AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Sumário

I - A ampliação do pedido pode envolver a formulação de um pedido diverso; necessário é que tal pedido assente no mesmo complexo de factos.
II – Se foi facultado ao Réu pronunciar-se sobre a requerida alteração do pedido, competia ao mesmo, no uso da palavra concedida, arguir desde logo de facto e/ou de direito sobre aquela alteração, invocando, se necessário, a necessidade de prazo e/ou de produzir prova.

Texto Integral



Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

AA e BB propuseram ação contra CC, pedindo que seja declarada a existência de uma servidão de passagem, constituída por usucapião, e o Réu condenado a repor a passagem e a retirar o portão lá colocado, abstendo-se de praticar quaisquer atos que impeçam a sua utilização por parte dos Autores.

Alegam, para tanto, em síntese:

O seu prédio, que identifica, confronta com o do Réu, também identificado, não tem qualquer comunicação com a via pública.

Os Autores utilizam, amanham e retiram os frutos do seu imóvel, cujo acesso sempre foi realizado pelos próprios e pelos seus antepossuidores, pelo menos desde 1947, através da serventia localizada a sul do referido prédio, sendo tal serventia utilizada desde tempos imemoriais pelos proprietários de prédios rústicos circundantes.

A utilização de todos é efetuada há mais de 20 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, e na convicção de exercerem um direito próprio correspondente a tal atuação, ou seja, o direito de passar pela referida servidão predial.

A passagem revelava-se por sinais visíveis e permanentes de terra calcada ou pisada, formando um trilho desprovido de qualquer vegetação.

Há cerca de 10 anos, na serventia, o Réu construiu um prédio urbano, sendo que, recentemente, há alguns meses, o Réu colocou um portão a impedir a passagem por essa serventia.

O Réu apresentou contestação e deduziu reconvenção; em síntese:

O Réu aceita a propriedade dos prédios e admite que o prédio dos Autores é um prédio encravado.

Os Autores têm acesso e acedem ao seu prédio, muito esporadicamente, uma vez por ano, por uma faixa de terreno inculta (apenas com mato rasteiro) e com leito pouco definido, situada nos prédios situados entre o seu e o caminho público a nascente, atravessando o prédio confinante com o seu a nascente, aparentemente pertencente a outrem.

O portão a que aludem os Autores substituiu outro, de duas folhas, em ferro pintado de cor negra, que ali foi colocado pelos pais do Réu, DD e EE, logo após a compra do imóvel, em 23 de agosto de 1982, ainda nesse mesmo ano, logo há mais de 20 anos.

O Réu pede que seja declarada extinta a servidão que eventualmente se tenha constituído no seu prédio nos termos do artigo 1574.º do Código Civil, alegando que há mais de vinte anos que impediram os Autores de aceder pelo seu prédio.

Peticiona, subsidiariamente, caso se reconheça a existência da servidão, seja reconhecido ao Réu o direito de se subtrair a tal encargo, adquirindo o prédio encravado dos Autores pelo seu justo valor, nos termos do artigo 1551.º do Código Civil.

O seu prédio contém uma construção, tendo natureza urbana, e tem um terreno adjacente, que constitui o logradouro, que se encontra vedado com um muro em betão com mais de um metro de altura e o chão pavimentado com calçada portuguesa, local por onde os Autores pretendem passar. O prédio dos Autores tem a natureza rústica e é composto por pinhal e mato, tendo um valor de €1.375,00 (mil, trezentos e setenta e cinco euros).

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Na audiência de 14/10/2021, os Autores pediram a alteração do pedido, admitida nos termos do art. 265º, nº3 do C.P.C., ficando a constar “ser declarada a existência de uma servidão de passagem, constituída por usucapião, de pé, carro e trator a favor dos Autores, a sul a norte do prédio do Réu, ao longo da estrema poente do prédio dos Autores e do lado nascente do prédio do Réu, com cerca de 3 metros de largura, sendo o Réu condenado a reconhecer tal servidão”.

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No final foi proferida a seguinte sentença:

Declarar a existência e a constituição do direito de servidão de passagem de pé, carro e trator, por usucapião, onerando o prédio urbano destinado à habitação, sito na Torre ..., ..., ..., a confrontar do norte com FF e FF, do sul com estrada pública, a nascente com GG e HH e do poente com II, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...30, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...50, registado em nome do Réu CC, a favor do prédio rústico composto por pinhal e mato, sito em ... – ..., a confrontar do norte com JJ, do sul e nascente com HH e do poente com KK, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...88, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...81, registado em nome da Autora AA, casada com o Autor BB sob o regime de comunhão geral de bens, com início no limite norte do prédio do Réu, onde confronta perpendicularmente com caminho público, ao longo da estrema poente do prédio dos Autores e, e até este, com cerca de 3 metros de largura, com a seguinte configuração assinalada a vermelho apenas na parte integrante do prédio do Réu:

Condenar o Réu CC a demolir imediatamente o murete que se encontra a bloquear o caminho de servidão referido, construído na estrema poente do prédio rústico dos Autores AA e BB;

Absolver o Réu CC do demais peticionado;

Julgar a reconvenção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvendo dela os Autores AA e BB.

                                                           *

            Inconformado, apresentou o R. recurso, com as seguintes conclusões:

«1. Tendo pedido que fosse “...declarada a existência de uma servidão de passagem, constituída por  usucapião, de pé, carro e tractor a favor dos Autores, a sul do prédio do Réu, ao longo da estrema poente do prédio dos Autores e do lado nascente do prédio do Réu, com cerca de 3 metros de largura...”, os autores não identificam suficientemente o leito da alegada servidão, revelando-se, na alegação dos AA, relativamente indeterminada.

2. Pelo que, nos termos do artigo 186º, nº 1 e nº 2, al. a), do Código de Processo Civil, o presente processo é nulo, por ostensiva ineptidão da petição inicial.

3. Tendo os AA pedido que fosse “...declarada a existência de uma servidão de passagem, constituída por usucapião, de pé, carro e tractor a favor dos Autores, a sul do prédio do Réu...” e posteriormente, após a produção da prova e a produção de alegações, modificado o pedido, no sentido que, afinal a servidão ser constituiu a norte, ocorreu uma alteração do pedido.

4. Nos termos do artigo 264.º do Código de Processo Civil, a alteração do pedido carece de acordo das partes, tendo o R declarado não dar consentimento, pelo que o pedido não pode ser modificado nos termos do referido artigo 264.º.

5. Decidiu o tribunal a quo pela aplicação, in caso, da norma do artigo 265.º, n. 2, do Código de Processo Civil, nos termos ada qual o Autor pode em qualquer altura reduzir e pode ampliar o pedido até ao encerramento da discussão na 1.ª instância, se a ampliação for de desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo.

6. Não será por acaso que a norma fala em “ampliação” (a redução é livre, como é sabido). Ainda que consideremos dentro do conceito de ampliação, uma aceção mais do que quantitativa, também qualitativa, ainda assim, não conseguimos ver acolhida na previsão legal a alteração preconizada pelos AA.,

7. O que verdadeiramente decorre da modificação do pedido feita pelos AA é uma alteração, quer quanto à localização, quer quanto à extensão da invocada servidão, passando do lado sul para o lado norte e a extensão agravada em três a quatro vezes relativamente ao percurso inicialmente pedido, não se comportando na previsão e limites do artigo 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

8. Tendo o R organizou toda a sua defesa e prova, no pressuposto de que os AA queriam ver declarada a servidão a sul, admitindo a alteração do pedido, nos sobreditos termos, depois de produzida toda a prova, o tribunal a quo faz tábua rasa dos mais elementares princípios do processo civil, nomeadamente, do dispositivo e do contraditório. havendo, também, por isso, de declarar-se nula.

