I - Estando em causa um crime contra a liberdade a autodeterminação sexual, o exame de psicologia forense realizado à vítima teve por finalidade a avaliação das caraterísticas psicológicas e da sua personalidade, em ordem a poder determinar em que medida poderiam influenciar o seu testemunho relativamente aos factos, o que não se confunde com a avaliação da veracidade do conteúdo do seu depoimento, no tocante à versão dos factos apresentada, pois que, esta última cabe exclusivamente ao tribunal.
II - O juízo sobre a credibilidade da prova por declarações ou testemunhal, estando a respetiva produção sujeita aos princípios da imediação e da oralidade, é feito pelo tribunal, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP, sendo que a perícia de avaliação psicológica um meio auxiliar de que o juiz se serve ou pode servir para melhor ajuizar sobre a credibilidade da testemunha, considerando as suas características psicológicas e da personalidade, mas já não para aferir da credibilidade do seu depoimento, na versão que apresenta dos factos.
III - Mostra-se, assim, totalmente destituída de fundamento a consequência jurídico processual que o recorrente pretende extrair do enunciado relatório do exame de psicologia forense realizado à assistente, em termos de o juízo de probabilidade nele expresso dever conduzir à dúvida do tribunal a quo, sobre a credibilidade das declarações da assistente, prestadas na audiência de julgamento, no relato que fez dos factos.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito (cfr. artigo 428º do CPP).
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto (cfr. artigos 402º, 403º e 412º, todos do CPP).
Tal não exclui o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas alíneas a), b) e c), do n.º 2 do artigo 410º do CPP, mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. do STJ nº. 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
No caso vertente, considerando os fundamentos do recurso interposto pelo arguido, são as seguintes as questões suscitadas:
- Impugnação da matéria de facto dada como provada;
- Violação do princípio do in dubio pro reo;
- Suspensão da execução da pena de prisão.
2.2. Da sentença recorrida
A sentença recorrida é do seguinte teor:
«(…)
II– Fundamentação
A) De Facto
1- Factos provados
Da prova produzida resultaram assentes os seguintes factos, com relevância para a boa decisão da causa:
1. O arguido, pelo menos desde meados do ano de 2001, que vive em comunhão de cama, mesa e habitação com CC e, dessa união, nasceram DD, em .../.../2003 e EE, em .../.../2013.
2. CC é irmã uterina de BB, esta nascida em .../.../1998.
3. Face à proximidade familiar e por ter idade próxima da sua sobrinha, pelo menos entre os seus seis e os seus doze anos de idade, era habitual que BB passasse férias e fins de semana na casa da sua irmã e do arguido, aí pernoitando.
4. Em data não concretamente apurada, mas ocorrida durante o Verão do ano de 2008, durante a noite, no interior da habitação do arguido, sita, nessa ocasião, na Estrada ..., localidade de ..., concelho ..., BB, ao tempo com dez anos de idade, encontrava-se a dormir na sala, estando a sua irmã e a sua sobrinha a dormir no quarto.
5. A certa altura, BB acordou, deslocou-se à cozinha e ouviu um barulho proveniente da garagem contígua, pelo que abriu a respectiva porta para averiguar a razão do barulho, tendo constatado que aí se encontrava o arguido.
6. E, de imediato, o arguido, ao aperceber-se da presença de BB, dirigiu-se a esta e, usando as mãos, agarrou-a, com força, pelos braços e despiu-lhe as calças do pijama e as cuecas que esta trazia vestidas.
7. De seguida, o arguido sentou BB ao seu colo, de frente para si e, logo após, encostou-a à parede, levantou-lhe as pernas e colocou o seu pénis, já erecto, na vagina desta, forçando a sua introdução.
8. Tal penetração causou fortes dores a BB, que tentou empurrar o arguido, mas este, fazendo força, continuou a manter o pénis introduzido na vagina de BB, ao mesmo tempo que fazia movimentos oscilatórios com o corpo, de baixo para cima.
9. Após ter obtido satisfação sexual, o arguido ejaculou para o chão e largou os braços de BB que, de imediato, agarrou as cuecas que estavam caídas no chão, vestiu as mesmas e correu para a casa de banho, onde viu que tinha muito sangue nas cuecas, proveniente da zona da vagina.
10. Passado algum tempo, quando o arguido se dirigiu para o seu quarto, BB aproximou-se deste e disse-lhe que iria fazer queixa à sua irmã, ao que este lhe disse que era estúpida, que era parva, e que ninguém iria acreditar no que contasse.
11. O arguido AA, ao agir da forma descrita, fê-lo deliberada, livre e conscientemente, com propósitos lascivos de satisfação de impulsos libidinosos, bem sabendo que BB, ao tempo, tinha apenas 10 anos de idade e que não tinha idade para, livremente, se decidir sexualmente, bem como para manter relações sexuais, o que representou.
