta aquilo que parece ser o argumento central do Ministério Público: as declarações da Recorrida no primeiro interrogatório judicial, na fase de inquérito.
Acontece, porém, que tais declarações não foram lidas em audiência de julgamento, nem sequer isso foi requerido, invocado ou mencionado, como consta das actas das audiências de discussão e julgamento (09/11/2021 e 09/12/2021).
Ora, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, como estatui o art. 355.º do CPP.
Por outro lado, como resulta do disposto dos arts. 355.º a 357.º do CPP, as declarações prestadas em actos anteriores à audiência de julgamento só podem ser consideradas se a sua leitura, visualização ou audição tiver sido requerida e tiver sido autorizada, o que, in casu, não aconteceu.
Pelo exposto, nem o Ministério Publico podia ter convocado tais declarações em sede de recurso, nem o Tribunal da Relação as pode considerar, sob pena de violação do disposto nos arts. 395.º a 397.º do CPP e de ofensa dos princípios do contraditório sobre a prova, da lealdade do procedimento, do direito à não autoincriminação, bem como das garantias de defesa, uma vez que a Arguida não teve oportunidade de ser confrontada e de se pronunciar sobre essas supostas declarações.
I. Por cautela, vem arguir-se a inconstitucionalidade por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, da norma extraída dos artigos 355.º, n.ºs 1 e 2, e 356.º, n.º 9, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 357.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual podem valer em julgamento as declarações do arguido a que se refere o artigo 357.º, n.º 1, alínea b), do referido Código, sem que tenha havido lugar à sua reprodução ou leitura em audiência, por decisão documentada em ata; tal juízo de inconstitucionalidade já foi declarado pelo Tribunal Constitucional (cfr. acórdãos n.ºs 125/2022 e 770/2020, em que nos louvamos).
J. Acresce que não é verdade que nessas declarações a Arguida tivesse afirmado que tinha conhecimento da ilegalidade ou da falta de licenciamento do cultivo da canábis para os restritos efeitos do processo experimental de investigação medicinal que AA tinha em curso.
No inciso convocado pelo Ministério Público – “então nunca tiveram licença? (…) de momento não temos” –, a Arguida não se estava a referir ao cultivo experimental para fins de investigação que AA desenvolvia, mas àquilo que, no futuro, poderia vir a ser uma exploração com vista à comercialização do produto. São fases distintas, sendo certo que AA nunca ultrapassou a fase da investigação medicinal, que sempre lhe garantiu estar autorizada.
K. Em suma, o Ministério Público descontextualizou a passagem em apreço dessas declarações prestadas pela Arguida. De qualquer forma, não pode o Ministério Público convocar tais declarações para os efeitos do seu recurso, que, nessa sede, são prova proibida.
L. Assim sendo, não há realmente nada que possa infirmar a conclusão do Tribunal que não tem quaisquer elementos para concluir que a Arguida tinha noção de que o cultivo levado a cabo pelo seu companheiro – para os fins de investigação medicinal que tinha em curso – não estaria autorizado e não era legal.
M. É que ficou provado que era AA que tratava do cultivo das plantas e da realização de experiências com canábis (factos provados n.ºs 5, 20 e 21), enquanto a Arguida se dedicava à produção de produtos biológicos, que comercializava (factos provados n.ºs 4 e 27). Por outro lado, como a sentença enfatiza “O próprio arguido referiu, de modo claro e assertivo, que informou a arguida que o cultivo estava legalizado”. Acresce que, como a sentença também sublinha, a Arguida não participou numa única diligência relativa ao procedimento que visaria obter o licenciamento, a não ser numa inócua reunião com o presidente da Câmara ..., de onde não se pode retirar nada contra a Arguida, considerando o contexto em que a mesma teve lugar e a sentença descreve.
N. Finalmente, e em abono da posição da Arguida, que a sentença acolheu, convocam-se as declarações prestadas pela testemunha DD, ouvido em declarações na sessão de 9 de Novembro de 2021, as quais são muito esclarecedoras. Trata-se de pessoa que trabalhou para a sociedade dos arguidos, conhece a herdade e a estufa onde estava a canábis, tendo tido oportunidade de testemunhar que quem tratava das questões relativas à canábis era o Arguido AA, que, também a ele, lhe assegurou que aquela plantação era legal.
O. Pelo exposto, o Ministério Público não tem razão quanto à impugnação da matéria de facto que consta do seu recurso. Não só os meios de prova convocados não impõem resposta diversa da que foi dada pela sentença, como a prova válida em que nos podemos fundar corrobora a conclusão da sentença. No limite, poder-se-iam considerar duas versões possíveis, numa situação de non liquet, em que sempre teria de prevalecer o princípio in dubio pro reo. Sem que, contudo, a Recorrida deixe de reafirmar que efectivamente estava convencida que as experiências levadas a cabo pelo companheiro, no âmbito da sua investigação para fins medicinais, não estavam a ser processadas ilegalmente e, muito menos, constituíssem crime.
P. A produção da prova obedece a regras e a dedução de presunções não prescinde de uma consistência reportada aos factos apurados, estando esses procedimentos submetidos ao princípio da presunção da inocência. No recurso em pauta, o Ministério Público especula, sem observar esse princípio basilar do processo penal.
Termos em que o recurso deve ser julgado improcedente.»
1.5. Por sua vez, o Ministério Público, em 1ª instância, apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, concluindo no sentido de o recurso não dever merecer provimento e de dever manter-se a sentença recorrida, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«1. O arguido AA nos presentes foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p.p. pelo artigo 21º, nº 1, e 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C do mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período.
2. Inconformado com tal decisão, dela veio recorrer argumentando que na contestação foram invocadas Questões de direito, designadamente nulidades e inconstitucionalidades, que não foram apreciadas em sede de sentença.
3. Designadamente, é invocado pelo arguido que no decurso do inquérito não foram inquiridas as testemunhas que denunciaram os factos à GNR e que tal omissão viola o artigo 246.º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal.
4. Mais invoca o arguido que as fotografias constantes de fls. 18 e 19 dos autos foram retiradas no interior da propriedade do arguido, sem a respetiva autorização judicial pelo que devem ser consideradas prova ilícita, nos termos do artigo 167.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
5. Por fim, o arguido afirma ainda que no decurso do inquérito requereu o seu interrogatório complementar para efeitos de revisão de medida de coação e que não ser ouvido, verificou-se uma omissão de produção de prova essencial à descoberta da verdade material, acarretando tal ato uma nulidade processual.
6. Relativamente à primeira questão levantada pelo arguido, no decurso do inquérito não se procedeu à inquirição das testemunhas que denunciaram os factos à GNR, porquanto entendeu-se que tal diligência de prova era completamente irrelevante para a investigação.
7. Após adquirir a notícia do crime, a GNR deslocou-se ao local e confirmou a veracidade dos factos denunciados, ou seja, a existência de uma estufa, localizada no ..., mais concretamente na Herdade ....
8. A partir deste ponto, despoletou-se toda a restante investigação, sendo também certo de que o crime em causa, tráfico de estupefacientes, tendo natureza pública, sempre o Ministério Público tinha que proceder à abertura de inquérito e à investigação dos factos denunciados, assim como para qualquer entidade policial, adquirida a notícia de crime de natureza pública, a sua participação torna-se obrigatória – artigo 242.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal.
9. Os factos denunciados foram reduzidos a escrito, conforme se constata pelo relatório de serviço junto a fls. ..., só não se mostra assinado, como o exige o artigo 95.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
10. Tal facto, consubstancia uma mera irregularidade, prevista no artigo 123.º do Código de Processo Penal e não uma nulidade de prova.
11. Além do mais, se o arguido entendesse que tal diligência de prova era essencial para a descoberta da verdade material, sempre poderia ter reagido parente tal omissão requerendo a abertura de instrução – artigo 286.º e 287.º do Código de Processo Penal, suscitar a intervenção hierárquica - artigo 278.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, indicar essas testemunhas na contestação, nos termos do artigo 315.º do Código de Processo Penal, ou no decurso da discussão de audiência e julgamento, requerer a sua inquirição, nos termos do artigo 340.º do Código de Processo Penal, o que em nenhuma destas diversas hipóteses acabou por o requerer.
12. Relativamente às fotografias constantes de fls. 18 e 19 dos autos, tais fotografias retratam uma estufa, não retratam pessoas, ou sequer a intimidade ou a esfera íntima da vida privada de alguém, pelo nunca poderiam as mesmas ser consideradas ilícitas.
13. O artigo 167.º do Código de Processo Penal respeita ao valor probatório de fotografias tiradas mediante a intromissão na vida privada sem o consentimento do seu titular, o que manifestamente, não é o caso das referidas fotografias, que mais que não retratam que uma estufa!
14. O arguido argumenta ainda que tais fotografias foram tiradas no interior da herdade, sem a respetiva autorização judicial.
15. Trata-se de uma afirmação teórica do recorrente, não alicerçada em qualquer meio de prova constante dos autos, sendo certo também que o Tribunal não motivou a sua decisão com base nas referidas fotografias.
16. O arguido agora em sede de recurso, argumenta que no decurso do inquérito, ao lhe ser indeferido o interrogatório complementar para se pronunciar sobre um conjunto de provas por ele juntas aos autos e para revisão de medida de coação por ele requerida, tal indeferimento implica uma nulidade de prova, prevista e punida pelo artigo 120.º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Penal.
17. Também aqui não assiste razão ao recorrente. Na verdade, no decurso do inquérito todos os meios de prova requeridos pelo arguido foram admitidos, desde prova documental a prova testemunhal.
18. Além do mais, o arguido foi interrogado três vezes no decurso do inquérito, a primeira vez em sede de primeiro interrogatório judicial, depois em sede de revisão de medida de coação, também interrogado pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal (em 08/01/2021) e uma terceira vez pelo OPC a quem foi delegada a investigação, nos termos do artigo 144.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
19. A única vez em que o arguido viu indeferido o seu interrogatório complementar, foi em 29/09/2020, pouco tempo depois de lhe ter sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva, em que a investigação ainda se encontrava numa fase de análise de prova e em que mais nenhuma prova nova tinha sido junta aos autos, além daquela com que o arguido já tinha tido oportunidade de se pronunciar em sede de primeiro interrogatório judicial e que face ao breve hiato temporal decorrido, entendeu o Mm.º Juiz de Instrução indeferir tal audição.
20. A audição de arguido em sede de revisão de medida de coação aplicada ao arguido não é obrigatória, só o sendo caso existam circunstâncias novas ou supervenientes que imponham essa audição, o que no momento em que o arguido requereu tal audição, não se verificava tal circunstancialismo.
21. No despacho que indeferiu tal audição do arguido, o Mm.º Juiz de Instrução pronunciou-se sobre os pressupostos que determinaram a aplicação da medida de cocção, concluindo que os mesmos, naquele momento, se mantinham inalterados, mantendo assim a medida de coação aplicada, pelo que tal despacho nunca poderá ser nulo por falta de fundamentação, como invoca o arguido.
Termos em que, em nosso entender, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e confirmada a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.
V.ªs Ex.ªs, porém, melhor decidirão e farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA!».
1.6. Os recursos foram regularmente admitidos, tendo o Tribunal a quo, no despacho que admitiu os recursos exarado o seguinte:
«Alegações de recurso do arguido AA:
Conforme se consignou em sede de sentença, o Tribunal não se pronunciou sobre as questões que entendeu serem irrelevantes para a decisão da causa, razão pela qual o Tribunal não se pronunciou sobre as matérias que o arguido entende que deveriam ter sido analisadas em sede de sentença.
Não obstante, o Tribunal dirá o seguinte acerca das questões elencadas no recurso:
- Na contestação, argumenta o arguido de que a notícia verbal do crime deveria ter sido reduzida a escrito, aludindo, posteriormente, (no ponto IX da contestação) que: (...) poderão gerar irregularidades e nulidades que irão afectar directamente todo o processo penal. (…)”
Ora, não obstante o arguido ter aludido a vários normativos legais, não concluiu pela existência de qualquer vício processual, como se infere pela utilização do tempo verbal do verbo poder, e quais as consequências a retirar da verificação de tais "irregularidades e nulidades". Desta forma, não se alcança como é que o Tribunal se poderia pronunciar sobre uma possibilidade de irregularidade ou de nulidade, e em que termos.
- No que concerne às fotografias de fls. 18 e 19, o Tribunal não motivou a sua decisão com base nas referidas fotografias. Com efeito, é jurisprudência pacífica que a circunstância do Tribunal não se ter pronunciado sobre a alegada utilização de prova proibida não consubstancia omissão de pronúncia quando tais elementos não serviram para a formação de convicção do tribunal na decisão condenatória (neste sentido, a mero título de exemplo, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.06.2011, in Colectânea de Jurisprudência, Tomo II, p. 186). Assim, tal questão era irrelevante para a decisão.
- No que toca à alegada violação do princípio da legalidade, por insuficiência do inquérito, trata-se de uma questão nova, não se vislumbrando que o arguido a tenha invocado em sede de contestação.
- Por fim, quanto à alegação na contestação de que o arguido teria o direito de ser ouvido para efeitos de revisão de medida de coacção em sede de inquérito, e que a sua não audição colide com os preceitos legais que enunciou na contestação, não vislumbramos em que medida é que essa questão era relevante para efeitos de apreciação na sentença.
(...)».
1.7. Neste Tribunal, o Exmº. Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido de dever proceder o recurso interposto pelo Ministério Público e improceder o recurso interposto pelo arguido.
1.8. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto dos recursos
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cfr. artigo 428º do C.P.P.
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cfr. artºs. 402º, 403º e 412º, todos do C.P.P.
Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do nº. 2 do artigo 410º do C.P.P., mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. do STJ nº. 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
No caso vertente, considerando os fundamentos dos recursos respetivamente interpostos pelo Ministério Público e pelo arguido AA são as seguintes as questões suscitadas:
No recurso do Ministério Público:
- Impugnação da matéria de facto dada como não provada nas alíneas g) e h), por erro de julgamento, na apreciação/valoração da prova;
- Na procedência da impugnação da matéria de facto dada como não provada, consequente condenação da arguida pela prática, em coautoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 e 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-C do mesmo diploma legal.

