RECURSO DE REVISÃO
CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
SEGURO DE GRUPO
ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
PRAZO
PRINCÍPIO DA ADESÃO
Sumário


I - Ao exercício de funções de agente de execução, que envolve poderes de autoridade anteriormente cometidos a oficiais de justiça sobre a imediata direcção do juiz do processo – incluindo, a penhora, a venda executiva, a arrecadação e a guarda de valores e bens afectos aos fins da execução –, é inerente o risco de causar danos aos intervenientes processuais ou a terceiros, por erro, negligência ou conduta desviante;
II - A cláusula contratual geral de um contrato de seguro de grupo que introduz um prazo dentro do qual a reclamação deve ser apresentada para a hipótese da cessação do contrato, consubstancia-se numa cláusula híbrida que associa, a um seguro na base da ocorrência do facto gerador no período de vigência da apólice, uma regra contratual quanto ao limite temporal de exercício do direito à prestação emergente do sinistro, de modelo e efeito prático semelhante a um sistema claims made.
III - As razões de protecção do lesado perante actos e omissões geradores de responsabilidade civil profissional por parte dos agentes de execução, que levaram o legislador a impor o seguro obrigatório, só se satisfazem com a inoponibilidade da cláusula que limita temporalmente o direito de reclamação da prestação da seguradora, mediante um termo a quo em que a caducidade do direito de exigir a prestação indemnizatória garantida pelo seguro começa a correr e pode completar-se num momento em que o lesado desconhece o facto ilícito;
IV - Num contrato estruturado na base do facto gerador, uma caducidade por estipulação negocial como a estipulada na parte final da cláusula 5.ª, das Condições Gerais da apólice considera-se estabelecida em matéria subtraída à disponibilidade das partes – o segurador e o tomador e o segurado incluído no seguro de grupo – por frustrar a finalidade ínsita no caracter obrigatório do seguro – a protecção ao lesado;
V - Uma tal cláusula é inválida, face ao disposto nos arts. 329.º e 330.º, do CC, que constituem regime geral a que o contrato de seguro, também, está submetido e, por isso consubstancia, além das disposições especiais, mais um limite ao princípio da liberdade negocial, nos termos do art. 11.º, do RJCS;
VI - A invalidade consiste ou basta-se com a ineficácia relativa da cláusula, ao que corresponde, na técnica do RJCS, o regime de inoponibilidade ao terceiro lesado;
VII - A cessação do contrato não iliba o segurador da obrigação de efectuar a prestação decorrente da cobertura do risco, desde que o sinistro seja anterior ou concomitante com a cessação (art. 106.º, n.º 2, do RJCS), nem prejudica os direitos adquiridos por terceiros durante a vigência do contrato (art. 108.º, do RJCS);
VIII - A prescrição não é de conhecimento oficioso e teria de ter sido arguida no momento processual próprio, que seria a contestação ao pedido cível, conforme art.º 303.º, do Cod. Civil.
IX - O afastamento do princípio da adesão consentido pela al. a), do n.º 1, do art. 72.º do CPP constitui uma faculdade, não um ónus do lesado.

Texto Integral




Recurso Penal

Processo: n.º 1138/16.8T9STC.E1.S1

5ª Secção Criminal

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça,

I. RELATÓRIO
1. No Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central de Competência Criminal – Juiz ..., foi submetida a julgamento AA, (AA) ex-solicitadora de execução, pela prática de um crime de peculato, p. e p. pelo art.º 375º, n.º 1, do Código Penal.

BB constituiu-se assistente no  processo e formulou pedido de indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes dos factos ilícitos imputados à arguida AA, que consistiram na apropriação em proveito próprio de quantias que detinha em resultado de penhoras efectuadas num processo de execução em que o demandante era exequente.

O pedido cível foi deduzido a título principal contra a OCIDENTAL - Companhia Portuguesa de Seguros SA, (OCIDENTAL,SA), ao abrigo de um  contrato de seguro de responsabilidade civil profissional e, a título subsidiário, contra a arguida AA e contra o FUNDO DE GARANTIA DOS AGENTES DE EXECUÇÃO, (FUNDO).


2. O tribunal de primeira instância condenou a arguida AA pelo crime de peculato e julgou parcialmente procedente quanto a esta demandada o pedido de indemnização civil.

Quanto à demandada OCIDENTAL, SA,  julgou procedente a excepção de caducidade estabelecida na cláusula 5.ª, das Condições Gerais da Apólice,  que limitava a responsabilidade da seguradora aos sinistros reclamados no prazo de três anos, a contar da cessação  do contrato, e absolveu-a do pedido de indemnização. 

Quanto ao FUNDO DE GARANTIA DOS AGENTES DE EXECUÇÃO, o litígio terminou por transação.

O  Demandante interpôs recurso desta decisão, na parte respeitante à absolvição da Seguradora.

 
3. Por acórdão de 11/01/2022, o Tribunal da Relação de Évora (TRE) concedeu provimento ao recurso, condenando a OCIDENTAL, S.A. a pagar ao Demandante, a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos, o montante a liquidar e correspondente à diferença entre o valor que vier a receber no âmbito do processo n.º 1061/05...., Juízo de Execução ... (já deduzido dos créditos reclamados e graduados antes do seu crédito e das despesas da execução), e o valor do seu crédito exequendo indicado nessa execução de €32.073,36 (trinta e dois mil, setenta e três euros e trinta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal  desde a data da notificação para contestar o pedido cível, até integral pagamento  (art.º 559.º, n.º 1, do Código Civil e art.º 1.º, da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril).

E absolveu do pedido cível a arguida AA, que tinha sido demandada a título subsidiário.

4. Deste acórdão interpôs recurso de revista, restrito ao pedido cível,  a demandada OCIDENTAL, S.A. , que alegou e  formulou as seguintes conclusões:

“1.   O Tribunal a quo considerou que, pela interpretação do prescrito no art. 147.º do RJCS e, uma
vez que os factos em causa foram praticados, ainda, durante a vigência do contrato, a cessação do contrato que pode ser oposta ao terceiro/lesado é a que ocorra antes do sinistro e não a que tenha lugar depois dele ter ocorrido.

2.    Por esse motivo, considerou a Relação que a cessação do contrato não é oponível ao

terceiro/lesado, aqui Recorrido.

3.    Segundo o entendimento da Relação de Évora, o lesado não está adstrito a exigir o pagamento

de uma indemnização dentro do prazo dos 3 anos convencionado na Cláusula 5.ª das

Condições Gerais do contrato de seguro no qual não teve intervenção nem figura como parte contratante.

4.    A Relação entende que a cláusula contratual que estabelece que a garantia concedida no

contrato abrange os sinistros ocorridos durante a vigência da apólice desde que reclamados

até 3 anos após a cessação do contrato, é oponível ao tomador do seguro e ao segurado ou

beneficiário do mesmo, mas não é oponível ao terceiro lesado.

5.     Isto porque, nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil, o segurador apenas pode opor ao terceiro lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador de seguro ou do segurado, ocorrido anteriormente ao sinistro, nos termos do disposto no art. 147.º, nºs 1 e 2 do RJCS.

6.    Sucede que a segurada foi expulsa da Câmara dos Solicitadores, em 30.11.2011, tornando-se

a expulsão definitiva em 06.06.2012.

7.    E a aqui Recorrente apenas teve conhecimento dos factos em discussão, com a citação para

apresentar contestação ao Pedido de Indemnização Cível, em 24.10.2020,

8.    Isto é, mais de 3 anos após a expulsão da segurada, da Câmara dos Solicitadores.

9.    Refere o n.º 4 do art. 8.º das Condições Gerais, sob a epígrafe Duração do Contrato”, o seguinte: “O Contrato de seguro caduca automaticamente na data em que for cancelada ou suspensa a inscrição do segurado na Câmara dos Solicitadores, enquanto solicitador de execução, ou quando aquele cesse voluntariamente a sua atividade (…)” (com destaque nosso).

10. O citado artigo é referente à VALIDADE do contrato de seguro.

11. Ou seja, no momento da expulsão da segurada, o contrato de seguro CADUCOU, DEIXOU DE

EXISTIR e, bem assim, de produzir quaisquer efeitos seja a que sujeitos for (tomador, beneficiário, terceiro lesado).

12. Já o art. 5.º das Condições Gerais, sob a epígrafe Âmbito Temporal”, prevê o seguinte: “A garantia concedida pelo presente contrato abrange os sinistros causados por atos ou omissões ocorridos durante a vigência da apólice DESDE QUE reclamados até três anos após a cessação do contrato”. (com destaque nosso).

13. Ou seja, TENDO O CONTRATO DE SEGURO CADUCADO AUTOMATICAMENTE com a

expulsão definitiva da segurada da Câmara dos Solicitadores, verificada no dia 6 de Junho de 2012, as garantias concedidas através da apólice passam a abranger, apenas, os sinistros reclamados até 3 anos após a cessação do contrato.