12. O arguido também sabia que as condutas que perpetrou eram contra a vontade da então menor BB, e que as mesmas eram susceptíveis de comprometer o seu desenvolvimento social, afectivo, psicológico e sexual, causando-lhe medo, confusão, introspecção e isolamento, o que sucedeu.
13. O arguido, durante as estadias da assistente em sua casa, em uma ocasião em que dava banho a ela e à sua filha, tocou-lhe na vagina e nos seios, quando a mesma tinha 6 anos.
14. O arguido inventava brincadeiras de forma a ficar sozinho com a assistente, em qualquer sítio da casa.
15. A assistente, temendo que ninguém acreditasse nela, e receando pela saúde da mãe, que sofre de problemas cardíacos, nunca contou os factos aos pais, apenas tendo contado à amiga FF, quando tinha 12 anos.
16. A ofendida, a partir dos 8 anos, sentia-se culpada, envergonhada e enojada, sendo uma criança triste e reservada, com muita dificuldade em fazer amigos, nunca permitindo que numa brincadeira lhe tocassem, sentindo-se angustiada e sem alegria de viver.
17. Em data não concretamente apurada, em casa da irmã, a BB deparou-se com o arguido, que imediatamente a agarrou com o intuito de abusar dela, tendo a jovem conseguido escapar por ter caído por uma porta-alçapão, que a fez cair para dentro do quarto da irmã.
18. A assistente tem sofrido ataques de pânico, que a têm conduzido ao hospital, sendo-lhe ministrados medicamentos.
19. A assistente sofre com a separação e indiferença da irmã e sobrinhos, principalmente da sobrinha DD, que actualmente a destrata e ignora.
20. Aos 17 anos, a assistente namorou um rapaz, mas perante o receio e medo das carícias, o namoro terminou, pois, a assistente não gostava de ser tocada, nem por mera brincadeira, e sentia repulsa pelo contacto físico.
21. A assistente mantém actualmente uma relação de namoro, mas ainda hoje tem repulsa pelo acto sexual e carícias, não se sentindo à vontade com o namorado nem suportando ser acariciada.
22. Após a apresentação da queixa-crime, quando estava no ... com a prima GG, sentindo-se desesperada, cortou o braço com uma pinça, desejando morrer, não suportando reviver os factos por que passara.
23. Ainda hoje sofre de pesadelos nocturnos, tremores, ataques de ansiedade e pânico, que aumentaram desde a data da apresentação da queixa.
24. As situações acima descritas têm-lhe provocado ataques de choro compulsivo, sente tristeza permanente, desmotivação nos estudos, medo e receio de alguma reacção do arguido e do que pode acontecer em julgamento.
25. Actualmente tem medo de estar sozinha em casa, isola-se no seu quarto, não gosta de sair e de conviver com amigos.
26. Quando sofre de insónias, a assistente recorre a medicação para dormir.
27. O arguido foi condenado por sentença de 17.10.2008, transitada em julgado em 18.11.2008, pela prática em 30.04.2007 de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2, do D.L. n.º 2/98, de 03.01, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, o que perfaz o total de 240,00€, no âmbito dos autos de Processo Comum Singular n.º 575/07...., pena essa que foi extinta pelo cumprimento em 21.05.2012;
28. Foi também condenado por sentença de 15.10.2012, transitada em julgado em 14.11.2012, pela prática em 12.10.2012 de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2, do D.L. n.º 2/98, de 03.01, na pena de 119 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, o que perfaz o total de 595,00€, no âmbito dos autos de Processo Sumário n.º 148/12...., pena essa que foi substituída por trabalho a favor da comunidade e extinta pelo cumprimento em 21.07.2015;
29. O arguido foi ainda condenado por sentença de 28.01.2020, transitada em julgado em 28.02.2020, pela prática em 06.2017 de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, alínea a), do D.L. n.º 15/93, de 22.01, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, no âmbito dos autos de Processo Comum Singular n.º 9/17...., pena essa que foi extinta pelo cumprimento em 20.08.2021.
30. O arguido possui o 9.º ano de escolaridade, que concluiu em adulto, no âmbito de um curso de formação profissional, em articulação com o Centro de Emprego.
31. Desempenha as funções de técnico de jardinagem na empresa “T...”, onde também trabalha a sua companheira.
32. Vive com a companheira desde os 16 anos de idade, e tem dois filhos.
33. Habitam em casa arrendada, pagando de renda o valor de 300,00€ mensais.
34. O arguido e a companheira declaram receber um vencimento de 440,00€ mensais cada um.
35. O arguido declara ter iniciado consumos de haxixe, mas tê-los terminado quando ele e a companheira foram presos.
2.3. Conhecimento do mérito do recurso
2.3.1. Da impugnação da matéria de facto dada como provada
Sustenta o arguido/recorrente que em face dos elementos constantes dos autos e da prova produzida, em sede de audiência de discussão e julgamento, não dispunha o Tribunal recorrido de provas bastantes que permitissem formular um juízo seguro de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados e que servem de base à condenação proferida.