No recurso do arguido:
- Omissão de pronúncia, na sentença recorrida, sobre as nulidades e inconstitucionalidades invocadas pelo arguido, na contestação.

2.2. Sentença recorrida
Para que possamos apreciar as questões suscitadas no recurso, importa ter presente o teor da sentença recorrida, nos segmentos relevantes para a decisão e que se transcrevem:
«(...)
O arguido AA O arguido AA apresentou contestação e arrolou testemunhas. Pugnou, muito em resumo, ser falso que se dedicava à produção de óleo canábis, e que o seu objectivo no cultivo das plantas canábis era apenas a investigação medicinal, tendo ficado convencido que, após ter entregue o seu certificado do registo criminal à sociedade farmacêutica I... e de ter obtido por parte do Município uma declaração escrita, estaria a cultivar na legalidade, sem ter consciência da ilicitude dos atos praticados.

*
A arguida BB apresentou contestação, juntou documentos e arrolou testemunhas. Defendeu, em suma, que foi o arguido AA quem se encarregou de tratar de todo o processo de licenciamento de cultivo de canábis e que estabeleceu os contactos com as entidades licenciadoras e as empresas com quem a sociedade F... Lda se associou, confiando que a plantação seria admissível por lei.
Que é falso que o arguido AA tenha produzido óleo de canábis, mas sim maceração de canábis sem a presença de THC em azeite, nunca tendo nenhum dos arguidos comercializado ou cedido tais produtos a terceiros.
A final, pugna que nunca teve consciência de estar envolvida em qualquer actividade que constituísse crime, não tendo adoptado uma conduta dolosa, mas apenas negligente, concluindo pela sua absolvição.
*
O julgamento decorreu na presença dos arguidos e com a observância do formalismo legal.
*
A validade e regularidade da instância mantêm-se, não existindo questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
*
II. Fundamentação
Discutida a causa, resultaram provados, com relevância, os seguintes factos:
«1. A “F... Lda.” é uma sociedade comercial por quotas, de que os arguidos são os únicos sócios, e cuja gerência é exercida pelo arguido AA.
2. A sociedade tem a CAE 01500 (agricultura e produção animal combinadas).
3. Os arguidos são titulares de um projecto ambiental denominado “...”, que tem em vista a produção, estudo e comercialização de vários produtos, ervas aromáticas e outras plantas, os quais que são cultivados na Herdade ....
4. A arguida dedica-se à produção de produtos biológicos (alimentares e cosméticos).
5. O arguido AA tratava do cultivo das plantas e de realização de experiências com canábis.
6. Na Herdade ..., os arguidos construíram uma estufa para efeitos de plantação de plantas.
7. Desde data não concretamente apurada, mas a partir do mês Maio de 2018, os arguidos cultivaram canábis na Herdade ....
8. Os arguidos não estavam autorizados por nenhuma entidade, nomeadamente pelo “Infarmed” ou pela “DGAV” para o cultivo de canábis para fins medicinais.
9. No dia 28.07.2020, pelas 07:00h, na sequência do cumprimento de um mandado de busca, veio a ser encontrado numa habitação situada no interior da referida Herdade, dentro de sacos plástico e boiões em vidro a quantidade de 6, 691 quilos de canábis sativa.
10. No mesmo local foram encontrados:
i. No balcão da cozinha, um jarro com um produto viscoso;
ii. treze boiões de vidro contendo “cabeças de canábis”;
iii. Acondicionada no interior de um frigorífico, 14 sacos de “erva”;
iv. Também no interior do frigorífico, 1 frasco de “erva”;
v. Assim como numa prateleira da cozinha, foram encontrados 6 frascos de vidro; um envelope contendo folhas de canábis;
vi. E ainda diversos outros objectos de precisão normalmente usados em laboratórios, nomeadamente, 1 pipeta grande de plástico, 1 par de óculos, 1 medidor, 1 varinha, 4 termómetros, 2 pinças, 1 tigela pequena, 2 jarros medição, 1 par de luvas, 1 copo de medida, 1- espátula, 2 -tubos de medida, 1 - termómetro especial, 3 moinhos, 2 balanças de precisão
11. Na cozinha foi também encontrado 1 telemóvel “iphone” preto, 1 computador portátil “HP” e 1 computador portátil “Apple”.
12. Na sala foram encontrados, 1 Tablet “Apple”, uma pen e 82 frascos pequenos de vidro (2 com pipeta).
13. E ainda 33 pés de plantas de canábis no interior da estufa.
14. Uma parte da canábis apreendida foi produzida nos anos de 2018 e 2019.
15. Após perícia, constatou-se que a canábis apreendida tinha um baixo teor de concentração de THC, entre 2.3 e 9%, sendo que nos jarros não foi detectada a presença desta substância.
16. O arguido AA sabia que os produtos que se encontravam em seu poder, nas sobreditas circunstâncias de tempo, modo e lugar, eram canábis, conhecendo a sua natureza, as suas características e a sua proveniência, bem sabendo que não estava autorizado a detê-las por não lhe ser permitido cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou deter produtos estupefacientes, e, ainda assim, decidiu deter tais substâncias, o que representou e quis.
17. O arguido AA agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
18. A sociedade F... Lda celebrou com a sociedade anónima I..., um acordo de confidencialidade em Novembro de 2017.
19. Por ofício datado de 17.04.2019, emitido pela Câmara ..., e junto a fls. 792 dos autos e cujo teor se dá como integralmente reproduzido, lê-se, nomeadamente, o seguinte:“(…) Câmara ... (…) declara que tenciona autorizar a Sociedade F... Lda (…) propriedade de AA e BB, para produzir canábis para efeitos medicinais na parcela denominada “Herdade ...”(…)
20. O arguido AA fazia a maceração de canábis em azeite.
21. A plantação de canábis tinha o propósito de investigação medicinal.
22. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
23. O arguido é proprietário de uma habitação em ..., auferindo de arrendamento o valor mensal de €2700.
24. O arguido é fotógrafo profissional, retirando da sua actividade rendimentos na ordem dos €50.000 a €70.000 anuais.
25. O arguido tem uma MBA em Finanças.
26. A arguida é beneficiária de uma pensão alimentar paga pelo seu ex-marido, no valor mensal de €4330.
27. A arguida é empresária, dedicando-se à produção de produtos e comercialização de produtos biológicos.
28. A arguida tem um bacharelato em Direito.
29. A arguida é respeitada e admirada pelos amigos e pela sua família, sendo visto como uma pessoa amiga do ambiente e com preocupações sociais.
*
Com relevância para a decisão da causa, são os seguintes os factos não provados:
a) Os arguidos dedicavam-se à produção de óleo de canábis na Herdade ..., com vista à sua comercialização.
b) O arguido AA transportou entre ... e a ... canábis.
c) Os fascos de vidro mencionados em 10) continham óleo de canábis.
d) O arguido estava convencido que estava a actuar na legalidade, sem ter consciência da ilicitude dos seus actos.
e) As plantas de canábis apreendidas aos arguidos estavam fraccionadas.
f) O arguido AA manteve contactos com a Fundação Champalimaud e com a Enzro, para aperfeiçoar os métodos de redução dos níveis de THC das plantas de canábis.
g) A arguida BB sabia que não estava autorizada a deter canabis por não lhe ser permitido cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou deter produtos estupefacientes, e, ainda assim, decidiu deter tais substâncias, o que representou e quis.
h) A arguida BB agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
O Tribunal não se pronuncia relativamente aos factos/passagens mencionados na acusação e nas contestações, não especificamente dados como provados ou não provados, por serem conclusivos (em termos factuais ou por encerrarem questões de direito ou adjectivações) ou porque se tratam de imputações genéricas, ou por se entender que são irrelevantes para a decisão da causa.
*
Motivação
A convicção do Tribunal sobre a factualidade provada e não provada formou-se na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento conjugada com as regras de experiência comum, tendo-se atentado às declarações dos arguidos, à prova testemunhal produzida em julgamento e à prova documental junto aos autos.
A factualidade descrita em 1) resulta da certidão comercial da sociedade junta a fls. 527 e 528 dos autos.
O facto 2) provou-se ante à informação empresarial da sociedade a fls. 617.
O facto 3) resulta da brochura do projecto intitulado “Pacha Mama Uma Terra Médica” , documento junto aos autos a fls. 726 e ss.
Para consignar como provado o facto 4), o Tribunal ponderou as declarações prestadas pela arguida BB, que explicou, em síntese, o seu projecto ambiental desenvolvida na herdade, com vista a proporcionar o bem-estar através de recursos naturais obtidos de forma sustentável, e os produtos a cuja produção se dedica e comercializa (azeite, produtos de cosmética, mel, entre outros, produtos que apresentou em audiência de julgamento). A actividade de produção de produtos naturais desenvolvida pela arguida foi ainda corroborada (e detalhada) pelo testemunho desinteressado e equidistante de EE, e ainda pelo testemunho de FF.
O facto 5) resulta das declarações do próprio arguido AA, que confirmou a referida factualidade, factualidade que foi igualmente atestada pela co-arguida BB.
Relativamente ao ponto 6) da matéria provada, o Tribunal considerou, para além das declarações dos arguidos, os testemunhos de GG e de DD, que executaram trabalhos agrícolas na herdade, e ainda o teor do relatório constante na contestação da arguida e ali identificado como doc.1, documento que demonstra o tipo de plantas medicinais cultivadas na estufa, fornecendo ainda um panorama geral da mesma (através das fotografias ali constantes), relatório cujo teor foi corroborado pelo seu subscritor em audiência de julgamento, a testemunha HH.
Os arguidos não puseram em causa a plantação e detenção de canábis na herdade. Contudo, negam veemente, que se dedicavam à produção de óleo de canábis e, consequentemente, à comercialização ou cedência de produto estupefaciente.
O Tribunal deu credibilidade à versão apresentada pelos arguidos, face à conjugação das suas declarações em audiência (com especial enfoque para as de AA), com o exame pericial junto aos autos.
O arguido referiu que o cultivo se iniciou em Maio de 2018, e que tinha o propósito de possibilitar a realização de experiências científicas com a canábis, experiências e pesquisas que foram efectuadas em exclusivo pelo próprio e nunca partilhada com terceiros(nem com a arguida BB), sendo que essas experiências se resumiam a fazer infusões da planta canábis com azeite, que não comporta tetra-hidrocanabinol, e que se destinavam em exclusivo para efeitos de tratamento médico e pesquisa científica.
Da análise do relatório do laboratório de polícia científica a fls. 1015 e ss dos autos e que se mencionou supra, retira-se de tal exame que os graus de concentração de THC das plantas e líquidos apreendidos eram extremamente baixos (entre os 2.3% e os 9%), sendo que, nos jarros apreendidos, não foi sequer detectado tetra-hidrocanabinol. Ademais, nenhuma outra prova trazida para os autos permite concluir de forma distinta, inexistindo qualquer elemento que permita inferir que os arguidos produziam óleo de canábis conforme lhes é imputado na acusação.
A propósito da imputação da prática do cultivo à arguida BB, inexistem dúvidas que a mesma praticou actos de manutenção das plantas canábis, mormente promovendo à sua rega -conforme resultou das suas declarações-, pois o simples facto de esta ter cuidado das plantas de canábis, regando-as, constitui por si só um acto de cultivo de plantas.
Pelo exposto, o Tribunal ficou convencido que a versão trazida pelos arguidos quanto aos fins e motivações inerentes à plantação do canábis é a mais consentânea com a realidade dos factos, o que contribuiu para o Tribunal dar como provados os pontos 7), 20) e 21) da matéria de facto e, consequentemente, como não provados os factos a) e c).
O facto 8) resulta provado ante as informações da DGAV e do Infarmed, constantes a fls. 33, 36, 61 e 75 dos autos.
A factualidade consignada de 9) a 12) resultou provada ante o teor do auto de apreensão a fls. 144 e ss., o relatório fotográfico de fls. 152 e ss, documentos conjugados com os testemunhos dos militares da GNR II e JJ, cujos depoimentos nos pareceram sinceros e despojados de incoerências, que explicaram terem participado nas buscas feitas à herdade, corroborando que as fotografias de fls. 152 e seguintes atestam aquilo que encontraram no dia, hora e local onde ocorreu a diligência de investigação.
O arguido AA, assim como o militar JJ, referiram que foram apreendidos 33 pés de canábis no dia e hora dos factos (a que correspondia a produção do ano 2020, citando as palavras do arguido), o que contribuiu para o Tribunal dar como provado o facto 13).
O facto 14) resultou provado ante as declarações do arguido AA prestadas em audiência de julgamento.
O facto 15) provou-se face ao exame pericial da LPC junto aos autos e a que supra fizemos referência.
Relativamente à factualidade atinente ao elemento subjectivo do tipo, como é sabido, os factos psicológicos que traduzem o elemento subjectivo da infração são, em regra, objecto de prova indirecta, isto é, só são susceptíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objectivos, analisados à luz das regras da experiência comum.
Os arguidos pugnam que não tinham consciência que, com a plantação do canábis, estavam a infringir a lei.
Ora, o arguido AA não ignorava que existia a necessidade de obter uma licença para a plantação de canábis. A este propósito, o próprio assumiu nas declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial que, no ano de 2018, e antes de iniciar os contactos iniciais com vista à legalização e comercialização de canábis medicinal, procedeu ao cultivo das plantas (tendo até apresentado nessa sede um pedido de desculpas por tal facto).
Tendo o arguido concretizado em audiência de julgamento que iniciou o cultivo no mês de Maio de 2018, ou seja, o mesmo assumiu que iniciou o cultivo da planta canábis sem estar autorizado para tal, como ele mesmo bem sabia.
Alegou o arguido que se encontrava convencido que as diligências que, entretanto, encetou junto da sociedade Iberfar, representada por CC, lhe criaram a convicção que a licença já tinha sido obtida e estaria a cultivar na legalidade. Contudo, estas declarações apresentam-se contraditadas pela testemunha CC, administrador da referida sociedade, que, de forma clara, afirmou em Tribunal que inexistia qualquer autorização para a plantação de canábis, frisando que não chegou a ser firmado qualquer acordo com o arguido para esse efeito. Ademais, o acordo de confidencialidade subscrito pelo arguido e pela aludida testemunha (cf. facto 18), é precisamente isso, um acordo, que é de natureza bilateral e que resulta num encontro de vontades, ao contrário de uma autorização, que tem natureza unilateral e consubstancia uma decisão, insusceptível, portanto, de criar num subscritor, medianamente esclarecido, uma convicção de actuação na legalidade.
Acresce que não é credível que um homem médio colocado na mesma posição que o arguido, com formação académica superior, formasse a convicção que bastaria uma mera delegação do processo de licenciamento de plantação de canábis numa entidade privada, sem necessidade de qualquer notificação formal de concessão de autorização de plantação à sociedade gerida pelo arguido, consabido que é ilícito a plantação de tal planta.
Também o facto de os arguidos estarem na posse de uma declaração emitida pelo Câmara ... (cf. facto 19), não pode sustentar a alegação de que AA agiu sem consciência que estava a actuar na ilegalidade. Tal declaração corresponde a uma mera declaração de intenções, e não a uma autorização por parte da autarquia (autorização que, de todo o modo, não está sequer nas competências de uma autarquia local).
Ponderados todos estes elementos, o Tribunal ficou convencido que, nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, o arguido AA, procedeu a actividades de cultivo e manuseamento de plantas canábis, bem sabendo que não estava autorizado para tal, e que tal conduta era proibida e punida por lei.
