RAI
REQUISITOS
ADMISSIBILIDADE
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ARQUIVAMENTO
DEBATE INSTRUTÓRIO
DECISÃO INSTRUTÓRIA
NULIDADE RELATIVA
Sumário

I – Nos casos em que o Juiz de Instrução podia, querendo, ao abrigo do artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, ter proferido despacho inicial de rejeição do requerimento de abertura de instrução por inverificação dos pressupostos legalmente estatuídos naquele normativo, mas, não o tendo feito e tendo declarado aberta a instrução, comunicando tal decisão aos diversos intervenientes processuais, deu início a uma nova e diferente sequência processual que devia passar obrigatoriamente pela realização de debate instrutório e, encerrado este, pela prolação de decisão instrutória, que poderia incluir a apreciação de nulidades e outras questões prévias ou incidentais (artigos 307º e 308º do Código de Processo Penal).
II – A omissão de realização de debate instrutório configura uma nulidade por insuficiência de instrução por não ter sido praticado acto legalmente obrigatório, nulidade que é sanável caso não venha a ser arguida até ao encerramento do debate instrutório (artigo 120º, nºs. 2, al. d), e 3, do Código de Processo Penal).
III – Tendo o assistente arguido a nulidade por omissão de realização de debate instrutório tempestivamente, posto que antes do encerramento do debate instrutório e do trânsito em julgado da decisão que determinou o arquivamento dos autos em fase de instrução, importa apenas declarar nula a decisão recorrida, pois pôs fim à instrução sem que tenha sido realizado debate instrutório, consequência que não depende da ponderação da pertinência dessa diligência, já que a mesma é obrigatória e foi tempestivamente reclamada a sua realização.
IV – Com a declaração de nulidade da decisão recorrida, e apenas desta, voltam os autos ao momento processual onde se encontravam antes de aquela ser proferida, devendo os mesmos prosseguir os termos da instrução de acordo com o entendimento do Juiz de Instrução, mas culminando obrigatoriamente com a realização de debate instrutório e prolação posterior de decisão instrutória.

Texto Integral

Proc. n.º 925/18.7T9OVR.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Instrução Criminal de Aveiro – Juiz 1



Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório
No âmbito do Inquérito n.º 925/18.7T9OVR, com origem numa denúncia apresentada por AA contra várias pessoas colectivas e singulares, por despacho de 08-05-2020, foi determinado o arquivamento dos autos.

*
Irresignado com esta decisão, veio o denunciante requerer a sua constituição como assistente e a abertura da instrução contra os denunciados, requerendo que sejam constituídos como arguidos, que seja proferido despacho de pronúncia contra os mesmos pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º e 218.º, n.º 2, ambos do CPenal, e que com a abertura da instrução seja determinada a conexão deste processo ao Proc. n.º 337/14.1TEWLSB, uma vez que os mesmos se encontram simultaneamente na mesma fase (art. 24.º, n.º 2, do CPPenal).
Por despacho de 07-09-2020, o denunciante foi admitido a intervir nos autos na qualidade de assistente (fls. 338), tendo os autos sido remetidos para distribuição como instrução ao Juízo de Instrução Criminal de Aveiro a 11-09-2020, verificando-se aí a seguinte tramitação:
- O processo foi concluso ao JIC que, por despacho de 11-11-2020, decidiu:
«Por estar em tempo, ter legitimidade, se encontrar devidamente representado por advogado, ter pago taxa de justiça, e face à não oposição da Digna Magistrada do Ministério Público e do arguido constituído, admito AA a intervir nestes autos como assistente.
Notifique.
***
Por estar em tempo, ter legitimidade e ser legalmente admissível, declaro aberta a Instrução requerida pelo assistente.
Notifique, nos termos do art. 287º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
DN.
***
Oficie ao OPC competente:
- a constituição como arguidos e prestação de TIR relativamente aos denunciados identificados no RAI;
- a notificação do RAI e do presente despacho a esses arguidos.
DN.»
- Este despacho foi notificado por ofícios de 10-12-2020.
- Por requerimento entrado em juízo a 11-12-2020, veio o arguido BB invocar que o requerimento de abertura de instrução não cumpre o disposto no art. 287.º, n.º 2, do CPPenal, não sendo apresentada qualquer sugestão de acusação, pugnando pela respectiva e imediata rejeição por inamissibilidade legal, assim se evitando maiores delongas e actos inúteis.
- Por requerimento entrado em juízo a 19-04-2021, veio o arguido BB reiterar o pedido formulado a 11-12-2020.
- Por despacho de 27-04-2021, o Senhor Juiz de Instrução decidiu:
«Notifique o assistente para, em cinco dias, justificar a necessidade de reinquirição da testemunha que indica no RAI.
DN.
***
Oficie ao processo 337/14.1TELSB informação sobre o estado dos autos e cópia da decisão final.
Inexistindo decisão final, solicite cópia da acusação e da decisão instrutória.
DN.»
- O assistente veio dar resposta ao requerido em peça entrada em juízo a 04-05-2021 e por despacho de 26-05-2021 o Senhor Juiz de Instrução decidiu:
«Admito a inquirição da testemunha arrolada no RAI em data a designar oportunamente.
***
Averigue a secção nas bases de dados qual a actual morada dos arguidos ainda não constituídos formalmente. DN.»
- Após realização das consultas determinadas na decisão antecedente, o processo foi de novo concluso, tendo o Senhor Juiz de Instrução, por despacho de 01-07-2021, determinado o seguinte:
«Requerimento do arguido BB de 11/12/2020, junto a fls. 365:
Notifique o assistente para, querendo, se pronunciar sobre a nulidade invocada.
Com o mesmo fim vão so autos com Vista ao MP.
DN.»
- Com vista no processo, o Ministério Público considerou «ter sido observado no RAI o disposto no art. 287º 2) com referência ao art. 283º 3), ambos do C.P.P..»
- O arguido também respondeu, a 01-09-2021 (fls. 608 a 613), pugnando pelo indeferimento da nulidade por falta de fundamento e extemporaneidade.
- Concluso o processo com informação dos visados que não foram notificados do despacho que declarou aberta a instrução, que não foram constituídos na qualidade de arguidos e que não prestaram TIR, o Senhor Juiz de Instrução, por despacho de 04-10-2021, determinou:
«Averigue a secção junto das bases de dados e dos OPC qual a mosede actual das sociedades ainda não identificadas e dos seus legais representantes.
***
Quanto à sociedade sediada em Macau e ao cidadão residente em Espanha, notifique o assistente para informar as respectivas moras.
DN.»
- Por requerimento de 18-10-2021, veio o arguido BB reiterar o pedido formulado a 11-12-2020.