14. A Demandada apenas tomou conhecimento do “sinistro” em 24.10.2020 8 anos após a

expulsão da segurada através da notificação que lhe foi dirigida para contestar o

Pedido de Indemnização Civil, pelo que se encontra excluída a sua responsabilidade, pois NESTA DATA NÃO EXISTIA QUALQUER CONTRATO, nem houve qualquer participação/reclamação até 3 anos após a cessação do mesmo.

15. Ora, por via do previsto nas Condições Gerais do contrato de seguro, fica

expressamente excluída a responsabilidade da Demandada, por falta de cobertura temporal.


16. O art. 101.º, n.º 4 do Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril (RJCS), refere o seguinte: O disposto nos n.ºs 1 e 2 não é oponível aos lesados em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ficando o segurador com direito de regresso contra o incumpridor relativamente às prestações que efectuar, com os limites referidos naqueles números.” (com destaque nosso).

17. No entanto, os n.ºs 1 e 2 do referido preceito prevêem o seguinte: “1 - O contrato pode prever a

redução da prestação do segurador atendendo ao dano que o incumprimento dos deveres fixados no artigo anterior lhe cause. 2 - O contrato pode igualmente prever a perda da cobertura se a falta de cumprimento ou o cumprimento incorrecto dos deveres enunciados no artigo anterior for doloso e tiver determinado dano significativo para o segurador.” (com destaque nosso).


18. Ora, o artigo anterior refere-se à Participação do Sinistro, prevendo o seguinte (art. 100.º do RJCS): “1 - A verificação do sinistro deve ser comunicada ao segurador pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo beneficiário, no prazo fixado no contrato ou, na falta deste, nos oito dias imediatos àquele em que tenha conhecimento. 2 - Na participação devem ser explicitadas as circunstâncias da verificação do sinistro, as eventuais causas da sua ocorrência e respectivas consequências. 3 - O tomador do seguro, o segurado ou o beneficiário deve igualmente prestar ao segurador todas as informações relevantes que este solicite relativas ao sinistro e às suas consequências.” (com destaque nosso).

19. Salvo o devido respeito, confunde-se a excepção de falta de cobertura temporal invocada

pela seguradora Demandada, com a questão de falta de participação do sinistro,

invocando-se normativos legais que não se ajustam à situação em causa.

20. A excepção invocada pela Demandada é relativa à caducidade do direito do lesado em

virtude do decurso do prazo de 3 anos contados desde a cessação do contrato de seguro celebrado.

21. Tratando-se de um contrato de seguro obrigatório, o lesado tem o direito de exigir o pagamento

da indemnização directamente ao segurador (art. 146.º, n.º 1), SENDO-LHE, ASSIM,

OPONÍVEIS como meios de defesa do segurador nomeadamente, a invalidade do

contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato.

22. É o que resulta, ademais, do disposto no n.º 2 do art. 147.º do RJCS: “Para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador, a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato. (com destaque nosso).

23. Não nos olvidemos que o Recorrido apresentou a presente demanda passado 8 anos do

conhecimento dos factos fundamento. O Recorrido decidiu apresentar a presente demanda

contra a seguradora, no âmbito do processo-crime, quando podia e devia (atento o disposto no artigo 71.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal), ter deduzido o pedido em separado, já que ali não foi deduzida acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime (a denúncia criminal deu entrada nos serviços do Ministério Público no dia 4 de Outubro de 2016).

24. Por outro lado, em 10 de Março de 2014, foi o ora Recorrido notificado de que o escritório da

arguida (segurada), AA, estava em fase de liquidação, bem como do relatório com a nota de liquidação provisória.

25. Nos termos do disposto no art. 298.º, n.º 2 do Código Civil, quando por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição, tendo que ser invocada pela parte a quem aproveita (artigo 303.º do Código Civil).

26. Como facto extintivo de direitos, a caducidade verifica-se quando o direito não é exercido
dentro de um dado prazo fixado por lei ou convenção. No caso dos autos, a aqui Recorrente defendeu-se por excepção, alegando factos que lhe aproveitavam, cumprindo, deste modo, o previsto no artigo 303.º do Código Civil.

27. A situação jurídica em discussão nos presentes autos, no que à ora Recorrente respeita,

assenta num contrato de seguro de responsabilidade civil profissional celebrado entre a

OCIDENTAL – COMPANHIA PORTUGUESA DE SEGUROS, S.A. e a Ordem dos Solicitadores

e dos Agentes de Execução, titulado pela apólice de seguro n.º ...00.

28. Nos termos definidos nas Condições Gerais e Especiais do Contrato, a ora Recorrente assumiu, perante o Tomador de seguro – Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução – a cobertura dos riscos inerentes ao exercício da actividade profissional desenvolvida pelos seus segurados – Agentes de Execução com inscrição em vigor.

29. O seguro em causa foi contratado em 27.10.2003, iniciando a produção dos seus efeitos na

data de celebração do mesmo, tendo um período de vigência de 1 (um) ano automaticamente prorrogável por novos períodos de 1 (um) ano, salvo denúncia por qualquer das partes mediante declaração escrita enviada ao destinatário com uma antecedência mínima de 30 (trinta) dias em relação à data da prorrogação, ou no caso de o Tomador não proceder ao

pagamento do prémio de seguro. 


30. Nos termos da Cláusula 5.ª das Condições Gerais do contrato de seguro, sob a epígrafe “Âmbito Temporal”, a garantia concedida pelo presente contrato abrange os sinistros causados por actos ou omissões ocorridos durante a vigência da apólice DESDE QUE reclamados até três anos após a cessação do contrato.

31. A segurada Agente de Execução foi expulsa da Câmara dos Solicitadores em 30.11.2011,

tornando-se a expulsão definitiva em 06.06.2012.

32. Conforme dispõe o n.º 4 da Cláusula 8.ª das Condições Gerais do contrato de seguro: “O contrato de seguro CADUCA AUTOMATICAMENTE na data em que for cancelada ou suspensa a inscrição do segurado na Câmara dos Solicitadores, enquanto solicitador de execução…” (com destaque nosso).

33. A partir da data em que a apólice cessou os seus efeitos, em 06.06.2012, a garantia

concedida pelo contrato de seguro APENAS SE MANTINHA NOS TRÊS ANOS APÓS A

SUA CESSAÇÃO, e desde que reclamado o sinistro, ou seja, até 06.06.2015.

34. O que está em causa é a INEXISTÊNCIA DE CONTRATO DE SEGURO, o qual caducou com a expulsão definitiva da Segurada Agente de Execução.

35. Assim, para que o contrato caduco pudesse ser accionado, sempre deveria sê-lo através de uma participação, no prazo de 3 (três) anos – o que não sucedeu.

36. Ou seja, estamos perante uma situação em que NÃO EXISTE UM CONTRATO VÁLIDO E

EFICAZ sendo que o mesmo cessou por caducidade e que, para que o mesmo

pudesse garantir o risco, teria de ter sido accionado no prazo de 3 (três) anos após a sua

cessação o que não sucedeu.

37. No limite, considerar que a referida excepção da caducidade, nos citados termos, é inoponível ao Recorrido, é o mesmo que admitir que um contrato que já caducou pode ser sempre accionado, a todo o tempo – o que não corresponde à verdade e, ademais, colocaria a aqui Recorrente numa posição de irrazoável e inaceitável desvantagem contratual.

38. Nestes termos, condenar a aqui Recorrente, consubstanciaria um profundo desequilíbrio

entre prestações das partes contratantes, revelando-se claramente atentatório da boa-fé.

39. Tendo o contrato de seguro caducado automaticamente com a expulsão definitiva da Segurada Agente de Execução, em 06.06.2012, as garantias concedidas através da apólice em causa abrangem, apenas, os sinistros reclamados até 3 (três) anos após a cessação do contrato.

40. Apesar de a Recorrente apenas ter tomado conhecimento do sinistro em causa com a citação

para contestar o PIC (ou seja, ausência de participação), o que está aqui em causa é a caducidade do direito da lesada em virtude do decurso do prazo de 3 (três) anos, contados sobre a cessação do contrato.

41. Tratando-se de um seguro obrigatório, o Recorrido sempre teria o direito de exigir o pagamento

da indemnização directamente ao segurador – ora Recorrente.

42. Assim, são-lhe oponíveis, nomeadamente, as causas de cessação do contrato, in casu, a

caducidade, por via do n.º 4 da Cláusula 8.ª das Condições Gerais.

43. Pelo exposto, a condenação da aqui Recorrente consubstanciaria um profundo

desequilíbrio entre as prestações das partes contratantes e frustração da confiança inerente à celebração do contrato de seguro, revelando-se tal decisão claramente atentatória da boa-fé considerando a Recorrente, abusivo, o entendimento de que um contrato que já cessou por via da caducidade possa ser reactivado a todo o tempo.

44. O princípio do equilíbrio das prestações postula um princípio de proporcionalidade na

execução dos contratos.