No que concerne à actuação da arguida BB, o Tribunal encontra-se numa dúvida insanável quanto ao efectivo conhecimento por parte da arguida de que o cultivo da canábis não estava autorizado.
Sendo a arguida BB sócia da sociedade F... Lda, tal qualidade impunha-lhe um dever acrescido de verificar se a actividade de plantação de canábis estava autorizada pelas entidades competentes, pelo que é de concluir que a arguida, no mínimo, não agiu com a diligência que se exigia. Contudo, o facto de não ter sido diligente não é suficiente para consignar como provada a factualidade inerente ao elemento subjectivo do tipo (que é doloso).
Com efeito, da prova produzida, o que se conclui sem margem para dúvidas, é que as diligências inerentes à tentativa de legalização do cultivo da planta canábis foram encetadas pelo arguido AA, conclusão que resulta não só das declarações de ambos os arguidos, mas que também se extrai do testemunho de CC, que afirmou conhecer a arguida apenas pelo seu nome estar referenciado nas negociações que encetou com o arguido AA. O próprio arguido referiu, de modo claro e assertivo, que informou a arguida que o cultivo estava legalizado. Por outro lado, apenas se logrou apurar uma única diligência em que a arguida teve participação directa - uma reunião havida na Câmara ... -, sendo que a testemunha KK, que presidiu a reunião enquanto presidente da autarquia, referiu em audiência que ficou convencido que era o arguido quem liderava o processo.
Assim, fica a dúvida se a arguida tinha o conhecimento efectivo dos factos no que concerne à falta de autorização para cultivo da planta de canábis, ficando o Tribunal numa posição de non liquet, pelo que, em obediência ao princípio in dubio pro reo, que estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, o Tribunal deu como não provado que a arguida era conhecedora de que a plantação de canábis não estava autorizada pelas entidades competentes para o efeito.
Dir-se-á, como supra se aludiu, que sendo a arguida sócia da sociedade F... Lda e titular do projecto ..., poder-se-ia concluir por uma actuação negligente. No entanto, uma vez que o tipo penal imputado aos arguidos não é punível a nível de negligência, seria não só redundante, mas também ilegal, proceder-se à comunicação de uma alteração não substancial dos factos imputadas à arguida, uma vez que a lei processual proíbe a prática de actos inúteis.
Nos termos expostos, e no que concerne à factualidade subjacente ao elemento subjectivo do tipo, o Tribunal deu como provados os factos 16) e 17) e, consequentemente, não provada a factualidade vertida em d), g) e h).
O já aludido facto 18) resultou provado ante o documento de fls. 793(intitulado de non-disclosure agreement), documento com o qual a testemunha CC foi confrontada em julgamento e que o corroborou, escrito que foi ainda aludido pela testemunha LL, gestor da sociedade I....
O também já referenciado facto 19) resulta do ofício emitido pela Câmara ... a fls. 792, ofício cujo teor foi corroborado pelo Presidente da autarquia local à data dos factos, a testemunha KK.
A factualidade consignada em 22) resulta dos certificados dos registos criminais dos arguidos, e que se mostram junto aos autos.
Os factos atinentes às condições pessoais e de vida dos arguidos (pontos 23 a 29) assim se consignaram atento às declarações que os mesmos prestaram em audiência de julgamento, tendo ainda se atentado nos testemunhos de MM, FF, NN AA e EE, que detalharam e contextualizaram a situação social, familiar, pessoal e profissional dos arguidos.
A factualidade vertida em b) e f) não se provou, porquanto não se fez prova quanto a tais matérias.
O facto e) resultou não provado, porquanto é contraditado pela prova produzida em audiência e que a supra se aludiu, sendo consabido que o que está inerente ao fracionamento de plantas canábis é a sua cedência ou comercialização, actividades que não se apuraram terem ocorrido.
*
III. Enquadramento jurídico-penal
Os arguidos vêm acusados de ter praticado, em co-autoria material e na forma consumada, um crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelos artigos 21º, nº 1 e 25º alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C, anexa ao referido diploma legal.
O bem jurídico “primordialmente protegido é o da saúde pública e integridade física dos cidadãos vivendo em sociedade. Em segundo lugar, estará em causa a protecção da economia do Estado, que pode ser desvirtuada nas suas regras com a existência desta economia paralela dirigida pelos traficantes” (Lourenço Martins, in Droga e direito, p. 122).
O crime em apreço é qualificado como um crime de perigo comum abstracto, pois coloca em causa uma pluralidade de bens jurídicos, mas não se exige a verificação de um perigo efectivo em nenhum deles.
Deste modo, o crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido.
Nos termos do disposto no art. 21º/1 do supra referido diploma legal, “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III (...)”.
Por seu turno, o artigo 25º/a) do Decreto-Lei 15/93, aplica-se aos casos em que o agente realize uma das actividades previstas no citado artigo 21º mas “a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações”, devendo o agente ser punido de forma privilegiada, como traficante de menor gravidade.
Com interesse para o caso em apreciação, atente-se que para o preenchimento do tipo objectivo basta que o agente, sem para tal estar habilitado, cultive ou detenha um produto estupefaciente (constante das tabelas I a III anexas ao DL 15/93), ainda que não se demonstrem actos efectivos de comércio ou cedência, desde que não se destine na totalidade ao consumo pessoal do agente.
A nível subjectivo, exige-se o dolo, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º do Código Penal.
Para efeitos de preenchimento do conceito de “ilicitude consideravelmente diminuída” a que alude o citado artigo 25º, importa proceder à valorização global do episódio, devendo ponderar-se todas as circunstâncias ocorridas. O critério a seguir será a avaliação do conjunto da acção, tendo em conta o grau de lesividade ou de perigo de lesão do bem jurídico protegido.
Há, pois, que ponderar todos os factos, no sentido de verificar se estamos, ou não, em concreto, perante um crime menos desvalioso que o tipo do art. 21º, que demande uma punição proporcional e adequada nesses termos.
No caso em apreço, provou-se que os arguidos, sem qualquer habilitação ou autorização para tal, cultivaram e detiveram canábis, substância estupefaciente que integra a tabela I-C do Decreto-Lei 15/93, e que o cultivo de tais plantas se destinava, não à extracção do óleo da referida planta, mas à prossecução e desenvolvimento de tratamentos medicinais com base na referida planta.
Conforme se referiu, a consumação do crime de tráfico de estupefacientes ocorre com a mera detenção das substâncias ilícitas que não se destinem na totalidade ao consumo pessoal do agente. Ora, tendo-se apurado que algumas das plantas canábis apreendidas eram referentes à plantação ocorrida nos anos de 2018 e 2019, é forçoso e necessário concluir que tais plantam não se destinavam ao consumo de qualquer um dos arguidos (nem tão pouco se apurou que algum fosse consumidor de estupefacientes).
Face ao exposto, mormente os factos dados como provados a que se aludiu, levam o Tribunal a concluir que a ilicitude é consideravelmente diminuída, pelo que se encontra verificado o elemento objectivo do tipo penal.
Naquilo a que se refere o elemento subjectivo do tipo, as características essenciais do dolo são o conhecimento e a vontade da realização do tipo legal. O dolo é assim formado pelo elemento cognitivo ou intelectual (o conhecimento), e pelo elemento volitivo, o de querer (a vontade) que cumpre preencher, para que se conclua por uma conduta dolosa.
Ora, resulta da matéria provada que o arguido conhecia as características do produto estupefaciente que detinha, sabia que não se encontrava autorizado a cultiva-lo e detê-lo, e que a sua conduta era proibida por lei, tendo agido de forma voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que não podia plantar canábis e detê-la sem autorização.
No que concerne à actuação da arguida, da matéria factual afere-se que não se provou que esta tenha agido dolosamente.
Nestes termos, conclui-se que o arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, o crime de tráfico de menor gravidade de que vinha acusado, sendo que, por outra banda, vai a arguida absolvida da prática do referido ilícito, por falta do preenchimento do elemento subjectivo.
(...).»
*
2.3. Conhecimento do mérito dos recursos
2.3.1. Recurso interposto pelo arguido AA
Uma nota prévia para referir o seguinte:
Considerando que o recorrente AA invoca que a sentença recorrida enferma de omissão de pronúncia sobre nulidades e inconstitucionalidades que suscitou, na contestação que apresentou e considerando que algumas dessas nulidades se referem à prova, estando a arguida acusada em coautoria com o arguido, a decisão que venha a ser proferida poderá ter implicações na apreciação das questões que são suscitadas pelo Ministério Público, no recurso interposto da sentença recorrida, na parte em que absolveu a arguida BB do crime de tráfico de menor gravidade, por que vinha acusada, começaremos por apreciar o recurso do arguido AA.
Vejamos, então:
Alega o recorrente AA, que o Tribunal a quo, na sentença recorrida, omitiu pronúncia sobre as nulidades e inconstitucionalidades que arguiu, na contestação que apresentou, pugnando para que a sentença recorrida seja substituída por outra que conheça dessas questões de direito e que declare verificadas as invocadas nulidades e inconstitucionalidades.
Vejamos:
De harmonia com o disposto na alínea c) do n.º 1, do artigo 379º do Código de Processo Penal, na parte que para o caso concreto releva: É nula a sentença: Quando o tribunal deixe de apreciar questões que devesse apreciar.
Como refere o Cons. Oliveira Mendes[1]: «A nulidade resultante da omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe que o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – artigo 608º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º, do CPP. Evidentemente que há que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras, como estabelece o citado nº 2 do artigo 608º do Código de Processo Civil.
A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre as questões (…) que cabe ao tribunal conhecer (…), entendendo-se por questão o dissídio ou o problema concreto a decidir (…).»
Baixando ao caso dos autos:
Invoca o recorrente que na contestação apresentada suscitou questões de direito que não foram apreciadas na sentença recorrida, concretamente, as seguintes:
a) Que não houve redução a escrito da “notícia verbal do crime”, veiculada por um terceiro, nem foi assinada pela entidade que a recebeu e pelo denunciante, não se consignando no auto a impossibilidade ou a recusa do denunciante em assinar a mesma, como exige o artigo 95º, n.º 3, do CPP, sendo omitidas as formalidades prescritas no artigo 246.º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal, que foi violado. Acresce que não tendo o denunciante conhecimento dos factos, relatando o que ouviu dizer a dois indivíduos, tratando-se de depoimento indireto, não sendo inquiridas como testemunhas, questionar-se-á se terá aplicação o disposto no artigo 129º do CPP.
b) Que as fotografias constantes de fls. 18 e 19 dos autos foram retiradas no interior da propriedade do arguido, sem a respetiva autorização judicial pelo que devem ser consideradas prova ilícita, nos termos do artigo 167.º, n.º 1 do Código de Processo Penal;
c) Que, no decurso do inquérito requereu o seu interrogatório complementar sobre um conjunto de novas provas que foram juntas aos autos e para revisão de medida de coação e que o indeferimento de tal audição, constituiu a omissão de produção de prova essencial à descoberta da verdade material, acarretando uma nulidade processual, nos termos do artigo 120º, n.º 2, al. d), do CPP.
Na sentença recorrida o Tribunal a quo consignou que não se pronunciava «relativamente aos factos/passagens mencionados na acusação e nas contestações, não especificamente dados como provados ou não provados, por serem conclusivos (em termos factuais ou por encerrarem questões de direito ou adjectivações) ou porque se tratam de imputações genéricas, ou por se entender que são irrelevantes para a decisão da causa.»
Cabe perguntar:
Foram efetivamente suscitadas na contestação apresentada pelo arguido, ora recorrente, as concretas questões que agora vem enunciar como tendo havido omissão de pronúncia pelo Tribunal a quo, na sentença recorrida?
Em nosso entender há que responder negativamente a esta questão.
Com efeito, lida a contestação, constata-se que o arguido faz uma resenha da tramitação do processo, aludindo a atos processuais e às provas respeitantes à fase do inquérito, bem assim como à não realização de diligências de prova que, nessa fase, requereu e que foram indeferidas, concretamente ao interrogatório complementar de arguido, na fase de reapreciação dos pressupostos da prisão preventiva a que esteve sujeito.
Em relação à preterição de formalidades relacionadas com a denúncia e o auto de notícia, tal como refere o Sr. Juiz a quo, no despacho que admitiu o recurso, não obstante o arguido ter aludido à violação de vários normativos legais, não concluiu pela existência de um qualquer vício processual, com as consequências dele decorrente, pelo que, é de concluir que o arguido, ora recorrente, não arguiu, nesse âmbito, qualquer nulidade ou irregularidade, de que o Tribunal a quo devesse conhecer, na sentença recorrida.
No tocante às fotografias de fls. 18 e 19 dos autos, que o arguido, invocou na contestação, constituir prova nula, nos termos do disposto no artigo 167.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, não tendo essa prova sido utilizada, pelo Tribunal a quo, na formação da sua convicção para dar como provados os factos imputados ao arguido, como resulta da motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida, não tinha o Tribunal a quo de se pronunciar sobre a validade ou nulidade dessa prova.
E no respeitante à não realização de interrogatório complementar ao arguido, para além de se tratar de uma questão que, como se extrai do alegado pelo arguido, terá sido objeto de apreciação pelo Tribunal da Relação, no recurso que o arguido interpôs e que veio a revogar essa medida de coação, como faz notar o Tribunal a quo, no despacho que admitiu o recurso, além de que, ao contrário do que defende o recorrente, essa omissão não constituiria uma nulidade, mas sim uma mera irregularidade, nos termos previstos no artigo 123º, n.º 1, do CPP[2].
Com efeito, de harmonia com a jurisprudência uniformizada, pelo STJ, no AFJ n.º 1/2006[3], integrará a nulidade prevista no artigo 120º, n.º 2, al. d), do CPP, a omissão do interrogatório do arguido, nessa qualidade, em sede de inquérito e, no caso concreto, essa diligência foi realizada, quando se procedeu ao primeiro interrogatório judicial do arguido, ora recorrente, voltando este a ser ouvido, perante o juiz, em sede de reexame da medida de coação da prisão preventiva a que esteve sujeito e, mais tarde, em interrogatório complementar, nos ternos do disposto no artigo 122º, n.º 2, do CPP, perante o OPC, a quem foi delegada a competência para a investigação.
Assim, a omissão do interrogatório complementar requerido pelo arguido, ora recorrente, em sede de inquérito, poderia constituir, quando muito, uma irregularidade, que teria de ser arguida no prazo previsto no artigo 123º, n.º 1, do CPP e, não o tendo sido, há muito que estaria sanada, não apresentando, por isso, qualquer relevância em termos de dever ser apreciada em sede de sentença.
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se conclui pela não verificação de omissão de pronúncia na sentença recorrida e da consequente nulidade que poderia determinar.
Improcede, assim, o recurso interposto pelo arguido.

