RECURSO PENAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CRIME CONTINUADO
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
PENA PARCELAR
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
DUPLA CONFORME
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Sumário


I - Conclui-se, pois, pela irrecorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação na parte em que confirmou as diversas penas aplicadas a cada um dos crimes praticados em medida inferior à condenação pelo Tribunal de 1.ª instância, e em medida inferior a 8 anos de prisão, nos termos dos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, da confirmação in mellius das condenações em 1.ª instância (e sem que esta diminuição decorra de qualquer alteração da matéria de facto provada ou de uma alteração da qualificação jurídica).
II - Quanto ao recurso relativamente à indemnização civil arbitrada, deve considerar-se igualmente que o recurso não é admissível; em primeiro lugar, aquando do recurso para o tribunal de Évora o arguido não impugnou esta parte, pelo que nada decidiu sobre isto aquele Tribunal da Relação; sabendo que o STJ conhece da decisão recorrida que é do Tribunal da Relação, nada há a apreciar relativamente ao pedido de indemnização civil; em segundo lugar, tudo o relativo ao pedido de indemnização civil foi mantido, pelo que, por força do disposto no art. 400.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, e art. 671.º, n.º 3, do CPC, o recurso é inadmissível dada a manutenção pelo Tribunal da Relação de Évora da decisão de 1.ª instância.
III - O arguido foi condenado pela prática, em concurso, de diversos crimes de abuso sexual de criança (agravado) e de menor dependente; tratando-se no presente caso de crimes contra bem jurídico eminentemente pessoal, como é o bem jurídico da autodeterminação sexual da criança, logo por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, bem andou o acórdão recorrido que considerou não ser o caso dos autos subsumível à figura do crime continuado.
IV - A partir de uma análise global do comportamento do arguido verificamos que, ao longo de cerca de 10 anos, e desde que a menor tinha 4 anos de idade, o arguido praticou diversos crimes sexuais contra a menor, de forma persistente e em ambiente onde supostamente estaria protegida - o seu lar - e ameaçando a menor para que não divulgasse os factos sob pena de “ficar sem mãe”. Revelou persistência nos atos praticados, embora não se deva deixar de reconhecer a juventude do arguido (sendo certo que aquando da aplicação das penas a cada um dos crimes não foi aplicado o regime de atenuação especial para jovens delinquentes, o que, neste momento, já não poderá ser apreciado atento não só o facto de nem sequer tal vir alegado – o que determinaria excesso de pronúncia se acaso refletíssemos sobre tal aspecto —, como também dada a irrecorribilidade do acórdão nesta parte); a persistência dos factos praticados, o alheamento quanto à idade da vítima e quanto aos danos que lhe provocou na formação da sua personalidade e quanto aos danos psicológicos que provocou e foram provados, o período longo durante o qual manteve o seu comportamento, são elementos que não podem ser esquecidos na determinação da pena a aplicar. A comunidade nacional e internacional reclama cada vez mais a proteção dos bens jurídicos lesados pelos atos do arguido. Acresce que, tendo em conta a factualidade provada, as exigências de prevenção especial são significativas e notórias, pelo que a pena única aplicada de 12 anos de prisão é adequada e necessária, atentas as exigências de prevenção geral e especial, e a culpa do arguido.

Texto Integral




Processo n.º 42/19.2JAPTM.E1.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1. Em primeira instância, o arguido AA, identificado nos autos, e julgado em tribunal coletivo, no Tribunal Judicial da Comarca de Faro (Juízo Central Criminal ..., Juiz ...), no âmbito do processo n.º 42/19.2JAPTM, foi julgado e condenado nos pela prática de

-  dois crimes de abuso sexual de crianças agravado, nos termos dos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, als. a), b) e c), todos do Código Penal (CP) nas penas parcelares de 2 anos e 6 meses por cada um,

- dois crimes de abuso sexual de crianças agravado nos termos dos arts. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b), do CP, nas penas parcelares de 7 anos de prisão por cada um,

- um crime de abuso sexual de menores dependentes, nos termos dos arts. 172.º,  n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), do CP, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única conjunta de 12 anos de prisão.

O arguido/demandado foi ainda condenado a pagar à demandante BB a quantia de 20.000€, acrescida de juros até efetivo pagamento.

 2. O arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 23.11.2021, julgou “o recurso parcialmente procedente e, em consequência, reduzem as penas parcelares e única em que o recorrente foi condenado, passando a ser as seguintes:

- 2 (dois ) anos de prisão pela prática de cada um dos 2 crimes de abuso sexual ps. e ps. pelos arts. 171º nºs 1 e 177º nº 1 al. b), ambos do C. Penal;

- 6 (seis) anos de prisão pela prática de cada um dos 2 crimes de abuso sexual de crianças ps. e ps. pelos arts. 171º nºs 2 e 177º nº 1 al. b), ambos do C. Penal;

- 4 (quatro) anos de prisão pela prática de um crime de abuso sexual de menor dependentes previsto pelas disposições conjugadas dos art. 172º nº 1 e 177º nº 1 al. b) ambos do C. Penal;

e, em cúmulo jurídico

- a pena única 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão. Em tudo o mais, mantêm o acórdão recorrido.”

3. Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo nos seguintes termos:

«1º-Perante uma moldura penal abstrata, cujo limite mínimo é de “1 até 10 “anos de prisão, nunca seria de aplicar ao arguido, e com os factos provados, pena superior ao mínimo legal abstrato e suspensa na sua execução.

2º-Conhecendo-se os efeitos nefastos de prolongada reclusão, toda a pena de prisão superior a 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cúmulo jurídico, que este já enfrenta, necessariamente, irá comprometer a ressocialização do delinquente, e a sua ressocialização, tudo nos termos preambulares da nossa Lei Penal que são integradores dos indivíduos na sociedade ao invés de os ostracizarem de tal meio.

3º-OArguido é pessoa limitada e inexperiente, e, considerando o depoimento da ofendida, e demais prova, os elementos apontados na decisão recorrida imprimem a ideia de culpa diminuída, nomeadamente atribuindo à adesão do menor às solicitações do arguido uma relevância tal que tenha entorpecido a capacidade deste decidir de uma outra maneira que não a da opção pelo ilícito, configura-se uma situação de concurso real de crimes de abuso sexual de crianças do art.º 171.º do CP, ainda que esta qualificação não tenha sequência a nível agravativo, nomeadamente tendo em atenção o princípio reformatio in pejus, oque se deverá manifestar em sede de escolha da medida da pena concreta, que sempre deverá ser atenuada, com a devida vénia.

4º-O arguido, primário, não havia cumprido, à altura, qualquer pena de reclusão, ou medida penal que fosse, com idade de 18/19 anos.

