HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
INDEFERIMENTO
Sumário


I — Nos termos do art. 215.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do CPP, o prazo máximo de prisão preventiva até à acusação é de 6 meses, até à decisão instrutória é de 10 meses (caso haja instrução), e até à condenação em 1.ª instância é de 1 ano e 6 meses; o Requerente foi acusado a 23.08.2022 pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, antes de se perfazerem 6 meses sob a prisão preventiva (que ocorreu a 24.02.2022).
II – O prazo máximo de prisão preventiva não se encontra esgotado. Pelo que não poderemos concluir pela ilegalidade da prisão quanto ao Requerente, uma vez que a privação da liberdade foi determinada por autoridade competente, por facto por que a lei a permite e sem que tenham sido ultrapassados os prazos máximos da sua duração.
III - Para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação); a norma consagrada no art. 215.º, do CPP, é muito clara — “a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido: (...) meses sem que tenha sido deduzida acusação”; pretender que se deve interpretar o momento da dedução da acusação como sendo o momento da sua notificação é não só uma interpretação em violação clara da letra da lei, como também é dizer, em desrespeito do disposto no art. 9.º, n.º 3, do Código Civil, que o legislador utilizou erroneamente o termo “deduzida” querendo dizer “notificada”, não tendo sabido exprimir o seu pensamento .

Texto Integral




Processo n.º 8/19.2FGAGDL-K.S1

Habeas Corpus

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I Relatório

1. AA, arguido no processo n.º 8/19.2GAGDL, do Tribunal Judicial da Comarca ... (Juízo de Instrução Criminal ..., Juiz ...), preso preventivamente à ordem destes autos desde 24.02.2022, vem, por intermédio de mandatário, requerer a providência de habeas corpus por privação ilegal da liberdade, nos termos dos arts. 222.º e 223.º, do Código de Processo Penal (doravante CPP), que terminou com as seguintes conclusões:

«1. Em 24FEV22 por decisão proferida em 1.º interrogatório judicial de arguido detido foi aplicada medida de coação de prisão preventiva ao Requerente por se entender verificada factualidade que fortemente indicia a prática de crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artigo 21.º da Lei de Combate à droga, crime que comporta moldura penal de máximo superior a 8 anos.

2. Na presente data, volvidos 6 meses desde a aplicação da medida de coação não foi proferida acusação, encontrando-se assim excedido o prazo de duração máxima de prisão preventiva nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 215.º do CPP.

3. O Requerente encontra-se ilegalmente preso nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 222.º n.º 2 al. c), encontrando-se violados os normativos dos artigos 27.º e 28.º n.º 4 da CRP e nos artigos 215.º n.º 1 al. a) e n.º 2 e 217.º do CPP.

4. Termos em que deverá a prisão ser declarada ilegal e ordenada a sua libertação nos termos previstos no artigo31.º n.º3 da CRP e dos artigos 222.º e 223.º n.º 4 al. d) do CPP.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V.Exas. mui doutamente suprirão, deverá ser declarada ilegal a prisão preventiva e ordenada a libertação imediata do Requerente AA.».

2. Perante o pedido apresentado, o Ministério Público junto da Procuradoria da Comarca ... (Departamento de  Investigação e Ação Penal, ... secção de ...) promoveu que a petição fosse apresentada ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça informando, nomeadamente, que “A prisão preventiva do arguido foi determinada e revista pela autoridade competente e encontra-se dentro dos seus limites legais, pelo que o arguido AA não se encontra preso ilegalmente, sendo a petição de habeas corpus ora apresentada manifestamente infundada, e, portanto, deverá ser indeferida.”

3. Foi prestada informação, de acordo com o disposto no art. 223.º, n.º 1, do CPP, nos seguintes termos:

«São estes os factos necessários à apreciação da providência e que resultam da tramitação processual dos autos:

1. Foi aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva após sujeição a primeiro interrogatório judicial de arguido detido no dia 24 de fevereiro de 2022.

