HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
INDEFERIMENTO
Sumário


I - A providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excecional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade.
II - Na dicotomia data da prolação da acusação (ou decisão instrutória ou condenação em 1.ª instância) e data da notificação da acusação (ou da decisão instrutória ou da condenação em 1.ª instância), como elemento aferidor da determinação do momento relevante para se estabelecer o marco que importa ter em atenção na definição do dies ad quem do prazo de duração máxima de prisão preventiva, é de ter como correta a opção pela data em que é elaborada a acusação (ou a decisão instrutória ou a condenação em 1ª instância).

Texto Integral




Processo n.º 8/19.2GAGDL.S1

Habeas Corpus

Acordam, em audiência, no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. AA, arguido sujeito a prisão preventiva, veio através de defensor requerer a providência de habeas corpus alegando o seguinte (transcrição):
«1º Em 22FEV22 foi realizada busca domiciliária à residência do Arguido, ora requerente na sequência da qual foi o mesmo detido.
2.º Em 23FEV22 foi o Arguido apresentado à Mma. Juiz de Instrução Criminal ... para primeiro interrogatório judicial.
3.º No dia 24FEV22 foi aplicada ao Arguido medida de prisão preventiva que se encontra a cumprir desde essa data no Estabelecimento Prisional ....
 4.º Na presente data, volvidos 6 meses, não foi deduzida acusação pelo Ministério Público.
5.º Prevê o artigo 215.º n.º 1 al. a) do CPP a extinção da prisão preventiva quando desde o seu início hajam decorrido quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação.
6.º Tal prazo, no caso dos autos, encontra-se elevado para seis meses, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal, por se tratar de factualidade fortemente indiciada pelo crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo artigo 21.º do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro que comporta moldura penal de máximo superior a 8 anos.
7.º Ora no caso dos autos tal prazo encontra-se ultrapassado.
8.º A medida de prisão preventiva extinguiu-se no dia 24AG022, data na qual perfizeram seis meses desde que o Arguido se encontra privado da sua liberdade sem que tenha sido deduzida acusação pública.
9. º Não obstante, na presente data não foi dada ordem de libertação ao Arguido nos termos previstos no artigo 217.º do CPP.
10.º O Arguido AA encontra-se na presente data preso ilegalmente por se manter a medida de coação para além dos prazos fixados na lei.
11.º Devendo por isso ser de imediato restituído à liberdade.
Em Conclusão:
1. Em 24FEV22 por decisão proferida em 1º interrogatório judicial de arguido detido foi aplicada medida de coação de prisão preventiva ao Requerente por se entender verificada factualidade que fortemente indicia a prática de crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artigo 21.º da Lei de Combate à droga, crime que comporta moldura penal de máximo superior a 8 anos.
2. Na presente data, volvidos 6 meses desde a aplicação da medida de coação não foi proferida acusação, encontrando-se excedido o prazo de duração máxima de prisão preventiva nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 215.º do CPP.
3. O Requerente encontra-se ilegalmente preso nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 222.º n.º 2 al. c), encontrando-se violados os normativos dos artigos 27.º e 28.º n.º 4 da CRP e nos artigos 215.º n.º 1 al. a) e n.º 2 e 217.º do CPP.
4. Termos em que deverá a prisão ser declarada ilegal e ordenada a sua libertação nos termos previstos no artigo 31.º n.º 3 da CRP e dos artigos 222.º e 223.º n.º 4 al. d) do CPP.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá ser declarada ilegal a prisão preventiva e ordenada a libertação imediata do Requerente».