- Por despacho (recorrido) de 11-11-2021 o Senhor Juiz de Instrução decidiu:
«O Ministério Publico produziu despacho de arquivamento nestes autos por entender que os factos participados foram já objecto de acusação no processo 337/14.1TELSB, fazendo parte da unidade fáctica consolidada naquele despacho de acusação.
Inconformado, o assistente requereu a abertura desta fase processual.
Notificado do RAI veio o arguido BB arguir a sua nulidade por não cumprir com os requisitos do art.º 287 do CPP.
Cumpre decidir, cumprido que está o contraditório.
Analisando o requerimento de abertura de instrução verificamos que:
- no artigo 2 o assistente identifica as pessoas, singulares e colectivas, a pronunciar;
- no artigo 11, concretizando a factualidade imputada, o assistente alega que:
a) O Assistente teve conhecimento da actividade comercial das pessoas mencionadas no artigo 2.º da presente peça, através de um conhecido, CC, que lhe apresentou os projectos por essas pessoas exercido. Tal factualidade vem corroborada nas fls. 99 e seguintes do processo;
b) Projectos, esses, que consistiam na celebração de um contrato verbal de comodato, pelo qual se adquiriam pacotes de g..., que incluíam equipamentos designados de geolocalizadores, ficando um para o uso pessoal e os restantes seriam dados em comodato a terceiros, obtendo o seu rendimento, mensal, conforme consta das fls. 102 e seguintes do processo.
c) Assim, as sociedades comerciais aí mencionadas exerciam, alegadamente, uma actividade comercial que consistia no comodato de equipamentos electrónicos, através dos respectivos representantes legais e sócios-gerentes (referidos no artigo 2.º da presente peça), com o intuito de iludir o público, apresentando-se como sendo a maior empresa de comodato do mundo.
d) Na verdade, esse contrato traduzia-se num "modelo multinível com o objectivo de criar uma rede de membros adquirentes de pacotes (os gettrackers) com a promessa de que quanto mais alto fosse o investimento e maior número de membros angariados para a sua rede pessoal, maior seria o seu rendimento mensal.
e) Ora, os gettrackers que podiam ser adquiridos e que eram apresentados eram o Light, Light Plus, Standard e Premium.
f) Face ao que lhe fora apresentado, o Assistente decidiu adquirir 10 pacotes Premium no montante total de €12.000,00, uma vez que cada pacote desses teria o custo de €1.200,00.
g) Pacotes, esses, que foram pagos por transferência bancária, conforme consta dos documentos nº 1 e 2 juntos com a denúncia apresentada (por exemplo, fls 146 e 147).
h) Desse contrato decorreriam obrigações para os "Arguidos", uma vez que permitiriam ao Assistente auferir uma contrapartida no valor de €200,00, que à data da apresentação da denúncia ascenderia ao montante global de €9.800,00, conforme decorre dos documentos n º 6 e 7 junto à denúncia.
i) No entanto, nunca conseguiu reaver o seu dinheiro;
j) E por essa razão os "Arguidos", nomeadamente G1... Lda., apresentaram novo projecto — a V…. (equiparado ao primeiro) no qual o Assistente adquiriu um Bonus Card no valor de €30,00.
k) Prometendo-lhe que com esse pagamento iria ter lucros mensais, que nunca lhe foram pagos.
- nos artigos 12 a 14 alega que a conduta descrita no artigo 11 lhe causou prejuízos, de natureza patrimonial e não patrimonial;
- no artigo 15 alega, conclusivamente, que os "Arguidos" tudo fizeram para ludibriar o Assistente, com o intuito que este investisse dinheiro nestes negócios fictícios e autêntica vigarice;
- no artigo 18 questiona «a não constituição das restantes pessoas contra quem foi apresentada a denúncia do Assistente, uma vez que eram representantes e sócios-gerentes das empresas»;
- no artigo 36 alega que «Pelo que não podem restar quaisquer dúvidas de que os "Arguidos", ao apresentarem as empresas e ao aceitarem as transferências bancárias e ao emitirem referências de pagamento para o Assistente, quando bem sabiam que não se tratava de qualquer negócio de comodato, como se apresentavam, agiam com intenção de o enganar, ainda que por intermédio de terceiros»;
- no artigo 37 alega que «De facto, com essa conduta os 'Arguidos" sabiam que estavam a frustrar, astuciosamente, o património do Assistente, na medida em que as referidas sociedades e seus sócios-gerentes e legais representantes não tinham qualquer intenção de fazer rentabilizar o dinheiro deste para o próprio»;
- nos artigos 41 a 43 alega que «41º Sublinhe-se que os "Arguidos" ao emitirem referências de pagamento e aceitando os montantes transferidos pelo Assistente sabiam que este não tinha conhecimento, nem podia ter, de que o negócio era insusceptível de efectivação. 42.º Portanto, o comportamento dos "Arguidos" revela ainda uma conduta desleal inadmissível no comércio jurídico, violadora dos ditames da boa-fé e que consubstancia "o desvalor característico do ilícito da burla, integrando nessa medida, a expressão acabada do conteúdo de previsão do artigo 217.º do CP, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 300. 43.º Paralelamente, os "Arguidos" ao aceitarem, em representação da sociedade G..., os referidos montantes realizados por transferências bancárias, sabiam que, consequentemente, não poderiam nem iam cumprir as obrigações daí decorrentes (como a obtenção de rentabilidade do Assistente), e por via disso, cometeram burla por actos concludentes»;
- nos artigos 46 e 50 o assistente explica a co-autoria entre todos os arguidos nos seguintes termos: «In hoc casu, estamos perante crimes que foram praticados em comparticipação entre as pessoas referidas no artigo 2º da presente peça, porquanto, para que haja comparticipação na conduta, basta que o comparticipante contribua com a sua acção, conjugada com a dos outros para a realização típica do evento qualificado como crime. O que demonstra que estamos perante a figura da co-autoria, sempre que duas ou mais pessoas — aqui, Arguido constituído e restantes com essa qualidade (pessoas referidas no artigo 2.º), vinculadas entre si, participem, colaborantes, na execução do facto — in casu, induzir em erro sobre os factos que astuciosamente provocaram, levando o Assistente a investir determinadas quantias de dinheiro, achando que teriam retorno — que não sucedeu! causando-lhe assim um prejuízo patrimonial de, pelo menos, €12.000,00. O que faz com que suceda entre a autoria e a execução do crime uma conexão. Que, neste caso, se traduziu no "passa-palavra" de que o dinheiro investido seria reavido após o saque, com isto havia um pacto, acordo ou prévia concertação anterior ao facto, ou seja, ao engano das pessoas que investiam o dinheiro e aquelas que apresentavam as aludidas empresas, vide fls.99 e 100».