9. O tribunal a quo deu como provado que “Os pais do Réu construíram um murete, ainda antes da  construção da casa de habitação referida em 4.1.6., no lado poente do prédio descrito em 4.1.1., que confronta com o prédio descrito em 4.1.3., de blocos pré moldados e de betão, que veda qualquer possibilidade de acesso ao prédio descrito em 4.1.1., pelo lado norte, de todas as formas, seja veículo, tractor ou a pé.”, quando, o depoimento das testemunhas indicadas pelos AA, que mereceram a credibilidade do julgador, apontam para o facto de tal murete ter sido contruído há mais de 30 anos; facto que deveria ter-se acolhido na matéria provada, dada a sua relevância para o primeiro pedido reconvencional formulado pelo do R (usucapio libertatis)

10. Outrossim, deveria (deverá) dar-se por provado que:

4.1.7. Os pais do Réu construíram um mureto, ainda antes da construção da casa de habitação referida em 4.1.6., há 30 ou mais anos, no lado poente do prédio descrito em 4.1.1., que confronta com o prédio descrito em 4.1.3., de blocos pré moldados e de betão, que veda qualquer possibilidade de acesso ao prédio descrito em 4.1.1., pelo lado norte, de todas as formas, seja veículo, tractor ou a pé.

11. O tribunal a quo deu como provado que:

 “4.1.11. O prédio descrito em 4.1.1. (assinalado a cor amarela na imagem que se segue), não tem acesso directo à via pública, confrontado com outro prédio rústico, com características de vinha (assinalado a cor verde na imagem que se segue), que não o do R (assinalado apenas a área onde está implantada a casa de habitação, a cor azul na imagem que se segue), que bate com caminho público (assinalado a cor lilás na imagem que se segue).”

12. O ponto deveria, tão, só, evidenciar tal facto, posto que apenas tal facto foi alegado pelos AA, revelando-se o mais, aliás, ostensivamente divergente da realidade. Com efeito, não há forma de contrariar o que a própria imagem acolhida pela sentença evidencia: o prédio dos AA não confina com a via pública, confinando com vários outros prédios rústicos. E não apenas com “outro prédio rústico” assinalado. Pugnando-se pela alteração da redacção deste ponto neste sentido: o prédio dos AA não confina com a via pública, confinando com vários outros prédios rústicos.

13. Admitiu a douta sentença como provado que: “4.1.12. Os Autores retiravam madeira do prédio descrito em 4.1.1., plantavam e colhiam eucaliptos, e procediam à sua limpeza acedendo ao mesmo e, bem assim, os seus antepossuidores, através de um caminho que, medido desde a estrema sul do prédio do Réu, até à estrema poente do prédio da Autora, conta com aproximadamente 85,2 metros de comprimento, e com uma largura de sensivelmente 3 metros, ao qual tinham acesso tanto pelo lado sul como pelo lado norte do prédio descrito em 4.1.3”

14. Tal factualidade, se não contraditória nos seus próprios termos é, pelo menos confusa. Inculca a ideia da existência de duas servidões: uma “...que, medido desde a estrema sul do prédio do Réu, até à estrema poente do prédio da Autora, conta com aproximadamente 85,2 metros de comprimento, e com uma largura de sensivelmente 3 metros, ao qual tinham acesso tanto pelo lado sul...” e outra, pelo lado norte, que dava acesso a esta. É que se a serventia situada a sul do prédio do R terminava na estrema poente do prédio da Autora, o acesso a este ponto só seria possível por outra serventia diversa, com início a norte...

15. Em boa verdade, o que alegam os AA não é uma servidão, mas um “caminho”, “traçado” ou “atravessadouro”, que ligava o “número 1” ao “número 2”, ou seja dois caminhos públicos, a sul e a norte. Não legam, de todo, que o traçado da servidão tivesse duas alternativas, com início a norte e a/ou a sul.

16. O facto o circunstância de por razões várias, estranhas ao exercício da alegada servidão, os AA e seus antepassados terem, também, algumas vezes, acedido ao seu prédio pelo lado norte do prédio do R, nada releva para causa a decidir.

17. O que importam são os factos constitutivos do seu alegado direito: constituição de servidão de passagem por usucapião. E os AA alegam claramente a constituição pelo lado sul, com início no caminho público e termo (entrada no seu imóvel) no extremo poente do seu prédio.

18. Neste conspecto, a parte do trecho da matéria provada acima descrito carece de ser amputada do que não foi alegado: “...ao qual tinham acesso tanto pelo lado sul como pelo lado norte do prédio descrito em 4.1.3”, havendo tal trecho de quedar-se pela seguinte redacção:

“4.1.12. Os Autores retiravam madeira do prédio descrito em 4.1.1., plantavam e colhiam eucaliptos, e procediam à sua limpeza acedendo ao mesmo e, bem assim, os seus antepossuidores, através de um caminho que, medido desde a estrema sul do prédio do Réu, até à estrema poente do prédio da Autora, conta com aproximadamente 85,2 metros de comprimento, e com uma largura de sensivelmente 3 metros.”

19. Não existe, nem alegação nem prova da constituição da almejada servidão pelo lado norte do prédio do R. Toda a alegação se reporta à serventia localizada a sul do referido prédio (prédio do R – artigo 7º da P.I.)

20. É a este traçado que reportam os elementos e características da sua alegada posse (artigo 11º a 16º da P.I.). Deste modo, a invocada adquisição originária do direito nunca poderia proceder por um outro leito, não alegado e relativamente ao qual não foi reportada a posse.

21. Também por esta vertente a sentença viola, além mais o princípio do dispositivo.

22. O tribunal deu como não provado que:

4.2.7. Os Autores, bem como os seus antepassados, utilizavam o caminho descrito em 4.1.12. ininterruptamente, sem oposição de ninguém.

23. Ora, é sabido que a usucapião depende de dois elementos: a posse e o decurso do período de tempo. E duas características: ser pública e pacífica. Assim, ainda que se admitisse ter a alegada posse dos AA a característica da publicidade ela não é (não foi) pacífica, sendo tais elementos e características factos constitutivos do direito invocado pelos AA, que a estes competia alegar e provar.