2. A medida de coação foi aplicada, além do mais, pela existência de fortes indícios da prática por parte deste arguido de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro.

3. A medida de coação foi revista e mantida por despacho judicial proferido no dia 19 de maio de 2022.

4. O ministério Público proferiu despacho acusatório no dia 23 de agosto de 2022.

5. A medida de coação foi novamente revista e mantida por despacho judicial proferido no dia 24 de agosto de 2022.

6. A providência de Habeas Corpus deu entrada no dia 26 de agosto de 2022, alegando o arguido no artigo 8.º que à data de entrada da providência, o Ministério Público não tinha ainda proferido despacho de encerramento do inquérito, nem deduzido acusação pública.

*

Face ao que os autos documentam, a prisão do arguido à ordem dos presentes autos é perfeitamente legal, na medida em que o crime fortemente indiciado enquadra-se na previsão do n.º 2 do artigo 215.º do Código de Processo Penal, por referência ao artigo 1.º alínea m) do mesmo diploma legal. Significa dizer que o Ministério Público tinha o prazo de 6 meses para deduzir acusação sem exceder o prazo máximo da prisão preventiva, ou seja, até ao final do dia 24 de agosto de 2022, sendo certo que, ao contrário do que alega o arguido no artigo 8.º do seu petitório, a acusação pública foi deduzida um dia antes do termo do prazo em causa, passando o prazo máximo da prisão preventiva para 10 meses, caso haja instrução, e 1 ano e 6 meses, caso não haja, até à prolação do acórdão em primeira instância, conforme resulta do disposto nos artigos 215.º n.º 1 alíneas b) e c) e n.º 2 do Código de Processo Penal. Ora tais prazos apenas encontrarão o seu termo nos próximos dias 24 de dezembro de 2022 e 24 de agosto de 2023, respetivamente, sendo manifesta a improcedência da presente providência.

Sempre se dirá que no dia 24 de agosto de 2022, o ora subscritor, no despacho que proferiu, aferiu cuidadosamente dos pressupostos da manutenção da medida de coação em causa, razão pela qual não libertou este arguido, nem os oito coarguidos que se encontram na mesma situação, consignando expressamente não estar ultrapassado o prazo máximo da prisão preventiva.

Termos em que não libertando o arguido AA, consigno nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 223.º n.º 2 do Código de Processo Penal, que mantenho a medida de coação de prisão preventiva.»

4. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência, nos termos dos arts. 223.º, n.º 3, e 435.º do CPP.

Há agora que tornar pública a respetiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu.

II Fundamentação

1.1. Nos termos do art. 31.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, o interessado pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de detenção ou prisão ilegal. “Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade” constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito[1].

Exigem-se cumulativamente dois requisitos: 1) abuso de poder, lesivo do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e, 2) detenção ou prisão ilegal[2]. Nos termos do art. 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), a ilegalidade da prisão deve ser proveniente de aquela prisão “a) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

2.3. AA encontra-se privado da liberdade à ordem destes autos, desde 24.02.2022, após o primeiro interrogatório judicial de arguido detido (fora de flagrante delito), realizado no dia anterior e sem que tenha prestado quaisquer declarações. A medida de coação foi aplicada por o arguido se encontrar “(...) fortemente indiciado que o arguido BB, há cerca de, pelo menos três anos, procede à venda direta de cocaína e haxixe e é fornecedor de terceiros destes produtos estupefaciente, na zona de ..., ..., ..., ..., ..., ..., ....

Como forma de alargar o leque de clientes recrutou outros traficantes, designadamente os co-arguidos (...) para procederem à venda de produto estupefaciente, que lhe era fornecido por (...), por sua conta, criando assim uma estrutura organizada que lhe permitiu aumentar as vendas e lucros numa escala considerável. (...) Resulta também da prova produzida que os arguidos BB ( na zona do ... onde vive), (....), assumem um papel primordial de fornecedores. AA tem mesmo uma organização e um conjunto de outros indivíduos que vendem produto estupefaciente por sua conta. (...) Face a todo o exposto julga-se que a factualidade fortemente indiciada integra a a prática pelos arguidos AA, (...) em autoria material (art. 26.º, 1.ª parte, do Código Penal) e na forma consumada de:

- um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1 do Código Penal e 21.º, da Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência às tabelas I–B e I-C anexas ao mesmo diploma legal.” (cf. auto de interrogatório de arguido, continuação, p. 39, 41 e 42, ref. ...19).