Será que esta alegação cumpre com as exigências do art.º 283º do CPP, aplicável ex vi art.º 287º, n.º 2 do CPP?
Parece que não.
Nas alíneas a) a c) do artigo 11) do RAI o assistente alega, conclusivamente, que as sociedades comerciais identificadas no artigo 2 exerciam «alegadamente» uma actividade de comodato. Não explica o que fazia cada uma das sociedades e o respectivo papel na burla imputada.
Na alínea f) do artigo 11 do RAI o assistente não alega a quem decidiu adquirir os 10 pacotes Premium, com quem falou e o que acordou.
Na alínea g) do artigo 11 do RAI o assistente não explica quem foram os beneficiários dos pagamentos, com quem acordou os mesmos, quem forneceu os dados de pagamento.
Na alínea h) do artigo 11 do RAI alega conclusivamente que os «arguidos» - sem descriminar o papel de cada um – assumiram perante o assistente a obrigação de garantir uma contrapartida para ele de € 200. Ficamos sem perceber com quem o assistente falou; se falou pessoalmente ou por outra via; se a pessoa actuou por si ou em representação de outras pessoas e/ou empresas.
Na alínea i) do artigo 11 do RAI alega que não conseguiu reaver o seu dinheiro. Mas não explica se recebeu os 10 pacotes adquiridos e, se tendo adquirido, qual a razão para pedir a devolução do dinheiro.
Quanto à alínea j) do artigo 11 do RAI, não explica de que projecto se trata nem se percebe a relevância de tal alegação. O mesmo sucedendo com o alegado na alínea k).
Mais uma vez no artigo 15 do RAI alega, conclusivamente, que os “Arguidos" tudo fizeram para ludibriar o Assistente, com o intuito que este investisse dinheiro nestes negócios fictícios e autêntica vigarice, sem explicar o papel de cada arguido nem identificar com quem negociou.
No artigo 36 do RAI afirma que «Pelo que não podem restar quaisquer dúvidas de que os "Arguidos", ao apresentarem as empresas e ao aceitarem as transferências bancárias e ao emitirem referências de pagamento para o Assistente, quando bem sabiam que não se tratava de qualquer negócio de comodato, como se apresentavam, agiam com intenção de o enganar, ainda que por intermédio de terceiros». Simplesmente, lendo o RAI com atenção, nunca o assistente identifica quem lhe forneceu os dados de pagamento, quem beneficiou das transferências feitas e quem negociou consigo e em que qualidade.
No artigo 37 do RAI afirma o assistente que «De facto, com essa conduta os 'Arguidos" sabiam que estavam a frustrar, astuciosamente, o património do Assistente, na medida em que as referidas sociedades e seus sócios-gerentes e legais representantes não tinham qualquer intenção de fazer rentabilizar o dinheiro deste para o próprio». Mais uma vez imputa a todos os arguidos a conduta criminosa sem descrever o papel de cada um, sem identificar a(s) pessoa(s) com quem negociou e em que qualidade. Aliás, só no artigo 50 do RAI o assistente faz um esforço para explicar a intervenção, em co-autoria, de todos os arguidos afirmando que a participação de todos se traduziu no «passa-palavra» de que o dinheiro investido seria reavido após o saque, o que é, no mínimo, escasso, para imputar a quem quer que seja a prática de um crime de burla.
***
Como é consabido e decorre, aliás, do art. 287.º, n.º 2 do CPP, o requerimento para abertura de instrução, apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público, deve equivaler, em tudo, a uma acusação, condicionando e delimitando a actividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objecto da decisão instrutória - Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", Tomo III, págs. 125 e segs. e 139 e segs.-, nos exactos termos em que a acusação formal, seja pública, seja particular, o faz.
E assim é de tal modo que na instrução apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para a sua abertura (ressalvada a hipótese a que se refere o art. 303º do Cód. Proc. Penal de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade da decisão instrutória, como resulta, claramente do disposto no art. 309º, nº 1 do Cód. Proc. Penal.
Daí que, não constando do mesmo uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários a integração de todos os pressupostos legais de algum crime se torne inviável a realização desta fase processual por falta de delimitação do seu objecto, sendo manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos susceptíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual se pretende essa pronuncia.
E devendo o despacho de pronúncia quedar-se pela apreciação do conteúdo do requerimento de abertura de instrução, torna-se óbvio que as omissões deste podem comprometer irremediavelmente a pronúncia dos arguidos, não fazendo qualquer “sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido" – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.10.2003, que pode ler-se na íntegra em www.dgsi.pt.
Esta estrita vinculação temática do Tribunal de Instrução aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução, enquanto limitação da actividade instrutória, relaciona-se, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
Acresce a isto, por outro lado, que as eventuais deficiências do requerimento não podem ser supridas por iniciativa do Tribunal, designadamente mediante decisão que convidasse o assistente para o efeito.
A admitir-se entendimento diverso, "(...) estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transformar a natureza da instrução que passaria de contraditória a inquisitória" – cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 25.06.2002, CJ, III, 143.
Em boa verdade, uma decisão neste sentido – consubstanciando o exercício, pelo juiz de instrução, de uma faculdade inquisitória e de exercício de acção penal que, no actual quadro legal, não lhe assiste – contrariaria o princípio da estrutura acusatória do processo penal consagrada do referido art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
Quanto a este ponto em particular, é pertinente chamar à colação o que expenderam os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Anotada, 3ª ed., pág. 206: a estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação. De onde resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto do processo – fixado pela acusação ou pelo RAI do assistente – no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao aperfeiçoamento feito ao assistente requerente da abertura da instrução.
Anote-se, ainda neste âmbito, que a inadmissibilidade de renovação do requerimento para abertura de instrução não implica uma limitação desproporcionada do direito da assistente a deduzir acusação através desse requerimento – como referido no Acórdão do Tribunal Constitucional de 30.01.2001 - Publicado no DR-IIS, de 23.03.2001 (acerca da não equiparação do estatuto do assistente ao do arguido, cfr. também Acórdão do mesmo Tribunal de 31.10.2003, publicado no DR-IIS, de 17.12.2003, a pág. 18.455) –, "(...) na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível concretização – uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido".
Ainda segundo este aresto: "(...) do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito".