Defende o arguido/recorrente que deviam ter sido valoradas as declarações que prestou na audiência de julgamento, na versão que apresentou, negando perentoriamente ter praticado os factos, como sempre o fez – designadamente, ao ser confrontado pelo pai da ofendida sobre o que se teria passado –, em detrimento das declarações prestadas pela ofendida, que não deviam ter merecido credibilidade, por algumas das afirmações que fez, serem contrárias às regras da experiência comum.
Aduz, ainda, o recorrente, que o depoimento prestado pela testemunha GG, é indireto, não tendo a mesma presenciado os factos e que, à exceção da testemunha CC – que é irmã da ofendida e que vive maritalmente com o arguido há 20 anos –, as demais testemunhas nada acrescentaram em relação aos factos, não revelando conhecimento direto dos mesmos, pelo que, não poderão ser atendíveis, na apreciação da prova, em desfavor do arguido.
E no tocante à perícia psicológica realizada à ofendida, manifesta o recorrente que as conclusões vertidas no respetivo relatório, junto a fls. 142 a 157, não conduzem à solução que o tribunal recorrido acolheu, aí se referindo que «(...) podemos afirmar uma elevada probabilidade de que os factos narrados correspondem a uma situação vivenciada e não a uma mentira, fantasia ou sugestionamento. (...).».
Entende o recorrente que, ressalta do mencionado relatório pericial a existência de uma elevada probabilidade e dado que a condenação penal apenas pode ocorrer quando existem certezas, não podia o Tribunal a quo formular a convicção segura de que os factos efetivamente ocorreram, pois que, se suscitada uma dúvida incontornável que se impunha fosse resolvida a favor do arguido, por aplicação do princípio do in dubio pro reo, dando como não provados os factos, com a consequente absolvição do arguido.
O Ministério Público, em ambas as instâncias, pronuncia-se no sentido de que o Tribunal a quo procedeu a uma correta apreciação da prova, não existindo erro de julgamento, nem tendo sido violado o princípio do in dubio pro reo, pelo que, deve ser mantida a decisão recorrida.
Apreciando:
Embora não o refira expressamente, ao impugnar a matéria de facto dada como provada referente aos atos praticados contra a ofendida BB, nos termos em que o faz – convocando a prova por declarações e testemunhal, produzida na audiência de julgamento e o relatório do exame de psicologia forense realizado à ofendida que se mostra junto aos autos – e ao criticar a apreciação/valoração dessa prova, feita pelo tribunal recorrido, o arguido/recorrente pretende fundamentar essa impugnação no erro de julgamento.
A impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o artigo 412º, n.º 3, do CPP, visa a correção do erro de julgamento, que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Decorre do disposto no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, invocando o erro de julgamento, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (cfr. als. a) e b) do n.º 3 do artigo 412º), sendo que relativamente às provas gravadas essa especificação deverá ser feita por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364º do CPP, com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação.
Pese embora a recorrente não tenha observado cabalmente o ónus de especificação previsto na al. b) do n.º 3 do artigo 412º do CPP, pois que, não indicou, como devia ter feito, nas conclusões que extraiu da motivação do recurso, as passagens da gravação das declarações e depoimentos em que se funda a impugnação, tendo-o feito no corpo da motivação o recurso, sendo nosso entendimento que neste domínio, não se deverá ser demasiado formalista e, não se decidindo, como não se decidiu, pelo convite ao aperfeiçoamento, dever-se-á conhecer da impugnação ampla da matéria de facto.
Vejamos, então:
Neste âmbito, há que ter presentes os seguintes aspetos:
Desde logo, importa deixar claro que o erro de julgamento, não pode ser confundido – como, frequentemente, vem acontecendo e, no caso vertente, o recorrente também evidencia, na motivação e conclusões do recurso aqui em apreciação –, com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o tribunal formou, vigorando, neste âmbito, o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Não pode admitir-se que haja uma inversão de papéis do juiz e do recorrente, em termos de a convicção pessoal deste último se poder afirmar ou sobrepor à convicção formada pelo julgador, logo que esta se mostre alicerçada nas provas produzidas, respeitando os princípios e as normas legais do direito probatório e que seja devidamente fundamentada.
Neste domínio, o tribunal de recurso limita-se a aferir do processo de motivação e de conformidade com as regras legais de apreciação de prova e a só pode determinar a alteração da matéria de facto fixada pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem (cf. al. b) do n.º 3 do referenciado artigo 412º)
É que a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar o princípio da livre apreciação da prova do julgador, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal e a sua relação com os princípios da imediação e a oralidade, sobretudo quando tem de se debruçar sobre a valoração efetuada na 1ª instância da prova por declarações e testemunhal.
E, como é sabido, nada impede que, existindo versões contraditórias, como, aliás, ocorre na esmagadora maioria dos julgamentos, a convicção do juiz, no sentido de valorar uma delas, em detrimento de outra, se forme com base no depoimento de uma única testemunha, mesmo que se trate do(a) ofendido(a) ou nas declarações do(a) assistente, desde que devidamente explicitadas, pelo julgador, na motivação da decisão de facto, as razões do seu convencimento.