2.3.2. Recurso interposto pelo Ministério Público
2.3.2.1. Da impugnação da matéria de facto dada como não provada
Impugna o Ministério Público/recorrente a factualidade dada como não provada, nas alíneas g) e h), referentes à arguida BB, defendendo ter existido erro na apreciação/valoração da prova, por parte do Tribunal a quo e que em face da prova produzida, na audiência de julgamento, em 1º interrogatório judicial da arguida e bem assim como da prova documental junta aos autos, impunha-se que fossem dados como provados os factos ora impugnados.
Sustenta o recorrente que, tendo em conta as declarações prestadas, em julgamento, pela arguida [das quais decorre que estava ao corrente das plantações de canábis existentes na estufa, que tinha acesso a esta última e que regou essas plantações e que o seu companheiro, ora arguido, lhe pediu para que obtivesse o registo criminal na ..., pensando a arguida que esse elemento terá sido solicitado pela I..., no âmbito do processo de legalização da plantação de Canábis], o depoimento da testemunha CC [que afirmou ter dois certificados de registo criminal, sendo um de cada arguido], as declarações que a arguida prestou, em sede de 1º interrogatório judicial [das quais resulta que a arguida tinha conhecimento de que não tinham licença para o cultivo da Canabis] e a prova documental constante dos autos, designadamente, o relatório de diligência externa de fls. 42 [que comprova que a arguida regava a plantação de canábis], haveria que concluir que a arguida tinha conhecimento da plantação de canábis existente na estufa, assim como, da canábis que foi apreendida no interior da residência, bem como de que aquela plantação não estava legalizada, ou seja, devidamente autorizada pelas entidades competentes para o efeito e, nessa medida, que a arguida agiu com dolo, dando-se como provados os factos constantes das alíneas g) e h), da matéria factual não provada.
Manifesta, ainda, o recorrente que a arguida é uma pessoa com formação académica, em direito, que sabia das negociações e reuniões que o seu companheiro, ora arguido, encetou com diversas entidades com vista a obter o licenciamento da plantação de canábis, designadamente, a Câmara ... e a sociedade I..., tendo inclusive a arguida, no âmbito desses processos, que entregar o seu CRC com vista ao início do processo de autorização, uma vez que a própria arguida é também sócia da empresa F... Lda., titular do projeto ... e, nessa qualidade, tinha também a arguida a obrigação de saber, averiguar, confirmar e diligenciar pela obtenção do licenciamento para a plantação de canábis, não podendo a arguida descurar de obter a devida autorização das entidades competentes e diligenciar junto das mesmas pela sua obtenção.
O facto de o arguido AA estar mais envolvido no processo de obtenção de autorização/legalização da plantação de canábis, nunca poderia levar a excluir a responsabilidade da arguida, na medida em que tal diligência cabia a ambos os arguidos, enquanto sócios da empresa F... Lda, nunca podendo a este título considerar-se que a arguida atuou com negligência.
Nessa conformidade, considera o recorrente que o Tribunal a quo, ao dar como não provados os factos impugnados, incorreu em erro de julgamento, impondo-se, em face das concretas provas que especifica, uma decisão quanto à matéria de facto contrária à que foi proferida, dando-se como provados os factos constantes das alíneas g) e h).
A arguida, na resposta ao recurso, pugnou pela manutenção do julgado, defendendo que as concretas provas indicadas pelo Ministério Público recorrente, não só não impõem uma decisão em sentido diverso da proferida pelo Tribunal a quo, nos termos previstos no artigo 412º, n.º 3, al. b), do CPP, como nem sequer a permitem.
Defende a arguida que:
- nas declarações que prestou na audiência de julgamento limitou-se a confirmar que tinha conhecimento e estava ao corrente do cultivo da canábis que o arguido fazia, no âmbito das experiências de investigação medicinal que tinha em curso, processo em que ela não participava e que acompanhava no pressuposto de que os procedimentos eram legais, como o seu companheiro sempre lhe assegurou e em quem ela confiava, não se podendo extrair dessas declarações o que quer que seja quanto ao conhecimento da arguida de que esses procedimentos não eram legais;
- no tocante ao depoimento prestado pela testemunha CC, nada se pode retirar de relevante no sentido pretendido pelo Ministério Público/recorrente;
- no concernente às declarações prestadas pela arguida, na fase de inquérito, em 1º interrogatório judicial, não tendo sido lidas em audiência de julgamento, nem sequer tendo sido requerida a sua leitura, não podendo valer em julgamento, para efeito da convicção do tribunal, como estatui o artigo 355º do CPP, sendo inconstitucional a interpretação em sentido contrário, das normas extraídas dos artigos 355º, n.ºs 1 e 2 e 356º, n.º 9, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 357º, todos do CPP, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 5, conjugado com o artigo 18º, n.º 2, ambos da CRP – o que aliás, já foi declarado pelo TC, nos acórdãos n.º 152/2022 e 770/2020 –, não podendo, por isso, tais declarações, serem convocadas pelo Ministério Público, nesta sede, por se tratar de prova proibida, além de que, nessas declarações, a arguida nunca afirmou ter conhecimento da ilegalidade ou da falta de licenciamento do cultivo da canábis para os restritos efeitos do processo experimental medicinal que o arguido tinha em curso.
Considera, assim, a arguida que não há nada que possa infirmar a conclusão do Tribunal a quo de que não dispõe de quaisquer elementos para concluir que a arguida tinha noção de que o cultivo levado a cabo pelo seu companheiro – para os fins de investigação medicinal que tinha em curso – não estaria autorizado e não era legal e, no limite, configurando-se duas versões possíveis, numa situação de no liquet, sempre teria de prevalecer o princípio do in dúbio pro reo, que é postergado pelo Ministério Público, no recurso, pelo que, dever ser mantida a decisão de facto proferida e, consequentemente, a absolvição da arguida.
Apreciando:
Os factos dados como não provados, que são impugnados pelo Ministério Público, recorrente, são os seguintes:
«g) A arguida BB sabia que não estava autorizada a deter canabis por não lhe ser permitido cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou deter produtos estupefacientes, e, ainda assim, decidiu deter tais substâncias, o que representou e quis.
h) A arguida BB agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.».
Estão em causa factos atinentes aos elementos subjetivos do tipo, designadamente, ao dolo.
É sabido que, exceto nos casos em que haja confissão do arguido, a prova do dolo, enquanto elemento subjetivo, que pertence ao foro intimo do sujeito, terá de fazer-se a partir da análise da conduta pelo mesmo assumida e do contexto da ação desenvolvida, cabendo ao julgador, socorrendo-se, nomeadamente, das regras da experiência comum, daquilo que constituiu o princípio da normalidade da vida, retirar desse contexto, por recurso a ilações e inferências, a intenção pelo mesmo revelada e subjacente à atuação.
Lida a motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida e que supra se transcreveu, dela resulta que o Tribunal a quo decidiu dar como não provados os factos ora impugnados, constantes nas alíneas g) e h), por se ter confrontando com a dúvida sobre o «efectivo conhecimento por parte da arguida de que o cultivo da canábis não estava autorizado», dúvida essa que, por aplicação do princípio do in dubio pro reo, resolveu em sentido favorável à arguida, dando como não os enunciados factos.
O Tribunal a quo, fundamentou, a dúvida com que se confrontou, do seguinte modo:
«No que concerne à actuação da arguida BB, o Tribunal encontra-se numa dúvida insanável quanto ao efectivo conhecimento por parte da arguida de que o cultivo da canábis não estava autorizado.
Sendo a arguida BB sócia da sociedade F... Lda, tal qualidade impunha-lhe um dever acrescido de verificar se a actividade de plantação de canábis estava autorizada pelas entidades competentes, pelo que é de concluir que a arguida, no mínimo, não agiu com a diligência que se exigia. Contudo, o facto de não ter sido diligente não é suficiente para consignar como provada a factualidade inerente ao elemento subjectivo do tipo (que é doloso).
Com efeito, da prova produzida, o que se conclui sem margem para dúvidas, é que as diligências inerentes à tentativa de legalização do cultivo da planta canábis foram encetadas pelo arguido AA, conclusão que resulta não só das declarações de ambos os arguidos, mas que também se extrai do testemunho de CC, que afirmou conhecer a arguida apenas pelo seu nome estar referenciado nas negociações que encetou com o arguido AA. O próprio arguido referiu, de modo claro e assertivo, que informou a arguida que o cultivo estava legalizado. Por outro lado, apenas se logrou apurar uma única diligência em que a arguida teve participação directa - uma reunião havida na Câmara ... -, sendo que a testemunha KK, que presidiu a reunião enquanto presidente da autarquia, referiu em audiência que ficou convencido que era o arguido quem liderava o processo.
Assim, fica a dúvida se a arguida tinha o conhecimento efectivo dos factos no que concerne à falta de autorização para cultivo da planta de canábis, ficando o Tribunal numa posição de non liquet, pelo que, em obediência ao princípio in dubio pro reo, que estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, o Tribunal deu como não provado que a arguida era conhecedora de que a plantação de canábis não estava autorizada pelas entidades competentes para o efeito.
Dir-se-á, como supra se aludiu, que sendo a arguida sócia da sociedade F... Lda e titular do projecto ..., poder-se-ia concluir por uma actuação negligente. No entanto, uma vez que o tipo penal imputado aos arguidos não é punível a nível de negligência, seria não só redundante, mas também ilegal, proceder-se à comunicação de uma alteração não substancial dos factos imputadas à arguida, uma vez que a lei processual proíbe a prática de actos inúteis.
Nos termos expostos, e no que concerne à factualidade subjacente ao elemento subjectivo do tipo, o Tribunal deu como provados os factos 16) e 17) e, consequentemente, não provada a factualidade vertida em d), g) e h).».
O Ministério Público recorrente especifica como provas que, em seu entender, impõem decisão diversa da proferida, as declarações prestadas pela arguida, em sede de 1º interrogatório judicial e na audiência de julgamento e o depoimento da testemunha CC.
Manifesta o recorrente que a arguida admitiu, em 1º interrogatório judicial, ter conhecimento de que não tinham licença para cultivar canábis, pelo que, sabendo a arguida estarem a ser desenvolvidas diligências com vista à obtenção de licença, tendo inclusivamente, como referido pela testemunha CC, a arguida necessidade de entregar o seu CRC, nesse âmbito, impunha-se que fossem dados como provados os factos descritos nas alíneas g) e h) da matéria factual não provada e, nessa decorrência, concluir-se que, ao praticar os factos que resultaram assentes, a arguida atuou com dolo.
Vejamos:
Relativamente às declarações prestadas pela arguida, em 1º interrogatório judicial, que são convocadas pelo recorrente, defende a arguida não poderem ser atendidas, por não terem sido reproduzidas nem lidas na audiência, não podendo, nessa situação, valer em julgamento e, por conseguinte, tais declarações serem consideradas, na instância recursiva, tratando-se de prova proibida.
A questão da admissibilidade ou não da valoração, em julgamento, como meio de prova, das declarações anteriormente prestadas pelo arguido, sem que tenha havido lugar à sua reprodução ou leitura em audiência, nos termos previstos no artigo 357º, n.º 1, al. b), do CPP, tem suscitado controvérsia na doutrina e na jurisprudência.
Perfilhamos do entendimento de que não podem valer em julgamento e servir para formar a convicção do julgador, as declarações anteriormente prestadas pelo arguido perante autoridade judiciária, se não forem reproduzidas ou lidas em audiência, nos termos previstos no artigo 357º, n.º 1, al. b), do CPP[4].
A plenitude do exercício do contraditório sobre as provas, tem lugar na audiência de julgamento e quando estão em causa as declarações anteriormente prestadas pelo arguido, perante a autoridade judiciária, no âmbito dos interrogatórios previstos nos artigos 141º, 145º e 144º, n.º 1, do CPP, o arguido ainda que possa estar inteirado do teor dessas declarações e ciente – por ter sido informado nos termos e para por efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141º do CPP – de que aquelas declarações poderiam ser utilizadas no processo, o contraditório e as garantias de defesa do arguido, só serão plenamente assegurados, relativamente a esse meio de prova, se tais declarações forem reproduzidas ou lidas, em julgamento, mormente, se o arguido estiver presente na audiência de julgamento e optar por prestar declarações, que possam apresentar contradição ou discrepância com as anteriormente prestadas.
No caso de o arguido estar presente em julgamento, renunciando ao direito ao silêncio e optando por prestar declarações, se for confrontado, pelo juiz, com a divergência do sentido das suas declarações que anteriormente havia prestado em interrogatório judicial, deve considerar-se observando, dessa forma, o contraditório, mesmo que não exista a leitura dessas declarações.
Como se refere no Acórdão do STJ de 27/01/2021[5], estando aí em causa uma situação em que não tendo havido leitura das declarações que anteriormente prestara, em julgamento, o arguido foi confrontado pelo tribunal, com essas declarações:
«V - O arguido esteve presente na audiência de julgamento e foi confrontado com as declarações que anteriormente havia prestado, observando-se, portanto, um contacto directo (imediação) entre o declarante (fonte da prova) e o juiz do julgamento, não se podendo ignorar, por seu lado, a existência de um contacto directo entre o tribunal e as tais declarações, na medida em que o julgador, para formar a sua convicção, quanto a elas, tem de recorrer à sua audição/reprodução.
VI - Não se vislumbra qualquer reforço destes princípios da imediação e oralidade com a leitura na audiência de julgamento das declarações oportunamente prestadas pelo arguido devidamente advertido nos termos do artigo 141.º, n.º 4, alínea b), do CPP.
VII - O princípio do contraditório conforme é entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, reconduz-se ao facto de nenhuma prova dever ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão dever ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar.
VIII - Na situação presente, entende-se que o princípio do contraditório está patente no decurso da audiência de julgamento, mesmo sem obrigatoriedade de leitura das declarações anteriormente prestadas pelo arguido.
IX - Em audiência de julgamento, o princípio do contraditório, manifesta-se com o direito de, perante o juiz que vai decidir a causa, haver a possibilidade de contrariar toda a prova existente, constituída ou constituenda, apresentando outros elementos probatórios. Neste conspecto, o arguido poderia, na audiência de julgamento, confirmar, corrigir, infirmar o teor das declarações prestadas anteriormente em sede de interrogatório judicial.
(...)».
O Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se neste domínio, decidiu, no Acórdão n.º 770/2020[6], «Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, a norma extraída dos artigos 355.º, n.ºs 1 e 2, e 356.º, n.º 9, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 357.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual podem valer em julgamento as declarações do arguido a que se refere o artigo 357.º, n.º 1, alínea b), do referido Código, sem que tenha havido lugar à sua reprodução ou leitura em audiência, por decisão documentada em ata».
Sufragam-se inteiramente os fundamentos expendidos no item 21 do enunciado aresto do TC, que aqui se transcrevem «Ao decidir prestar declarações perante autoridade judiciária no âmbito do inquérito ou da instrução, o arguido renuncia ao direito ao silêncio que a Constituição e a lei lhe conferem e, independentemente do conteúdo das declarações que prestar, ainda ao seu direito à não autoincriminação.
O aproveitamento probatório de tais declarações pelo tribunal de julgamento significa a projeção dessa renúncia para além do momento processual em que a mesma teve lugar e, em particular, a conservação dos seus efeitos no processo de modo a que estes possam vir a concorrer e contribuir para a decisão de considerar ou não verificados os pressupostos da responsabilidade.
Veja-se que essa renúncia - e, consequentemente, o potencial do seu impacto probatório ulterior - não depende da confissão, total ou parcial, dos factos imputados. Em rigor, nem sequer a pressupõe. Desde que atendíveis pelo tribunal de julgamento, quaisquer declarações anteriormente prestadas pelo arguido, ainda que exoneratórias, poderão ser sempre valoradas em seu desfavor, designadamente para contrariar ou criar dúvida sobre a veracidade das declarações que decida prestar no âmbito da audiência ou, em qualquer caso, para diminuir a respetiva credibilidade perante o julgador (v. Saunders v. Reino Unido, decidido pelo TEDH por Acórdão de 17 de dezembro de 1996, 71.).
Ora, se isto é assim, parece que o respeito pleno pela decisão de vontade do arguido — que constitui, como vimos, um limite permanente e contínuo à possibilidade da sua utilização como meio de prova — há de implicar que, uma vez presente em audiência de julgamento, lhe seja conferida a possibilidade de tomar parte do ato pelo qual o tribunal (amplamente entendido) acede ao conteúdo das declarações que aquele prestou anteriormente no processo e, uma vez confrontado com o respetivo teor, de explicitar, contextualizar e completar as afirmações que produziu, explicando quaisquer contradições em que possa ter incorrido e esclarecendo eventuais hesitações ou oscilações na resposta às perguntas feitas pela entidade judiciária responsável pelo interrogatório, sobretudo nos casos em que este tem lugar numa fase precoce do inquérito e, portanto, num momento em que o objeto do processo ainda não se encontra fixado nos termos definitivos em que o vem a ser no despacho de acusação. Numa palavra, ao arguido há de ser reconhecido o direito de controlar aquilo que declarou e, em condições de interação comunicativa e reciprocidade dialética com o tribunal, de participar no estabelecimento do efeito auto-incriminador com que as suas anteriores declarações hão de valer no momento do apuramento da sua responsabilidade.
(...).»
No caso dos autos, confrontando as atas da audiência de julgamento, verifica-se que as declarações prestadas pela arguida, em 1º interrogatório judicial, não foram dadas por reproduzidas, nem foram lidas, nem foi requerida a sua leitura por qualquer dos sujeitos processuais, tendo a arguida comparecido na audiência e prestado declarações, não resultando que tivesse sido confrontada pelo tribunal com as declarações que anteriormente prestou, em 1º interrogatório judicial.
E lida a motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida, constata-se que as declarações prestadas pela arguida, em 1º interrogatório judicial, não foram consideradas pelo Tribunal a quo, na formação da sua convicção.
Deste modo, considerando o entendimento que perfilhamos, de que não podem valer em julgamento, as declarações anteriormente pelo arguido, perante autoridade judiciária, se não forem reproduzidas ou lidas em audiência, nos termos previstos no artigo 357º, n.º 1, al. b), do CPP, no caso dos autos e, por maioria de razão, forçoso é concluir que não podem ser atendidas, em sede de recurso, na impugnação da matéria de facto, fixada em 1ª instância, as declarações prestadas pelo arguido, em sede de 1º interrogatório judicial.
Importa apreciar as demais provas especificadas pelo Ministério Público recorrente, com base nas quais, considera que se impunha que fossem dados como provados os factos que impugna, as declarações prestadas pela arguida, em julgamento e o depoimento da testemunha CC.
A arguida, nas declarações que prestou, na audiência de julgamento, tendo admitido que estava ao corrente das plantações de canábis na estufa e ter efetuado a rega das mesmas, quando questionada, pelo Sr. Juiz a quo sobre se diligenciou ou procurou saber junto do companheiro no sentido de saber se as coisas estavam a ser feitas de forma legal, respondeu negativamente e que fez confiança no companheiro e à pergunta que lhe foi colocada pela Sr.ª Procuradora da República, sobre se “nunca entregou nenhum documento pessoal, nem CRC junto de entidades quer pública, quer provada, Câmara ... ou I..., concernente á própria arguida para a legalização da plantação (...), nem nunca assinou nenhum documento, nem nunca esteve em nenhuma reunião na Câmara (...)”, respondeu que a única coisa que o companheiro, ora arguido, lhe pediu foi para que pedisse o registo criminal na ..., pensando, ainda que sem certeza, que terá sido a I... que o terá solicitado.
Por sua vez, a testemunha CC - administrador da sociedade I... que celebrou um contrato de confidencialidade com a sociedade “F... Lda”, para transferência de tecnologia, relativa à cultura e à utilização de canábis medicinal -, no depoimento que prestou, na audiência de julgamento, confirmou terem-lhe sido entregues, pelo arguido - esclarecendo que apenas contatou com este, nunca tendo visto nem falado com a arguida - o CRC do próprio e da arguida.
Não existindo prova direta de que arguida tivesse efetivo conhecimento de que o cultivo de canábis para fim medicinal e a utilização que lhe vinha sendo dada pelo arguido não estava legalmente autorizada, importa apreciar se tendo em conta a objetiva conduta da arguida que resultou apurada à luz das regras da experiência comum e dos princípios da lógica, se impunha concluir que a arguida tinha conhecimento da falta de autorização, por parte das entidades competentes, para que essa atividade pudesse desenvolvida.
Dito de outro modo, trata-se de saber se foi feito um indevido uso, pelo Tribunal a quo, do princípio in dubio pro reo, isto é, se existe fundamento para que seja arredada a aplicação de tal princípio.
Vejamos:
É pacificamente aceite, na doutrina e jurisprudência, que não é qualquer dúvida que deve levar o tribunal a decidir a favor do arguido, tem de ser uma dúvida fundada, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras, tem de ser uma dúvida que impeça a convicção do tribunal em sentido positivo[7].
Como se faz notar no Acórdão do STJ de 04/11/1998[8] «Não é assim toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada (…) A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio.»
E como se refere no Acórdão da RC de 09/03/2016[9] «Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, por um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção) e, por outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.».
Definidos que ficam os contornos da possibilidade de controlo pelo tribunal de recurso da aplicação, pelo tribunal recorrido, do princípio in dubio pro reo, apreciemos, então, atenta a motivação da decisão de facto consignada na sentença recorrida e tendo em conta os princípios da racionalidade lógica e as regras da experiência comum, se a decisão do Tribunal a quo, ao dar como não provados os factos ora impugnados pelo Ministério Público recorrente, afronta aqueles princípios e regras, e se foi feito um indevido/incorreto uso do princípio in dubio pro reo.
São os seguintes os factos provados relevantes para a apreciação da questão que ora nos ocupa:
«1. A “F... Lda.” é uma sociedade comercial por quotas, de que os arguidos são os únicos sócios, e cuja gerência é exercida pelo arguido AA.
2. A sociedade tem a CAE 01500 (agricultura e produção animal combinadas).
3. Os arguidos são titulares de um projecto ambiental denominado “...”, que tem em vista a produção, estudo e comercialização de vários produtos, ervas aromáticas e outras plantas, os quais que são cultivados na Herdade ....
4. A arguida dedica-se à produção de produtos biológicos (alimentares e cosméticos).
5. O arguido AA tratava do cultivo das plantas e de realização de experiências com canábis.
6. Na Herdade ..., os arguidos construíram uma estufa para efeitos de plantação de plantas.
7. Desde data não concretamente apurada, mas a partir do mês Maio de 2018, os arguidos cultivaram canábis na Herdade ....
8. Os arguidos não estavam autorizados por nenhuma entidade, nomeadamente pelo “Infarmed” ou pela “DGAV” para o cultivo de canábis para fins medicinais.
9. No dia 28.07.2020, pelas 07:00h, na sequência do cumprimento de um mandado de busca, veio a ser encontrado numa habitação situada no interior da referida Herdade, dentro de sacos plástico e boiões em vidro a quantidade de 6, 691 quilos de canábis sativa.
10. No mesmo local foram encontrados:
i. No balcão da cozinha, um jarro com um produto viscoso;
ii. treze boiões de vidro contendo “cabeças de canábis”;
iii. Acondicionada no interior de um frigorífico, 14 sacos de “erva”;
iv. Também no interior do frigorífico, 1 frasco de “erva”;
v. Assim como numa prateleira da cozinha, foram encontrados 6 frascos de vidro; um envelope contendo folhas de canábis;
vi. E ainda diversos outros objectos de precisão normalmente usados em laboratórios, nomeadamente, 1 pipeta grande de plástico, 1 par de óculos, 1 medidor, 1 varinha, 4 termómetros, 2 pinças, 1 tigela pequena, 2 jarros medição, 1 par de luvas, 1 copo de medida, 1- espátula, 2 -tubos de medida, 1 - termómetro especial, 3 moinhos, 2 balanças de precisão;
(...)
12. Na sala foram encontrados, 1 Tablet “Apple”, uma pen e 82 frascos pequenos de vidro (2 com pipeta).
13. E ainda 33 pés de plantas de canábis no interior da estufa.
14. Uma parte da canábis apreendida foi produzida nos anos de 2018 e 2019.
15. Após perícia, constatou-se que a canábis apreendida tinha um baixo teor de concentração de THC, entre 2.3 e 9%, sendo que nos jarros não foi detectada a presença desta substância.
(...)
18. A sociedade F... Lda celebrou com a sociedade anónima I..., um acordo de confidencialidade em Novembro de 2017.
19. Por ofício datado de 17.04.2019, emitido pela Câmara ..., e junto a fls. 792 dos autos e cujo teor se dá como integralmente reproduzido, lê-se, nomeadamente, o seguinte:“(…) Câmara ... (…) declara que tenciona autorizar a Sociedade F... Lda (…) propriedade de AA e BB, para produzir canábis para efeitos medicinais na parcela denominada “Herdade ...”(…)
20. O arguido AA fazia a maceração de canábis em azeite.
21. A plantação de canábis tinha o propósito de investigação medicinal.»