Esclarecendo, definitivamente as divergências jurisprudenciais que se vinham verificando a este respeito - No sentido de que a apontada deficiência do requerimento para abertura de instrução consubstanciaria mera irregularidade processual cuja reparação poderia ser oficiosamente ordenada, nos termos do Art. 123º, n.º2, do Cód. Proc. Penal, cfr., i.a., Acórdãos da Relação de Lisboa de 12.07.95, CJ, IV, 140 e de 20.06.2000, CJ, III, 153; da Relação de Coimbra de 17.11.93, CJ, V, 59; da Relação do Porto de 05.05.93, CJ, III, 243, de 28.02.2001 e de 07.02.2001 – podendo ler-se os sumários dos dois últimos em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf; da Relação do Porto de 21.11.2001, CJ, V, 225; da Relação de Lisboa de 21.03.2001, CJ, II, 131; da Relação de Coimbra de 13.11.2002 – podendo ler-se o respectivo sumário em www.trc.pt. No sentido de que não é admissível o convite ao aperfeiçoamento do requerimento do assistente, cfr., i.a., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.11.2002 e de 22.10.2003 (neste último se referindo "(...) uma tendência na jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de não haver lugar, nos casos de requerimento do assistente para abertura de instrução, a convite para suprir as deficiências do requerimento"), ambos podendo ler-se na íntegra em www.dgsi.pt; Acórdão da Relação de Coimbra de 23.02.2005, CJ, I, 48; Acórdão da Relação de Guimarães de 14.02.2005, CJ, I, 299; Acórdão da Relação de Coimbra de 31.10.2001, podendo ver-se o respectivo sumário em www.trc.pt/index1.htlm; Acórdãos da Relação de Lisboa de 03.02.2005, CJ, I, 139, de 09.02.2000, CJ, I, 153, de 03.10.2001 e de 31.01.2001, cujos sumários podem ler-se em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf; cfr. também Acórdãos da Relação do Porto de 23.05.2001, CJ, III, 239; da Relação de Lisboa de 11.10.2001, CJ, IV, 141, de 11.04.2002, CJ, II, 147, e de 14.01.2003, CJ, I, 124; também da Relação de Lisboa de 15.05.2003, 19.03.2003, 11.12.2002, 17.12.2002, 19.12.2002 e de 13.03.2003, cujos sumários podem ler-se em http://www.pgdlisboa.pt (jurisprudência - sumários - área criminal), o último também publicado "in" CJ, II, págs. 124 a 126 , - veio o Supremo Tribunal de Justiça fixar jurisprudência por Acórdão de 12.05.2005 (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no DR – I S-A de 04.11.2005) nos termos seguintes:
“Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º2, do Cód. Proc. Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Já no que concerne as consequências da inobservância do preceitua do no art. 287º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, importa desde logo atender que este mesmo normativo remete para a aplicação do disposto no art. 283.º, n.º 3 al. b) e c) do mesmo diploma legal.
Pelo que, além de inviabilizar, objectivamente, a possibilidade de realização da instrução (art. 309º do Cód. Proc. Penal), a deficiência de conteúdo (e não de mera forma) do requerimento – por não conter a narração de factos que fundamentem a aplicação a um concreto arguido de uma pena ou medida de segurança, como o impõe o citado art. 283º, nº 3 als. a) e b) do Cód. Proc. Penal –, implica a sua nulidade, tornando assim legalmente inadmissível a abertura da instrução e obrigando, consequentemente, à rejeição daquele nos termos do art. 287.º, n.º 3 do CPP, onde se dispõe que "o requerimento (para abertura de instrução) só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução".
Como vimos, o RAI não cumpre com os requisitos exigidos e a que alude o art.º 287º, n.º 3 do CPP, sendo, por isso, nulo.
Consequentemente, conhecendo da nulidade invocada pelo arguido BB e julgando-a verificada, julga-se nulo o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente e, em consequência de tal nulidade, não se conhecerá do mesmo determinando-se, após trânsito, o arquivamento dos autos.
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 Ucs.
Notifique.»
*
Inconformado com esta decisão, o assistente AA interpôs recurso, solicitando que, a final, seja a mesma revogada, seja a mesma declarada nula por violação do disposto na al. d) do art. 119.º do CPPenal, seja a mesma declarada nula por omissão de pronúncia quanto ao pedido de apensação destes autos ao Proc. n.º337/14.1TELSB e, subsidiariamente, que seja declarado que a aludida decisão viola o disposto nos arts. 2.º, 13.º e 21.º da Constituição da República Portuguesa, apresentando nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação:
«1. O Apelante foi notificado da Decisão Instrutória que julgou verificada a nulidade invocada pelo Arguido BB de que o Requerimento de Abertura de Instrução (RAI) não cumpria os pressupostos legais das alíneas b) e c) do n.º3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal (CPP), por remissão do n.º2 do artigo 287.º do mesmo Código e que, consequentemente, originou o não conhecimento do Requerimento de Abertura de Instrução, determinando, assim, o Arquivamento dos autos.
2. Ora, efeito dessa alegada nulidade não se pronunciou o Mmo. Juiz de Instrução quanto à apensação deste processo ao processo n.º 337/14.1TELSB, apesar de requerido no RAI apresentado.
3. Sendo, em razão disso, esta a decisão com a qual o Apelante não se conforma e, em virtude disso, dela recorre, com os fundamentos que se exporão infra.
4. Por um lado, o RAI cumpre os pressupostos legais das alíneas b) e c) do n.º3 do artigo 283.º do CPP, por remissão do n.º2 do artigo 287.º do mesmo Código, como ainda remete para prova produzida e carreada para o processo de forma clara e inequívoca.
5. Pois é ao, ora, Apelante que incumbia no RAI invocar as razões de facto e de Direito da sua divergência relativamente ao Despacho de Arquivamento, com que terminou o Inquérito.
6. Como o fez!
7. Comprovando o exposto, veja-se o as alíneas a), b), g) e h) do artigo 11.º do RAI e os artigos 16.º, 38.º, 50.º, 62.º e 81.º daquela peça, isto é, o Apelante não só identificou as pessoas que praticaram o crime, como demonstrou como chegou ao seu conhecimento a actividade exercida por pelos Arguidos e de que modo celebrou o negócio e como foi enganado e prejudicado com os comportamentos desses agentes que estão fortemente indicados da prática do crime de burla qualificada.
8. Concretizando, o Apelante teve conhecimento da actividade praticada pela G... Group, nomeadamente a G... Lda. e seus sócios e legais representantes – Arguidos nos autos, por intermedio de um conhecido CC (cfr. alíneas f) e j) do artigo 11.º do RAI conjugado com a alínea a) desse mesmo artigo).
9. Corroborando o exposto, veja-se o Auto de Inquirição da testemunha, junto a fls 99 e seguintes do processo, no qual declara que tem conhecimento directo dos factos e que declarou que ‘’comunicou ao Denunciante [Aqui Apelante] que tinha um bom negócio de investimento numa empresa denominada de G... Lda., que se dedicava à venda de geolocalizadores para serem utilizados no que se pretendesse e o investimento era adquirir posições na referida empresa, em comodato a terceiros e obter o rendimento mensal’’ e que o Apelante ‘’aceitou investir na empresa e comprou várias posições na mesma’’.