Assim, como vem sendo reiteradamente afirmado pela jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, a atribuição de credibilidade, ou não, a prova testemunhal ou por declarações, assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, decidindo de acordo com a livre convicção, que o tribunal de recurso só poderá censurar, se ficar demonstrado que essa opção é ilógica e é inadmissível face às regras da experiência e da lógica[7].
Tal entendimento é decorrência do respeito pelo princípio da livre apreciação da prova do julgador, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal,
Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
Tendo presentes estas considerações, baixemos ao caso dos autos:
Defende o arguido/recorrente que o Tribunal a quo devia ter valorado as declarações que prestou, na audiência de julgamento, em detrimento das declarações prestadas pela ofendida/assistente.
Sucede que as declarações do arguido, na versão que apresentou, negando a prática dos factos, não foram merecedores de credibilidade ao Tribunal a quo, sendo-o sim as declarações prestadas pela ofendida/assistente BB, nomeadamente, na descrição que fez das condutas assumidas pelo arguido/recorrente, para consigo, justificando, o Tribunal a quo, com grande rigor e pormenor, por que assim decidiu.
Perante a divergência das declarações do arguido e da assistente, o Tribunal a quo atribuiu credibilidade às declarações desta última, descredibilizando as declarações do arguido, pelas razões que devidamente explicitou, decidindo de acordo com a livre convicção, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP.
E entendemos não existirem quaisquer razões objetivas para pôr em causa a credibilidade que o Tribunal a quo atribuiu às declarações da assistente.
Com efeito:
A circunstância invocada pelo recorrente para atacar a credibilidade das declarações da assistente, na parte em que delas resulta que teria ficado com equimoses nos braços, em consequência da atuação do arguido e que o abuso teria sido forçado, defendendo o recorrente resultar das regras da experiência comum que se fosse esse o caso, as lesões existissem nas zonas genitais da ofendida, o que não se verifica, o que reforça que o arguido não praticou os factos, carecem em absoluto, de fundamento.
Na verdade, não só a existência de lesões, equimoses ou hematomas, nos braços da ofendida/assistente, é absolutamente compatível com o resultado da descrita atuação do arguido, ao agarrá-la e segurá-la, com força, forçando-a à prática da cópula, nas circunstâncias que a assistente relatou e que o Tribunal a quo deu como provadas nos pontos 6 a 8, como, por outro lado, como é sabido, para além de que, nem sempre a cópula forçada deixa vestígios na zona genital, no presente caso, nem sequer está demonstrado que não tivessem sido produzidas lesões nessa região do corpo da ofendida, posto que, pese embora, não tivesse sido realizado exame médico-legal, a assistente relatou ter ficado com sangue nas cuecas, em resultado da atuação do arguido.
Acresce que da prova produzida nada resultou que abalasse a credibilidade das declarações prestadas pela assistente, tendo a mesma deixando transparecer grande sofrimento emocional ao narrar os factos e não existindo qualquer motivo comprovado, v.g. vingança pessoal, ressentimento, inimizade, obtenção de vantagens, problemas psíquicos, etc., nem uma qualquer razão objetiva que resultasse apurada, para que a assistente acusasse o arguido, companheiro da sua irmã e pai dos seus sobrinhos, de a ter “violado” e de praticar com ela os contatos de natureza sexual que descreveu, ciente das consequências que essa “acusação” poderia acarretar, no seio da família.
Quanto ao depoimento da testemunha de defesa, CC, companheira do arguido e irmã da assistente, que é convocado pelo recorrente, a mesma procurou fazer crer ao tribunal, ser impossível o arguido ter cometido os factos cuja prática a assistente lhe imputa – afirmando, designadamente, que dormindo com o arguido, na cama, daria conta se este se levantasse da cama durante a noite, o que nunca aconteceu, que o arguido não dava banho à filha, etc. –, não mereceu credibilidade ao Tribunal a quo, pelas razões que explicitou e que se revelam lógicas e consentâneas com as regras da experiência comum e da normalidade da vida.
É consabido que este tipo de crime é envolto de um típico secretismo, pois, na maioria das vezes, não existem testemunhas que possam validar o relato da vítima, tendo apenas conhecimento do evento esta última e o agressor. E as declarações da vítima são, na maior parte dos casos, a prova decisiva e muitas vezes a única, dos factos, como aconteceu no presente caso.
Em relação ao exame de psicologia forense a que a assistente foi submetida, cujo relatório se encontra junto a fls. 143 a 157 dos autos, há que fazer notar que teve por finalidade, como, aliás, decorre dos quesitos formulados e a que a Sr.ª Perita/psicóloga respondeu, avaliar o grau de desenvolvimento e maturidade da ora assistente, designadamente a perceção dos factos, a capacidade de conservar memórias e de recuperação das mesmas e o relato dos factos; avaliar o sofrimento psicológico específico e apurar a suscetibilidade da ora assistente para inventar e fantasiar a ocorrência de factos de natureza sexual.