45. Por outro lado, tendo o contrato em causa caducado em 2012, sem que a seguradora recebesse qualquer montante a título de prémio de seguro por via da expulsão da Agente de Execução condenar a Recorrente a assumir um risco que não se encontra garantido, resulta na assumpção forçada de garantir um risco, tendo cessado quaisquer relações contratuais que obriguem a seguradora.

46. Assim, entende a Recorrente que foram violados os artigos 298.º, n.º 2 e 303.º do CC, art. 576.º, 3 do CPC, arts. 100.º e 101.º, n.º 4, e 147.º do RJCS, e as cláusulas 5.ª e 8.ª, n.º 4 das Condições Gerais do contrato, pelo que sempre se deverá concluir que A EXCEPÇÃO DA CADUCIDADE É OPONÍVEL AO RECORRIDO, verificando-se a INEXISTÊNCIA DO CONTRATO com base no qual fundamenta o seu pedido e, ainda, não tendo havido qualquer reclamação/participação, no período de 3 anos após operar a cessação do contrato por via da expulsão da segurada Agente de Execução.

NESTA MEDIDA, e atentos os fundamentos invocados, deverá ser alterada a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, julgando-se procedente a excepção da caducidade invocada pela Recorrente e, bem assim, considerar-se a mesma oponível ao Recorrido, com a necessária revogação do acórdão da Relação e absolvição da seguradora do pedido, assim se fazendo JUSTIÇA!”.

(Sublinhados, negritos e itálicos no original)


5. O Recorrido contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:

“A – Contrariamente ao alegado pela recorrente, o Tribunal da Relação decidiu de forma correta ao considerar que a então Câmara dos Solicitadores contratou com a Ocidental — Companhia de Seguros, S. A um seguro de responsabilidade civil (apólice de seguro junta pela demandada, a fls. 1189-1204) e que, por feito do mesmo, em face da factualidade provada esta passou a garantir a responsabilidade civil profissional, decorrente da atividade da solicitadora de execução segurada, obrigando-se a satisfazer a indemnização correspondente aos danos reclamados pelo demandante, porquanto causados pela segurada no exercício dessa sua atividade.

B- Contrariamente ao alegado pela recorrente, o Tribunal da Relação aplicou corretamente o Direito aos factos dados como provados ao considerar improcedente a exceção peremptória alegada pela demandada, ora recorrente, Ocidental—Companhiade Seguros, S. A, de exclusão da sua responsabilidade, com fundamento na cláusula constante do contrato de seguro, acima transcrita “ (âmbito temporal) a garantia concedida pelo presente contrato abrange os sinistros causados por atos ou omissões ocorridos durante a vigência da apólice desde que reclamados até três anos após a cessação do contrato”;

C- Conforme expressamente consignado no douto acórdão ora em crise, a cláusula da apólice que consigna que a garantia concedida pelo contrato só abrange os sinistros causados por atos ou omissões ocorridos durante a sua vigência desde que reclamados até três anos após a cessação do contrato é, à semelhança de outras, uma cláusula denominada de base-reclamação (claims made) que impõe, na mesma, um prazo limite para a participação do sinistro, não a contar da sua verificação, como são outras, mas a contar da cessaçãodocontratodeseguro.

D-É uma cláusula de direito material fundada nas relações estabelecidas entre o segurado e a seguradora e que consigna um dever contratual por eles fixado.

E- Nestes contratos de seguro não são oponíveis a terceiros as cláusulas de delimitação temporal da garantia do seguro, também denominadas claims made; tal restrição resulta do disposto no artigo 101º, n.º 4, da Lei do Contrato de seguro, por reporte ao disposto nos artigos 101º, n.º 1 e 2 e 100º da Lei do Contrato de seguro.

F- O ratio deste preceito legal prende-se com a salvaguarda do interesse público de conferir uma especial proteção aos lesados no âmbito dos seguros obrigatórios de responsabilidade civil.

G- A cláusula de ter que participar o sinistro nos três anos subsequentes à cessação do contrato de seguro, para beneficiar da respetiva cobertura, sendo uma cláusula (claims made) não é oponível ao lesado, porque este é alheio à relação contratual titulada pela apólice e às exceções de direito material fundadas nas relações estabelecidas entre o tomador de seguro e/ou o segurado e a seguradora, na parte em que versam sobre o incumprimento por parte do segurado – ou do tomador de seguro – de deveres contratualmente fixados.

H- É isso precisamente que resulta do nº 4 do artigo 101º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, ao estabelecer que «o disposto nos nºs 1 e 2 não é oponível aos lesados em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ficando o segurador com direito de regresso contra o incumpridor relativamente às prestações que efetuar, com os limites referidos naqueles números»;

I-Tal como resulta do artigo 13º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, a norma do artigo 101º é relativamente imperativa, no sentido em que o contrato de seguro não pode estabelecer um regime mais favorável à seguradora.

J- Pelas razões acima referidas, esta cláusula de exclusão invocada pela demandada para se eximir da sua responsabilidade de ressarcir o demandante pela ocorrência do risco coberto pelo supra referido contrato de responsabilidade civil profissional não pode operar no caso dos autos.

L- Sendo a falta de reclamação/participação, até ao referido prazo temporal, inoponível ao ora recorrido, como demonstrado, face à factualidade provada, outra conclusão não pode retirar-se senão a improcedência da exceção invocada pela demandada Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A e, consequentemente, a condenação da demandada Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A. a pagar ao demandante, ora recorrido, a título de danos patrimoniais sofridos, o montante a liquidar e correspondente à diferença entre o valor que vier a receber no âmbito do processo N.º 1061/05...., Juízo de Execução ...- J... (já deduzido dos créditos reclamados e graduados antes do seu crédito e das despesas da execução) e o valor do seu crédito exequendo indicado na execução de € 32.073,36€, acrescido de juros de mora desde a data da notificação e até efetivo e integral pagamento, calculados à taxa legal aplicável aos juros civis, de 4% ao ano, e ainda, no pagamento dos demais encargos do processo nas custas do processo, respondendo, assim, na justa medida da responsabilidade em que foi condenada a segurada;

M- Razão pela qual, ao decidir como decidiu, o Tribunal de segunda instância aplicou correctamente à matéria de facto dada como provada em primeira instância as normas previstas no nº 4 do artigo 101º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, bem como o disposto no artigo 13º do mesmo diploma legal.

Nestes termos e nos mais de Direito, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela demandada e, consequentemente, manter-se inalterado o douto Acórdão recorrido, com todos os efeitos legais.”.

(Sublinhados, negritos e itálicos no original)


6. O Exmo. Procurador Geral Adjunto neste Supremo Tribunal não emitiu parecer concluindo que “O presente recurso foi remetido a este Supremo Tribunal, unicamente, para apreciação de matéria de natureza cível.
Não sendo interveniente qualquer entidade a quem o Ministério Público deva representação, consigno que não irei emitir parecer relativamente ao respectivo mérito.”.

7. Efectivamente o objecto do presente recurso cinge-se à apreciação da questão que consiste, essencialmente em saber se é oponível ao terceiro lesado a cláusula de limitação temporal constante da apólice do contrato de seguro, outorgado entre a ora Recorrente a seguradora OCIDENTAL, SA e a Câmara dos Solicitadores e Agentes de Execução.

8. Nada obsta ao conhecimento do presente recurso, pelo que, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.


II. FUNDAMENTO
1. Os factos

O acórdão recorrido e relativamente à matéria em questão considerou provados os seguintes factos:

Do pedido de indemnização cível / contestação ao pedido de indemnização cível [consigna-se que não são reconduzidas à factualidade assente conclusões de facto e de direito]

38. No dia 13 de Outubro de 2005, o demandante BB instaurou no então Juízo de Média e Pequena Instância Cível ..., Comarca do Alentejo Litoral, acção executiva para pagamento de quantia certa, no valor de €32.073,36, acrescida de juros moratórios vincendos desde a referida data, à taxa legal de 4% ao ano, sobre o capital de €30.000,00, correspondente ao valor da letra de câmbio dado à execução, tendo-lhe sido atribuído o n.º ...5...;

39. Da quantia exequenda supra referida, €30.000,00 corresponde a capital, €995,00 a despesas com a emissão e desconto da letra e €1.078,36 a juros contados desde a data do vencimento da letra até à entrada em juízo do requerimento executivo - ...2 de Outubro de 2005, calculados à referida taxa legal de 4% ao ano;

40. É executado nos referidos autos de execução CC;

41. À data da instauração da referida acção executiva, a arguida exercia a profissão de solicitadora de execução, utilizando o nome profissional de AA, era portadora da cédula profissional n.º ...70 e tinha escritório nesta localidade de ...;

42. Pelo que foi indicada como solicitadora de execução, tendo aceitado a nomeação em 14 de Outubro de 2005;

43. A demandada AA exerceu essa actividade até à data da sua expulsão da Câmara dos Solicitadores por decisão proferida em 30 de Novembro de 2011 e que se tornou definitiva em 6 de Junho de 2012;

44. No requerimento executivo, o exequente indicou desde logo bens à penhora, assim como os foi indicando no decurso do processo;