24. Consequentemente, nunca poderia conduzir à aquisição originária do direito por usucapião, como foi reclamado e, erradamente, sentenciado, por falta desse facto constitutivo: pacificidade da alegada posse.(v. a título de exemplo, o acórdão do STJ, no processo nº 4436/03.7TBALM.L1.S1, relatado pelo juiz conselheiro Nuno Cameira, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/)

25. No que concerne ao pedido reconvencional de usucapio libertatis, o tribunal a quo, reconhecendo o R se opôs ao exercício da servidão por parte dos AA, considera, no entanto que: “A oposição do titular do direito real de gozo maior sobre o prédio serviente ao exercício da servidão deve, necessariamente, ser acompanhada pela inércia do titular do direito real de gozo menor perante essa oposição. Se o titular do direito real de gozo menor reagir contra a oposição realizada pelo titular do direito real de gozo maior, nomeadamente através do recurso às acções judiciais (…), o prazo da usucapio libertatis interrompe-se, inutilizando todo o tempo até então decorrido, nos termos dos artigos 323.º, n.º 1 e 326.º, n.º 1, ex vi do artigo 1292.º, ex vi do artigo 1574.º, n.º 1” (cfr. Rui Pinto e Cláudia Trindade, “Código Civil Anotado, Volume II (artigos 1251.º a 2334.º)”, Coimbra, Almedina, 2019, pág. 452,”

26. Não curou, porém de averiguar se, à data da primeira reacção (“4.1.21. No dia 17 de Abril de 2018, os Autores acederam ao seu prédio, para proceder à sua limpeza, pelo lado sul do caminho descrito em 12., ou seja, a sul do prédio do Réu”), já havia decorrido o prazo prescricional de 20 anos para a invocada usucapio libertatis e é inquestionável que tinha, pois os “4.1.7. Os pais do Réu construíram um murete ainda antes da construção da casa de habitação referida em 4.1.6., no lado poente do prédio descrito em 4.1.1., que confronta com o prédio descrito em 4.1.3., de blocos pré moldados e de betão, que veda qualquer possibilidade de acesso ao prédio descrito em 4.1.1., pelo lado norte, de todas as formas, seja veículo, tractor ou a pé.”; há 30 ou mais anos...” (matéria que se pugna por provada)

27. Considerar a constituição da servidão em análise uma “servidão voluntária”, para efeitos de não aplicação do artº 1551º do Código Civil, não passa de pura ficção conceptual, que não serve os desígnios da composição dos conflitos, justa e adequada.

28. A realidade é que o imóvel do R é um URBANO “...encontra-se vedado com um muro de betão com mais de 1 metro de altura” /(facto provado 4.1.8.), sendo o prédio dos AA é um RÚSTICO, composto de pinhal e mato, com área total de mil trezentos e setenta e cinco metros quadrados ... contém eucaliptos, mesclados por pinheiro... factos (4.1.1. e 4.1.2.)

29. Admitir-se a manutenção de uma servidão de passagem pelo prédio urbano murado a favor de um pequeno prédio rústico, composto de mato e alguns pinheiro e eucaliptos, traduz-se num excessivo, para não dizer mesmo insuportável, sacrifício do prédio do R em favor de um escasso benefício do prédio dos AA.

30. O que, assim configuradas as coisas, ocorre mesmo abuso de direito.

31. E nem se diga que com tal paralisação, por abuso de direito, se colocaria os AA numa posição insustentável, por impossibilidade absoluta de acederam ao seu prédio, porquanto resulta evidente nos autos que a sua proximidade com a via pública, do lado oposto àquele por onde caprichosamente pretendem passar, é muitas vezes menor e não implica sacrifício relevante para o (ou os) que viessem a suportar tal ónus, dado que são de idêntica natureza.

32. Assim, na procedência das invocadas nulidades ou, quando assim não se entenda, das demais conclusões supra, sempre com o douto suprimento de V. Exas, deve a douta decisão ser anulada, ou revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente improcedente ou, quando se decida pela procedência, julgar-se procedente os pedidos reconvencionais, pela ordem de alegação subsidiária que formulou o R., com todas as legais consequências.

                                                                       *

            Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                                       *

            Em despacho liminar nesta instância de recurso, o então Relator ordenou a notificação das partes para se pronunciarem sobre o eventual conhecimento do pedido formulado na p.i. e bem assim para exercício do contraditório quanto ao possível enquadramento da revogação da decisão interlocutória de 14/10/2021 que admitiu a modificação do pedido, decisão essa também objeto do recurso [cf. arts. 3º, nº3 e 665º, nº3 do C.P.C.], ao que ambas as partes corresponderam, com a apresentação de articulados aqui dados por reproduzidos.

                                                                      *

            Questões a decidir:

            Admissibilidade da modificação do pedido;

Nulidade da decisão de 14.10.2021, por violação do dispositivo e do contraditório;

Ineptidão da petição inicial;

Contradição no dispositivo;

Impugnação da matéria de facto, devendo o Tribunal dar uma diversa redação aos pontos de facto dados como “provados” sob “4.1.7.”, “4.1.11.”, “4.1.12.” e “4.1.14.”;

Existência da servidão;

Extinção da servidão [por “usucapio libertatis”];

Aquisição nos termos do art. 1551º do C. Civil.

                                                           *

O Tribunal recorrido considerou os seguintes factos provados:

«4.1.1. O prédio rústico composto de pinhal e mato, com área total de mil trezentos e setenta e cinco metros quadrados, situado em “... – ...”, a confrontar do norte com JJ, do sul e nascente com HH e do poente com KK, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...88, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o artigo ...81, da aludida freguesia, está registado em nome da Autora casada com o Autor segundo o regime da comunhão geral de bens, mediante ap. n.º ...76 de 15 de Novembro de 2018, por partilha da herança aberta por óbito do pai da Autora, GG.

4.1.2. O prédio descrito em 4.1.1. contém eucaliptos, mesclados por pinheiros que se apresentam em menor número.

4.1.3. O prédio urbano destinado à habitação, com área total de cinco mil e oitocentos metros quadrados, em propriedade total sem andares, nem divisões susceptíveis de utilização independente, sito na Torre ..., ..., ..., que teve origem no artigo urbano ...21, a confrontar do norte com FF e FF, do sul com estrada pública, a nascente com GG e HH e do poente com II, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...50, mediante apresentação n.º ...8 de 3 de Novembro de 1999, está inscrito a favor do Réu, por partilha da herança por morte de DD, ao que se seguiu, mediante apresentação n.º ...9 de 3 de Novembro de 1999-, doação de ½ deste prédio a LL e subsequente doação, por LL ao Réu, de ½ deste prédio, mediante apresentação n.º ...07 de 26 de Novembro de 2013.

4.1.4. O prédio urbano descrito em 4.1.3. formou-se por unificação material na sequência dos seguintes actos:

- Por escritura pública de compra e venda, outorgada no Cartório Notarial ... a 23 de Agosto de 1982, DD (pai do Réu), declarou comprar a KK e mulher MM, que declararam vender, um prédio rústico, sito no Lugar ..., ..., denominado “...”, composto de pinhal e mato, (então) a confrontar do norte com FF, do nascente com GG e HH, do sul e poente com NN, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...10 e omisso na Conservatória do Registo Predial;

- Por escritura pública de compra e venda, outorgada no Cartório Notarial ... a 23 de Agosto de 1982, DD (pai do Réu), declarou comprar a NN e mulher, OO, que declararam vender, um prédio rústico, sito no Lugar ..., ..., denominado «...», composto de pinhal e mato, (então) a confrontar do norte com FF, do nascente com o prédio descrito em 4.1.1., do sul com HH e poente com II, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...11 e omisso a Conservatória do Registo Predial.

4.1.5. Após as aquisições dos prédios rústicos descritas em 4.1.4., e a consequente unificação material dos mesmos dando origem ao prédio descrito em 4.1.4., foi colocado um portão a vedar o prédio descrito em 4.1.4., a sul do mesmo, de duas folhas, em ferro e de cor preta.

4.1.6. O prédio descrito em 4.1.3. contém, atualmente, uma casa de habitação, que iniciou a sua construção antes de 2000, em data não concretamente apurada, com uma garagem implantada no logradouro, a norte, de profundidade máxima igual a 10,37 metros e com cerca de 4,15 metros de largura, numa configuração trapezoidal irregular, apresentando ainda no limite norte uma pequena construção que corresponde à casa do gás com 1,45 metros, por 0,90 metros de mancha agarrada ao corpo principal da garagem, até à estrema que confina com o prédio dos Autores, descrito em 4.1.1..