Tal perícia teve por finalidade a avaliação das caraterísticas psicológicas e da personalidade da ora assistente, em ordem a poder determinar em que medida poderiam influenciar o seu testemunho relativamente aos factos, o que não se confunde com a avaliação da veracidade do conteúdo do seu depoimento, no tocante à versão dos factos apresentada, pois que, esta última cabe exclusivamente ao tribunal, que decidirá de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP.
O juízo sobre a credibilidade da prova por declarações ou testemunhal, estando a respetiva produção sujeita aos princípios da imediação e da oralidade, é feito pelo tribunal, de acordo com o principio da livre apreciação da prova, nos termos sobreditos, sendo que a perícia de avaliação psicológica um meio auxiliar de que o juiz se serve ou pode servir para melhor ajuizar sobre a credibilidade da testemunha, considerando as suas características psicológicas e da personalidade, mas já não para aferir da credibilidade do seu depoimento, na versão que apresenta dos factos.
Deste modo e em suma, a perícia psicológica em crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, realizada à vítima, visa o conhecimento das características psicológicas e da personalidade desta, sendo um indispensável contributo para uma melhor apreciação do testemunho e avaliação sobre a sua credibilidade, por parte do tribunal.
E foi nesse âmbito que o Tribunal a quo valorou o relatório do exame de psicologia forense realizado à assistente.
Mostra-se, assim, totalmente destituída de fundamento a consequência jurídico processual que o recorrente pretende extrair do enunciado relatório pericial, em termos de dever o juízo de probabilidade nele expresso dever conduzir à dúvida do tribunal a quo, sobre a credibilidade das declarações da assistente, prestadas na audiência de julgamento, no relato que fez dos factos.
No tocante ao depoimento da testemunha GG – prima da assistente e da companheira do arguido –, a quem a assistente contou o que o arguido lhe fez, foi valorado pelo Tribunal a quo, servindo para reforçar a credibilidade das declarações da assistente, pelas razões enunciadas na motivação da decisão de facto consignada na sentença recorrida, não se tratando, nesse âmbito, ao contrário do que sustenta o recorrente, de um depoimento indireto, cuja valoração não fosse permitida, sendo que a assistente prestou declarações, na audiência de julgamento.
O Tribunal a quo sedimentou a convicção de que o arguido/recorrente praticou com a ora assistente BB, à época menor, os atos que deu como provados, essencialmente, com base nas declarações desta última, que lhe merecerem credibilidade, em detrimento das declarações do arguido/recorrente (que negou ter praticado os factos), pelas razões que explicitou, decidindo de acordo com a sua livre convicção, de harmonia com o disposto no artigo 127º do CPP e em termos que não nos merecem qualquer censura.
E as provas especificadas pelo recorrente não impõe, de modo algum, decisão em sentido diverso da proferida, no tocante à factualidade dada como provada, não se verificando erro de julgamento, por parte do Tribunal a quo.
2.3.2. Da violação do princípio in dubio pro reo
Invoca o recorrente que, perante a existência de versões contraditórias/opostas, da assistente e do arguido, e tendo em conta o juízo de “mera probabilidade” ínsito no relatório de avaliação psicológica realizado à assistente, o Tribunal a quo teria de confrontar-se com a dúvida sobre se os factos imputados ao arguido efetivamente ocorreram, dando esses factos como não provados, com a consequente absolvição do arguido e que ao decidir, em sentido diverso, condenando o arguido, o Tribunal a quo violou o princípio do in dubio pro reo.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao recorrente.
Vejamos:
O princípio in dubio pro reo, que é decorrência do princípio constitucional da presunção da inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2 da CRP, constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre a veracidade dos factos, ou seja, impõe ao julgador que, quando confrontado com a dúvida, razoável e fundada, em matéria de prova, resolva tal dúvida em sentido favorável ao arguido.
E vem sendo entendimento jurisprudencial pacificamente aceite, que o tribunal de recurso apenas pode censurar o não uso do princípio in dubio pro reo se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido[8], ou se, apreciando a impugnação ampla da matéria de facto, por erro de julgamento, for levado a considerar que, em face da prova produzida, essa dúvida – razoável e fundada – deveria suscitar-se no espirito do julgador, impondo-se que a resolvesse em sentido favorável ao arguido.
Tendo presentes tais princípios orientadores, atentemos no caso vertente:
Em relação à relevância probatória do exame de psicologia forense realizado à assistente, dão-se aqui por reproduzidas as considerações expendidas supra, em 2.3.1.
Do texto da sentença recorrida, não resulta que o julgador se tivesse confrontado com qualquer dúvida sobre os factos que deu como provados e que são objeto de impugnação no recurso. Ao invés, resulta da motivação da decisão de facto que o Tribunal a quo sedimentou a convicção segura de que o arguido praticou os factos em questão.