*
Resultou provado que a partir do mês Maio de 2018, os arguidos cultivaram canábis na Herdade ... e que os arguidos não estavam autorizados por nenhuma entidade, nomeadamente pelo “Infarmed” ou pela “DGAV” para o cultivo de canábis para fins medicinais.
E mostra-se também provado que na busca efetuadas em 28/07/2020, à Herdade ..., foram apreendidos, no interior de uma estufa aí existente, 33 pés de plantas de canábis e na residência, treze boiões de vidro contendo “cabeças de canábis”, 14 sacos de “erva”, 1 frasco de “erva”; um envelope contendo folhas de canábis.
Ficou, ainda, provado que do exame pericial realizado à canábis apreendida resultou que tinha um baixo teor de concentração de THC, entre 2.3 e 9% e que uma parte dessa canábis foi produzida nos anos de 2018 e 2019.
Tendo ficado provado que os arguidos e, por conseguinte, também a arguida cultivaram canábis na Herdade ..., a partir de maio de 2018, sem que estivessem autorizados por nenhuma entidade, nomeadamente pelo Infarmed ou pela DGVA para o cultivo de canábis para fins medicinais, sendo que, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, tendo em conta a formação académica da arguida, tendo o bacharelato em direito e a circunstância de estar envolvida, conjuntamente com o arguido, seu companheiro, num projeto ambiental denominado “...”, visando a produção, estudo e comercialização de vários produtos, ervas aromáticas e outras plantas e a produção de produtos biológicos (alimentares e cosméticos) e, nessa medida, arguida não podia deixar de ter conhecimento de que, o cultivo da canábis, designadamente, para fins medicinais, carece de autorização das autoridades competentes, autorização essa que a arguida sabia não ter e não podendo a arguida desconhecer que o arguido, seu companheiro, também não a tinha, já que se a tivesse obtido, normal seria, dado viverem maritalmente e explorarem em conjunto a atividade empresarial a que se vinham dedicando, sendo que, nessa situação, a arguida não poderia deixar de acompanhar e estar inteirada dos assuntos relacionados com essa atividade, ainda que o arguido pudesse estar à frente de alguns deles.
Assim, independentemente de no desenvolvimento do referenciado projeto ambiental, a arguida se dedicar à produção de produtos biológicos e o arguido tratar do cultivo das plantas e da realização de experiências com canábis, o certo é que a arguida também participou no cultivo da canábis - cfr. facto provado no ponto 7 -, regando as plantas - como admitiu, nas declarações que prestou, na audiência de julgamento -, constituindo a rega, só por si, um ato de cultivo da(s) planta(s)[10].
Por outro lado, ainda que estivessem a ser desenvolvidas, desde 2017, diligências, pelo arguido AA, com vista à obtenção de autorização, junto das entidades competentes, para que a sociedade de que a arguida é também sócia, denominada «F... Lda.», se pudesse dedicar à plantação de canábis para fins medicinais, para além de não resultar da matéria factual provada que o cultivo da canábis que os arguidos efetuaram a partir de maio de 2018 ocorresse no âmbito da atividade dessa sociedade, é do conhecimento generalizado que, enquanto essa autorização não for concedida, não é legalmente permitido avançar com o cultivo da canábis.
E tendo a arguida, tal como o arguido, desde maio de 2018, cultivado canábis, não tendo qualquer dos arguidos autorização para o efeito, por parte das entidades competentes, não podendo a arguida, no quadro supra descrito, deixar de ter conhecimento de que o cultivo de canábis, para fins medicinais e para realização de estudos e experiências, carecia de autorização das autoridades competentes, autorização essa que a arguida sabia não ter. E vivendo a arguida maritalmente com o arguido, desenvolvendo ambos, em conjunto, um projeto empresarial, participando a arguida, ativamente, na prossecução do mesmo, acompanhando e estando inteirada dos assuntos com ele relacionados, à luz das regras da experiência comum e do normal acontecer, há que concluir que a arguida não podia deixar de saber que nem o arguido, nem a sociedade de que ambos eram sócios, tinham qualquer autorização concedida pelas entidades competentes para o cultivo da canábis.
Entendemos, assim, ter sido feito um indevido uso, pelo Tribunal a quo, do princípio do in dúbio pro reo e que a dúvida com que se confrontou, quanto ao conhecimento da arguida da ilegalidade do cultivo da canábis que, conjuntamente com o arguido, efetuou, nas circunstâncias que resultaram apuradas e da falta de autorização por parte das entidades competentes para que procedessem a esse cultivo, não é sustentada, nem razoável, pelo contrário, afronta as regras da experiência comum e da normalidade da vida, pelos fundamentos sobreditos.
Concluímos, assim, que a factualidade provada atinente à conduta objetiva da arguida, em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, nas circunstâncias concretas em que a arguida atuou e considerando a sua formação académica e a atividade a que se dedica, que a arguida sabia que o cultivo de canábis para fins medicinais, incluindo a realização de estudos e experiências, sem autorização das autoridades competentes, era proibida e constituía crime e que a arguida estava ciente de que não tinha qualquer autorização concedida pelas entidades competentes que lhe permitisse cultivar canábis.
Pelo exposto e em conformidade, julgando-se procedente a impugnação da matéria de facto, impõe-se proceder à modificação da decisão de facto proferida em 1ª instância, em termos de passarem a constar dos factos provados os seguintes [que na sentença recorrida foram dados como não provados]:
- A arguida BB sabia que não estava autorizada a deter canábis, por não lhe ser permitido cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou deter produtos estupefacientes, e, ainda assim, decidiu deter tal substância, o que representou e quis.
- A arguida BB agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Em face da modificação da matéria de facto fixada na 1ª instância, nos termos acabados de decidir, há que extrair as pertinentes consequências, em termos de decisão de direito, o que faremos de seguida.