5º-A ser condenado deverá sê-lo com especial atenuação, aplicando o RJD (Regime Penal Aplicável a Jovens e Delinquentes), e em pena não privativa da liberdade, sujeita regime de prova, nos moldes já exarados, que abarque também as penas parcelares pelo seu mínimo legal.

6º-Na escolha da medida concreta da pena a aplicar, se deveria manifestar diferentemente, e para menos, mas substancialmente menos, na medida concreta da pena, que nunca deveria ultrapassar, em cúmulo, os 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão, com execução suspensa, coincidente com o limite mínimo abstrato, e sempre e pela prática de um único crime de abuso sexual de menores.

7º-Conhecendo-se os efeitos nefastos de uma prolongada pena de reclusão, particularmente quando ao arguido, a aplicação da pena, efetiva, superior ao mínimo legal abstrato e suspensa na sua execução, contraria todos os princípios que devem nortear a escolha das penas a aplicar, por comprometer a Reintegração do Agente na Sociedade-artigo 40º do Código Penal.

8º-Por outro lado, a factualidade apurada configura a prática de um crime de abuso sexual na forma consumada mas ainda assim, nos termos do artigo 30º-2 do Código penal, deveria sempre o arguido só ser condenado em pena especialmente atenuada, ou próximas do seu limite mínimo abstrato, atentos os vigentes critérios da escolha da pena concreta, a existência de consentimento, sendo irrelevante no afastamento da tipicidade criminal pode assumir um significado mais ou menos intenso consoante a idade da vitima, sua capacidade intelectual , ou seja, em equação com maior ou menor proximidade do limite que o legislador entendeu como relevante para a concessão de dignidade penal ao comportamento do arguido.

9º- O princípio que fundamenta a menoridade sexual não é qualquer suposição de que o jovem abaixo da idade definida legalmente não tenha desejo ou prazo sexual, mas, sim, que ele não desenvolveu ainda as competências consideradas relevantes para consentir a relação sexual, só o tempo, por meio de um processo de socialização no qual o sujeito racional completo é (con)formado, permitem um processo de decisão corretamente elaborado.

10º- Dos cento e oitenta (80) crimes por que o arguido vinha Pronunciado, veio a ser “absolvido” ou “ não pronunciado” da prática de pelo menos cento e setenta e quatro (174) crimes com a natureza de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos artigos 171º nº1, 2 e 3 e 177º nº 1 a), b) e c) do Código Penal, entendendo que não se conseguiu provar os demais, o que, na prática, o arguido, que nunca foi agressivo ou violento, não compreende, com a devida vénia, e contesta, atendendo a credibilidade da própria ofendida.

11º-O Tribunal, ora recorrido, decidiu condenar o arguido, alterando a decisão de 1ª instância, entendendo que esta haveria vingado sem ter devidamente sopesados aquelas circunstâncias que militam a favor do recorrente, apresentando-se as penas parcelares como a pena única desproporcionada em termos de severidade em comparação com o que tem vindo a ser o referente jurisprudencial para casos com contornos semelhantes,

12º-Por de facto haver concordado, o Venerando Tribunal da Relação, com o afastamento do RJD, facto com o qual discorda o arguido, mas entendido relevara juventude do recorrente (17/18) anos à data dos factos em que foram praticados os crimes a que a factualidade prevista no ponto 5., dos factos provados preenche e que não pode ser desconsiderada como atenuante de carácter geral e, como tal, devidamente sopesada no confronto com as demais circunstâncias relevantes para a determinação da medida concreta da penas, levando em linha de conta a circunstância de em relação aqueles dois crimes, a ausência de antecedentes criminais a todos eles, por confronto com as demais circunstancias enunciadas no acórdão recorrido( o grau de culpa e de ilicitude e as exigências de prevenção geral e especial) sem que, no entanto, se possa ponderar em desfavor do recorrente a repetição das condutas em numero superior aqueles que se logrou provar, haveria de considerar como ajustada a redução das penas parcelares nos seguintes moldes:

13º- Pena de 1 ano e 6 meses de prisão para cada um dos 2 (Dois)crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171º-1 e 177º-1-b) e c) do Código Penal,

- Pena de 4 anos de prisão para cada um dos 2 (Dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171º-2 e 2 e 177º-1-b) do Código Penal,

-Pena de 3 anos de prisão para 1 (Um) crime de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelos artigos 172º-1 e 2 e 177º-1-b) do Código Penal;

14º- E em tal decorrência, fixado a moldura do cúmulo reduzida para o intervalo entre os 4 anos e os 16 anos de prisão, considerando em conjuntos, os factos e a personalidade do recorrente, seria de considerar fixar a pena única em 4(quatro) anos e 9(nove) meses de prisão, aplicando o RJD naturalmente e todo o demais já vincado.

15º-Violou, pois, salvo devida vénia, o douto Tribunal” a quo”, o disposto nos artigos 40º-1 e 30º-2 do Código Penal, ao condenar o ora Recorrente, em pena superior ao mínimo legal abstrato efetivo, pela prática de 5 crimes de abuso sexual de crianças, quando deveria ser aplicada uma pena, em cúmulo, de 4 anos e 9 meses de prisão, suspensos na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social durante o período de suspensão da pena e adaptado à actual situação pessoal do arguido;

16º-E por tais desideratos deverá ser considerado improcedente o pedido de indeminização civil, ou, diminuído substancialmente o seu valor, nos termos de tudo supra exarado., face à matéria nos autos já constante.

Nestes termos,

E nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, a não haver reenvio do processo, para repetição do Julgamento,

Deverá o douto acórdão, ora recorrido, ser revogado e substituído por outro que, considerando todo o supra invocado pelo recorrente, a moldura abstrata, e o limite mínimo previsto para os crimes praticados, o condene, em cúmulo, em pena de prisão não superior a 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses, aplicado o RJD e demais elementos que militem a seu favor, sempre suspensa na sua execução sob regime de prova, assim merecendo provimento o presente recurso.»

4. O recurso foi admitido por despacho de 23.01.2022.

5. Ao recurso interposto respondeu a Magistrada do Ministério Público tendo concluído que:

 « 1. No caso dos autos não se verificou uma situação de crime continuado, pois existiu uma nova resolução criminosa do agente em cada uma das situações dadas como provadas (nem tão pouco o designado crime prolongado ou de trato sucessivo, tendo em conta a autonomização espácio-temporal das resoluções criminosas do agente);

2. A dosimetria das penas parcelares e a da pena única aplicada ao recorrente mostram-se adequadas, necessárias e proporcionais, e vão de encontro à medida da culpa;

3. Acautelam, devidamente, as exigências de prevenção geral e especial e de reintegração;

Pelo exposto, entendemos que deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se o Acórdão recorrido, assim se fazendo JUSTIÇA.»