4.1.7. Os pais do Réu construíram um murete, ainda antes da construção da casa de habitação referida em 4.1.6., no lado poente do prédio descrito em 4.1.1., que confronta com o prédio descrito em 4.1.3., de blocos pré moldados e de betão, que veda qualquer possibilidade de acesso ao prédio descrito em 4.1.1., pelo lado norte, de todas as formas, seja veículo, trator ou a pé.

4.1.8. O prédio do Réu, descrito em 4.1.3., encontra-se vedado com um muro de betão com mais de 1 metro de altura.

4.1.9. O portão referido em 4.1.5. foi substituído, recentemente, em data não concretamente apurada, por outro, de cor branca, que impede o acesso, pelo lado sul, quer pedonal quer através de viatura ao prédio descrito em 4.1.1..

4.1.10. O prédio rústico descrito em 4.1.1. tem como valor actual €1.718,75 (mil, setecentos e dezoito euros e setenta e cinco cêntimos) mais cerca de €800,00 (oitocentos euros), pelo material lenhoso, o que perfaz o valor de €2.518,75(dois mil quinhentos e dezoito euros e setenta e cinco cêntimos).

4.1.11. O prédio descrito em 4.1.1. (assinalado a cor amarela na imagem que se segue), não tem acesso direto à via pública, confrontado com outro prédio rústico, com características de vinha (assinalado a cor verde na imagem que se segue), que não o do Réu (assinalado apenas a área onde está implantada a casa de habitação, a cor azul na imagem que se segue), que bate com caminho público (assinalado a cor lilás na imagem que se segue).

4.1.12. Os Autores retiravam madeira do prédio descrito em 4.1.1., plantavam e colhiam eucaliptos, e procediam à sua limpeza acedendo ao mesmo e, bem assim, os seus antepossuidores, através de um caminho que, medido desde a estrema sul do prédio do Réu, até à estrema poente do prédio da Autora, conta com aproximadamente 85,2 metros de comprimento, e com uma largura de sensivelmente 3 metros, ao qual tinham acesso tanto pelo lado sul como pelo lado norte do prédio descrito em 4.1.3..

4.1.13. O caminho referido em 4.1.12., até ao extremo poente do prédio dos Autores, é composto por 35,1 m2 de “pavê”, 112,5 m2 de terra batida, 78 m2 de calçada de cubos de calcário, 30 m2 ocupados com a garagem do Réu, descrita em 4.1.6..

4.1.14. O caminho referido em 4.1.12. continua em direção a norte (assinalado a cor vermelha na imagem que segue), para além da estrema poente do prédio descrito em 4.1.1., terminando no confronto com o caminho público (assinalado a cor lilás na imagem que segue) situado a norte do prédio descrito em 4.1.3.:


4.1.15. O caminho mencionado em 4.1.12. era utilizado, desde tempos imemoriais, pelos proprietários de prédios rústicos a ele circundantes, como seja PP, a favor de quem se encontra inscrita a titularidade do prédio rústico, sito no ..., inscrito sob o artigo matricial n.º ...87, composto de pinhal e mato, a confrontar do norte com QQ, do Sul com GG, do nascente com HH e do poente com KK, e por outros proprietários dos prédios rústicos, que existem ao longo deste caminho.

4.1.16. Os Autores, bem como os seus antepassados, fazem parte dos proprietários que confinam com o caminho descrito em 4.1.12. e que, desde tempos imemoriais, o utilizavam para chegar aos seus prédios, há mais de 20 anos, à vista de todos, na convicção de exercerem um direito próprio correspondente a tal atuação.

4.1.17. Tal passagem revela-se por sinais visíveis e permanentes de terra calcada ou pisada, formando um trilho desprovido de vegetação (imagem sem tracejado do caminho para se denotar os sinais):


4.1.18. Após a construção da casa de habitação e respectiva garagem referida em 4.1.6. o acesso aos prédios rústicos que confinavam com o caminho referido em 4.1.12., deixou de poder ser feito, de forma livre, por sul, por conta das construções aí edificadas.

4.1.19. No entanto, apesar da construção referida em 4.1.6., ainda era fisicamente possível passar pelo caminho a sul, na medida em que o portão descrito em 4.1.5. estivesse aberto.

4.1.20. Em 8 de Junho de 2017 os Autores foram notificados pela Câmara Municipal ... para proceder à limpeza do seu prédio.

4.1.21. No dia 17 de Abril de 2018, os Autores acederam ao seu prédio, para proceder à sua limpeza, pelo lado sul do caminho descrito em 12., ou seja, a sul do prédio do Réu.

4.1.22. No dia 17 de Abril de 2018, os Autores, após procederem à limpeza do seu prédio, ao tentarem sair, foram impedidos por familiares do Réu.

4.1.23. Por sentença transitada em julgado, no processo n.º 1082/19...., que corresponde a um Recurso de Contraordenação, em que a Autora figura como recorrente e o Núcleo de Investigação de Crimes e Contra Ordenações Ambientais – Secção do Serviço de Protecção da Natureza e Ambiente do Comando Territorial de ... da Guarda Nacional Republicana, como recorrido, foi absolvida a recorrente da contraordenação prevista e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 15.º e 38.º do Decreto-lei n.º 124/2006, de 28 de Junho e do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 10/2018, de 14 de Fevereiro, por não se encontrar verificado o elemento subjetivo.

4.1.24. Correu termos no Tribunal Judicial ... – Instância Local – Secção Cível – J..., o processo sob o n.º 39/14.... em que os Autores, RR e, mulher, Encarnação do Sacramento Lourenço Jorge, e o Réu, CC, acordaram, a 23 de Maio de 2016, na constituição de uma servidão de passagem a onerar o prédio descrito em 4.1.3. e a iniciar no limite norte do respectivo prédio.»  

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Factos não provados:

«4.2.1. Após as aquisições dos prédios rústicos descritas em 4.1.4., e a consequente unificação material dos mesmos, o portão colocado a sul para vedar o prédio descrito em 4.1.3., permanecia sempre fechado.

4.2.2. Os Autores retiram frutos do seu imóvel, tendo o acesso ao seu prédio rústico sido sempre realizado, pelos próprios e pelos seus antepossuidores, através da serventia localizada a sul do referido prédio.

4.2.3. Os Autores, bem como os seus antepassados, cultivam culturas várias no seu prédio.

4.2.4. O prédio urbano descrito em 4.1.3. foi construído no caminho descrito em 4.1.12., há cerca de 10 anos.

4.2.5. O caminho mencionado em 4.1.12. era utilizado, desde tempos imemoriais, por SS, proprietário do prédio rústico inscrito no Serviço de Finanças ... sob o artigo matricial n.º ...18 da herança de TT, e por outros proprietários dos prédios rústicos, que existem ao longo dessa serventia.

4.2.6. Desde o ano de 1947 que se verifica na planta de localização dos prédios a existência do caminho descrito em 4.1.12., até ao ano de 2002, data em que o mesmo deixa de aparecer nas plantas de localização.

4.2.7. Os Autores, bem como os seus antepassados, utilizavam o caminho descrito em 4.1.12. ininterruptamente, sem oposição de ninguém.