10. Ora, o contrato in casu traduzia-se na prática num modelo multinível com o objectivo de criar uma rede de membros adquirentes de pacotes (os gettrackers), com a promessa de que quanto mais alto fosse o rendimento e maior o número de membros angariados para a sua rede pessoas, maior seria o seu rendimento mensal, podendo ser adquiridos quatro pacotes: o Light, Light Plus, Standard e Premium.
11. O pacote Premium tinha o custo de €1.200,00 e permitia, eram apresentados de modo a, que o Apelante auferisse uma contrapartida de €200,00, que à data da apresentação da denúncia ascenderia ao montante global de €9.800 – cfr. fls 157 e 158 do processo. Em simultâneo este pacote atribuía também 200 pontos e ainda a entrega de 1 geolocalizador de uso pessoal e 20 geolocalizadores fornecidos pela G... Lda. para que quem os adquirisse pudesse comodatar a outros clientes.
12. Dessa apresentação, o Apelante celebrou com esta e outros Arguidos um contrato de comodato, no qual adquiriu 10 pacotes deste Premium, tendo investido € 12.000,00 no total, porque adquiriu um pacote a 05/06/2014, dois pacotes a 06/06/2014 e sete pacotes a 13/06/2014. – cfr. alíneas a), b) e e) do artigo 11.º do RAI em confronto com a alínea g) do mesmo artigo.
13. O contrato concretizou-se através do pagamento por entidade-referência (transferência bancária), conforme comprovam os Comprovativos de pagamento juntos à queixa/denúncia, fls. 150 a 157. – cfr. alíneas f) e g) do artigo 11.º do RAI.
14. Sucede que, contrariamente ao prometido, o Apelante nunca conseguiu reaver o dinheiro investido, nem obteve em momento algum qualquer resposta para o que aconteceu.
15. Na verdade, do projecto apresentado constava que para reaver o dinheiro investido teria uma vasta lista de e-mails com as funções de cada um dos Arguidos, e, nesse seguimento, o Apelante interpelou a G... Lda., para que procedesse ao saque.
16. Tal pedido foi efectuado por E-mails, datados de 27/10/2014 e 11/11/2014, cujo destinatário era payroll@g....com, conforme comprovam os documentos por si carreados para o processo, fls. 150 a 157.
17. Ora, volvidos meses sem qualquer resposta por parte da G... Group, e por motivos que o Apelante desconhece, a G... Lda. apresentou-lhe um novo projecto (equiparado ao primeiro), no qual adquiriu Bonus Card, no valor de €30,00, prometendo-lhe que com esse pagamento iria ter lucros mensais.
18. Sucede que, tal como aconteceu no anterior projecto, neste também não recuperou qualquer quantia investida nem recebeu nenhum geolocalizador.
19. Corroborando o exposto, conforme já constava do artigo 16.º do RAI que remetia para aquelas fls, mas também para as fls. 99 e 100, que mais não são do que os Autos de inquirição do Apelante e da Testemunha CC, veja-se o Auto de Declarações prestada pelo Apelante, datado de 27/02/2019, junto aos autos sob fls. 43 e seguintes e fls.198 e seguintes, de onde poderá ler-se que: confirma na íntegra a participação apresentada pela sua mandatária corresponde integralmente à verdade dos factos. Esclarece que teve conhecimento da empresa aqui denunciada G... Lda. através de um seu amigo CC como ali referiu o qual já lhe disse já ter efectuado investimentos na plataforma da denunciada e ter recebido os geolocalizadores que lhe permitiram ter lucro no investimento realizado. Assim, o depoente como refere o art. 4 efectuou um contrato online com a denunciada supra tendo ali sido aberta uma plataforma que lhe permitiu o preenchimento de um contrato, documento online que preencheu com os seus dados referindo que pretendia associação àqueles produtos e que reencaminhou da mesma forma para a denunciada.’’ (Sublinhado e negrito nosso)
20. Acrescentou naquela inquirição ainda o Apelante que ‘’Posteriormente preenchia pedidos online que lhe forneciam ordens de pagamento que geravam as referências multibanco com as quais efectuava o pagamento conforme consta nos documentos juntos. Nunca houve nenhum contacto verbal ou contacto físico de pessoa ou papel sendo certo que apenas preencheu manualmente assinou e de seguida digitalizou e enviou na plataforma, os pedidos de saque do dinheiro já investido, cerca de 4 meses após o primeiro investimento segundo se recorda. É nesse momento que lhe começam a ser levantados entraves à devolução do capital investido e respetivos dividendos sendo certo que é informado de que a G... tinha sido comprada pela V... sendo-lhe enviada uma nova referência multibanco que iria permitir o levantamento de tal dinheiro.” (Sublinhado e negrito nosso)
21. Declarando, por fim, ‘’Que na totalidade investiu a quantia de 12.000,00€ tal como refere nos art.º 13.º e 23.º da sua participação e até ao momento nada conseguiu reaver pois a partir do recebimento da ref.ª multibanco para a compra nunca mais conseguiu fazer pedidos de saque para levantamento das quantias e algum tempo depois deixou mesmo de ter acesso à plataforma. Posteriormente ouviu nas notícias referências de que tinham sido presos indivíduos pelos factos idênticos aos que tinham acontecido consigo, (…) razão pela qual só em meados do ano 2018 viu uma notícia no Jornal de Notícias onde eram referidas as burlas praticadas pelos denunciado (…) Por último refere que o documento junto a fls. 26 refere-se à senha que lhe era emitida que lhe permitia o acesso à plataforma da denunciada, aqui já referida como V..., o documento junto a fls. 27 refere-se à informação de “suporte”, “apoio “, que ficava registada quando o depoente pedia por exemplo o saque de alguma quantia ou tentava entrar na plataforma, o documento junto a fls. 28 refere-se ao pagamento da referência que lhe foi enviada para pagamento da quantia de 30,00€ que supostamente lhe iria dar acesso ao cartão que nunca chegou a receber para ter acesso já à outra empresa que teria comprado a primeira.’’
22. Além desta prova, no processo contém a informação de quem era a entidade 10611 que recebeu os aludidos pagamentos, conforme consta das fls. 60 e 61 dos autos, de onde se poderá ler que ‘’a entidade 10611 corresponde a E..., Lda.’’.
23. Já nas fls. 65 e seguintes dos autos, pode ler-se que a entidade 10611 pertence à E... e a referência de pagamento identifica a entidade (Empresa/ENI) que contratou os nossos serviços, beneficiária dos fundos. Neste caso, os fundos associados aos pagamentos realizados através das referências começadas por 933 no valor de €1.200,00, tiveram como beneficiário o seguinte titular: Nome G... Lda./ NIF ... / Morada: Rua ..., Loja ... e ., .... - ... Lisboa’’. (Sublinhado e negrito nosso)
24. Ou seja, no RAI por remissão para a folhas (fls.) do processo, consta quem era a entidade que recebia o pagamento gerado por aquela plataforma como também se encontra junto a fls. 102 e seguintes quem eram os sócios e representantes legais daquela empresa: G... Lda. e G... Group.