2.3.2.2. Da relevância jurídico-penal da modificação da matéria de facto
A arguida foi acusada pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a), com referência ao artigo 21º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal.
E dando-se aqui por reproduzidas as considerações jurídicas expendidas na sentença recorrida, relativamente ao crime de tráfico de menor gravidade, atenta a factualidade que resultou provada, com a alteração a que este tribunal ad quem procedeu, nos termos sobreditos, há que concluir que a arguida, através da sua conduta, preencheu todos os elementos típicos, objetivos e subjetivos, desse crime.
Com efeito, decorre da factualidade provada que a arguida, conjuntamente com o arguido, a partir de 2018, procederam ao cultivo de canábis, na Herdade ..., tendo, na busca aí efetuada em 28/07/2020, sido apreendidas, no interior de uma estufa, 33 plantas de canábis e, na habitação, dentro de sacos plástico e boiões em vidro a quantidade de 6,691 quilos de canábis sativa, sendo que uma parte desta canábis foi produzida nos anos de 2018 e 2019 e apresentava o teor de concentração entre 2.3 e 9%.
O cultivo e a detenção de canábis, por quem, para tal não se encontre autorizado e não se destinando o produto ao consumo exclusivo do agente, nos termos previstos no artigo 40º do mesmo diploma legal, constituem atos que a lei tipifica como tráfico de estupefacientes (cfr. artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93), visto que traduzem um perigo de lesão dos bens jurídicos que o legislador pretende proteger com a incriminação, mormente a saúde pública, perigo esse cuja verificação concreta a lei não exige, tratando-se de um crime de perigo abstrato.
E em face da modificação da matéria de facto a que se procedeu, dando-se como provado que a arguida sabia que não estava autorizada a deter canábis, por não lhe ser permitido cultivar, produzir ou deter tal substância estupefaciente e, ainda assim, decidiu deter tal substância, o que representou e quis e que a arguida agiu voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, há que concluir, pelo preenchimento, pela arguida, através da sua conduta, também da tipicidade subjetiva do crime de tráfico de estupefacientes, tendo a arguida agido com dolo.
Com a sua descrita conduta preencheu, pois, a arguida, os elementos objetivos e subjetivos de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a), com referência ao artigo 21º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal.
Por conseguinte, e inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, a absolvição da arguida decidida em 1ª instância, não pode subsistir, impondo-se a condenação da arguida pela prática do enunciado crime de tráfico de menor gravidade, por que vinha acusada.