4.2.8. Pelo caminho descrito em 4.1.12., até há cerca de 10 anos, sempre passaram os proprietários dos prédios a ele confinantes, e seus antecessores, com tratores, moto cultivadores e anteriormente carros de tração animal, transportando as suas colheitas, assim, como ao longo do ano, para sulfatar as vinhas, podar videiras e oliveiras, semear e colher cereais (milho, feijão) etc.

4.2.9. Os pais do Réu, logo após a aquisição dos imóveis que deram origem ao actual prédio descrito em 4.1.3. antes do final do ano seguinte, ou seja, 1983, vedaram o prédio, a sul, aí colocando um portão, fechado, de duas folhas, em ferro pintado de cor preta.

4.2.10. E, assim, quer pela ocupação do chão com uma cultura (vinha), quer pela vedação, impedindo todos quantos, usando a abusando do sobredito atravessadoiro aparente, por ali teimavam em querer passar, incluindo os Autores e antepossuidores do seu prédio.

4.2.11. E desde essa data que, com convicção e acções próprias, que os antepossuidores e posteriormente o Réu, que não mais os deixaram passar, fosse pelo local onde aparentemente pretendem ver reconhecida a servidão, a sul.

4.1.12. Desde o momento em que os pais do Réu colocaram o portão de cor preta a vedar o prédio descrito em 4.1.3. que, com convicção e acções próprias, eles antepossuidores e posteriormente o Réu, não mais deixaram passar os Autores e antepossuidores do prédio descrito em 4.1.1., a sul do prédio do descrito em 4.1.4..

4.2.13. Os Autores têm acesso e acedem ao seu prédio identificado em 4.1.1., muito esporadicamente e seguramente à razão de menos de uma vez por ano, por uma faixa de terreno inculta (apenas com mato rasteiro) e com leito pouco definido, situada nos prédios situados entre o seu e o caminho público a nascente, percorrendo, atravessando, assim, o prédio confinante com o seu a nascente, aparentemente pertencente a PP e marido, UU e até este por cima de um outro prédio rústico, este confinante a nascente com o caminho público, aparentemente pertencente em comum e sem determinação de parte ou direito, a várias pessoas, entre as quais o ..., VV, WW e XX.

4.2.14. Em 8 de Junho de 2017, os Autores tentaram aceder ao seu prédio para procederem à limpeza do mesmo, mas não conseguiram por impedimento do Réu e seus familiares.

4.2.15. No dia 17 de Abril de 2018, os Autores, após procederem à limpeza do seu prédio, contactaram telefonicamente a GNR.

4.2.16. Quando os Autores, na data de 17 de Abril de 2018, acederam ao seu prédio pelo lado sul do caminho descrito em 4.1.12., ou seja, a sul do prédio do Réu, ainda lá não estava instalado o portão branco referido em 4.1.9.

4.2.17. Em 13 de Maio de 2018, acompanhados pela brigada da SEPNA, os Autores tentaram aceder ao seu terreno, no entanto foi possível constatar a impossibilidade de entrada no prédio para se proceder à limpeza.

4.2.18. Em 19 de Maio de 2018 os Autores tentaram aceder ao seu prédio, no entanto, não conseguiram.

4.2.19. O prédio descrito em 4.1.1. tem o valor actual de €1.375,00 (mil, trezentos e setenta e cinco cêntimos).»

                                                                       *

Admissibilidade da modificação do pedido.

Em primeiro lugar, não é por ter alegadamente havido errada interpretação da lei, designadamente por não estarem verificados os pressupostos legais para uma “modificação do pedido”, que resultaria numa “nulidade” dessa decisão.

Haverá desacerto da decisão?

Rememoremos brevemente os termos literais da questão.

Tinha sido formulado na p.i., sob a respetiva alínea “a)”, o pedido de que fosse «(...) declarada a existência de uma servidão de passagem, constituída por usucapião, de pé, carro e trator a favor dos Autores, a sul do prédio do Réu, ao longo da estrema poente do prédio dos Autores e do lado nascente do prédio do Réu, com cerca de 3 metros de largura, sendo o Réu condenado a reconhecer tal servidão.» [sublinhado nosso]

Pretendendo-se, com a alteração em referência, que passasse a figurar «(...) declarada a existência de uma servidão de passagem, constituída por usucapião, de pé, carro e trator a favor dos Autores, a norte do prédio do Réu, ao longo da estrema poente do prédio dos Autores e do lado nascente do prédio do Réu, com cerca de 3 metros de largura, sendo o Réu condenado a reconhecer tal servidão.» [sublinhado nosso]

Vejamos.

O art. 265º, nos 1 e 2, do CPC, sob a epígrafe “Alteração do pedido e da causa de pedir na falta de acordo”, prescreve que:

«1 – Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação.

2 – O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.»

Deste art. 265º, nº 2, decorre que, na falta de acordo entre as partes, como sucede in casu, qualquer tipo de modificação do pedido é legalmente admissível desde que seja o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo.

O que entender por «desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo»?

Já foi doutamente esclarecido, a propósito desta questão, «O que é necessário é que a ampliação ou o pedido cumulado seja desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, e que por conseguinte tenham essencialmente origem comum – causas de pedir, senão totalmente idênticas, pelo menos integradas no mesmo complexo de factos»[1].

Outrossim já foi sustentado que «a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial»[2].

A alteração do pedido pode consistir não numa modificação por acrescentamento (ampliação) mas na sua transformação (em vez do pedido inicial deduz-se outro, suprimindo-se o primitivo)[3]. Neste caso, a modificação unilateral do pedido por transformação envolve a desistência do pedido substituído pela transformação.[4]

Donde, a ampliação pode envolver a formulação de um pedido diverso – ponto é que tal pedido e o pedido primitivo tenham essencialmente causas de pedir, senão totalmente idênticas, pelo menos integradas no mesmo complexo de factos.

Nesta mesma linha de entendimento, o artigo 265º citado, no seu nº 6, permite ainda a modificação do pedido e da causa de pedir naqueles casos em que não esteja em causa a convolação para uma relação jurídica diversa da controvertida mas apenas uma que seja dependente ou sucedânea da primeira[5].

Revertendo estes ensinamentos ao caso vertente, cremos que a conclusão é a de que se verificam os requisitos legais para ser deferida a requerida alteração do pedido.

Na verdade, está em causa uma modificação do pedido que envolvia a parte do prédio do R. através da qual se pretendia aceder ao prédio dos Autores – em vez de ser pelo seu Sul, ser pelo seu Norte.

A alternativa já estava presente nos factos alegados.

A mudança decorre de uma desistência da alternativa sul.

Ora, se assim é, trata-se da mesma causa de pedir – servidão onerando o prédio do R. em favor do prédio dos AA., desenvolvendo-se ao longo da estrema poente do prédio destes últimos, sendo que a serventia, no seu todo, se estendia quer para norte do prédio do R. até entroncar no caminho público aí existente [identificada na p.i. como “parte nº1”], quer para sul do prédio do R., também até entroncar em outro caminho público aqui existente [identificada na p.i. como “parte nº2”].

Dito de outra forma: a causa de pedir deste novo pedido, a não se considerar idêntica, integrava-se no mesmo complexo de factos, sendo em função de tal que se deduziu um pedido que substituiu o primeiro, por reportado a uma relação jurídica que, sem ser diversa da primitiva, era sua sucedânea.

Improcede, assim, a argumentação recursiva quanto a esta questão.