25. Aliás, os meios de prova já constantes dos presentes autos, designadamente dos documentos juntos com a denúncia – que outrora se fez referência, e das inquirições fls.43, 44, 99 e 100, por remissão expressa feita no RAI são parte integrante deste pelo que não pode o RAI ser analisado sem a concreta consulta dos aludidos documentos.
26. Motivo pelo qual não podem restar dúvidas de quem são as pessoas que contra o Apelante praticaram o crime de burla.
27. Até porque no RAI, o Apelante, na sua alínea j) do artigo 11.º e artigo 38.º, consta que ‘’os Arguidos, nomeadamente G..., Lda.’’, por remissão aos documentos que aí se confronta, praticaram o crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º do CP.
20. Preenchendo, deste modo, a ‘’narração sintéctica dos factos que fundamentam a aplicação aos Arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação’’, bem como as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção a ser-lhes aplicada, vide alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP.
29. Já no que diz respeito à alínea c) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP, do RAI consta autonomamente um ponto B – Da qualificação Jurídica, de onde se enquadra que a factualidade descrita se encontra prevista e punida no crime de burla, artigos 217.º do CP.
30. O crime de burla é composto pelos seguintes elementos: a) o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado; b) que o erro ou engano leve outrem à prática desses actos; c) que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial; c) intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
31. Encontrando-se todos devidamente preenchidos como explanado anteriormente, já que comportamento daquelas pessoas, nomeadamente da G... Lda. e dos seus sócios e legais representantes, revelam uma conduta desleal inadmissível no comércio jurídico, violadora dos ditames da boa-fé e que consubstancia “o desvalor característico do ilícito da burla, integrando nessa medida, a expressão acabada do conteúdo de previsão do artigo 217.º” do CP, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 300.
32. Aliás, ‘’os Arguidos, nomeadamente G..., Lda.’’ – cfr. alínea j) do artigo 11.º e 38.º do RAI, por remissão aos documentos que aí se confrontam, tinham a intenção de enganar, astuciosamente, o Apelante recorrendo a diversos mecanismos de divulgação que faziam crer que eram entidades de certificadas internacionalmente (através das plataformas online de subscrição dos pacotes) – entidades de confiança, causando-lhe, com essa conduta, prejuízos patrimoniais e morais.
33. Iludindo o Apelante para que este investisse dinheiro na aquisição dos pacotes, quando bem sabiam que nunca iriam cumprir a obrigação de entregado equipamento geolocalizador, de uso pessoal, conforme acordado, o que atribuía alguma credibilidade ao negócio, junto de investidores mais cépticos.
34. Comprovativo do exposto, veja-se os artigos 36.º a 39.º, 48.º, 50.º do RAI
35. Assim sendo, resulta claramente que o Apelante apresentou uma verdadeira Acusação, com o seu RAI dando integral cumprimento aos requisitos legais exigidos, isto é, explicando em vários artigos que os ‘’Arguidos’’ identificados no seu artigo 2.º do RAI, agiam em representação da sociedade G..., conforme consta do artigo 43.º do RAI,
36. Sendo esta quem receberia os pagamentos efectuados por transferência bancária, isto é, entidade e referência.
37. Explicitando também qual o papel de cada um deles e o modo como negociou e em que qualidade as mencionadas pessoas actuaram, ou seja, o Apelante contratou os serviços online e, por isso, não era possível saber em concreto quem procedeu à emissão da entidade – referência, nem quem praticou que facto em concreto,
38. Na verdade, no processo estão carreados elementos suficientes (documentos e prova testemunhal) de como o negócio era desenvolvido por aquelas pessoas, como demonstrado no RAI e por ora no recurso.
39. Em virtude disso, a Instrução não se pode nem se deve prender unicamente à delimitação factual sinteticamente narrada no corpo do RAI, mas sim a toda e qualquer factualidade que, não importando uma alteração substancial do que nele conste, resulte dos elementos constantes no processo de inquérito ora carreados para a fase de instrução com a apresentação do RAI ou que resulte do debate instrutório da prova nele requerida.
40. O que foi o que sucedeu no caso dos presentes autos,
41. Motivo pelo qual se discorda da Decisão Instrutória, nomeadamente da fundamentação que consta após ‘’Parece que não’’ até ao ‘’seja a prática de um crime de burla. ***’’ e ainda de ‘’Pelo que, além de inviabilizar, objectivamente’’ até ao termo da Decisão Instrutória: ‘’o arquivamento dos autos’’.
42. Devendo, em razão disso, ser revogada e alterada por outra que Designe data para a realização do Debate Instrutório e, consequente e subsequentemente, pronuncie os Arguidos identificados no artigo 2.º RAI e/ou se não for possível quanto a todos, quanto a parte, nomeadamente BB, P..., Lda, G... Lda., G..., Limited/ T..., Lda., DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR, SS, TT, UU, VV, WW, WW, XX, YY E ZZ, DD, AAA, BBB e EE.
43. Dito isto, e consequência do exposto, a Decisão Instrutória, ora recorrida, encontra-se ferida de várias nulidades,
44. Porquanto a alegada nulidade que determinou o arquivamento dos autos mais não é que uma mera irregularidade, pois não se encontra elencada nos artigos 119.º e 120.º do CPP, cujo conteúdo é taxativo.
45. E, como tal, tem as consequências a que alude o artigo 123.º do CPP, ao invés do artigo 122.º do mesmo Código.
46. Além desta nulidade, aquela decisão encontra-se ferida de uma outra, dado que omitiu a realização do debate instrutório.
47. Tal ausência de acto obrigatório, em Instrução, origina uma nulidade, nos termos da alínea d) do artigo 119.º do CPP que, desde já, se argui e, subsequentemente, se extraiam todas as legais consequências que advierem, previstas no artigo 122.º do mesmo Código.
48. E ainda é nula aquela decisão pela omissão de pronúncia quanto à apensação deste processo ao processo n.º 337/14.1TELSB, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.
49. Pese embora, a decisão recorrida conheça de uma alegada nulidade que inviabiliza a própria fase de instrução e, consequentemente, o RAI apresentado, a verdade é que é necessário que expressamente referisse por que motivo não se pronunciou quanto àquele pedido,
50. Como não fez, está ferida de nulidade a decisão por não respeitar a alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.