45. Tal processo de execução encontra-se ainda pendente e, após reorganizações judiciárias corre termos actualmente na Comarca ..., Instância Central, Secção de Execução, J..., com o n.º 1061/05....;

46. Até à presente data, e decorridos mais de 14 anos a quantia exequenda e os juros de mora que constituem o crédito do exequente, não foram pagos, nem coercivamente, no âmbito do referido processo de execução, nem por qualquer outra forma, judicial ou extrajudicial;

47. No decurso do referido processo, a arguida demandada solicitou em 19 de Outubro de 2005, ao exequente, ora assistente e demandante, o pagamento da provisão, o qual foi efectuado, por cheque, no valor de €116,80;

48. No âmbito dos referidos autos e exercício das suas funções como solicitadora de execução, a arguida demandada providenciou pela penhora de alguns bens do executado CC, designadamente:

a) Em 11 de Janeiro de 2006, uma máquina enfardadeira com o valor de €9.000,00;

b) Em 24 de Maio de 2006, 93 animais, com o valor total de €38.700,00;

c) Em 2 de Outubro de 2008, a quantia de €6.513,12 correspondente a subsídio do Instituto de Financiamento da Agricultura de que o executado era beneficiário;

d) Em 16 de Janeiro de 2009 da quantia de €250,00 correspondente a subsídio do IFAP de que o executado era beneficiário;

e) Em 16 de Janeiro de 2009, de quatro tractores agrícolas, sem valor indicado;

f) Em 24 de Abril de 2010, dos montantes de €13.577,32 e €15.659,56 correspondentes a subsídios do Instituto de Financiamento da Agricultura de que o executado era beneficiário;

49. A demandada procedeu, por três vezes, à citação dos credores [penhora de enfardadeira com o valor de €9.000,00 e animais com o valor de €38.700,00), tendo sido apresentadas reclamações de créditos pelo Instituto da Segurança Social IP-CDS, no montante de €10.318,85 e pelo Ministério Público em representação do Estado, no montante de €21.707,19;

50. Por sentença proferida em 16 de Março de 2007, foram os supra referidos créditos graduados, por reconhecidos, depois de pagas as custas da acção executiva, mas à frente do crédito exequendo, por gozarem de privilégio geral mobiliário, que foi graduado em último lugar;

51. Em face da penhora de bens identificados na acusação pública [subsídio de €6.513,12, subsídio de €250,00 dois veículos sem valor indicado, dois veículos sem valor indicado], a arguida demandada procedeu à citação dos credores, tendo sido apresentadas reclamações de créditos pelo Instituto da Segurança Social, IP, CDS no montante de €15.013,25 e pelo Ministério Público em representação do Estado, no montante de €37.158,01;

52. Por sentença proferida em 13 de Setembro de 2010, foram os supra referidos créditos graduados, por reconhecidos, à frente do crédito exequendo, que foi graduado em último lugar;

53. Em face da penhora dos bens referidos na acusação pública [subsídio de €13.577,32 e de €15.659,56], a arguida demandante procedeu à citação dos credores, apenas em 19 de Janeiro de 2012, tendo sido apresentada uma reclamação de créditos pelo Ministério Público em representação do Estado, no montante de €4.352,27;

54. Por sentença proferida em 27 de Abril de 2016, foi o supra referido crédito graduado, por reconhecido, à frente do crédito exequendo, que foi graduado em último lugar;

55. Quanto aos animais penhorados em 24 de Maio de 2006, a arguida demandada procedeu à venda antecipada dos animais descritos, por negociação particular, o que ocorreu em 27 de Junho de 2007, pelo valor de €20.475,00, quantia entregue nessa data, pela compradora, por cheque à sua ordem;

56. Com o produto da venda dos animais, a arguida demandada não efectuou pagamentos aos credores reconhecidos de acordo com a sentença de graduação de créditos;

57. A arguida demandada no exercício das suas funções não pagou, nem naquela data, nem posteriormente, com o produto da venda dos animais, nem à Fazenda Pública, nem ao demandante nem ao Instituto da Segurança Social;

58. Apenas resultou provado que, no exercício da sua actividade, a arguida demandada, afectou quantias recebidas nessa qualidade a fins distintos da mesma;

59. Para o exercício das suas funções, a arguida demandada abriu e movimentou uma conta bancária de solicitadora de execução com o n.º ...88, domiciliada no Banco Millenium BCP;

60. A demandada fez uma gestão conjunta das quantias aí creditadas e debitadas no decurso dos processos executivos para que foi nomeada;

61. A arguida utilizou o saldo dessa conta bancária para outros fins, nomeadamente de uso pessoal, custos diversos do funcionamento do seu escritório e da sua actividade, para pagar quantias relativas e outros processos executivos em que não eram intervenientes as mesmas partes processuais e para o pagamento das suas despesas familiares;

62. E ainda depositou noutras contas bancárias de que também era titular, mas que não estavam afectas à sua actividade profissional, quantia que recebeu no âmbito do processo executivo em causa, destinando esse montante ao seu uso estritamente pessoal;

63. Foi o que aconteceu no que respeita ao recebimento do produto da venda de alguns dos animais penhorados;

64. A sociedade compradora dos animais efectuou o pagamento de €20.745,00 por cheque datado de 27 de Junho de 2007, que entregou à arguida demandada e à sua ordem para depósito na conta bancária SE;

65. A arguida demandada só informou os autos de execução em causa de que tinha recebido a referida quantia em 2 de Outubro de 2008;

66. Tal cheque foi depositado na sua conta pessoal com o n.º ...30, também domiciliada no banco Millenium BCP;

67. Apenas resultou provado, que efectuado esse depósito, a arguida demandada utilizou dinheiro para despesas pessoais, tais como carregamentos de telemóvel, restauração, contas pessoais de consumo de água e electricidade, de supermercado, decoração e vestuário;

68. No dia 18 de Julho de 2007, após ter feito gastos diversos com despesas pessoais, a arguida transferiu a quantia de €12.500,00 da sua conta pessoal n.º ...30 para a conta SE com o número ...88, domiciliada no Banco Millenium BCP;

69. A quantia supra referida não foi utilizada para pagar qualquer quantia reclamada no processo de execução identificado;

70. A partir de 18 de Julho de 2007 até 3 de Janeiro de 2008, a arguida utilizou tal quantia para benefício próprio e para pagar a outros intervenientes processuais, assim como para fazer posteriores transferências bancárias de diversas quantias para contas bancárias pessoais;

71. Quanto aos bens penhorados em 2 de Outubro de 2008 e 16 de Janeiro de 2009 e 20 de Abril de 2010 [subsídio de €6.513,12, subsídio de €250,00 e subsídios de €13.577,32 e €15.659,56] a arguida recebeu tais montante na sua conta SE nos dias 9 de Maio de 2008 [€6.513,12], 20 de Novembro de 2008 [€250,00], 17 de Dezembro de 2008 [€15.659,56] e 6 de Março de 2009 [13.577,32]

72. Os autos de penhora respectivos só foram lavrados pela arguida demandante respectivamente em 2 de Outubro de 2008, 16 de Janeiro de 2009 e 20 de Abri de 2010;

72. E só procedeu à citação de credores, para reclamarem os seus créditos face à penhora de subsídios em 19 de Janeiro de 2012;

73. A sentença foi proferida em 27 de Abril de 2016;

74. A arguida demandada, enquanto solicitadora de execução nos autos de execução acima identificados, no exercício das suas funções recebeu até ao dia 6 de Março de 2009 a quantia total de €56.475,00, não tendo efectuado nenhum pagamento nem à Fazendo Nacional, nem ao Instituto da Segurança social, nem ao exequente, ora demandante;

75. Face à expulsão da solicitadora/agente de execução da Camara dos Solicitadores, em 10 de Março de 2014, através da sua mandatária, no âmbito dos autos de execução, foi o demandante notificado pelo agente de execução liquidatário, de que o escritório da arguida demandada AA estava em fase de liquidação e do relatório com a nota de liquidação provisória;

76. Do relatório elaborado pelo Agente de Execução Liquidatário, DD, resulta que existe no processo de execução, um saldo a transitar no valor de €55.914,80 que resulta de penhoras efectuadas com movimentos financeiros até à data do bloqueio das contas [recebimentos de terceiros por conta do executado no valor de €36.000,00 e de produtos de vendas efectuadas no valor de €20.475,00;

77. Apenas resultou provado, que a agente de execução EE que substituiu a arguida no âmbito daquela execução encetou diligencias junto do CAMAE Ordem dos Solicitadores, no sentido da transferência do referido valor para a sua conta profissional;

78. Apenas resultou provado, que lhe foi prestada informação da quantia apurada de €55.914,80 e que uma eventual transferência apenas poderia ocorrer após a liquidação integral do escritório da agente de execução, caso o seu saldo seja suficiente para fazer face a todos os montantes reclamados;

79. A arguida demandada sabe que não entregando as quantias aos credores reclamantes e ao exequente, como até hoje não entregou, apropriou-se de quantias a que não tem direito;