                                                                       *

            Nulidade decorrente da violação do princípio do dispositivo e do contraditório:

            Quanto a este aspeto, sustenta o R./recorrente nas suas alegações recursivas que

            «(….)

O R organizou toda a sua defesa e prova, no pressuposto de que os AA queriam ver declarada a servidão a sul. Nesse pressuposto impugnou a matéria alegada; reconveio a sua extinção ou, subsidiariamente, a aquisição do prédio encravado.

O assim decidido faz tábua rasa dos mais elementares princípios do processo civil, nomeadamente:

Dispositivo, ao tratar-se de direito disponível, sempre dependeria da iniciativa das partes e não ao tribunal, a eventual modificação.

Contraditório, ao aceitar-se uma alteração substancial do pedido, finda a produção da prova e, inclusive, produzidas as alegações da parte.

Tal decisão, por absoluta falta de fundamento legal, é nula.»

Que dizer?

Quanto à alegada violação do princípio do dispositivo, salvo o devido respeito, não se consegue divisar a dimensão em que tal tenha ocorrido: é que, ao invés do que foi a esse propósito referido, no caso vertente o deferimento da modificação do pedido foi expressamente requerido pelos AA., donde da sua iniciativa [ainda que após “sugestão” da Exma. Julgadora].

Quanto ao contraditório, o nº 3 do art. 3º do CPC expressamente dispõe que «o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».

O contraditório é entendido como uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.[6]

Ora, no caso, foi facultado ao R. pronunciar-se sobre a alteração do pedido antes de a Exma. Juíza de 1ª instância proferir decisão final sobre tal matéria.

Competia então àquele, no uso da palavra concedida, arguir de facto e/ou de direito sobre aquela alteração, invocando, se necessário, a necessidade de prazo e/ou de produzir prova, ónus assente nos princípios do dispositivo e da auto responsabilidade das partes.

Quando tem a palavra, a parte deve unificar a sua posição, dizendo tudo o que tem para dizer sobre a questão, tendo assim toda a possibilidade de influir no decurso do processo e na decisão. (Veja-se a respeito dos incidentes o que dizem os arts.292 e seguintes do CPC, em especial o 293.)

Não era necessário conceder de novo a palavra à parte após a decisão sobre a admissibilidade da modificação do pedido.

Pelo que inexiste violação do contraditório.

                                                           *

Sobre o recurso da sentença final:

Nulidade decorrente de ineptidão da petição inicial:

Sustenta o R./recorrente, quanto a este particular, que a mesma resulta da indeterminabilidade da reclamada serventia, sendo que para o efeito transcreve o que alegou oportunamente no seu articulado de contestação.

Comecemos por dizer que a ineptidão da p.i., como causa de nulidade desta, tal como prevista no art. 186º do CPC, não é uma nulidade da sentença, mas antes uma nulidade processual, de conhecimento oficioso.

Como quer que seja, aderimos ao entendimento de que se o Juiz de 1ª instância, ao proferir a sentença, não apreciou uma tal questão de conhecimento oficioso, estará em causa uma nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº1, d) do CPC[7], pelo que será à luz deste enquadramento que se vai prosseguir nesta parte.

Enfermará então a petição de “ineptidão”?

Cremos que não.

Ainda que imperfeitamente expressa a pretensão dos Autores, designadamente quanto à concreta implantação da servidão (ou obscuridade do modo por que foi indicada), não havendo obviamente falta da causa de pedir ou do pedido, também não nos parece que tal constituísse ininteligibilidade da causa de pedir enquanto fundamento do pedido, antes podendo vir a determinar a inviabilidade da ação.

Sem embargo disso, sempre ocorre no caso vertente que o Réu, não tendo arguido a ineptidão, atentos os demais termos pelos quais deduziu a contestação, interpretou convenientemente a petição inicial, o que só por si conduziria a que a pretensa nulidade não fosse declarada.

                                                           *

Contradição no dispositivo.

Alega o Recorrente nesta vertente recursiva que, por via e em consequência da modificação do pedido, este ficou assim configurado:

«“a) ...declarada a existência de uma servidão de passagem, constituída por usucapião, de pé, carro e tractor a favor dos Autores, a sul norte do prédio do Réu, ao longo da estrema poente do prédio dos Autores e do lado nascente do prédio do Réu, com cerca de 3 metros de largura, sendo o Réu condenado a reconhecer tal servidão.

Decidindo a sentença:

Declarar a existência e a constituição do direito de servidão de passagem de pé, carro e tractor, por usucapião, onerando o prédio urbano destinado à habitação, sito na Torre ..., ..., ..., a confrontar do norte com FF e FF, do sul com estrada pública, a nascente com GG e HH e do poente com II, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...30, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...50, registado em nome do Réu CC, a favor do prédio rústico composto por pinhal e mato, sito em ... – ..., a confrontar do norte com JJ, do sul e nascente com HH e do poente com KK, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...88, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...81, registado em nome da Autora AA, casada com o Autor BB sob o regime de comunhão geral de bens, com início no limite norte do prédio do Réu, onde confronta perpendicularmente com caminho público, ao longo da estrema poente do prédio dos Autores e, e até este, com cerca de 3 metros de largura, com a seguinte configuração assinalada a vermelho apenas na parte integrante do prédio do Réu.”

A sentença declara a existência de uma servidão, com início no limite norte do prédio do Réu onde confronta perpendicularmente com caminho público, assumido um facto que não foi alegado pelas partes e é notoriamente falso, porquanto o prédio do R, a norte, não confronta com a via pública. (o que resulta, desde logo, da descrição predial e inscrição matricial)

E acrescenta: com a seguinte configuração assinalada a vermelho apenas na parte integrante do prédio do Réu, induzindo a ideia que a servidão onera outro ou outros prédios.

Neste segmento a sentença é contraditória, ao referir que a servidão tem início no limite norte do prédio do Réu, onde confronta perpendicularmente com caminho público e, ao mesmo tempo, que o respectivo traçado assinalado se reporta à parte integrante do prédio do Réu.

Por outro lado, a remissão na parte dispositiva da sentença para um “croquis” sem escala e sem elementos complementares, não permite determinar, no terreno, onde se pretende situar o leito da servidão.»

Que dizer?

Em nosso entender, existe ambiguidade ou obscuridade da decisão, que a torna ininteligível [cf. art. 615º, nº1, al. c) do CPC].

Vejamos.

Porventura sentido a dificuldade de descrever a serventia, a Exma. Julgadora optou pelo recurso a uma imagem com implantação gráfica ilustrativa da decisão [cf. página 6 supra].

Sucede que, com isso, introduziu dúvida e confusão: repare-se que o prédio do R. aparece aí unicamente configurado como constituindo um triângulo, com características compatíveis com a sua qualificação como “prédio urbano destinado à habitação” e posicionado na parte inferior da imagem (isto é, a Sul), quando a servidão que se declarou existir e estar a onerá-lo se estende totalmente para Norte desse indicado prédio do R., para um área que aparentemente seria mais curial qualificar como “florestal”/ “rústica”.

Depois, existe uma completa incongruência na apresentação da configuração e limites do prédio do R., no seu cotejo e confronto com o prédio dos AA.: segundo o alegado e apurado, o prédio dos AA. (descrito na CRP sob o nº ...81) tem a área total de 1375 m2 (cf. facto “4.1.1.”) e o prédio do R. (descrito na CRP sob o nº ...50) tem a área total de 5800 m2 (cf. facto “4.1.3.”); contudo, na implantação gráfica já referida, a olho nu, a mancha correspondente a um e outro (o dos AA. corresponde a um retângulo e o do R. a um triângulo) é sensivelmente igual (?!).