2. Foi prestada a informação de acordo com o disposto no art. 223.º/1, CPP, nos seguintes termos (transcrição):
«(…) Foi aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva após sujeição a primeiro interrogatório judicial de arguido detido no dia 24 de fevereiro de 2022 (em plano subsequencial à detenção do arguido, datada de 22 de fevereiro de 2022);
- A medida de coação foi aplicada, além do mais, pela existência de fortes indícios da prática por parte deste arguido de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro.
- A medida de coação foi revista e mantida por despachos judiciais proferidos nos dias 19 de maio de 2022, 18 de agosto de 2022 (fls. 8766 a 8768) e 24 de agosto de 2022 (este último na sequência da prolação de despacho acusatório).
- O Ministério Público proferiu despacho acusatório no dia 23 de agosto de 2022 (fls. 8808 a 8859), da qual se ordenou a notificação dos arguidos (expediente de notificação de fls. 8948, cuja certificação de cumprimento ainda se aguarda).
- A providência de Habeas Corpus foi apresentada em 26 de agosto de 2022, alegando o arguido no artigo 4.º que à data de instauração da providência, o Ministério Público não tinha ainda proferido despacho de encerramento do inquérito, nem deduzido acusação pública.
Face ao que os autos documentam, a prisão do arguido à ordem dos presentes autos é legal, na medida em que o crime indiciado enquadra-se na previsão do n.º 2 do artigo 215.º do Código de Processo Penal, por referência ao artigo 1.º, alínea m) do mesmo diploma legal.
Nesse enquadramento, o Ministério Público dispunha do prazo de 6 meses para deduzir acusação sem exceder o prazo máximo da prisão preventiva, ou seja, até ao final do dia 24 de agosto de 2022, sendo certo que, ao contrário do que alega o arguido no artigo 4.º do seu petitório, a acusação pública foi deduzida um dia antes do termo do prazo em causa, passando o prazo máximo da prisão preventiva para 10 meses, caso haja instrução, e 1 ano e 6 meses, caso não haja, até à prolação do acórdão em primeira instância, conforme resulta do disposto nos artigos 215.º n.º 1 alíneas b) e c) e n.º 2 do Código de Processo Penal, prazos esses que, manifestamente, não se encontram ainda volvidos».

3. Convocada a secção criminal e notificados o MP e o defensor, realizou-se a audiência (arts. 11.º/4/c, 223.º/2/ 3, e 435.º, CPP).
II
1. Questão a decidir: a legalidade da prisão preventiva do arguido AA.
2. O circunstancialismo factual relevante para o julgamento resulta da petição de habeas corpus, quer da informação, quer da certidão que acompanha os presentes autos e é o seguinte:
2. 1. O arguido foi detido no dia 22 de fevereiro de 2022; na sequência da sua detenção foi apresentado a primeiro interrogatório judicial de arguido detido nos dias 23 e 24 de fevereiro de 2022, e foi-lhe aplicada, no dia 24.02.2022, a medida de coação de prisão preventiva (Referência ...19).
2. 2. A medida de coação foi aplicada pela existência de fortes indícios da prática por parte deste arguido de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro, com referência às tabelas I-B e I-C anexas ao mesmo diploma (Referência ...19).
2. 3. O Ministério Público proferiu a acusação no dia 23 de agosto de 2022 (fls. 8808 a 8859), imputando ao requerente AA a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1 «da Lei» 15/93, de 22.01, com referência às tabelas I-B e I-C anexas aquele diploma, que é o DL 15/93 e não Lei, como por manifesto lapso refere a acusação (referência citius ...).
2. 4. O expediente para notificação da acusação foi expedido para o defensor do arguido (referência ...07) e o Estabelecimento Prisional no dia 26.08.2022 (referência ...54). O pedido do requerente foi enviado em correio registado em 26.08.2022 e deu entrada em tribunal em 29.08.2022.
2.5. A medida de coação de prisão preventiva inicialmente aplicada, vem sendo reexaminada e mantida, despachos judiciais proferidos nos dias 19 de maio de 2022, 18 de agosto de 2022 (fls. 8766 a 8768) e 24 de agosto de 2022, este último na sequência da acusação.
*
3. O habeas corpus é um meio, procedimento, de afirmação e garantia do direito à liberdade (arts. 27.º e 31.º, CRP), uma providência expedita e excecional – a decidir no prazo de oito dias em audiência contraditória art. 31.º/3, CRP – para fazer cessar privações da liberdade ilegais, isto é, não fundadas na lei, sendo a ilegalidade da prisão verificável a partir dos factos documentados no processo. Enquanto nas palavras do legislador do Decreto-lei n.º 35 043, de 20 de outubro de 1945, «o habeas corpus é um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», hoje, e mais nitidamente após as alterações de 2007, com o acrescento do n.º 2 ao art. 219.º, CPP, o instituto não deixou de ser um remédio excecional, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso (arts. 219.º/2, 212.º, CPP, no respeitante a medidas de coação).
4. Quanto ao pedido de habeas corpus por prisão ilegal, dispõe o art. 222.º:
«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso (…) e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
(…)

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».