51. No limite e em boa verdade, com a Decisão que ora se recorre estamos perante a negação da justiça e o acesso ao Direito, uma vez que se encontra devidamente explanado e comprovado nos autos e no RAI, em particular, qual o objecto do processo, isto é, desde os sujeitos, ao modo como operavam (actividade que exerciam, o qua fazia e respectivo papel do Arguidos no crime praticado, bem como quem eram os beneficiários do pagamento realizado pelo Apelante e como o(s) projecto(s) era(m) apresentado(s)) e como foi enganado e ficou prejudicado com a sua actuação.
52. Isto significa que, ao existir qualquer facto, prova ou outro tipo de indício relativamente aos aqui Arguidos (e pessoas com esse estatuto, mas não constituídos Arguidos) de que praticaram aqueles factos de que vinham acusados no RAI, e de que não houve qualquer pronúncia na Decisão Instrutória, ficou o Apelante vedado de obter o prosseguimento do seu processo num outro que se encontra a correr contra estes.
53. Isto é, pelo facto de o Tribunal não se ter pronunciado quanto a uma possível apensação de processos, negouo acesso ao Direito e aos Tribunais para defesa do seu direito e interesse protegido, in casu, o seu património.
54. Do exposto, a Decisão Instrutória que, por ora, se recorre viola os seguintes dispositivos legais alínea d) do artigo 119.º, 120.º, 122.º e 123.º todos o CPP e ainda a alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, bem como os artigos 2.º, 13.º e 21.º da CRP.
55. Motivo pelo qual deve ser revogada e alterada por outro que Designe data para a realização do Debate Instrutório e, consequente e subsequentemente, pronuncie, todos e/ou parte, dos Arguidos identificados no artigo 2.º RAI»
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O arguido BB respondeu ao recurso, defendendo a rejeição liminar do mesmo.
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O arguido YY respondeu ao recurso, aderindo à resposta do arguido BB e aos argumentos da decisão recorrida.
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido também respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência e pela manutenção da decisão recorrida, aduzindo em apoio da sua posição as seguintes conclusões:
«1. O requerimento para abertura de instrução não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, onde constem os factos que se considero indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório.
2. O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente CCC não contém a descrição claro, ordenado e suficiente - à semelhança do que é exigido para a acusação, seja público, seja particular - dos factos necessários a dor como preenchidos todos os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de ofenso à integridade físico simples e, como tal, a dar como integrada a sua prática, pelo arguido.
3. O Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. n.º 7/2005 estipulou que "Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido".
4. Não há qualquer reparo a fazer ao despacho que rejeitou o requerimento para abertura de instrução.
5. Sendo rejeitado o requerimento para abertura de instrução, o processo não entrou nesta fase pelo que forçoso se torna concluir que os dispositivos legais relativos à instrução não têm aplicação à situação dos outos, designadamente a obrigatoriedade da realização de debate instrutório.
6. Relativamente à alegada violação do art. 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penol, o mesmo reporta-se à sentença, não sendo assim aplicável ao despacho ora recorrido, a que acresce a circunstância de, face ao teor do despacho em questão, não haver como concretizar a apensação solicitada, pois que os presentes autos se encontrariam arquivados.»
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer do sentido da improcedência do recurso.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente suscita nas suas conclusões são as seguintes:
- Completude da narrativa do RAI, em cumprimento das als. b) e c) do n.º 3 do art. 283.º ex vi n.º 2 do art. 287.º do CPPenal;
- Natureza do vício identificado no despacho recorrido que determinou o arquivamento dos autos: nulidade ou irregularidade;
- Nulidade da decisão recorrida por omissão acto obrigatório em instrução (art. 119.º, al. d), do CPPenal), concretamente a realização de debate instrutório;
- Nulidade do despacho recorrido, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPPenal, por omissão de pronúncia quanto ao pedido de apensação destes autos ao Proc. n.º 337/14.1TELSB;
- Negação de acesso ao direito e aos tribunais e violação dos arts. 2.º, 13.º e 21.º da Constituição da República Portuguesa.
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Vejamos.
Por uma questão de precedência lógica na análise das questões suscitadas, importa apreciar em primeiro lugar a nulidade insanável invocada pelo recorrente, por omissão de realização de debate instrutório, posto que o seu reconhecimento conduzirá à respectiva invalidade, prejudicando a apreciação das demais questões suscitadas que dependem da existência de uma decisão válida.
Alega o recorrente a este respeito que a 18-09-2020 foi proferido despacho de admissão do RAI, ocorreu a prática subsequente de actos processuais que deram seguimento à instrução, como pedido de realização de diligências pelo OPC e pedido de esclarecimentos ao assistente sobre a prova.
Acrescenta que tais actos, praticados desde o despacho de admissão do RAI, e mesmo após a arguição de nulidade do RAI por parte do arguido BB, são actos que constituem a instrução e que originam a obrigatoriedade de realização do debate instrutório (art. 289.º do CPPenal).
Aludindo embora à nulidade sanável por insuficiência de instrução, prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d), do CPPenal, acaba por qualificar a omissão de realização de debate instrutório como nulidade insanável nos termos do art. 119.º, al. d), do CPPenal.

Determina este último preceito (art. 119.º, al. d), do CPPenal) que constitui nulidade insanável, entre outras situações ali previstas, a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
Esta previsão, no que respeita à instrução, não abarca a simples omissão de realização de debate instrutório, contrariamente ao alegado pelo recorrente.
Com efeito, constando do art. 119.º do CPPenal as mais graves das nulidades previstas neste capítulo, percebe-se que seja o mesmo reservado às situações que revelem uma inaceitável violação de direitos e preceitos processuais, podendo, por isso, ser apreciadas a todo o tempo até ao trânsito em julgado da decisão final.
Caberá ali, no que respeita à instrução, por exemplo, uma situação em que é requerida a instrução, nada obstando à sua realização, mas esta não é tramitada de todo[2].
No caso em apreço, não foi isso que aconteceu, posto que, como se viu do elenco da tramitação processual ocorrida nestes autos, após apresentação do RAI, o processo foi remetido para distribuição a juízo de instrução criminal, foi declarada aberta a instrução, foram determinados e praticados actos destinados ao prosseguimento desta fase processual, tendo em visto o seu termo, e foi proferida uma decisão que analisou requisitos formais respeitantes a esta fase processual.
Perante esta sequência de actos não se pode afirmar a inexistência de instrução.
Assim, a simples falta de debate instrutório no contexto da tramitação dos presentes autos não integra a nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. d) do CPPenal.
Não obstante, integra a nulidade sanável prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d), do CPPenal, qual seja, a insuficiência (…) da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios.
Com efeito, por despacho de 11-11-2020, foi declarada aberta a instrução, por se ter entendido ser tempestiva e legalmente admissível, tendo o assistente legitimidade para tanto.