80. A demandada foi expulsa da Camara dos Solicitadores por decisão proferida em 30 de Novembro de 2011 e que se tornou definitiva em 6 de Junho de 2012;

81. Entre 15 de Março de 2011 e 6 de Março de 2012, a arguida demandante efectuou diversos movimentos a débito na conta profissional n.º ...88 a favor de si mesma e para pagamento a outros intervenientes processuais;

82. O demandante não recebeu qualquer quantia no âmbito da identificada execução;

83. Apenas resultou provado que o demandante se dirigiu pessoalmente e por intermédio de familiares ao escritório da demandada para tomar conhecimento das razões que justificavam a falta de pagamento;

84. A demandada foi várias notificada pelo tribunal e pelo demandante para informar do estado das diligencias, designadamente das penhoras requeridas;

85. Apenas resultou provado, que sentiu preocupação e angústia potenciado pela falta de recebimento de valores no âmbito da execução;

86. Apenas resultou provado, que foram várias as diligencias que por si, através do se filho e da sua advogada promoveu e que a demandada informou o demandante que lhe entregaria o remanescente da diferença entre o pagamento dos valores do executado em dívida e o resultante das penhoras já recebido;

87. A actuação da demandada foi livre voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei;

89. A Camara dos Solicitadores contratou com a Ocidental – Companhia de Seguros, S. A um seguro de responsabilidade civil;

90. No âmbito daquele acordo foram consideradas as seguintes inscrições e definições:

- Objecto seguro: responsabilidade civil exploração;

- Actividade: escritórios diversos;

- Cobertura: responsabilidade civil;

- Limite da indemnização: €100.000,00;

- Franquia:10%00 dos prejuízos indemnizáveis, a deduzir em caso de sinistro, com um mínimo de €500,00 e um máximo de €1.250,00;

- Data do início da apólice (início da cobertura do seguro): 27 de Outubro de 2010;

- Duração do Contrato: um ano e seguintes

- Produto: responsabilidade civil;

- Tomador de seguro: Camara dos Solicitadores;

- Segurados: Solicitadores de Execução Membros da Câmara dos Solicitadores;

- Período do seguro: ano e seguintes;

- Objecto do contrato: garantia da responsabilidade civil profissional, decorrente da actividade de solicitador de execução.

- Âmbito da cobertura: de acordo com a apólice uniforme de seguro obrigatório de responsabilidade civil dos solicitadores de execução;

- Exclusões: de acordo com a apólice uniforme de seguro obrigatório de responsabilidade civil dos solicitadores de execução;

Das condições gerais

- Segurado: o solicitador de execução, devidamente habilitado nos termos da legislação especial aplicável, no interesse do qual o contrato é celebrado;

-Terceiro: aquele que, em consequência de um sinistro coberto por este contrato, sofra uma lesão que origine danos susceptíveis de nos termos da lei civil e desta apólice, serem reparados ou indemnizados;

- Sinistro: o evento ou série de eventos decorrentes da mesma causa, susceptível de fazer funcionar as garantias do contrato;

- Dano patrimonial: Prejuízo que, sendo susceptível de avaliação pecuniária, deva ser reparado ou indemnizado;

91. A demandada declarou aceitar que:

- (objecto do contrato) o presente contrato tem por objecto a garantia da responsabilidade civil que seja imputável ao segurado enquanto na qualidade ou no exercício da actividade profissional de solicitador de execução, nos termos da legislação aplicável;

- (garantias) o presente contrato tem por objecto a garantia das indemnizações emergentes da responsabilidade civil, que legalmente sejam exigíveis ao segurado, pelos danos patrimoniais e/ou não patrimoniais decorrentes de lesões materiais e/ou corporais que sejam causados a terceiros, decorrentes exclusivamente de acções ou omissões no exercício profissional da actividade de solicitador de execução

- (âmbito temporal) a garantia concedida pelo presente contrato abrange os sinistros causados por actos ou omissões ocorridos durante a vigência da apólice desde que reclamados até três anos após a cessação do contrato;

- (exclusões) o presente contrato não cobre (a) resultantes da perda ou extravio de valores monetários, objectos preciosos ou outros valores de qualquer natureza, confiados ao segurado, seus estagiários, colaboradores ou empregados (d) decorrentes de custas e quaisquer outras despesas provenientes de procedimento criminal, fianças, coimas, multas, taxas ou outros encargos de idêntica natureza;

- (duração do contrato) o contrato caduca automaticamente na data em que for cancelada ou suspensa a inscrição do segurado na Camara dos Solicitadores, enquanto solicitador de execução, ou quando aquele cesse voluntariamente a sua actividade /a garantia concedida pelo presente contrato abrange os sinistros causados por actos ou omissões ocorridos durante a vigência da apólice desde que reclamados até três anos após a cessação do contrato;

- (obrigações da seguradora) a seguradora substituirá o segurado na regularização de qualquer sinistro que, ao abrigo do presente contrato, ocorra durante o período de vigência do mesmo;

- (obrigações do segurado) Em caso de sinistro coberto pelo presente contrato o segurado, sob pena de responder por perdas ou danos, obriga-se (a) a comunicar à seguradora, no prazo de 48 horas contar do momento em que tenha tido ou se presuma que teve conhecimento de qualquer acto ou facto de que possa eventualmente resultar responsabilidade garantida por esta apólice e a participá-lo por escrito e de forma circunstanciada , no prazo de 8 dias; (b) A comunicar à seguradora,, no prazo de 48 horas a contar do momento que tinha tido ou se presuma que teve conhecimento de qualquer processo de natureza cível ou criminal contra ele instaurado, mesmo quando já tenha participado o sinistro, assim como qualquer pedido de indemnização (…);

- (direito de regresso) A seguradora, uma vez paga a indemnização, tem direito de regresso contra o segurado (a) responsabilidade por danos decorrentes de actos ou omissões do segurado ou de pessoas por quem este seja civilmente responsável;

92. A segurada foi expulsa da Camara dos Solicitadores em 30 de Novembro de 2011, tornando-se a expulsão definitiva em 6 de Junho de 2012;

93. A demandada apenas teve conhecimento dos factos em discussão com a notificação para apresentar contestação ao pedido de indemnização cível em 24 de Outubro de 2020;”.


2. O direito
2.1. A questão jurídica a resolver consiste em saber se é oponível ao terceiro lesado a  cláusula de limitação temporal constante da apólice do contrato de seguro, outorgado entre a ora Recorrente e a Câmara dos Solicitadores e Agentes de Execução, cobrindo a responsabilidade civil emergente da actividade profissional dos agentes de execução, que estabelecia que “(…) a garantia concedida no contrato abrange os sinistros ocorridos durante a vigência da apólice desde que reclamados até três anos após a cessação do contrato”, sendo que o inciso sublinhado é o punctum saliens da controvérsia.

As instâncias divergiram na resposta a esta questão. O tribunal de 1.ª instância entendeu que, só tendo a Seguradora sido confrontada com a pretensão do lesado mais de 3 anos após a cessação do contrato, o direito caducara. A Relação considerou que, tendo o seguro natureza obrigatória e sendo o lesado terceiro relativamente à sua estipulação, a causa de caducidade não lhe é oponível.

Não veem discutidos no recurso quaisquer aspectos da obrigação de indemnizar por responsabilidade civil da parte do segurado – facto ilícito, culpa, nexo causal e dano –, nem quaisquer outros aspectos da obrigação de prestar por parte do segurador, nomeadamente a ocorrência do facto gerador do dano na vigência da apólice e a sua  inclusão no âmbito material do seguro.

           
2.2. Importa começar por recordar o teor das  cláusulas contratuais e das disposições legais pertinentes do regime jurídico do contrato de seguro em causa.

Da matéria de facto assente resulta que, em 27 de Outubro de 2010 a ora Recorrente, (segurador) e  a então denominada Câmara dos Solicitadores e Agentes de Execução (tomador),  celebraram um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional dos solicitadores de execução com inscrição em vigor (segurados), com efeitos a partir da mesma data e com um período de vigência de um ano, automaticamente prorrogável.

Mediante esse contrato, a seguradora assumiu, perante o tomador do seguro – actualmente a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, que sucedeu ao ente originário – a cobertura dos riscos inerentes ao exercício da actividade profissional desenvolvida pelos segurados  com inscrição em vigor – inicialmente  designados pela lei como “solicitadores de execução” e mais tarde “agentes de execução” –, garantindo o pagamento das indemnizações emergentes da responsabilidade civil legalmente exigíveis pelos danos patrimoniais e/ou não patrimoniais decorrentes de lesões materiais e/ou corporais que sejam causados a terceiros, decorrentes, exclusivamente, de acções ou omissões no exercício profissional daquela  actividade – de solicitador de execução ou de agente de execução –, até ao limite de €100.000.

Importa, ainda, reter que o  n.º 4, da Cláusula 8.ª, das Condições Gerais da Apólice, dispunha que  “O contrato de seguro caduca automaticamente  na data em que for cancelada ou suspensa a inscrição do segurado na Câmara dos Solicitadores, enquanto solicitador de execução…”. 