            6. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-Geral Adjunto considerou que deve ser julgado improcedente porquanto:

- «(....) o acórdão do TRE manteve a factualidade provada no acórdão da 1.ª instância mas reduziu a medida das penas (parcelares e única) aplicadas ao recorrente. Conforme jurisprudência uniforme do STJ, haverá confirmação «quando, mantendo-se a decisão condenatória, a pena é atenuada, assim se beneficiando o condenado. É a chamada condenação in mellius» (...). Nesta ordem de ideias, impõe-se, então, concluir que o acórdão do TRE é irrecorrível quanto às penas parcelares não superiores a 8 anos de prisão, irrecorribilidade que abrange toda a decisão e não somente à questão da determinação da pena

- «(Ainda assim, não podemos deixar de assinalar que, pelo menos desde 03.10.2010, data da entrada em vigor da Lei 40/2010, de 03.09, a pretensão advogada pelo recorrente de emoldurar os factos na figura do crime continuado passou a estar expressamente excluída pelo art. 30.º, n.º 3, do CP).»

- «Com respeito à pretensão relativa à condenação no pedido de indemnização civil, não tomaremos posição em virtude de a demandante, que actualmente já atingiu a maioridade, se encontrar devidamente patrocinada.»

- «Não estando já em debate, como previamente referido, a medida das penas par-celares, está fora de cogitação a possibilidade de atenuação especial da pena na medida em que o «Regime Penal Especial para Jovens (DL 401/82, de 23-09) e o instituto da atenuação especial da pena (art. 72.º do CP) não são aplicáveis à pena única ou conjunta (...) Resta a idade do arguido à data dos factos e a ausência de antecedentes criminais. (...) Como se pode constatar, a idade e a primariedade criminal do recorrente não deixaram de ser ponderadas, com diferente mérito, na 1.ª e 2.ª instâncias.

Por outro lado, à vista do bem jurídico atingido (a liberdade de autodeterminação sexual das crianças e adolescentes), da gravidade objectiva da globalidade dos factos, todos eles reconduzíveis a crimes que integram a categoria de criminalidade especialmente violenta (art. 1.º, al. l), do CPP), das elevadas exigências de prevenção geral que consabidamente se fazem sentir em crimes desta natureza e da personalidade insensível do recorrente, o qual, conforme se assinala no acórdão recorrido, «negou a globalidade dos factos que lhe eram imputados, revelando aos olhos do Tribunal um claro propósito de aligeirar as suas responsabilidades», com o inevitável impacto negativo nas exigências de prevenção especial, não cremos que existam razões para aligeirar (ainda) mais a pena conjunta de 10 anos e 6 meses de prisão fixada pelo TRE.»

            7. Notificado o arguido, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, não respondeu.

8. Colhidos os vistos em simultâneo, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

A. Matéria de facto provada

Matéria de facto dada como provada e como não provada:

«1. A menor/ ofendida BB nasceu em .../.../2004 sendo filha de CC e de DD.

2. O arguido é irmão de DD e tio da menor/ ofendida BB.

3. Em meados do ano de 2008 a menor residia juntamente com os progenitores em ..., ....

4. O arguido, sendo irmão de DD (mãe de BB) e tio da menor, tinha por hábito frequentar a habitação onde aqueles residiam e por vezes ficava a tomar conta da menor quando os pais tinham de se ausentar da habitação.

5. Nessas ocasiões, em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas 13.04.2008 a meados de 2009, o arguido, um número não concretamente apurado de vezes, mas seguramente mais de duas, aproveitando a circunstância de estar sozinho com a menor, dirigiu-se a esta e acariciou-a nos seios e na vagina.

6. Em meados de 2013 a menor BB, na sequência do divórcio dos progenitores, mudou de residência com a mãe para o ..., e o arguido continuou a frequentar a referida habitação, ali permanecendo muito tempo sozinho com a menor pois era ali que tomava as refeições e onde ficava sempre que era necessário prestar assistência à menor BB, na ausência da mãe.

7. No ano de 2016 o arguido viveu durante cerca de seis meses juntamente com a menor BB e DD, na mesma habitação, sita no ...., tendo passado o outro semestre do ano com o pai em ....

8. A partir de meados de 2016 e até ao dia 9-03-2019, o arguido, sempre que ficava sozinho com a menor BB na habitação supra identificada, aproveitava-se dessa circunstância, um número não concretamente apurado de vezes, mas seguramente mais de duas, dirigiu-se à menor BB, despiu-lhe a roupa que esta trajava incluindo as cuecas, agarrou-a com força pelos braços, deitou-a de barriga para cima e, sempre em acto contínuo introduziu o seu pénis erecto na vagina da menor BB, ali o friccionando até ejacular.

9. No dia 10.2.2019, entre as 19 e as 20h, no interior da residência em que a menor residia com a mãe ..., concretamente no quarto da progenitora, o arguido, a quem mãe da BB havia incumbido de acompanhar a menor na sua ausência, aproveitando esse facto, retirou a roupa da menor e a sua roupa, deitou-se por cima dela, introduziu o seu pénis na vagina da BB, aí o friccionando até ejacular.

10. No dia 10-02-2019 o arguido através da rede social Instagram, fazendo uso do utilizador "EE'' enviou duas fotografias para o telemóvel da menor BB, que continham indivíduos de idade não concretamente apurada em actos de natureza sexual com adultos

11. O arguido, sendo tio da menor BB, conhecia bem a sua idade.

12. O arguido agiu sempre consciente de que por ser familiar da menor BB, DD e a própria menor confiavam nele para prestar assistência a BB em períodos de ausência dos progenitores e demais familiares.

3. O arguido bem sabia ainda que com tais condutas atentava contra a liberdade, dignidade e autodeterminação sexual da menor BB, o que logrou concretizar.

14. Mais sabia que os seus comportamentos punham em causa o normal e livre desenvolvimento da personalidade da menor BB na sua esfera sexual, o que igualmente logrou concretizar.

15 O arguido agiu sempre com o propósito de molestar sexualmente a menor BB, sujeitando-a ao contacto com fotografias envolviam menores na prática de actos sexuais com adultos.

16. Agiu ainda com o propósito de a sujeitar à prática de actos de cariz sexual com o intuito de satisfazer os seus ímpetos e impulsos sexuais, o que também logrou concretizar.

17. Sabia ainda o arguido que a menor/ ofendida BB, sendo menor de idade não tinha capacidade para avaliar e entender o significado dos actos que estava a fazê-la suportar, e que, quando os praticava, a mesma estava ao seu cuidado e assistência.