Por outro lado, atentando-se nas razões que presidiram à valoração da prova produzida, enunciadas na motivação da decisão de facto, que se revelam consentâneas com a regras da experiência comum e não se descortinando a violação de quaisquer normativos ou princípios relativos ao direito probatório, decidindo o Tribunal a quo, de acordo com a livre convicção, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP, fica afastada a possibilidade de a prova produzida determinar que o Tribunal a quo, devesse ter sido confrontado com dúvida razoável e fundada, em termos de valoração da prova, que devesse resolver em sentido favorável ao arguido/recorrente.
Nesta conformidade, impõe-se concluir não existir violação, por parte do Tribunal a quo, do princípio in dubio pro reo.
Por conseguinte, também nesta parte, improcede o recurso.
2.3.3. Em relação à renovação da prova, requerida pelo recorrente, não indicando o recorrente quais as provas cuja renovação pretende, ainda que se subentenda, pretenderem referir-se a toda a prova produzida, na audiência de julgamento, não se detetando a existência, na sentença recorrida, designadamente, com referência à matéria de facto, de qualquer dos vícios decisórios previstos no artigo 410º, nº. 2, do CPP – a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) O erro notório na apreciação da prova – situação em que, por forma a evitar o reenvio, o Tribunal da Relação pode admitir a renovação da prova (cf. artigo 430º do CPP), não se verificam os pressupostos para que pudesse ser admitida essa renovação.
Impõe-se, assim, o indeferimento da renovação de prova requerida pelo recorrente, o que se decide.
2.3.4. Mantém-se, assim, inalterada a matéria de facto fixada em 1ª instância.
2.3.5. Relativamente à qualificação jurídica dos factos, não sendo esta matéria equacionada no recurso, mas podendo este tribunal ad quem, oficiosamente, alterar a qualificação jurídica dos factos, desde que observe o disposto no artigo 424.º, n.º 3, do CPP e ressalvada que seja a proibição da “reformatio in pejus”, prevista no artigo 409.º do CPP, importa referir o seguinte:
A conduta do arguido que resultou apurada, descrita nos pontos 6 a 9 da matéria factual provada, seria suscetível de integrar o crime de violação agravada, p. e p., à data dos factos, pelos artigos 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 6, do CP, na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro e, atualmente, p. e p. pelos artigos 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP, na redação dada, respetivamente, pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro e pela Lei n.º 40/2020, de 18 de agosto.
São os seguintes os factos dados como provados nos enunciados pontos da decisão de facto:
«6. E, de imediato, o arguido, ao aperceber-se da presença de BB, dirigiu-se a esta e, usando as mãos, agarrou-a, com força, pelos braços e despiu-lhe as calças do pijama e as cuecas que esta trazia vestidas.
7. De seguida, o arguido sentou BB ao seu colo, de frente para si e, logo após, encostou-a à parede, levantou-lhe as pernas e colocou o seu pénis, já erecto, na vagina desta, forçando a sua introdução.
8. Tal penetração causou fortes dores a BB, que tentou empurrar o arguido, mas este, fazendo força, continuou a manter o pénis introduzido na vagina de BB, ao mesmo tempo que fazia movimentos oscilatórios com o corpo, de baixo para cima.
9. Após ter obtido satisfação sexual, o arguido ejaculou para o chão e largou os braços de BB que, de imediato, agarrou as cuecas que estavam caídas no chão, vestiu as mesmas e correu para a casa de banho, onde viu que tinha muito sangue nas cuecas, proveniente da zona da vagina.»
A referida conduta do arguido, agarrando, com força, pelos braços, a ofendida, despindo-a e introduzindo o seu pénis na vagina desta e, nessa situação, tentando a ofendida empurrá-lo, fazendo o arguido força, continuou a manter o pénis introduzido na vagina da ofendida, constrangendo, dessa forma, mediante o uso da força física, que constitui violência, a ofendida, na altura com 10 anos de idade e que tentou resistir, a sofrer relação de cópula consigo.
O crime de violação agravada, que a descrita atuação do arguido seria suscetível de preencher, é abstratamente punível com pena de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão (cfr. 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 6, do CP, na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro).
O crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171º, n.º 2, do Código Penal, pelo qual o arguido foi pronunciado e por que foi condenado em 1ª instância é abstratamente punível com a pena de 3 a 10 anos de prisão.
O elemento típico do crime de violação que acresce à tipicidade objetiva do crime de abuso sexual de crianças pelo qual o arguido foi pronunciado e condenado em 1ª instância, é o do uso de violência para constranger a ofendida à cópula.
A alteração da qualificação jurídica dos factos, em termos de serem suscetíveis de integrar o crime de violação agravada, nos termos sobreditos, tratando-se este de um crime mais grave, a que corresponde uma moldura penal superior, nos seus limites mínimo e máximo, do que o crime de abuso sexual de crianças, por que o arguido foi pronunciado e condenado em 1ª instância, imporia para que pudesse ser considerada por este Tribunal de recurso, que se procedesse previamente à respetiva comunicação ao arguido, em observância do disposto no artigo 424.º, n.º 3, do CPP.