E, que Cláusula 5.ª, das Condições Gerais, sob a epígrafe “Âmbito Temporal”, estabelecia o seguinte: “A garantia concedida pelo presente contrato abrange os sinistros causados por atos ou omissões ocorridos durante a vigência da apólice desde que reclamados até três anos após a cessação do contrato”.

Além destes elementos nucleares  relativos à apólice, os factos decisivos da situação concreta com directa relevância na discussão da questão colocada são: (i) que a  segurada  AA foi expulsa da Câmara dos Solicitadores e Agentes de execução em 30/11/2011, tornando-se a expulsão definitiva em 6/6/2012; (ii) e que a Seguradora apenas teve conhecimento dos factos em discussão em 24/10/2020,  com a notificação para apresentar contestação ao pedido de indemnização civil.

Presente esta factualidade, vejamos que resposta merece a questão jurídica acima enunciada.


2.3. No presente recurso não subsiste qualquer controvérsia sobre a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil do segurado por facto ilícito praticado no exercício da referida actividade profissional, nem sobre a ocorrência dos factos geradores do dano de que o demandante se quer ver ressarcido num período em que a apólice estava em vigor.

Toda a discussão se resume à excepção da caducidade do direito do lesado – embora com alguma flutuação de qualificação – de exigir a indemnização à Seguradora que decorreria de o sinistro não ter sido reclamado a esta no prazo de três anos após a cessação do contrato, como estipulado na cláusula 5ª das Condições Gerais da apólice.


2.4. Começando pela caracterização do contrato de seguro, em causa, pode  afirmar-se que estamos perante um seguro obrigatório de responsabilidade civil profissional, de grupo.

Com efeito, no  artigo 123.º, al. l), do Estatuto da Câmara dos Solicitadores, aprovado pelo  Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de Abril e que na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, passou a constituir a al. n), do mesmo art.º 123.º, estabelece-se, como dever do solicitador de execução/agente de execução, o de contratar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional. E vindo esse diploma a ser revogado pela Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro, que transformou a Câmara dos Solicitadores em Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, continua a estabelecer-se no art.º 123.º, do novo Estatuto, como dever do associado, celebrar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional, tendo em conta a natureza e o âmbito dos riscos inerentes à sua atividade, cobrindo os montantes cujos critérios aí se estabelecem.

 

Assim, tem de se concluir que se está perante um contrato de seguro de grupo – art.º 76.º, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, instituído pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril – RJCS –,  porque intervém como tomador a associação pública profissional, a que os segurados estão ligados pelo vínculo de inscrição necessária ao exercício da profissão, com a natureza de seguro obrigatório, visto que a existência de um seguro de responsabilidade civil é imposto por lei para o exercício da profissão regulada de agente de execução

Essa qualificação resulta, desde logo, do elemento literal de interpretação, inscrevendo a norma estatutária entre os deveres dos agentes de execução o de contratar e manter seguro de responsabilidade civil profissional. Aliás, sobre o caracter obrigatório deste seguro também não há controvérsia.

 A consagração da obrigatoriedade deste seguro acompanhou o novo paradigma do processo civil executivo, centrado na figura do solicitador/agente de execução a quem passaram a ser  atribuídos relevantes poderes públicos para a efectivação coactiva dos direitos patrimoniais dos cidadãos e das empresas, que constitui um âmbito persistentemente crítico da prestação do sistema de Justiça.

Ao exercício dessas funções que envolvem poderes de iniciativa funcional para praticar os actos necessários à satisfação do direito do credor exequente, alguns dos quais são gravemente intrusivos no património dos executados, anteriormente cometidos a oficiais de justiça sobre a imediata direcção do juiz do processo – incluindo, a penhora, a venda executiva, a  arrecadação e a guarda de valores e bens afectos aos fins da execução –, é inerente o risco de causar danos aos intervenientes processuais ou a terceiros, por erro, negligência ou conduta desviante, como aquela que deu azo ao presente processo.

O legislador teve em conta essa potencialidade de risco e o desamparo a que seriam votados os lesados, perante a impossibilidade ou dificuldade de satisfação das indemnizações correspondentes  por parte dos agentes de execução responsáveis, impondo como condição para esse exercício profissional a cobertura da responsabilidade do agente por um seguro obrigatório que “normaliza” o risco em termos comunitariamente suportáveis. Esse seguro poderia ser contratado individualmente ou, como no caso sucedeu, pela respectiva associação pública profissional como tomador, sendo segurado cada um dos agentes de execução com inscrição em vigor.

Em conclusão, está em causa a interpretação de uma cláusula de um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, em que figura como tomador a associação pública profissional e em que são segurados todos os agentes de execução  nela inscritos e que , embora protegendo também  o segurado dos riscos  em que pode incorrer  no exercício da sua  atividade, tem como finalidade precípua garantir a  proteção de terceiros lesados pela actuação do agente de execução considerado. Neste sentido,  para contrato de seguro  com funcionalidade idêntica, celebrado pela Ordem dos Advogados, vd. Ac. STJ de 17/06/2021, Proc. 15017/14.0T2SNT.L1.S1, em www.dgsi.pt .

           
2.5. O contrato de seguro de responsabilidade civil exige a determinação de um âmbito objectivo (risco coberto), de um âmbito subjectivo (segurador, tomador, segurado quando não coincida com o tomador) e um âmbito temporal (período coberto pela garantia).

 No que respeita  ao período de cobertura do seguro, que é o elemento em discussão no presente recurso,  o art.º 139.º do RJCS dispõe o seguinte:

Artigo 139.º - Período de cobertura

1 - Salvo convenção em contrário, a garantia cobre a responsabilidade civil do segurado por factos geradores de responsabilidade civil ocorridos no período de vigência do contrato, abrangendo os pedidos de indemnização apresentados após o termo do seguro.
2 - São válidas as cláusulas que delimitem o período de cobertura, tendo em conta, nomeadamente, o facto gerador do dano, a manifestação do dano ou a sua reclamação.
3 - Sendo ajustada uma cláusula de delimitação temporal da cobertura atendendo à data da reclamação, sem prejuízo do disposto em lei ou regulamento especial e não estando o risco coberto por um contrato de seguro posterior, o seguro de responsabilidade civil garante o pagamento de indemnizações resultantes de eventos danosos desconhecidos das partes e ocorridos durante o período de vigência do contrato, ainda que a reclamação seja apresentada no ano seguinte ao termo do contrato.
”.

Daqui decorre que a cobertura pode ser temporalmente delimitada em função da ocorrência do facto gerador do dano (action committed basis), da ocorrência do dano (loss occurrence basis) ou da apresentação da reclamação (claims made). O critério supletivo é o do facto gerador –  n.º 1 –, o que significa que são abrangidos os pedidos de indemnização que resultem de acções e omissões ocorridos no período de vigência do contrato, sem quaisquer outros limites temporais à exigibilidade da prestação do segurador senão os que possam decorrer da  prescrição.

A principal novidade do art.º 139.º do RJCS consistiu em o legislador nacional ter tomado posição sobre a legalidade da chamada cláusula claims made – n.ºs 2 e 3 –, que se traduz  na delimitação temporal da garantia em função data da reclamação do sinistro. A delimitação temporal com base neste elemento desencadeador  (trigger) é  oriunda da prática  da indústria seguradora dos países anglo-saxónicos no último quartel do século passado, sobretudo no domínio do seguro de responsabilidade por actividades, cujos riscos se protraem no tempo ou emergem  de processos causais complexos.

Em  ordens jurídicas que nos são próximas (v.g. Espanha, França, Bélgica) os termos da sua admissibilidade ou validade suscitaram viva controvérsia jurisprudencial, com os tribunais a rejeitarem essa configuração ou certas versões dessa configuração do âmbito temporal da garantia e o sector segurador a reclamar a liberdade de estipulação para adequação da actividade aos novos padrões de responsabilidade e de integração concorrencial num mundo globalizado.

A intenção do legislador está claramente assumida no  seguinte parágrafo do texto preambular do regime jurídico do contrato de seguro: “Quanto ao período de cobertura, assente no regime base occurrence basis, admitem-se as cláusulas claims made , embora com cobertura obrigatória de reclamações posteriores; deste modo, clarifica-se a admissibilidade das cláusulas claims made (ou base-reclamação) tentando evitar o contencioso sobre a admissibilidade de tais clásulas havida em ordenamentos comparados próximos. A aceitação destas cláusulas determina a obrigação de cobertura do risco subsequente (ou risco de posteridade) relativo às reclamações apresentadas no ano seguinte à cessação do contrato, desde que o risco não esteja coberto por contrato de seguro subsequente”.