18 O arguido agiu voluntária e conscientemente, conhecendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, e actuou com a liberdade necessária para se determinar segundo essa resolução.

Mais se provou que:

19. Nas ocasiões supra descritas, o arguido dizia à menor que se contasse a alguém os actos de caris sexual que praticava, ficaria sem a mãe.

20. A Menor BB apresenta alterações psicopatológicas no âmbito da depressão e ansiedade, carecendo de acompanhamento médico.

21. Por força dos factos perpetrados pelo arguido, a menor tem pouco interesse na escola, esta regularmente deprimida, triste e desinteressada.

22. Entre 2013 e 2017 o arguido deslocou-se a ... onde trabalhou por períodos de tempo irregulares, por tempo não concretamente apurado, tendo também algumas das viagens como objetivo tratamentos/ consultas médicas por breves períodos onde foi sujeito a consultas médias.

23. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

24. Desde há cerca de um ano, AA mantém vida em comum com a atual companheira, FF, de 24 anos, desempregada. Residem em condições independentes, em casa arrendada por 200€, na morada indicada. Nos últimos dois anos tem mantido trabalho com contrato efetivo, numa empresa de construção e manutenção de jardins, pelo que aufere 635€. Antes da situação atual, registou assinalável descontinuidade nos locais de residência e de trabalho, associado à dispersão dos familiares de origem, que lhe foram dando suporte.

O arguido descende de uma família numerosa, originária da região de .... Foi o mais novo de uma fratria de seis e com um ano acompanhou a família num processo de emigração para .... Aos 9 anos, a separação do casal progenitor deu azo a que mãe e filhos regressassem ao país de origem, fixando-se desde então no ..., recorrendo a outros familiares que aqui se encontravam. Viveu inicialmente no ..., depois em várias moradas no concelho ..., recorrendo ao apoio dos irmãos que se iam autonomizando. Frequentou a escola regular, mas deixou precocemente os estudos, por desinteresse e mau aproveitamento. Não chegou a terminar o 2° ciclo.

Em alternativa, cerca dos 15 anos ingressou no mundo do trabalho, em serviços de produção de flores e jardinagem. A seguir trabalhou como ajudante de calceteiro, o que teve que interromper por motivos de saúde em 2010, com 19 anos. A partir de então começou a passar temporadas junto do pai, em ..., permanecendo aí períodos de alguns meses a um ano, até 2017. Desde a separação não tinha mais estado com o pai, que de início não se deram bem, mas o relacionamento foi-se tornando mais fácil e foi em ... que fez os tratamentos de fisioterapia para o seu problema de ....

A partir de 2017, com 26 anos passou a viver mais separado da família, arrendando casa independente, primeiro em ..., depois na atual morada, em ..., bastando-se a si próprio, integrado em mercado de trabalho.

Existia habitual a convivência intrafamiliar, designadamente com a mãe, irmãos e sobrinhos, que continuam a residir no concelho ..., atribuindo-lhes o sentido de entreajuda.

*

Considerou-se como não provado que:

1. Nas ocasiões descritas em 8, o arguido começava por acariciar os seios e a vagina da menor BB.

2. Os indivíduos referidos em 10 tinham menos de 16 anos de idade.

3. A menor BB sobressalta-se sempre que ouve falar do arguido.

4. A menor BB acorda muitas vezes de noite assustada com pesadelos, manifestando dificuldade em dormir uma noite seguida.

A demais factualidade, por ser conclusiva, redundante, versar sobre matéria de direito ou por irrelevante para a decisão da causa não foi colocada na factualidade provada e não provada.»

            B. Matéria de direito

1.1. O recurso interposto pelo arguido apresenta como questões a decidir as seguintes:

- a relativa à qualificação jurídica dos factos como integrando apenas um único crime, considerando há uma culpa diminuída, “a existência de consentimento” e a prática dos atos num curto espaço de tempo;

- entende que as penas aplicadas a cada um dos crimes deviam ser reduzidas para 1 ano e 6 meses de prisão quanto a 2 crimes de abuso sexual de criança agravado, para 4 anos de prisão  quanto a outros 2 crimes de abuso sexual agravado, e para 3 anos de prisão quando ao crime de abuso sexual de menor dependente;

- e por isso conclui que a pena única deveria ser de prisão de 4 anos e 9 meses, suspensa na sua execução com regime de prova.

- concluiu ainda que devia ser considerado improcedente o pedido de indemnização civil ou diminuído substancialmente, sem que apresente quaisquer argumentos, a não ser os que resultam implicitamente do que alega quanto à parte penal.

1.2. Comecemos por analisar em que medida pode haver recurso para este Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação que confirmou in mellius a condenação do arguido por diversos crimes em penas de prisão inferiores a 8 anos de prisão.

As penas aplicadas a cada um dos crimes pelos quais o arguido vem condenado são todas inferiores a 8 anos de prisão e resultam de uma decisão em conformidade com a condenação em 1.ª instância, apenas sendo diferente daquela quanto à medida das penas concretas e da pena única que foram reduzidas.

Ora, tendo em conta o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que, confirmando decisão anterior, apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações, relativas a cada crime, do Tribunal da Relação, quando seja confirmada in mellius a aplicação de penas de prisão superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão.

Dito de outro modo: apenas é admissível o recurso de uma decisão do Tribunal da Relação relativamente aos crimes aos quais se tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos e não superior a 8 anos quando não haja “dupla conforme”, e de uma decisão da Relação relativamente a todos os crimes cuja pena seja superior 8 anos, ainda que haja “dupla conforme”.

Ora, o arguido foi condenado em diversos crimes com pena inferior a 8 anos de prisão, pelo que relativamente a estes, por força do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, sem prejuízo da possibilidade de verificação da existência (ou não) dos pressupostos para que se conclua pela existência de um concurso de crimes, não é admissível o recurso para este Supremo Tribunal de Justiça.

Assim sendo, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora constitui um acórdão condenatório que confirmou in mellius a condenação anterior do arguido. Tratando-se de um acórdão a confirmar a decisão de 1.ª instância e com aplicação de uma pena inferior a 8 anos de prisão, por força do disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, articulado com o art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, deve (ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 6, al. b), do CPP) ser o recurso rejeitado por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 420.º, n.º 1, al. b), e art. 414.º, n.º 2, todos do CPP.