2.3.2.3. Da medida da pena
Pugna o Ministério Público para que o quantum da pena de prisão a aplicar à arguida seja fixado em 1 (um) ano e 1 (um) mês.
Apreciando:
Ao crime de tráfico de menor gravidade corresponde a pena de prisão de 1 a 5 anos (cf. artigo 25º, al. a), do Decreto-Lei nº. 15/93).
A medida concreta da pena tem de ser encontrada dentro dos parâmetros estabelecidos nos artigos 40º e 71º, ambos do Código Penal.
Assim, a medida concreta da pena é limitada pela culpa do arguido, revelada nos factos (cfr. artigo 40º, n.º 2 do C.P.), e terá de se mostrar adequada a assegurar exigências de prevenção geral e especial, nos termos do disposto nos artigos 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1, ambos do Código Penal.
Culpa e prevenção são, pois, os dois termos do binómio com o auxílio do qual se há-de construir a medida da pena.
A culpa jurídico-penal vem traduzir-se num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena[11], sendo tal princípio expressamente afirmado no n.º 2 do artigo 40º do CP.
Com recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos.
Com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.
Dando concretização aos mencionados vetores, o n.º 2 do artigo 71º enumera, exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente – a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o dever de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Assim e baixando ao caso concreto, na determinação da medida concreta da pena a aplicar à arguida, há que ponderar:
- O grau de ilicitude dos factos, que se revela baixo, tendo em conta, nomeadamente, a quantidade da canábis plantada e já colhida detida pela arguida, conjuntamente com o arguido, parte dela produzida nos anos de 2018 e 2019, sendo baixo o grau de concentração de THC que apresentavam, situando-se entre 2.3 e 9%;
- O dolo da arguida/recorrente, que reveste a modalidade de dolo direto;
- As condições pessoais e situação económica da arguida que resultaram provadas, dispondo de uma situação económica desafogada, tendo ocupação profissional, desenvolvendo um projeto ambiental, na área da produção de vários produtos, ervas aromáticas e outras plantas e dedicando-se à produção e comercialização de produtos biológicos.
Milita a favor da arguida a circunstância de não registar antecedentes criminais.
As necessidades de prevenção geral positiva, relacionadas com a importância da tutela dos bens jurídicos e de proteção das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma jurídica violada são muito elevadas no crime de tráfico de estupefacientes, designadamente, em relação ao cultivo da canábis, atividade esta que, mesmo quando autorizada, está sujeita a um apertado controlo, acompanhamento e supervisão, por parte das entidades competentes para o efeito, por forma a que sejam cumpridas as condições de segurança e a impedir que essas plantas sejam colocadas no mercado de forma ilícita.
No referente às exigências de prevenção especial, revelam-se, à partida, reduzidas, dado que a arguida tem 49 anos de idade e não regista antecedentes criminais e, por certo, mais ciente do que nunca das consequências jurídico-penais que lhe poderão advir caso venha a reiterar o tipo de atuação que está em causa nos presentes autos.
Assim, sopesando em conjunto todas as enunciadas circunstâncias, as exigências de prevenção e a culpa da arguida, entendemos que a pena deve ser fixada no limite mínimo da moldura abstrata aplicável, ou seja, em 1 (um) ano de prisão, o que se decide.