Na sua modalidade pura, um seguro na base da reclamação abrange os sinistros reclamados pela primeira vez durante a vigência do contrato – lapso temporal entre o início e o termo do período contratual considerado – ou até um ano após esse termo (mínimo imperativo do risco de posteridade, no ordenamento nacional – art.º 13.º, n.º 1, do RJCS –, ainda que o facto gerador do dano seja anterior ao início do período contratual (risco de anterioridade), desde que desconhecido das partes no momento da celebração do contrato – cfr., como  exemplo de um seguro deste tipo, o apreciado no Ac. STJ de 14/12/2016, Proc. n.º 5440/15.8T8PRT-B.P1.S1, em www.dgsi.pt, respeitante à responsabilidade profissional dos advogados.

Porém, no caso sub judice não se está perante uma típica apólice claims made. Efectivamente, o contrato não enuncia a “primeira reclamação” como factor desencadeador, não cobre o “passado desconhecido”, como tipicamente sucede com contratos deste tipo. Antes, identifica como tal os “(…) sinistros causados por atos ou omissões ocorridos durante a vigência da apólice” , o que corresponde a uma cobertura na base do facto gerador (action comited basis).

O que sucede é que, em vez da sujeição da exigibilidade da prestação da seguradora às regras que decorreriam do regime geral face a um seguro de responsabilidade civil na base da ocorrência, que consiste na possibilidade de reclamação a todo o tempo com o limite da prescrição, as partes introduziram um prazo dentro do qual a reclamação deve ser apresentada para a hipótese da cessação do contrato.  Trata-se de uma cláusula híbrida que associa, a um seguro na base da ocorrência do facto gerador no período de vigência da apólice, uma regra contratual quanto ao limite temporal de exercício do direito à prestação emergente do sinistro, de modelo e efeito prático semelhante a um sistema  claims made.

Na verdade, está-se perante uma disposição contratual que não respeita à definição do evento que gera o risco coberto ou que desencadeia a prestação do segurador – o facto gerador do dano –, mas perante uma limitação temporal, estabelecida por vontade das partes, para o exercício do direito ou, visto pelo lado passivo, de extinção da obrigação correspondente. Assim, o dispositivo que a Recorrente (segurador) pretende opor ao Recorrido (lesado) é uma estipulação  contratual de caducidade, conforme art.º 298.º , n.º 2 e art.º 330.º do Código Civil (CCivil).


2.6. O artigo 147.º, do RJCS dispõe, no n.º 1, que o segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro. E, no  n.º 2, especifica que, para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador: (i) a invalidade do contrato, (ii) as condições contratuais (iii) e a cessação do contrato.

Embora com alguma flutuação ou imprecisão, a Recorrente parece pretender enquadrar a situação na previsão legal de cessação do contrato. Este enquadramento jurídico é inexacto. Acompanhando aqui o acórdão recorrido, a cessação do contrato que pode ser oposta ao lesado, ao abrigo do art.º 147.º, do RJCS é a  se tenha verificado antes da ocorrência do sinistro, não a que tenha lugar depois de ele ter ocorrido. O decurso do prazo previsto na parte final da cláusula 5.ª,  das Condições Gerais da Apólice, é realidade diversa. Não afecta a existência, a validade ou vigência do contrato, extingue ou pretende extinguir os efeitos dele decorrentes.

E, está assente que o  sinistro (cfr. art.º 99.º, do RJCS) ocorreu no período de vigência do contrato e das suas prorrogações, isto é, num momento em que o segurado estava inscrito como  agente de execução na Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução e as acções e omissões que integram o facto ilícito complexo, gerador do dano pelo qual o demandante quer obter indemnização, respeitam ao  exercício dessa mesma actividade profissional.


2.7. Nesta perspectiva, tem de entender-se que a Recorrente, embora fazendo referência à inexistência e à cessação do contrato de seguro, o que defende só pode juridicamente  corresponder à  oponibilidade ao lesado do facto extintivo da não reclamação no prazo contratualmente estabelecido pela cláusula 5ª, das Condições Gerais da apólice, isto é,  dentro do período de três anos, após a cessação do contrato em consequência da expulsão definitiva da segurada como agente de execução pela Ordem dos Solicitadores. Dito de outro modo, a seguradora pretende socorrer-se da oponibilidade de uma das  “condições contratuais”, um dos meios de defesa enumerados no artigo 147.º, n.º 2, do RJCS.

Começar-se-á por observar-se que o argumento de que a cláusula não é oponível ao lesado porque não interveio na sua formulação é insuficiente. Com efeito, é da própria natureza de um contrato a favor de terceiro, como é ex vi legis o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil ao conferir directamente ao lesado direitos perante o segurador (art.º 146.º, n.º1, do RJCS), que as cláusulas contratuais se apliquem, em princípio, ao terceiro beneficiário.

O problema da protecção do lesado não se resolve a partir do dogma da eficácia relativa dos contratos, mas pela existência de normas ou princípios de protecção ao beneficiário, em função da teleologia própria da obrigatoriedade do seguro, que estabeleçam ou de que se retire limites à validade ou oponibilidade das disposições contratuais. O próprio art.º 147.º é disso tradução.  Portanto, a justificação da inoponibilidade da cláusula em referência há-de ter outra sustentação jurídica, que não a puramente conceptualística.

Anteriormente à entrada em vigor do RGCS era, geralmente, tomado o regime legal do  seguro automóvel como padrão normativo do regime de oponibilidade ao lesado de meios de defesa decorrentes das disposições contratuais ou das relações do segurador com o segurado nos seguros obrigatórios.

O legislador pareceu disposto a consagrar em lei positiva esse entendimento, afirmando no  preâmbulo do Dec. Lei 72/2008 que “Relativamente a meios de defesa, como regime geral dos seguros obrigatórios de responsabilidade civil, é introduzida uma solução similar à constante do art.º 22.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, relativo ao seguro automóvel, sob a epígrafe “Oponibilidade de excepções ao lesado.””.

Todavia, cotejando o regime do seguro automóvel com o art.º 147.º, do RJCS, verifica-se que o legislador do regime geral foi menos radical na protecção ao lesado. O art.º 22.º, do Dec. Lei 291/2007, de 21 de Agosto, dispõe que “(…) além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente decreto-lei, a empresa de seguros apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do n.º 1 do artigo anterior [ alienação do veículo ], ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do acidente”. Enquanto o art.º 147.º do RJCS, embora também só consentindo opor ao lesado, meios de defesa derivados de  facto do tomador ou do segurado ocorridos anteriormente ao sinistro, permite expressamente a oponibilidade das “condições contratuais”, conforme o n.º 2, do mesmo preceito.


2.8. Entre os meios de defesa do segurador emergentes de facto do segurado mais frequentemente esgrimidos, situa-se o que respeita à violação de deveres contratuais relativos à “participação do sinistro” (art.ºs 100.º e 101.º do RJCS), cujos efeitos contratuais  o n.º 4, do art.º 101.º, estabelece serem  inoponíveis ao lesado.  A Recorrente alega erro de direito na invocação deste preceito para sustentar a solução do acórdão recorrido.

A Recorrente tem razão, quando sustenta que a situação não cabe na hipótese normativa do n.º 4, do art.º 101.º, do RJCS. Neste preceito estipula-se a inoponibilidade aos lesados, no âmbito dos seguros obrigatórios de responsabilidade civil, das consequências contratuais do incumprimento dos deveres ou obrigações acessórias de participação do sinistro. Ora, a  reclamação a que se refere a cláusula 5.ª,  das Condições Gerais da Apólice não se confunde ou identifica com a participação do sinistro.

A participação é um acto de comunicação ao segurador da ocorrência de uma situação susceptível de ser qualificada como sinistro, explicitando as circunstâncias da sua verificação, as eventuais causas e as respectivas consequências, dirigido pelo tomador, segurado ou beneficiário de participação, tendo a natureza de um dever contratual ou obrigação acessória. A reclamação é um acto de interpelação, judicial ou extrajudicial,  ao segurador para efectuar a prestação decorrente da cobertura do sinistro. Tem a natureza de ónus, não de dever contratual.

  

Assim sendo, não pode retirar-se directamente do n.º 4, do art.º 101.º, a inoponibilidade da cláusula em análise ao lesado, porque não se está perante a consequência a retirar de qualquer incumprimento de deveres contratuais de informação por parte do segurado para com o segurador.

Todavia, as disposições do n.º 1, do art.º 147.º, em articulação com o n.º 4, do art.º 101.º, do RJCS, já interessam, enquanto lugar próximo interpretativo a que o intérprete pode recorrer, por revelarem a intencionalidade do sistema jurídico quanto à protecção ao lesado, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil.

Na verdade, apesar de não se tratar de caso directamente subsumível nos art.ºs 100.º e 101.º do RJCS, a oponibilidade ao lesado da falta de reclamação por aplicação tout court da cláusula de caducidade, aplicada com a rigidez própria da caducidade (art.º 328.º, do CCivil), independentemente do conhecimento do facto gerador da responsabilidade, teria um resultado equivalente ao que o n.º 1, do art.º 147.º, quer evitar, ao limitar a oponibilidade ao lesado a factos ocorridos anteriormente ao sinistro. O lesado ficaria privado da protecção que o legislador quis conferir-lhe ao instituir a obrigatoriedade do seguro relativamente a danos causados por factos lesivos ocorridos no domínio de vigência da apólice, mas em cuja ignorância pode ter permanecido no decurso do prazo  de caducidade.