            Acresce que tem sido jurisprudência uniforme deste Tribunal o entendimento de que uma confirmação in mellius da condenação em primeira instância cabe ainda dentro do conceito de dupla conforme pressuposto pelo art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP. Tal como se afirmou no acórdão de 26.02.2014 (proc. n.º 851/08.8TAVCT. G1. S1, relator: Maia Costa), “a confirmação não significa nem exige a coincidência entre as duas decisões. Pressupõe apenas a identidade essencial entre as mesmas, como tal devendo entender-se a manutenção da condenação do arguido, no quadro da mesma qualificação jurídica, e tomando como suporte a mesma matéria de facto.” E esta confirmação admite “a redução da pena pelo tribunal superior; ou seja, haverá confirmação quando, mantendo-se a decisão condenatória, a pena é atenuada, assim se beneficiando o condenado.” (ac. cit.)  E a identidade na qualificação jurídica abrange “não só a manutenção da mesma pelo tribunal superior, como também a desagravação da imputação penal, por meio da desqualificação do tipo agravado para o tipo simples do mesmo crime. Já não haverá confirmação se for imputado ao condenado um tipo de crime diferente.” (idem).

Ora, não só houve uma confirmação da decisão condenatória (sem qualquer alteração da matéria de facto provada ou da qualificação jurídica dos factos), como as penas foram modificadas no sentido da diminuição. De referir ainda que este entendimento tem sido acolhido, no que respeita à sua conformidade com a Constituição, pelo Tribunal Constitucional — cf. acórdão n.º 20/2007 (e outros aí referidos).

Além disto, e ainda que se considere como no acórdão deste STJ, de 06.11.2014 (proc n.º 161/05.2JAGRD.C2.S1, Relator: Cons. Rodrigues da Costa) que “Não pondo em causa a tese da confirmação in melius como preenchendo o requisito da dupla conforme para efeitos do preceituado no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, obstando, assim, à possibilidade de recurso para o STJ, o certo é que essa tese seguida pela maioria da jurisprudência do STJ e caucionada pela jurisprudência do TC, pressupõe que a alteração para melhor das penas aplicadas seja apenas devida a uma diferente aplicação dos critérios de determinação da medida concreta da pena, nesses casos feita de forma mais favorável ao recorrente. Não assim, quando simultaneamente haja uma alteração da matéria de facto ou da qualificação jurídica”, ainda assim nos presentes autos não houve qualquer alteração da matéria de facto ou da qualificação jurídica.

Conclui-se, pois, pela irrecorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação de Évora na parte em que confirmou as diversas penas aplicadas a cada um dos crimes praticados em medida inferior à condenação pelo Tribunal de 1.ª instância, e em medida inferior a 8 anos de prisão, nos termos dos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, da confirmação in mellius das condenações em 1.ª instância (e sem que esta diminuição decorra de qualquer alteração da matéria de facto provada ou de uma alteração da qualificação jurídica).

Pelo que, quaisquer questões a estes relativas, quando referidas a cada crime individualmente considerado, não serão conhecidas, nomeadamente, não se analisarão as penas aplicadas a cada crime de per si. Sendo apenas passível de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça a medida da pena única aplicada, e a verificação dos pressupostos de que depende a aplicação desta pena, nomeadamente, a existência de um concurso de crimes.

Além disto, cumpre salientar, a partir do texto da decisão recorrida que não se vislumbra nenhum dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que é agora o acórdão recorrido.

Resta-nos, pois, a análise da pena única aplicada e da verificação (ou não) dos pressupostos de aplicação de uma pena única — ou seja, da verificação ou não de um concurso de crimes.

1.3. Quanto ao recurso relativamente à indemnização civil arbitrada, deve considerar-se igualmente que o recurso não é admissível.

Em primeiro lugar, aquando do recurso para o tribunal de Évora o arguido não impugnou esta parte, pelo que nada decidiu sobre isto aquele Tribunal da Relação. Ora, sabendo que o Supremo Tribunal de Justiça conhece da decisão recorrida que é do Tribunal da Relação de Évora, nada há a apreciar relativamente ao pedido de indemnização civil.

Mas, em segundo lugar, tudo o relativo ao pedido de indemnização civil foi mantido, pelo que, por força do disposto no art. 400.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, e art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), o recurso é inadmissível dada a manutenção pelo Tribunal da Relação de Évora da decisão de 1.ª instância.

2. O recorrente vem alegar que os diversos factos deveriam ser integrados no âmbito de um crime continuado, assim colocando em dúvida, implicitamente, os pressupostos necessários para que seja aplicada uma pena única nos termos do art. 77.º, do CP. Todavia, pensamos que sem razão.

O arguido foi condenado pela prática, em concurso, de diversos crimes de abuso sexual de criança (agravado) e de menor dependente.

Poderemos subsumir num único crime aquilo que foi provado como sendo a prática de atos sexuais contra criança ocorridos por diversas vezes? Poderemos reduzir o que constitui a prática de vários atos subsumíveis a tipos legais de crime, onde não se transforma a prática reiterada de vários atos em um só crime, a um só ato relevante criminalmente? Poderemos considerar que apenas há um crime quando o tipo legal de crime entende como sendo cada ato um crime, ou seja, vários atos, vários crimes?

A unificação de diversas condutas num só crime poderia levar-nos a questionar se seria aplicável a figura do crime continuado — porém será esta aplicável aos factos provados nos presentes autos?

Vejamos.

2.1.1. O crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, é caracterizado por uma “realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”; porém, esta figura criada pelo legislador não deve, nos termos do n.º 3 do mesmo dispositivo, abarcar “os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”.

Na verdade, o crime continuado integra uma situação que revela uma “gravidade diminuída” (Eduardo Correia) relativamente aos casos de concurso de crimes, pois apesar de abarcar “actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime — ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente  protegem o mesmo bem jurídico —, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções criminosas (...), todavia devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente”[1]. E deve desde já salientar-se que mesmo no crime continuado há uma pluralidade de resoluções criminosas que, todavia, são normativamente aglutinadas numa só. Esta junção ocorre porque se entende que a situação exterior “facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” (idem).

Mas, já Eduardo Correia afirmava: “Sem esquecer que de o mesmo bem jurídico se não pode falar quando se esteja perante tipos legais que protejam bens iminentemente pessoais; caso em que, havendo um preenchimento plúrimo de um tipo legal desta natureza, estará excluída toda a possibilidade de se falar em continuação criminosa”[2]. Situações que deverão então ser subsumidas à figura do concurso efetivo de crimes.