5. Segundo a alegação do requerente «volvidos 6 meses desde a aplicação da medida de coação não foi proferida acusação, encontrando-se excedido o prazo de duração máxima de prisão preventiva nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 215.º do CPP».
6. Em tema de prazos de duração máxima da prisão preventiva dispõe o art. 215.º, CPP:
1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:
a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;
c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;
d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para 6 meses, 10 meses, 1 ano e 6 meses e 2 anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos (…)».
7. Não questiona o requerente que no despacho que rematou o seu primeiro interrogatório de arguido detido foi considerada indiciada a prática de um crime de tráfico de estupefacientes da previsão do art. 21.º/1 do DL 15/93, por referência às tabelas I-B e I-C, anexas a esse diploma. Esse crime é punível com pena de prisão de 4 a 12 anos. Assim, a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao requerente AA, extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido seis meses sem que tenha sido deduzida acusação (art. 215.º/1/a/2, CPP). O requerente foi detido em 22.02.2022, em 24.02.2022 foi-lhe aplicada medida de coação de prisão preventiva e a acusação pelo crime de tráfico de estupefacientes da previsão do art. 21.º/1, DL 15/93, foi deduzida em 23.08.2022, pelo que, desde a aplicação ao arguido da medida de coação de prisão preventiva até à formulação da acusação não decorreram seis meses.
8. Acresce que a jurisprudência deste Supremo Tribunal é nemine discrepante no sentido de que a data relevante para o cômputo do prazo de prisão preventiva é aquela em que o ato foi produzido ou feito introduzir no procedimento processual, no caso, a data em que a acusação foi deduzida nos autos e não a data em que foi notificada à arguida (ac. 10.12.2008, CJ STJ 2008, tomo 3, p. 254). Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de julho de 2019, disponível em www.dgsi.pt., o que tem sido discutido a este nível é saber se é de ter em conta a data em que a acusação é deduzida, ou antes, a data em que chega ao conhecimento do seu destinatário, tendo a questão sido abordada várias vezes exatamente a propósito da acusação e sua notificação, entendendo-se que o termo final do prazo em curso em cada fase reporta-se sempre à prolação do despacho e não à notificação da peça processual, havendo nesse aspeto concordância total na jurisprudência. Na dicotomia data da prolação da acusação (ou decisão instrutória ou condenação em 1.ª instância) / data da notificação da acusação (ou da decisão instrutória ou da condenação em 1.ª instância), como elemento aferidor da determinação do momento relevante para se estabelecer o marco que importa ter em atenção na definição do dies ad quem do prazo de duração máxima de prisão preventiva, é de ter como correta a opção pela data em que é elaborada a acusação (ou proferida a decisão instrutória ou a condenação em 1.ª instância). Desde logo pode avançar-se com um argumento literal, a extrair da alínea a) do n.º 1 do artigo 215.º do CPP, quando refere o decurso do prazo sem que tenha sido deduzida acusação e de modo similar nas restantes alíneas, como na b), ao referir o decurso do prazo sem que tenha sido proferida decisão instrutória e nas alíneas c) e d), ao colocar o ponto final do prazo sem que tenha havido condenação, em 1.ª instância, ou com trânsito em julgado. Em todos estes casos é patente a referência à data da prática do ato processual ou elaboração da decisão final (acusação, decisão instrutória e condenação) proferida no processo de acordo com cada etapa ou fase processual e não ao momento em que chega ao conhecimento do destinatário o teor da mesma (acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de julho de 2019, e de 09 de setembro de 2021, aqui seguidos de muito perto).
9. Deduzida a acusação pelo M.º P.º, no dia 23 de agosto de 2022, ainda que a mesma não tenha sido levada ao conhecimento do arguido ou do seu mandatário, esse ato é relevante para deixar de operar o prazo extintivo do artigo 215º/1/a/2, CPP, pois foi praticado antes do termo do prazo de seis meses consagrado na lei. Assim, resulta claro que a prisão do requerente não se mantém para além do prazo fixado pela lei, pelo que improcede, sem margem para qualquer dúvida, a pretensão do requerente.
10. O requerente decaiu totalmente no pedido de habeas corpus pelo que é responsável pelo pagamento de taxa de justiça, de acordo com o disposto o n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a qual pode ser fixada ente 1 e 5 UC. Tendo em conta a complexidade do incidente, julga-se adequado fixar essa taxa em 3 UC.
III
Indefere-se a providência de habeas corpus por falta de fundamento legal.
Custas pelo requerente, com taxa de justiça que se fixa em três UC – n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa.

Supremo Tribunal de Justiça, 01 de setembro de 2022

António Gama (Relator)
João Guerra
Orlando Gonçalves
Eduardo Loureiro (Presidente de seção)