Sucede que, no presente caso, não poderiam ser extraídos quaisquer efeitos jurídicos, da alteração da qualificação jurídica dos factos e consequente convolação, para o crime de violação agravada, sendo que a pena aplicada ao arguido, pelo Tribunal a quo, fixada em 4 anos e 6 meses, coincide com o limite mínimo da moldura penal aplicável a tal crime, foi o arguido que interpôs recurso da sentença e há que ressalvar a proibição da “reformatio in pejus”, prevista no artigo 409.º do CPP.
Assim sendo, mantém-se a condenação do arguido/recorrente, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.º 2, do Código Penal.
2.3.6. Da suspensão da execução da pena
O arguido/recorrente não põe em causa a medida concreta da pena, fixada pelo Tribunal a quo, no acórdão recorrido, em 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, pretendendo que esta pena seja suspensa na sua execução.
Em ordem a fundamentar a enunciada pretensão, o recorrente invoca ter decorrido um longo período de tempo sobre a prática dos factos, sem que tenha havido notícia de que o arguido voltasse a cometer ou fosse indiciado da prática de outros crimes de idêntica natureza; que as condenações que constam do seu CRC respeitam a crimes diversos; que se encontra socialmente inserido, tem atividade profissional estável, estrutura familiar e filhos menores ao seu encargo.
Neste quadro, no entender do recorrente, o juízo de prognose acerca do seu comportamento futuro, deve ser favorável e havendo que concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, devendo determinar-se a suspensão da execução da pena, mesmo que subordinada ao cumprimento de deveres e à imposição de regras de conduta.
O Ministério Público defende dever manter-se o decidido pelo Tribunal a quo, não se suspendendo a execução da pena em que o arguido foi condenado.
Apreciando:
Sobre os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão, dispõe o artigo 50º, nº. 1, do Código Penal, que: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão em medida não superior a cinco anos, se atendendo à personalidade do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»
Este preceito consagra um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos.
A primeira finalidade politico-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes[9].
O juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido pode assentar numa expectativa razoável de que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão será suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização do arguido, afastando-o da prática de futuros crimes.
Ou dito de outro modo: a suspensão da execução da pena deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime.
Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto[10].
Para que possa decidir-se pela aplicação de tal pena de substituição é, ainda, necessário que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a tutela da confiança e das expetativas da comunidade na validade da norma jurídica violada.
Como se refere no Ac. da RG de 02/05/2016[11] «A pena tem, sempre, o fim de servir para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal. É o instrumento, por excelência, destinado a revelar perante a comunidade que a ordem jurídica é inquebrantável, apesar de todas as violações que tenham lugar – Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, págs. 74 e ss.
É a chamada prevenção geral positiva ou de integração, que dentro dos limites da medida da culpa determina a pena. Esta, em caso algum, deverá pôr em causa o limite inferior constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. A pena não pode questionar a crença da comunidade na validade da norma violada e, por essa via, o sentimento de confiança e segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.
Se estes fins de defesa do ordenamento jurídico forem postos em causa pela suspensão da execução da prisão, ela não deverá ser decretada, ainda que o tribunal conclua por um prognóstico favorável ao arguido, no que concerne à eficácia desta pena de substituição para o afastar da prática de novos crimes. «A suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime”. Estão aqui em questão “exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da sociabilização em liberdade que ilumina o instituto em análise” – Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 344 § 520 (…)».
A prevenção geral «deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico (…) como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias»[12].
Como elucidativamente se escreve no Acórdão do STJ de 18/06/2015[13]:
«A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime.
Também importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se, pois, de uma convicção subjetiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso (Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 344).
De um lado, cumpre assegurar que a suspensão da execução da pena de prisão não colida com as finalidades da punição. Numa perspetiva de prevenção especial, deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado.
Por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal. (…)».
Tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e baixando ao caso concreto:
O Tribunal a quo fundamentou a decisão de não suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, ora recorrente, nos seguintes termos:
«No caso vertente, temos em conta a gravidade dos factos, as consequências que têm na vida da vítima, e que o arguido é pessoa da sua família, o que torna o seu comportamento mais grave, e não reconhece a sua actuação, não se responsabilizando por ela em consequência. Tendo ainda em conta que os crimes sexuais estão entre aqueles que apresentam maior propensão para a reincidência, e que o arguido continua a estar em contactos com crianças de tenra idade, tanto suas como dos amigos, entende o Tribunal não ser de modo algum possível fazer um juízo de prognose favorável sobre a conduta futura do arguido, pelo que se decide não suspender a execução da pena de prisão.»
O assim decidido pelo Tribunal a quo merece-nos concordância.