Na verdade, o crime continuado não é mais do que “um concurso de crimes efectivo no quadro da unidade criminosa, de uma “unidade criminosa” normativamente (legalmente) construída” (Figueiredo Dias, Direito Penal — Parte Geral, t. I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2007, 43/ § 37), considerando-se que estamos perante situações em que há uma “diminuição da culpa, em nome de uma exigibilidade sensivelmente diminuída” (idem, 43/ § 47).Trata-se, pois, de situações em que ocorre ou um dolo conjunto ou continuado,  ou onde se verifica uma pluralidade de resoluções criminosas (cf. também neste sentido, Figueiredo Dias, ob. cit., 43/ § 44 e 45), todavia legalmente unificadas de modo a construir uma unidade criminosa.

Mas, não podemos deixar de referir que a figura do crime continuado, que entre nós tem consagração legal, teve origem jurisprudencial (no séc. XIX, na Alemanha), mas acabou por ser rejeitada pela jurisprudência e pela doutrina[3]. E esta posição crítica também aparece na doutrina portuguesa — “não pode esquecer-se que figura do crime continuado, na medida em que dispensa o Tribunal de determinar o número exacto de actos singulares abrangidos pela continuação criminosa e bem assim de aplicar uma pena a cada um desses actos (...) frequentemente estimula uma falta de rigor na averiguação, comprovação e valoração jurídico-penal dos factos relevantes para o respectivo processo.”[4].

Na verdade, tem sido considerado que a figura do crime continuado privilegia injustamente os agentes de um crime continuado, relativamente aos que praticam um concurso efetivo de crimes, e desde logo tendo em conta o efeito de caso julgado que abarca todos os atos integrados na continuação ainda que não tenham feito parte do objeto do processo[5]. Mas produz igualmente prejuízos para o condenado, não só porque pode conduzir a um exame superficial dos factos praticados, como prolonga no tempo o início do prazo de prescrição do procedimento criminal, dado que esta apenas se inicia com o último facto praticado (cf. art. 119.º, n.º 2, al. b), do CP).

Ora, tratando-se no presente caso de crimes contra bem jurídico eminentemente pessoal, como é o bem jurídico da autodeterminação sexual da criança, logo por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, bem andou o acórdão recorrido que considerou não ser o caso dos autos subsumível à figura do crime continuado.

Devemos assim concluir que houve uma pluralidade sucessiva de crimes contra a autodeterminação sexual da ofendida.

2.1.2. Mas é com base nesta ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, que o Supremo Tribunal de Justiça, em alguma jurisprudência, considerou estarmos perante o que designou de “crime de trato sucessivo”, o que levaria à condenação do recorrente em apenas um crime de abuso sexual de criança (agravado).

Na verdade, alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal, partindo da ideia de que quando ocorre uma execução repetida ao longo de um período de tempo se torna “arbitrária qualquer contagem”, tem considerado que estamos perante “crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime — apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime — tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido”. E nestes “crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta”.

Para que este “crime prolongado ou de trato sucessivo” exista, exige a jurisprudência “uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução»” —  “deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma”[6].

Ou seja, a jurisprudência portuguesa, seguindo as pisadas da jurisprudência alemã que construiu o crime continuado por dificuldade de prova, acabou por unificar, à margem da lei, várias condutas numa única, considerando existir uma “unidade resolutiva” (que abarcaria todas as resoluções parcelares que ocorreram aquando da prática de cada sucessivo ato integrador de um tipo legal de crime), sem que, todavia, haja uma diminuição da culpa, mas antes uma agravação da culpa do agente à medida (e na medida em) que a conduta se prolonga no tempo.

É esta conduta prolongada, protraída, no tempo que levou à sua designação como crime prolongado, embora a caracterização do crime como prolongado dependa de a conduta legal e tipicamente descrita se poder considerar como sendo uma conduta prolongada — ora, a conduta, por exemplo, do crime de abuso sexual de criança, ainda que este seja repetido inúmeras vezes, está limitada temporalmente; os atos consubstanciadores daquele abuso, isto é, a prática de “acto sexual de relevo” (cf. arts. 171.º, do CP) ocorrem num certo período e quando sucessivamente repetidos não constituem um mesmo crime de abuso sexual.

Aquela ideia de sucessão de condutas que parece querer-se atingir com a designação de “trato sucessivo” implica necessariamente que haja uma sucessão de tipos legais de crime preenchidos e, portanto, segundo a lei, uma punição em sede de concurso de crimes. A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada ato sexual de relevo, e sem que esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei, desde logo por não aplicação do regime do concurso de crimes.  Isto é, não podendo unificar-se a prática de todos aqueles atos no crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, então apenas nos resta aplicar o disposto no art. 30.º, n.º 1, do CP, segundo o qual “[o] número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.” Considerando que o mesmo tipo legal de crime foi preenchido diversas vezes pela conduta do arguido, a sua subsunção a um único crime constituiria uma solução contra legem.

Além do mais, a designação de “trato sucessivo” constitui uma designação com um significado juridicamente muito preciso e decorrente do Código de Registo Predial (cf. art. 34.º) pretendendo-se documentar o nexo ininterrupto dos titulares da coisa, documentando-se consequentemente a traditio da coisa. Ora, nada disto ocorre no crime sexual, ainda mesmo que executado sucessivamente.

E crime exaurido ou consumido dá a ideia de que logo no primeiro ato se consuma, tornando irrelevantes os atos sucessivos. Ora, o exaurimento do crime assume importância em todos aqueles casos em que, após a consumação, ocorre a terminação do crime, sendo relevante a desistência da tentativa entre um e outro momento. Mas a prática de um crime sexual seguida da de outros crimes sexuais não impede a consumação de um crime sexual em cada um dos atos.

Porém, o que se pretendeu — tal como se afirma no voto de vencido do Cons. Manuel Braz ao acórdão supra citado,  e seguindo Lobo Moutinho[7] —, foi acentuar a reiteração da conduta criminosa — o “crime de trato sucessivo” assim caracterizado corresponde ao crime habitual, ou seja, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual”[8].

No entanto, o entendimento de um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal (art. 29.º, n.º 1, da CRP), do tipo legal de crime previsto na legislação.

E nenhum crime sexual é previsto na legislação como crime habitual (é exemplo de um crime habitual expressamente previsto no CP o crime de lenocínio).

Unificar jurisprudencialmente várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade. Na verdade, ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas, não podemos considerar estarmos perante um único crime. A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto nos arts. 171.º, do CP.

Em parte alguma o tipo legal de crime de abuso sexual de criança permite que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida em diversos dias, ao longo de vários anos, em momentos temporalmente distintos, e fundada em sucessivas resoluções criminosas, de diversos atos sexuais de relevo.

Poder-se-á ainda assim perguntar: e se for um abuso sexual de manhã e outro à noite, ainda assim estamos perante dois crimes de abuso sexual?