2.3.2.4. Da substituição da pena de prisão
Atenta a dosimetria da pena de prisão aplicada à arguida, há que equacionar a respetiva substituição por pena não privativa da liberdade, concretamente, pena de multa ou suspensão da execução da pena.
Vejamos:
Relativamente à substituição da prisão por multa, dispõe o artigo 45º, n.º 1, do Código Penal: «A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da pena de prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. (…)».
A aplicação de uma pena de substituição da pena de prisão tem como pressuposto que o tribunal conclua ser adequada e suficiente a realizar as finalidades da punição, quais sejam as exigências de prevenção especial e geral.
A propósito das finalidades da pena, escreveu o Prof. Figueiredo Dias[12]: «prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida».
Significa isso que, uma pena de substituição, ainda que, no caso, possa satisfazer plenamente as necessidades de prevenção especial de ressocialização, não poderá ser aplicada se com ela sofrer inapelavelmente, “o sentimento de reprovação social do crime”[13], ou a confiança da comunidade na validade da norma jurídica violada.
No caso vertente, sendo reduzidas as exigências de prevenção especial, conforme se concluiu supra, ainda que a aplicação da pena de multa, em substituição da pena de prisão, pudesse satisfazer essas exigências, não satisfaria minimamente as necessidades de prevenção geral que se fazem sentir no que respeita ao crime de tráfico de estupefacientes, estando em causa o cultivo de canábis, mostrando-se a pena de multa incapaz de realizar, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, nessa vertente, de proteção dos bens jurídicos e de tutela das legítimas expectativas da comunidade na manutenção e na validade da norma penal violada.
E, assim sendo, é de afastar a substituição da pena de prisão, por pena de multa.
No tocante à suspensão da execução da pena de prisão, dispõe o artigo 50°, n.º 1, do C. Penal que «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.».
A suspensão da execução da pena de prisão deverá ter na sua base um juízo de prognose social favorável ao arguido, ao seu comportamento futuro e assentar numa expetativa razoável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, será suficiente para alcançar a ressocialização do arguido, afastando-o da prática de futuros crimes.
«Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.»[14].
Por outro lado, para que possa decidir-se pela aplicação de tal pena de substituição é necessário que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a tutela da confiança e das expetativas da comunidade na validade da norma jurídica violada.
No presente caso, tendo em conta que a arguida tem ... anos de idade, não regista antecedentes criminais, desenvolve atividade empresarial em Portugal, no setor agrícola e considerando as concretas circunstâncias em que a arguida cometeu o crime de tráfico de que aqui se trata, entende-se ser possível formular um juízo de prognose favorável em relação à arguida, em termos de poder fundamentar a suspensão da execução de pena, considerando-se que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão serão suficientes para afastar a arguida da prática de futuros crimes e satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção, permitindo a escolha de tal pena de substituição garantir limiar mínimo da prevenção geral da defesa do ordenamento jurídico, da tutela da confiança da comunidade na validade da norma violada.
Determina-se, assim, a suspensão da execução da pena de 1 (um) ano de prisão aplicada à arguida, por igual período de tempo, nos termos previstos no artigo 50º, n.ºs 1 e 5, do CP.
O recurso interposto pelo Ministério Público é, assim, parcialmente, procedente.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Penal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência:

a) Altera-se a matéria de facto provada, nos termos sobreditos, em 2.3.2.1., que aqui se dão por reproduzidos;

b) Na decorrência da alteração da referida matéria de facto, revoga-se a decisão absolutória recorrida, no respeitante à arguida BB e condena-se a mesma, como coautora, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p., pelo artigo 25º, al. a), com referência ao artigo 21º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano de prisão;

c) Determina-se a suspensão da execução da referida pena de prisão, pelo período de 1 (um) ano;

d) No que se refere ao arguido AA, confirma-se a sentença recorrida.

e) O arguido/recorrente AA é condenado em custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (arts. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).

Notifique.

Évora, 13 de setembro de 2022

Fátima Bernardes
Fernando Pina
Beatriz Marques Borges
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[1] In Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, Almedina, pág. 1132.
[2] Neste sentido, cfr., entre outros, Ac. da RL de 28/01/2016, proc. 2210/12.9TASTB-L.L1-9, acessível in www.dgsi.pt.
[3] De 23-11-2005, in DR, n°1, Série I A de 2- 01-2006.
[4] Neste sentido, vide, entre outros, Ac. da RL de 18/10/2017, processo 387/15.0GACDV.L1-3, in www.dgsi.pt
[5] Proc. 300/19.6GDTVD.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt.
[6] De 21/12/2020, proc. n.º 739/2020, acessível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200770.html
[7] Cfr. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e in dubio pro reo, pág. 166 e Ac.s do STJ de 14/10/2009 e de 15/04/2010, proferidos nos processos n.º 101/08.7PAABT.E1.S1-3 e n.º 154/01.9JACBR.C1.S1-5, respetivamente e acessíveis em www.dgsi.pt.
[8] In BMJ n.º 481, pág. 265.
[9] Proferido no proc. n.º 436/14.0GBFND.C1, acessível em www.dgsi.pt
[10] Neste sentido, cfr. Ac. da RC de 23/11/2011, processo 10/08.0GALRA.C1, acessível in www.dgsi.pt.
[11] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas – Editorial Notícias, pág. 215.
[12] In Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, pág. 815.
[13] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 334.
[14] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 343.