Com efeito, por um lado, não obstante o tempo já decorrido sobre a prática dos factos, sendo com referência aos praticados no verão de 2008, mais de 13 anos e ainda que o arguido não registe antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza, reportando-se as condenações sofridas, em momento posterior ao cometimento do crime que está em causa nos autos, a ilícitos de distinta natureza, designadamente, por crime de tráfico de estupefacientes e estando profissional e familiarmente inserido, tendo em conta as características da personalidade do arguido revelada na prática dos factos, evidenciando ter uma personalidade mal formada que se manifesta no seu modo de atuar, aproveitando-se da situação de a menor, irmã da sua companheira, permanecer na sua residência, em determinados períodos, dormindo com a filha do arguido, para a “atacar” e praticar os factos que resultaram provados, não exteriorizando o arguido qualquer atitude que demonstre autocrítica em relação à atuação assumida para com a assistente, então menor, antes pelo contrário, negando ter praticado os factos e acusando a assistente de mentir em relação aos mesmos, evidenciando, dessa forma, egocentrismo, falta de empatia pelo outro e a ausência de sentimentos de culpa.
Neste quadro, não é possível fazer um juízo de prognose favorável, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o arguido da criminalidade.
Por outro lado, sendo elevadíssimas as exigências de prevenção geral que se fazem sentir relativamente ao crime sexuais perpetrados contra crianças, atenta a objetiva gravidade do crime praticado pelo arguido e a necessidade de defesa da sociedade perante este tipo de ilícito, que coloca em causa a liberdade e a autodeterminação sexual de crianças associados ao seu próprio aproveitamento para práticas de auto satisfação sexual do agente, existindo um sentimento de grande repugnância social pelos indivíduos que cometem tal tipo de atos e os traços da personalidade evidenciados pelo arguido, que não se coibiu de a satisfazer os seus impulsos sexuais e instintos libidinosos, com uma criança de 10 anos de idade, apesar do longo tempo já decorrido sobre a prática dos factos, afigura-se-nos que o conteúdo mínimo destas últimas exigências, para que não fiquem defraudadas as expectativas comunitárias relativamente à tutela dos bens jurídicos e a confiança comunitária na validade da norma jurídica violada, só ficará assegurado com a efetiva execução da pena de prisão aplicada.
Concluímos, assim, tal como o Tribunal a quo, que a suspensão da execução da pena não satisfaria as finalidades da punição, impondo-se a execução da prisão para que tais finalidades da punição sejam realizadas.
Improcede, assim, também este fundamento do recurso.
Consequentemente, impõe-se julgar o recurso improcedente e manter a sentença recorrida, o que se decide.
3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Penal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, confirmar, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s (art. 513º, n.ºs 1 e 3, do C.P.P. e art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).
[1] “Em matéria de “crimes sexuais”, as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais.
A experiência científica nesta área ensina que as vítimas de crimes sexuais tendem a não verbalizar o sucedido remetendo-se a um penoso silêncio, recatando a traumática experiência e quando a revelam fazem-no de forma sentida e muitas vezes com retalhos de memória selectivos. É neste contexto muito especial, ademais agravado pela idade do menor (…) que deve ser apreciado o depoimento da vítima. Em inúmeros casos de abuso sexual de crianças, o abusador é uma pessoa em quem a criança confia, conhece e muitas vezes ama. Nos casos de abuso sexual intrafamiliar a psicologia refere-se mesmo a uma ambivalência de sentimentos do menor relativamente ao ofensor que, “para além da dor que provoca à criança pode também ser percebido por esta como a principal fonte de atenção e afecto”.– cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.04.2010, no Processo n.º 43/06.2TAMLG.G1, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho in www.dgsi.pt
[2] Dias, Jorge Figueiredo, in “Comentário Conimbricense do Código Penal – parte especial”, p. 545, Coimbra Ed. 1999.
[3] Dias, Jorge Figueiredo, ob. Cit., p. 447.
[4] Cfr. “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 107.
[5] Dias, Figueiredo, ob. cit.
[6] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.06.1999 in Diário da República, I.ª Série-A, de 03.08.1999
[7] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. da RE de 21/04/2015, proc. 70/13.1GBNIS.E1A, Ac.s da RC de 18/01/2017 e de 17/05/207, respetivamente, proferidos nos procs. 112/15.6GAPNC.C1 e 430/15.3PAPNI.C1 e Ac. da R.L. de 18/01/2017, proc. 1050/14.5PFCSC.L1-3, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[8] Cfr., entre outros, Ac. da RE de 02/02/2016, proc. 114/13.7TARMR.E1 e Ac. da R.C. de 03/06/2015, proc. 12/14.7GBRST.C1, acessíveis in www.dgsi.pt.
[9] Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas - Editorial Notícias, pág. 343.
[10] Prof. Figueiredo Dias, in ob e loc. cit.
[11] Proferido no proc. 347/00.6GACBT, acessível in www.dgsi.pt.
[12] Prof. Fig. Dias, in ob. cit., pág. 333.
[13] Proferido no proc. 270/09.9GBVVD, acessível in www.dgsi.pt.