Estaremos sempre perante um crime de abuso sexual sempre que se ofenda o bem jurídico da autodeterminação sexual, sempre que o novo ato constitua um novo constrangimento da vítima, sempre que a vítima tenha sido novamente obrigada, novamente abusada.

Alguma vez se veio dizer que uma facada de manhã e uma facada à tarde constituía o mesmo crime de violação da integridade física? Ou que uma facada hoje e outra amanhã, e outra na semana passada... se tratava de um mesmo crime de "trato sucessivo"(??), prolongado, exaurido, considerando que o agente tinha tido uma “unidade resolutiva”?

Ao subsumir-se num único comportamento global, baseado numa “unidade resolutiva”, as diversas ações integradoras — cada uma individualmente — de um crime de abuso sexual viola-se claramente o tipo legal de crime, unificando num único crime aquilo que consubstancia a prática de diversos crimes.

Porém, casos há em que não é possível apurar o número exato de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos atos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser lhe imputados?

Tantos quantos se consiga averiguar.

De outra forma, estaremos a dispensar a investigação de determinar o número exato de atos singulares que foram praticados, abrindo mão do necessário rigor na investigação, e impedindo a valoração jurídico-penal de cada facto relevante praticado pelo arguido. Pode sempre argumentar-se com a necessidade de encontrar uma solução que permita ultrapassar a dificuldade de prova do exato número de factos ilícitos praticados. Consideramos, no entanto, que se trata apenas de uma situação a resolver pelo direito a constituir, pelo que qualquer solução que neste não esteja prevista não cumpre o princípio nuclear em matéria de direito penal — o princípio da legalidade.

Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura[9].

Além disto, pode sempre dizer-se, tal como a jurisprudência alemã argumenta contra a figura do crime continuado (sem expressão legal no Código Penal alemão), que a unificação das várias condutas numa análise global prejudica o arguido — «Ainda que cada facto individual deva ser constatado e provado, a circunstância de as numerosas realizações dos crimes ficarem “fundidas” em um facto total e sem que se imponham penas individuais para cada um deles, conduz frequentemente apenas a um exame superficial dos factos. “(...) [T]em induzido também em não poucas ocasiões a “comprovações” demasiado globais, que têm impedido um exame da realização do tipo e do grau de culpa pelo tribunal de revista, dando lugar a consideráveis restrições das possibilidades de defesa do acusado e têm suscitado a preocupação de que o juiz se deixou levar por uma impressão de conjunto, confusa nos seus limites, e não pela convicção da realização do tipo em cada caso concreto” (BGHSt 40, 147)”[10].

Acompanhamos, pois, de perto o que já este Supremo Tribunal disse. Assim:

- acórdão de 17.09.2014, proc. n.º 595/12.6TASLV.E1.S1 (Relator: Cons. Pires da Graça):

«Não há aqui qualquer dúvida, é abertamente referida a pluralidade de crimes como pressuposto da aplicação do crime de trato sucessivo (…).

Na impossível transposição das citadas regras psicológicas e de senso comum, assume-se abertamente a existência de pluralidade de infracções, tal como no crime continuado, mas dispensando o também dificilmente verificável requisito da diminuição da culpa, chega-se à mesma conclusão: unidade criminosa, benefício alegadamente temperado com a graduação mais intensa da pena, nos moldes já expostos e que são, ultimamente, invariáveis, isto é, as penas são idênticas às equivalentes ao crime único.

 Em suma, onde se verificam vários crimes ficciona-se que apenas houve um.

Mas como a lei, insofismavelmente, contrapõe ao crime continuado a punição por cada crime perpetrado, no campo para que evoluiu a figura do crime de trato sucessivo (da consideração, em concreto, de aparente unidade de resolução e para o tornar em sucedâneo do agora inutilizável crime continuado) este surge como solução claramente “contra legem” e por isso de rejeitar liminarmente.

 Em casos como o que nos ocupa, poderemos falar sem sobressalto de resoluções criminosas idênticas. Mas isso não equivale à sua unificação. De cada vez que se impôs à sua enteada teve, para o que nos ocupa, de tomar uma daquelas resoluções, tal como o agente que decide esfaquear outrem em dias distintos, assaltar determinada pessoa em várias ocasiões ou violar certo indivíduo em diversas alturas.

 São exemplos pacíficos de pluralidade de resolução, a que equivale a pluralidade de infrações e que no essencial não divergem dos casos de abuso sexual de crianças prolongado no tempo sem que se saiba o número exato de ocasiões.

Se as razões do recurso à unificação criminosa, porventura, radicam na desproporcionalidade das punições segundo os critérios legais vigentes, para quem assim entenda, mais não há do que desaplicá-los, por inconstitucionalidade fundada na violação do princípio da proporcionalidade.

 Mais uma vez, a figura do trato sucessivo não tem, em boas contas e salvo o devido respeito por diversa opinião, qualquer utilidade.

No campo das categorias abstratas de crimes a conclusão é idêntica, pois, invariavelmente acaba por surgir como equivalente a categorias já existentes, em nada adiantando à dogmática penal. Pelo contrário, só irá servir para confundir conceitos.

 Assim, de nada adianta equipará-la à noção de crime permanente, já existente (ou crime duradouro — Por todos Prof. Figueiredo Dias, em Direito Penal, parte geral, tomo I, Coimbra Editora, pág. 295 e seguintes) e que curiosamente até se contrapõe a crime instantâneo (de que o abuso sexual de criança constitui exemplo claro).

 Menos ainda a crime de empreendimento, pois estes caracterizam-se pela equiparação típica entre tentativa e consumação.

 Sequer com crime exaurido, já que este se caracteriza pela circunstância de que “o primeiro passo dado pelo agente na senda do «iter criminis» já constitui o preenchimento do tipo”, segundo o Ac. do STJ de 9.10.2003 (Procº 03P2851).

 Conclui-se portanto pela total irrelevância da figura do crime de trato sucessivo e pela mesma crítica da comunidade à indevida utilização da figura do crime continuado em casos de abuso sexual de crianças.» (in www. dgsi.pt)

- acórdão de 22.04.2015, proc. n.º 45/13.0JASTB.L1.S1, Relator: Cons. Sousa Fonte:

«Discordamos da qualificação dos plúrimos abusos sexuais sobre o mesmo ofendido como constitutivos de um crime de trato sucessivo.

Não desconhecemos que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2012, Pº nº 862/11.6TAPFR.S1, citado no acórdão recorrido, tirado com o voto de vencido do primitivo Relator, num caso em que o aí Arguido foi condenado, na 1ª Instância, pela autoria, em concurso real, de diversos crimes de natureza sexual, decidiu que se estava aí perante crimes de trato sucessivo. (…)

Parece claro que tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela «multiplicidade de actos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado.

Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses actos não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. cit., página 989)».» (in www.dgsi.pt).

Assim sendo, e tendo ficado provada a realização de diversas condutas subsumíveis no crime de abuso sexual de criança agravado e no crime de abuso sexual de menor dependente, deve, tal como o acórdão recorrido concluiu, punir-se o arguido por diversos crimes de abuso sexual de criança (agravado), pelo que não deve ser entendido tratar-se de um qualquer crime continuado ou “crime de trato sucessivo”, sendo sim um verdadeiro caso de concurso de crimes.

Analisemos, então, a pena única aplicada.

2. A determinação da pena tem como limite máximo o admitido pela culpa de cada arguido — a culpa de cada um é individualizável e insuscetível de equiparação entre os diversos arguidos, pois estes participam de forma diferente e de modo diverso nos diferentes factos praticados, assim revelando uma atitude particular contra o direito —, e como limite mínimo o determinado pelas exigências de prevenção geral impostas pela comunidade de acordo com os crimes praticados; será dentro destas balizas que em função das exigências de prevenção especial de cada arguido que se determinará a medida concreta da pena, necessariamente diferente consoante as distintas exigências que cada um impõe.

A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º, do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade da pessoa do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever-se-á ter em conta todas as circunstâncias que depuseram a favor ou contra o arguido, nomeadamente os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenham sido tomadas em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).

Acresce que o nosso sistema de reações criminais é claramente caracterizado por uma preferência pelas penas não privativas da liberdade ─ cf. art. 70.º do CP ─ devendo o tribunal dar primazia a estas quanto se afigurem bastantes para que sejam cumpridas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Mas, a determinação da medida da pena, em sede de concurso de crimes, apresenta especificidades relativamente aos critérios gerais do art. 71.º do CP.

Nos casos de concurso de crimes (e em obediência ao princípio constitucional da legalidade criminal, a pena única apenas pode ser aplicada caso estejam verificados os seus pressupostos de aplicação, isto é, caso estejamos perante uma situação de concurso efetivo de crimes), a determinação da pena única conjunta tem que obedecer (para além daqueles critérios gerais) aos critérios específicos determinados no art. 77.º, do CP. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem, todavia, exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).

A partir desta moldura, é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º, ambos do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1, do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados, deve proceder se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique”. Na avaliação da personalidade, ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade, sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever se á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva).

São estes os critérios legais estabelecidos para a determinação da pena e, em particular, para a determinação da pena única conjunta.

Constitui, pois, requisito da aplicação de uma pena única a existência de um concurso de crimes.

Nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP, a pena única conjunta, a aplicar a um caso de concurso crimes, é determinada a partir de uma moldura que tem como limite mínimo “a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”, e como limite máximo “a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Pelo que as penas concretas aplicadas a cada crime constituem os elementos a partir das quais se determina aquela moldura.

Nestes termos, a moldura do concurso de crimes a partir da qual deve ser determinada a pena concreta a aplicar tem como limite mínimo 6 anos (a pena concreta mais elevada) de prisão, e como limite máximo 20 anos (de acordo com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP, a soma das penas concretas aplicadas — (2x2)+(2x6)+4).

A partir de uma análise global do comportamento do arguido verificamos que, ao longo de cerca de 10 anos, e desde que a menor tinha 4 anos de idade, o arguido praticou diversos crimes sexuais contra a menor, de forma persistente e em ambiente onde supostamente estaria protegida — o seu lar — e ameaçando a menor para que não divulgasse os factos sob pena de “ficar sem mãe”.  Revelou persistência nos atos praticados, embora não se deva deixar de reconhecer a juventude do arguido (sendo certo que aquando da aplicação das penas a cada um dos crimes não foi aplicado o regime de atenuação especial para jovens delinquentes, o que, neste momento, já não poderá ser apreciado atento não só o facto de nem sequer tal vir alegado – o que determinaria excesso de pronúncia se acaso refletíssemos sobre tal aspecto —, como também dada a irrecorribilidade do acórdão nesta parte).

Assim, ainda que os factos praticados imponham fortes exigências de prevenção geral, a demonstrar à comunidade a inadmissibilidade legal dos factos praticados e a preservação da norma assegurando a punição dos comportamentos que a violaram, certo é que as exigências de prevenção especial são igualmente relevantes atenta o facto de o arguido não ter antecedentes criminais e ter praticado os factos quando ainda com menos de 20 anos de idade. Ora, sabendo que a moldura da pena de prisão oscila entre os 6 e os 20 anos, a pena aplicada de 10 anos e 6 meses mostra-se adequada e proporcional à gravidade dos factos praticados, à persistência dos factos, à prática dos mesmos factos em menor desde tão tenra idade e ao longo de tanto tempo (pese embora alguns interregnos).

Assim, a persistência dos factos praticados, o alheamento quanto à idade da vítima e quanto aos danos que lhe provocou na formação da sua personalidade e quanto aos danos psicológicos que provocou e foram provados, o período longo durante o qual manteve o seu comportamento, são elementos que não podem ser esquecidos na determinação da pena a aplicar.

A comunidade nacional e internacional reclama cada vez mais a proteção dos bens jurídicos lesados pelos atos do arguido. Acresce que, tendo em conta a factualidade provada, as exigências de prevenção especial são significativas e notórias, pelo que a pena aplicada é adequada e necessária, atentas as exigências de prevenção geral e especial, e a culpa do arguido.

III

Conclusão

Nos termos expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar improcedente ao recurso interposto pelo AA

Custas em 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 14 de julho de 2022

Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (Relatora)

António Gama

Eduardo Loureiro

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[1] Eduardo Correia, Direito Criminal, II, Almedina, 1993, reimpressão, p. 209
[2] idem, p. 211.
[3] Roxin, Derecho Penal. Parte General, t. II, Civitas, 2014, § 33, nm. 256 e ss
[4] Maria da Conceição Valdágua, As alterações ao Código Penal de 1995, relativas ao crime continuado. Propostas no anteprojecto de revisão do Código Penal, RPCC, 2006, p. 538
[5] Roxin, ob. e loc citado.
[6] Transcrições do acórdão do STJ, de 29.11.2012, proc. n.º 862/11.6TAPFR.S1, relator: Cons. Santos Carvalho
[7] Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, UCP, 2005, p. 620, nota 1854.
[8] Figueiredo Dias, ob. cit. supra, 11/ § 55.
[9] Em sentido idêntico, Roxin, Derecho Penal. Parte General, t. II, Civitas, 2014, §33, nm. 269.
[10] Roxin, ob. cit., § 33/ nm. 260.