Considerou-se, então, que, dada a existência de perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, perigo de perturbação do decurso do inquérito, estavam verificados os pressupostos inscritos no art. 204.º, als. b) e c), do CPP. E por isso se concluiu que apenas a prisão preventiva acautelava os perigos existentes.

Foi assim decidido que:

«(...) Recorrendo às regras de experiência comum, sabemos que quem entra neste mundo do tráfico de droga, obtendo lucros avultados, não deixa facilmente esta atividade, até porque, os demais envolvidos também assim o exigem, sob pena de represálias, pelo que se conclui que existe um forte e concreto perigo de continuação da atividade criminosa por todos os arguidos, situação que se verifica no caso concreto considerando o tempo já decorrido da atuação ilícita dos arguidos.

Os factos em causa praticados pelos arguidos são graves, sendo o alarme social e a perturbação da ordem e tranquilidade pública uma evidência que nos escusamos aqui de desenvolver.

O perigo de perturbação do decurso do inquérito também existe em concreto, uma vez que os arguidos, tendo agora conhecimento dos autos poderão exercer represálias e coação sobre eventuais testemunhas em ordem a condicionar os seus depoimentos.

Estão assim verificados os perigos previstos nas als. b) e c) dos art. 204º CPP.

As medidas de coação devem de ser necessárias e adequadas às exigências cautelares em causa e proporcionais à gravidade do crime, bem como às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas – art s 191º a 193º do CPP.

No caso concreto é previsível, atento os crimes indiciados e a respetivas penas aplicáveis, que venha a ser aplicada pena de prisão efetiva aos arguidos AA (...).

Por outro lado e quanto a estes arguidos, as exigências cautelares, já referidas, a gravidade do crime e os perigos já mencionados e previstos no art. 204.º, b) e c) do CPP, levam-nos a entender que só a prisão preventiva é adequada a fazer cessar tais perigos, nomeadamente o mencionado perigo de continuação da atividade criminosa, já que, ficando o arguido sujeito à medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que sob vigilância eletrónica, tal perigo não ficaria acautelado, sendo perfeitamente possível continuar a venda e disponibilização do produto estupefaciente a terceiros a partir de casa, por intermédio de conhecidos, amigos, familiares ( cúmplices), facilmente recrutáveis, face ao lucro elevado e fácil, como, aliás, ocorreu no passado e utilizando os vários meios de contacto disponíveis ( telefone, redes sociais, aplicações). (...)

Pelo exposto, decide-se:

a) Ao abrigo do disposto nos art.º 21º da Lei 15/93 de 22-01 e arts.º 191º, 192º, 193º, 195º, 196º e 202º, n.º 1, al. a) e b) e 204º, al., b) e c) todos do CPP, que o arguidos AA(...) aguardem os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coação:

- TIR já prestado;

- Prisão preventiva». (loc. cit., p. 42-44).              

Dado que o arguido ficou em prisão preventiva em fevereiro de 2022, a aplicação da medida de coação foi revista e mantida por despacho judicial de 19.05.2022.

A 23. 08. 2022 foi proferida acusação, segundo a qual o arguido AA foi acusado pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, nos termos do art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01. Foi ainda promovido que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo em prisão preventiva. E, por despacho judicial de 24.08.2022, foi mantida a aplicação da referida medida de coação.

A presente providência de habeas corpus foi apresentada, via correio eletrónico, a 26.08.2022.