Deste modo, as razões de protecção do lesado perante actos e omissões geradores de responsabilidade civil profissional por parte dos agentes de execução, que levaram o legislador a impor o seguro obrigatório, só se satisfazem com a inoponibilidade da cláusula que limita temporalmente o direito de reclamação da prestação da seguradora, mediante um termo a quo em que a caducidade do direito de exigir a prestação indemnizatória garantida pelo seguro começa a correr e pode completar-se  num momento em que o lesado desconhece o facto ilícito e, portanto, o direito que lhe compete.

Com esse sentido de que é oponível ao lesado, num contrato estruturado na base do facto gerador, uma caducidade por estipulação negocial como a estipulada na parte final da cláusula 5.ª, das Condições Gerais da apólice, tem esta de considerar-se estabelecida em matéria subtraída à disponibilidade das partes – o segurador e o tomador e o segurado incluído no seguro de grupo – por frustrar a finalidade ínsita no caracter obrigatório do seguro – a protecção ao lesado.

Consequentemente, uma tal cláusula é inválida, face ao disposto nos  art.ºs 329.º e  330.º do CCivil, que constituem regime geral a que o contrato de seguro, também, está submetido e, por isso consubstancia, além das disposições especiais, mais um limite ao princípio da liberdade negocial, nos termos do art.º 11.º, do RJCS.

Já não seria necessariamente assim no domínio das relações entre o segurador e o segurado que tem o domínio do facto gerador. Pelo que, verdadeiramente,  a invalidade consiste ou basta-se com a ineficácia relativa da cláusula, ao que corresponde, na técnica do RJCS, o regime de inoponibilidade ao terceiro lesado.

Nestes termos, embora com fundamentação diversa, merece aceitação a solução do acórdão recorrido de que a excepção material decorrente da parte final da cláusula 5ª, das “Condições Gerais” da apólice, é oponível ao lesado.


2.9. A Recorrente argumenta que uma tal interpretação da cláusula 5ª, das “Condições Gerais” da apólice, é lesiva do equilíbrio contratual, na medida em que, mantendo a incerteza por um período longo sobre as responsabilidades do Segurador, se traduz numa cobertura  sem pagamento do prémio correspondente.

A argumentação da recorrente é manifestamente insubsistente.

O segurador só tem direito ao prémio durante a vigência do contrato. Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um determinado risco, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso da ocorrência do evento aleatório previsto no contrato e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente (art.º 1.º, do RJCS). É este o sinalagma estrutural do contrato de seguro. Cessado o contrato, cessa a cobertura posterior do risco e cessa o direito ao prémio (art.º 106.º, n.º 1, do RJCS).

Mas, a cessação do contrato não iliba o segurador da obrigação de efectuar a prestação decorrente da cobertura do risco, desde que o sinistro seja anterior ou concomitante com a cessação (art.º 106.º, n.º 2, do RJCS), nem prejudica os direitos adquiridos por terceiros durante a vigência do contrato (art.º 108.º, do RJCS). O segurador deixa de estar exposto ao risco, mas tem de honrar a prestação resultante de sinistros ocorridos no seu período de vigência da apólice porque foi em contrapartida disso que recebeu o prémio. Só pode opôr ao lesado os limites temporais resultantes da prescrição, nos termos do art.º 145.º, do RJCS que, imperativamente, preconiza: “Aos direitos do lesado contra o segurador aplicam-se os prazos de prescrição regulados no Código Civil.”.

Aliás, o efeito prático produzido por um dispositivo contratual com o teor do que está em apreciação, quando acoplado a um seguro na base do facto gerador, equivale a facilitar, em benefício do segurador, os termos em que o tempo se repercute sobre a possibilidade de  efectivação dos direitos do lesado. Designadamente, através da instituição de um prazo de  caducidade, as disposições contratuais subtraem o segurador às vicissitudes atendíveis no regime da prescrição, designadamente, de suspensão e interrupção a que estaria normalmente sujeito.

Pelo que, apreciada na substancialidade dos seus efeitos, a cláusula em apreço tem o efeito equivalente a uma derrogação do disposto no art.º 145.º, do RJCS, que se refere à prescrição dos direitos do lesado contra o segurador. Ora as disposições relativas à prescrição são inderrogáveis pelo que  a disposição em causa tem de considerar-se, objectivamente, fraudatória desse regime e, por isso, inaplicável (art.ºs 300.º e 330.º, n.º 1 do Código Civil).

Reconhece-se a compreensível  preferência das empresas seguradoras, em certos domínios de actividade, nomeadamente aquelas em que o dano emerge de processo causal complexo ou de  prognose incerta – v.g. a responsabilidade por danos ambientais, a responsabilidade do produtor, a responsabilidade civil médica, de construtores, de administradores e similares,  de actividades de risco catastrófico como a nuclear. Neste sentido, Margarida Lima Rego, Contrato de Seguros e Terceiros, pág. 114,  nota 258, por seguros de base claims made e a progressiva conformação dos ordenamentos jurídicos a essa realidade. 

Mas o contrato dos autos não é um contrato desse tipo, embora a cláusula inoponível tivesse um objectivo equivalente quanto aos risques de posteriorité. E não pode dizer-se que uma  solução que, afinal, reconduz os efeitos do contrato ao figurino legal correspondente ao modelo escolhido (seguro na base do facto gerador),  quebre intoleravelmente o equilíbrio financeiro do contrato, de molde a considerar-se contrária ao princípio da boa-fé.

A inaplicabilidade ou inoponiblidade da cláusula de caducidade a um contrato deste tipo, pode tornar o contrato economicamente menos vantajoso para o segurador, por prolongar os custos de administração, agravar o montante das reservas técnicas a prover, porventura afectar as condições de resseguro, mas não introduz no sinalagma funcional um efeito desproporcionado que não caiba nos riscos do negócio, acauteláveis por uma gestão criteriosa e prudente. 
2.10. Finalmente, improcede a  alegação de que o Demandante, tendo acção directa contra o segurador (art.º 146.º do RJCS), poderia ter intentado logo uma acção cível em separado, ao abrigo do art.º 71.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal (CPP), em vez de ter esperado pelo andamento do processo penal e vir apresentar o pedido 8 anos depois da cessação do contrato, devendo considerar-se que teve conhecimento dos factos que lhe servem de fundamento ao pedido em 10/3/2014, quando foi notificado de que o escritório da segurada entrara em fase de liquidação.

Com este argumento, que teria de ser ponderado se estivesse em causa a apreciação da prescrição, a Recorrente pretende introduzir, de modo enviesado, uma questão que só teria sentido no âmbito do regime da prescrição e não da caducidade. Ora o que foi invocado pela Recorrente foi uma estipulação contratual de caducidade. A prescrição não é de conhecimento oficioso e teria de ter sido arguida no momento processual próprio, que seria a contestação ao pedido cível, conforme  art.º 303.º do Cod. Civil.

Aliás, a admitir-se o entendimento da Recorrente de apreciar a caducidade tomando por base o efectivo conhecimento do direito por parte do lesado e a possibilidade de afastamento do princípio da adesão consentida pela al. a), do n.º 1, do art.º 72.º do CPP, em vez dos termos estritos da cláusula contratual, teria também de ponderar-se que este preceito estabelece uma faculdade, não um ónus.

Como se disse no acórdão deste Supremo Tribunal de 22/05/2018, Proc. 2565/16.6T8PTM.E1.S2, em www.dgsi.pt, embora referindo-se a uma questão de prescrição, mas que seria então transponível para a caducidade “(…) assiste ao lesado o direito de aguardar o termo do inquérito criminal, com o seu arquivamento ou com a dedução da acusação, se, perante qualquer das situações abarcadas em tais ressalvas, não quiser recorrer, logo, à acção cível em separado, «não se podendo considerar que o direito à indemnização tem de ser exercido apenas porque se lhe abriu a faculdade de accionar civilmente em separado».”. 

Deste modo, a alegação da Recorrente a este propósito não é de molde a afastar a conclusão a que se chegou de que a cláusula é inoponível ao lesado, independentemente de outras averiguações, nomeadamente, saber se os factos provados são suficientes para permitir concluir que o lesado teve conhecimento do direito que lhe competia com a notificação que lhe foi efectuada pelo solicitador/agente de execução, liquidatário do escritório da segurada. 

3. Pelo exposto, improcedendo as alegações da Recorrente, nega-se provimento ao recurso.


III. DECISÃO

Termos em que acordam os Juízes da 5.ª Secção, do Supremo Tribunal de Justiça, em:
a. Negar provimento ao recurso;
b. Condenar a Recorrente em custas, do pedido cível.

Lisboa, 14 de Julho de 2022 (processado e revisto pelo relator)

Leonor Furtado (Relator)

Helena Moniz (Adjunta)

Eduardo Loureiro (Presidente)