A esta luz, merece-nos inteiro acolhimento a crítica do R. nas suas alegações recursivas, mais concretamente quando alude a que «(…) a remissão na parte dispositiva da sentença para um “croquis” sem escala e sem elementos complementares, não permite determinar, no terreno, onde se pretende situar o leito da servidão.»

Ademais, do facto provado “4.1.6.”, também consta que existe uma “pequena construção que corresponde à casa do gás” situada no “limite norte” do prédio do R. [tudo com referência ao tal prédio apresentado com a configuração de um triângulo, com características de prédio “urbano”], o que, mais uma vez, é contraditório com a afirmação constante do “dispositivo” no sentido de que a servidão reconhecida tem «(…) início no limite norte do prédio do Réu, onde confronta perpendicularmente com caminho público (…)» [aqui por referência à imagem gráfica já aludida, onde na sua parte superior, em área florestal totalmente “rústica”, aparece efetivamente a confrontação do leito da serventia, a Norte, com um “caminho público”].

Enfim, salvo o devido respeito, os autos evidenciam uma lacuna de instrução, em termos de levantamento topográfico rigoroso da situação, designadamente do prédio do R. (descrito na CRP sob o nº ...50), na sua totalidade, isto é, quanto aos 5800 m2 que o mesmo tem, isto em ordem a que fosse possível não só delimitá-lo rigorosamente em termos de localização face ao prédio dos AA., para determinação estrita da confinância de ambos, como ainda para adequada implantação da serventia com referência a esses dois prédios, sendo disso caso.

Isto porque estando como estava em causa uma realidade material traduzida numa implantação física de uma serventia, a formação da convicção quanto à temática em causa – onde se posiciona a serventia na confinância de ambos e qual a concreta implantação da mesma até ao caminho público – está indissolúvel e intrincadamente conexionada com a concreta localização geo-espacial de uma tal realidade física/material, sua específica configuração material e dimensão/área.

Temática sobre a qual a prova testemunhal e/ou por declarações de parte será, por si só, insuficiente. 

Sucede que, quanto a tal, os elementos de prova documentais e até periciais constantes dos autos são insuperavelmente inconcludentes.

Face ao que nos encontramos reconduzidos a uma imprescindível e imperiosa necessidade de distinção e esclarecimento: mais concretamente, quanto à implantação geo-espacial do prédio do R. (descrito na CRP sob o nº ...50), na sua totalidade, isto é, quanto aos 5800 m2 que o mesmo tem, para se poder concluir, convicta e insofismavelmente, se o mesmo é ou não o efetivamente onerado com a servidão, a Norte, que se reconheceu/declarou como existente no dispositivo.

Na verdade, de uma leitura mais atenta dos autos e de tudo o que dele consta, resultam indícios de que o R. será proprietário de um outro prédio, sito para Norte do local de implantação da construção (garagem e casa do gás), como se encontra afirmado na perícia, a fls. 76.

Sendo certo que se bem se compulsarem os “desenhos” que acompanham o esclarecimento prestado pelo Sr. Perito a fls. 73-79, mais concretamente o teor de fls. 76 e os desenhos de fls. 77 e 79, temos que se o fim da servidão é apontado ser na estrema poente do prédio dos AA., contudo sucede que está presentemente vedada qualquer possibilidade de acesso ao prédio dos AA., nessa única confinância com o R., na medida em que existe, por um lado, a parede exterior da garagem do R. a impedi-lo [no troço  “...” da confinância] e, por outro lado, um murete de blocos [no troço  “...” da confinância].

Sendo certo que foi precisamente este troço “...” da confinância que a sentença estabeleceu como sendo o fim da servidão, tanto mais que condenou o R. a demolir o dito murete que aí figura e que impede presentemente a entrada/passagem [cf. ponto “7.1.2.)” do dispositivo].

Acontece que se esse troço “...” [onde foi edificado o murete de blocos] efetivamente «confronta com um outro prédio do Réu, localizado a Norte do prédio com o nº ...50» [como consignado pelo Sr. Perito], temos uma dúvida crucial na questão, a qual influencia e condiciona tudo o demais.

Atente-se que essa dúvida até resulta reforçada pela circunstância do “domínio” desse prédio, tal como apurado nos autos, isto é, que foram ainda os pais do R. que construíram esse dito murete na estrema com o prédio dos AA. [cf. facto provado sob “4.1.7.”].

Sendo certo que tal até vai de encontro à alegação enfática do Réu de que o seu prédio (descrito na CRP sob o nº ...50) não confronta a Norte com o caminho público...

Ora se assim for, poderá resultar que a serventia que foi reconhecida pela sentença sob recurso esteja a onerar um prédio do R. que não o que foi objeto da ação e que nela foi como tal reconhecido.

O que até nem poderá ser o caso, uma vez que os 5800 m2 que o “prédio urbano destinado à habitação” do R. efetivamente tem, constitui uma área suficientemente extensa para se vir a apurar a extensão desse prédio para Norte, eventualmente até à sua confrontação perpendicular com o caminho público aí existente [como consta no dispositivo da sentença].

Como quer que seja, aqui entronca uma outra ordem de argumentos e razões para – adiantando desde já! – se censurar a decisão sobre a matéria de facto: na verdade, configura-se uma necessidade de ampliação da matéria de facto, mais concretamente, tem que se efetuar a concreta localização e delimitação geo-espacial do prédio do R. (descrito na CRP sob o nº ...50), na sua totalidade, isto é, quanto aos 5800 m2 que o mesmo tem, para subsequentemente se intentar efetuar a implantação da servidão ajuizada no e face ao mesmo, sendo disso caso.

Donde, a anulação da decisão proferida, no quadro do previsto no art. 662º, nº2, c), do CPC.

De referir que a concretização da ampliação da matéria de facto, salvo o devido respeito, passará por um levantamento topográfico desse dito prédio, vislumbrando-se utilidade que tal seja feito pelo Exmo. Perito nomeado nos autos, ou sob sua coordenação, pois que será subsequente tarefa do mesmo definir como se implanta em concreto a servidão para Norte, e designadamente se é esse prédio do R. que está onerado com a mesma, até ao seu início no caminho público existente nesse ponto cardeal, donde, existe economia processual se tudo for operado por quem já estudou e interveio anteriormente nos autos.

Sendo certo que será à luz desse elemento de prova que deverá ter lugar a reinquirição das testemunhas que depuseram sobre a materialidade em causa, em termos ulteriormente a ponderar e definir, pois que desde já igualmente se perspetiva a necessidade de reabertura da audiência de julgamento para clarificação pontual que se revele necessária e imprescindível, face à obscuridade, senão mesmo contradição de alguns dos pontos de facto dados como “provados”, em parte já supra apontada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições [cf. art. art. 662º, nº3, c), do CPC.  

Acresce que definir e situar geo-espacialmente o prédio do R. (descrito na CRP sob o nº ...50) até em termos do dispositivo a final, será da maior importância e, como tal, aspeto que não pode ser olvidado nem postergado na instrução e decisão dos autos, dada a correspondente necessidade de no e face ao mesmo se vir a implantar a servidão, com rigor e em concreto, sendo disso caso.