Ora, os factos indiciados relativamente ao Requerente referem-se a atos puníveis com penas de prisão de 4 a 12 anos, pela prática do crime previsto no art. 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93; e estes constituem crimes que se integram no âmbito do conceito de criminalidade especialmente violenta e criminalidade altamente organizada, segundo o disposto no art. 1.º, als. l) e m), do CPP.

Sendo assim, nos termos do art. 215.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do CPP, o prazo máximo de prisão preventiva até à acusação é de 6 meses, até à decisão instrutória é de 10 meses (caso haja instrução), e até à condenação em 1.ª instância é de 1 ano e 6 meses.

Ora, o Requerente foi acusado a 23.08.2022 pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, antes de se perfazerem 6 meses sob a prisão preventiva (que ocorreu a 24.02.2022).

Sendo assim, o prazo máximo de prisão preventiva não se encontra esgotado. Pelo que não poderemos concluir pela ilegalidade da prisão quanto ao Requerente, uma vez que a privação da liberdade foi determinada por autoridade competente, por facto por que a lei a permite e sem que tenham sido ultrapassados os prazos máximos da sua duração.

Acresce referir que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) de modo que não se faça recair sobre os serviços o ónus de cumprimento, pois cabe apenas ao Magistrado Judicial ou ao Ministério Público (consoante a fase processual em que se encontrem os autos) o cumprimento deste prazo.

Na verdade, não se poderia concluir pela ilegalidade da prisão, quando a acusação foi efetivamente deduzida. Porém, só com a sua notificação se iniciam os prazos para que se apresente eventual requerimento de abertura de instrução.

Acresce referir que a norma consagrada no art. 215.º, do CPP, é muito clara — “a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido: (...) meses sem que tenha sido deduzida acusação”. Pretender que se deve interpretar o momento da dedução da acusação como sendo o momento da sua notificação é não só uma interpretação em violação clara da letra da lei, como também é dizer, em desrespeito do disposto no art. 9.º, n.º 3, do Código Civil, que o legislador utilizou erroneamente o termo “deduzida” querendo dizer “notificada”, não tendo sabido exprimir o seu pensamento[3].

Sabendo que foi já deduzida a acusação, não mais podemos dizer que o prazo máximo de privação da liberdade foi ultrapassado sem que tivesse sido deduzida acusação. Valem agora os prazos máximos de privação da liberdade até à decisão instrutória (se a instrução for requerida), isto é, 10 meses, ou até à decisão em 1.ª instância, isto é, 1 ano e 6 meses.

Ora, tendo o arguido sido preso preventivamente em fevereiro de 2022, já tendo havido acusação (em agosto de 2022), não foram ultrapassados os prazos máximos de prisão preventiva. Pelo que não podemos concluir pela ilegalidade da prisão quanto ao Requerente, sendo clara a ausência manifesta de fundamento para a procedência da petição.

Assim sendo, não existe qualquer fundamento para deferir a petição de habeas corpus apresentada pelo Requerente AA.

III Decisão

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir, por manifestamente infundada, a providência de habeas corpus requerida pelo arguido AA.

Nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP, condena-se o peticionante ao pagamento de 6 UC.

Custas pelo Requerente, com 2 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 1 de setembro de 2022

Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (Relatora)

António Gama

João Guerra

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[1] Cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa — Anotada, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 20074, anotação ao art. 31.º/ I, p. 508.
[2] Cf. neste sentido, ibidem, anotação ao art. 31.º/ II, p. 508.
[3] Em outros normativos o legislador referiu-se igualmente ao momento da dedução da acusação fazendo depender deste certos efeitos, ainda que não tenha havido notificação — por exemplo, o art. 57.º, n.º 1, do CPP, onde se determina que assume logo a qualidade de arguido aquele contra quem for deduzida a acusação; ou ainda a obrigatoriedade de constituição de defensor logo após a dedução da acusação (art. 64.º, n.º 3, do CPP); cf. também art.s 280.º, n.º 2,  e 391.º - B, n.ºs 2 e 3, todos do CPP, onde o momento da dedução assume relevo particular.