Este despacho, por ser tabelar, liminar e genérico quanto aos pressupostos da tempestividade, legitimidade e admissibilidade legal da instrução não faz caso julgado formal[3] sobre tais questões, que não foram concretamente analisadas. Por tal razão, quanto a estas matérias não estaria o Senhor Juiz de Instrução impedido de, a final da instrução, proferir decisão em que reconhecesse a ausência de algum destes pressupostos[4], uma vez que no despacho de pronúncia ou não pronúncia o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer – art. 308.º, n.º 3, do CPPenal.
Porém, a própria decisão de declarar aberta a instrução, diferentemente, marca apenas o início de uma sequência processual que há-de culminar com a decisão instrutória. E o início dessa etapa, uma vez determinado, não pode voltar atrás, salvo se for declarada a nulidade do processado respectivo.
Assim, quanto a essa decisão forma-se caso julgado formal[5].
No caso concreto, o Senhor Juiz de Instrução podia, querendo, ao abrigo do art. 287.º, n.º 3, do CPPenal, ter proferido despacho inicial de rejeição do requerimento de abertura de instrução com os fundamentos que veio a inscrever na decisão recorrida.
Porém, não o tendo feito e tendo declarado aberta a instrução, comunicando tal decisão aos diversos intervenientes processuais (287.º, n.º 5, do CPPenal), deu início a uma nova e diferente sequência processual que devia passar obrigatoriamente pela realização de debate instrutório e, encerrado este, pela prolação de decisão instrutória, que poderia incluir a apreciação de nulidades e outras questões prévias ou incidentais (arts. 307.º e 308.º do CPPenal).
A omissão de realização de debate instrutório configura uma nulidade por insuficiência de instrução por não ter sido praticado acto legalmente obrigatório, nulidade que é sanável caso não venha a ser arguida até ao encerramento do debate instrutório (art. 120.º, n.ºs 2, al. d), e 3, do CPPenal)[6].
O recorrente arguiu a nulidade por omissão de realização de debate instrutório e fê-lo tempestivamente, posto que antes do encerramento do debate instrutório e do trânsito em julgado da decisão que determinou o arquivamento dos autos em fase de instrução.
É certo que não realizou o enquadramento legal correcto, uma vez que classificou a nulidade como insanável. Porém, essa inexactidão não invalida que tivesse sido arguida a omissão em questão, mostrando-se satisfeito o pressuposto formal para sua apreciação.
As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar, sendo que ao declarar a nulidade o juiz deve determinar quais os actos que passam a considerar-se inválidos aproveitando os que ainda puderem ser salvos do efeito da nulidade (art. 122.º do CPPenal).
E estas consequências não depende de qualquer juízo de ponderação da utilidade ou inutilidade dos actos omissos, como se sustentou no despacho recorrido.
No caso concreto importa apenas declarar nula a decisão recorrida, pois pôs fim à instrução sem que tenha sido realizado debate instrutório, consequência que não depende da ponderação da pertinência dessa diligência. Ela é obrigatória e foi tempestivamente reclamada a sua realização.
A ponderação de utilidade ou inutilidade da prática de actos teria de ter sido realizada aquando do despacho inicial que declarou aberta a instrução, já que nessa altura nenhum impedimento formal obstaculizava a que fosse proferida uma decisão de rejeição do requerimento para abertura da instrução ao abrigo do disposto no art. 287.º, n.º 3, do CPPenal, pelos fundamentos utilizados no despacho recorrido.
Com a declaração de nulidade da decisão recorrida, e apenas desta, voltam os autos ao momento processual onde se encontravam antes de aquela ser proferida, devendo os mesmos prosseguir os termos da instrução de acordo com o entendimento do Senhor Juiz de Instrução, mas culminando obrigatoriamente com a realização de debate instrutório e prolação posterior de decisão instrutória.
A declaração de nulidade da decisão recorrida prejudica a apreciação das demais questões colocadas, pois todas elas pressupõem a vigência de tal despacho.
Deve, assim, ser julgado procedente o recurso.
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto pelo assistente AA e, em consequência, declarar a nulidade do despacho proferido pelo Senhor Juiz de Instrução, datado de 11-11-2021, que determinou o arquivamento dos autos, salvaguardando-se os demais actos praticados, e determinar o prosseguimento dos termos da instrução de acordo com o entendimento do Senhor Juiz de Instrução, devendo aquela culminar obrigatoriamente com a realização de debate instrutório e prolação posterior de decisão instrutória.

Sem tributação.

Notifique.

Porto, 22 de Junho de 2022
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
Francisco Marcolino
__________________________________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cf., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição, anotação 10. ao art. 119.º, pág. 302.
[3] O Supremo Tribunal de Justiça, em matéria criminal, já se pronunciou sobre este conceito em dois acórdãos para fixação de jurisprudências, embora relativos a questões processualmente diversas (acórdão 2/95 de 16-05-1995, DR 135/95 Série I-A de 12-06-1995, que fixou a seguinte jurisprudência: «A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento» e o acórdão n.º 5/2019 de 04-07-2019, DR 185/2019, Série I de 2019-09-26, que fixou a seguinte jurisprudência: «O despacho genérico ou tabelar de admissão de impugnação de decisão da autoridade administrativa, proferido ao abrigo do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações, não adquire força de caso julgado formal»).
[4] Essa específica questão foi abordada pela aqui relatora no Proc. n.º 335/18.6T9GDM.P1, acessível in www.dgsi.pt.
[5] Como se afirmou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2019, para fixação de jurisprudência, referido na nota-de-rodapé n.º 3:
«O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.
Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, mas supondo a inalterabilidade subsequente dos pressupostos de conformação material da decisão.
No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta.
O procedimento é dinâmico, sequencial e, como contínuo instrumental, subsiste até ao momento em que o processo atinja a sua finalidade – a obtenção de uma decisão que lhe ponha termo, seja decisão final sobre pressupostos negativos de procedimento ou sobre a verificação de condições extintivas, seja decisão final de determinação, positiva ou negativa, da culpabilidade ou de aplicação da sanção que couber. Mas no contínuo dinâmico e instrumental, submetido a regras próprias, o procedimento pode sempre cessar por motivo que produza esse efeito – v. g., a prescrição.
Mas, assim, na perspectiva instrumental e no espaço de garantias que é o processo, mudando os pressupostos de que depende a realização da finalidade a que está vinculado – a realização da justiça do caso, no respeito por regras materiais e de acordo com princípios estruturantes – deixa de subsistir a razão do caso julgado formal que não pode impedir a realização da finalidade que justifica a sua razão instrumental.»
[6] Sobre as causas de nulidade por insuficiência de instrução, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição, anotação 7. ao art. 120.º, págs. 305 e 306.