Temos então que estamos perante uma omissão dos temas da prova de factualidade que se revela essencial para a resolução do litígio, que não foi devidamente ponderada e aquilatada na sentença recorrida, pelo que, uma anulação do julgamento nos termos do art. 662º, nº2, c), do CPC se afigura como incontornável, deve efetivamente ter lugar, por não ser possível superar a situação de outra forma.

Nestes termos, fica prejudicada, para já, o conhecimento das demais questões enunciadas (quer em termos de concreta impugnação à decisão sobre a matéria de facto, quer em termos de incorreto julgamento de direito).

                                                           *

            Decisão.

Pelo exposto, decide-se:

a) declarar a nulidade por ambiguidade ou obscuridade da decisão, que a torna ininteligível;

b) declarar a anulação da sentença, ao abrigo do disposto no nº2, al. c) do art. 662º do CPC, pela necessidade de ampliação da matéria de facto, para se efetuar a concreta localização e delimitação geo-espacial do prédio do R. (descrito na CRP sob o nº ...50), na sua totalidade, isto é, quanto aos 5800 m2 que o mesmo tem, para subsequentemente se intentar efetuar a implantação da servidão ajuizada no e face ao mesmo, sendo disso caso, sendo certo que a subsequente repetição do julgamento, e a consequente produção de prova, apenas deverá incidir sobre os pontos de facto respeitantes aos concretos limites e localização geo-espacial desse dito prédio do R., e bem assim sobre a implantação nele da servidão ajuizada.

Custas pelos Recorridos, vencidos.

Coimbra, 2022-07-12


Fernando Monteiro

Carlos Moreira

Luís Filipe Cravo (com declaração de voto).


Voto de vencido do Relator inicial

Fiquei vencido quanto ao fundamento da decisão relativamente ao (não) exercício do contraditório.

O que estava em causa, na interpretação que verti no projeto de acórdão, era não ter sido facultado ao R. exercer o contraditório após a admissão da alteração do pedido e face a essa alteração.

Isto porque a Exma. juíza a quo apenas facultou a palavra para exercício do contraditório antes da decisão sobre a admissibilidade da alteração do pedido...

Em contraponto, a posição dos Exmos. Adjuntos – e que ficou vertida no acórdão que fez vencimento supra – era a de que a questão da violação do contraditório só se colocava antes da dita decisão.

Ora, eu não havia olvidado esta posição no projeto, mas sucede que a minha interpretação quanto à questão do contraditório assentava num entendimento mais amplo do mesmo, nomeadamente da sua interligação com o princípio da igualdade de armas entre as partes, tendo em vista que a parte tenha o direito de concreta e substancialmente influir no litígio.

Não me parecendo que se pudesse dizer que o aqui A. teve oportunidade de se "defender", findos que estavam os articulados e concluída que estava a prova, face à alteração do pedido que foi deferida no final da audiência de julgamento.

Citei em meu abono uma posição doutrinal autorizada, a saber, «modernamente, o contraditório é entendido como uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.» [assim por LEBRE DE FREITAS, in “ Introdução ao Processo Civil”, Coimbra, 3ª ed., a págs. 124-125, citando Nicolò Trocker].

Na minha interpretação, naturalmente que o exercício do contraditório no caso não se podia nem podia resumir/circunscrever – como sucedeu no caso! – a ter sido positivamente facultado ao R. pronunciar-se sobre a admissibilidade do pedido de alteração do pedido que a contraparte havia acabado de formular, antes de a Exma. Juíza de 1ª instância proferir decisão final sobre tal matéria.

Imprescindível e decisivo era efetivamente ter-se possibilitado ao aqui R./recorrente produzir prova sobre a possibilidade/licitude/viabilidade da nova serventia, isto é, do leito e implantação desta a norte do prédio do R., ou mais singelamente, ter sido dada oportunidade ao R. de, concreta e materialmente, se defender dessa nova pretensão substancial.

Mas não foi isso que sucedeu, pois que a Exma. Juíza de 1ª instância logo após ter proferido a decisão de deferimento da alteração do pedido [e não obstante ter facultado ao Exmo. Mandatário do R. a produção de alegações orais], declarou encerrada a audiência sem mais, vindo na sequência a proferir a sentença final.

Será que esta "visão" não merecia qualquer acolhimento?

E não tinha qualquer relevância?

Não consegui aceitar que não, e daí ter ficado “vencido”.

Mas especificando um pouco melhor ainda:

A questão não era a da "contraditoriedade e prova" para a decisão do incidente, o que não havia dúvida ter sido observado.

Esse era o plano a montante da verdadeira questão.

Em meu entender, o que a alteração do pedido suscitava era a necessidade de, a juzante, à luz do princípio da igualdade de armas (cf. art. 4º do C.P.C.), e depois de ter sido deferida a alteração do pedido, permitir ao R. defender-se dessa alteração do pedido, no plano substancial.

Não o tendo feito, pareceu-me até possível sustentar que a Exma. Juíza cometeu uma nulidade do art. 195º do C.P.C., por ter omitido um dever processual.

Acresce que também me pareceu que a mesma deveria ter proferido um despacho a ordenar aos AA. o esclarecimento e complemento da factualidade atinente ao novo pedido/nova servidão, pois que o que estava alegado era demasiado deficiente e equívoco - como veio a ficar expresso no acórdão, mais à frente, ao ter-se concluído pela necessidade de ampliação da matéria de facto.

Sendo certo que a omissão desde despacho (de aperfeiçoamento) também poderia entender-se que constituiu uma nulidade do art. 195º do C.P.C., por se traduzir na omissão de um despacho vinculado, que a Exma. Juíza tinha o dever de proferir, e que ulteriormente permitiria ao R. a "contraditoriedade e prova"  (cf. art. 590º, nos 4 e 5 do C.P.C.).

Em todo o caso, e decisivamente, impunha-se, s.m.j, ser facultado ao R. o requerimento e produção de novas provas, e/ou apresentar novo articulado escrito, tudo no contexto de uma mais ampla instrução dos autos.

Nesta ordem de ideias e linha de entendimento, o meu projeto de acórdão era no sentido de que, em síntese, a sentença recorrida enfermava de ilegalidade por violação do princípio do contraditório, pelo que, desde logo à luz deste fundamento, a sentença final proferida devia ser revogada, a fim de ser observado o princípio preterido.

De referir que, quanto ao demais, o acórdão que fez vencimento manteve-se fiel e respeitou integralmente o meu projeto de acórdão.

Luís Filipe Cravo


[1] Assim por CASTRO MENDES, in “Direito Processual Civil”, II.º Volume, Revisto e atualizado, 1987, Edições ASFDL, a págs. 426 e segs..
[2] Trata-se de ALBERTO DOS REIS, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Volume 3.º, Coimbra Editora, 1946, a págs. 93.
[3] CASTRO MENDES, in ob cit. supra, ora a págs. 428, defendia que «Se é possível a cumulação sucessiva e a redução, é possível a transformação que pode sempre formalmente entender-se como resultante duma sucessão destes dois fenómenos.»
[4] Mesmo autor em obra e local citados na precedente nota, ora a págs. 429.
[5] Cf. o acórdão do TRP de 12.01.2021, proferido no proc. nº 567/20.7T8VFR-A.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
[6] Assim por LEBRE DE FREITAS, in “ Introdução ao Processo Civil”, Coimbra, 3ª ed., a págs. 124-125, citando Nicolò Trocker.
[7] Assim A. ABRANTES GERALDES, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Livª Almedina, 2013, a págs. 21-23.