VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Sumário

I. A problematização da oposição de versões ocorre frequentemente em casos de crime de crime de violência doméstica. E da constatação desta circunstância não derivam, nem regras especiais de valoração de prova que conduzam a uma sobreavaliação injustificada do depoimento da vítima (ou das “suas” testemunhas) por contraposição a uma negação dos factos pelo arguido, nem uma impossibilidade de realização da prova da acusação.
II. Inexistem regras processuais penais especiais que confiram, só por isso e por si só, um “estatuto” especial às declarações da vítima, como regras que imponham que estas declarações tenham de ser corroboradas sob pena de nada valerem, sendo certo que no confronto de prova oral de sinal contrário – como sucede com as declarações do arguido versus as declarações da vítima –, o tribunal não fica desobrigado de justificar a maior credibilidade que estas tenham eventualmente merecido, em detrimento daquelas. Sob pena de, não o logrando, dever fazer operar o princípio do in dubio pro reo.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Competência Genérica de Sesimbra - Juiz 2, no âmbito do Processo 441/21.0GASSB, foi o arguido AA submetido a julgamento em Processo Comum e Tribunal Singular.
Após realização da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal decidiu julgar a acusação improcedente e, consequentemente, absolver o arguido, AA, da prática do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a), 2, 4 e 5 do Código Penal.

*
Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
1. Por decisão proferida em 08.03.2022, a Mma. Juiz do Tribunal a quo decidiu absolver o arguido AA da prática do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º,nºs 1, alínea a), 2, 4 e 5 do Código Penal;
2. A matéria de facto encontra-se deficiente e insuficientemente fundamentada e padece de erro na apreciação da prova;
3. Não se mostra devidamente fundamentada a razão que levou a Mma. Juiz do tribunal a quo a absolver o arguido por aplicação do principio in dubeo pro reo;
4. A vitima descreveu os factos de forma escorreita, pese embora compreensivelmente emocionada, não havendo qualquer reparo a fazer ao seu depoimento, que foi corroborado pelo depoimento das demais testemunhas e dos demais elementos de prova, documentais e periciais;
5. O depoimento das testemunhas BB e CC forma objectivos e consonantes com a realidade, contribuindo para corroborar o depoimento da vitima, e não para suscitar a duvida no Tribunal conforme se afirma na douta sentença recorrida, sem ser avançado qualquer fundamento válido para tal;
6. O depoimento da testemunha DD foi tendencioso e pretendia a absolvição do arguido;
7. Os factos relatados por esta testemunha e pelo arguido não tem qualquer sustentação noutro elemento de prova e nunca forma alegados ao longo processo;
8. Os factos constantes do relatório do exame pericial estão subtraídos á livre apreciação do julgador e por isso, a Mma. Juiz do Tribunal a quo não podia desvalorizar a referida perícia, sendo premente que se considere provado o facto 16, dos factos não provados;
9. O arguido não alegou qualquer dificuldade na sua defesa, tendo identificado todos os factos descritos na acusação, pelo que não se compreende a razão de ser de tal questão ser levantada na fundamentação da matéria de facto da douta sentença recorrida;
10. Não existe qualquer duvida acerca dos factos descritos na acusação, pois que a postura agressiva, altiva e desafiadora com que o arguido prestou as suas declarações retiram credibilidade às mesmas, o que não permite afastar a credibilidade do depoimento da vitima que vivenciou os factos, porquanto corroborado também pelo depoimento das demais testemunhas e pelos demais elementos de prova juntos aos autos.
11. Assim, e de acordo com a prova que foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugada com os demais elementos de prova documental e pericial, analisados à luz das regras da experiência comum, devem ser julgados como provados, pelo menos, os seguintes factos:
1. AA e EE, iniciaram um relacionamento em março de 2020, tendo casado civilmente no dia 25 de junho de 2020;
2. AA e EE residiam na Rua da Fonte, 31, em Sesimbra;
3. O arguido não tem antecedentes criminais;
4. Desde o início do relacionamento, que o arguido AA controlava a vida da ofendida EE, levando a que mesma se afastasse dos seus amigos, e tivesse deixado de trabalhar, para evitar conflitos entre o casal;
5. Desde data não concretamente apurada do relacionamento entre o arguido AA e a ofendida EE que aquele, sempre que era contrariado, gerava uma discussão, e agredia a ofendida EE com murros, chapadas, pontapés e empurrões e chamava-lhe “puta, porca, nojenta”;
6. Em dia não concretamente apurado do mês de maio de 2020, na sequência de uma discussão, o arguido AA desferiu uma chapada na cara da ofendida EE;
7. Em dia não concretamente apurado do mês de junho de 2020, por volta das 03,00 horas, o arguido AA viu uma chamada de um cliente do trabalho da ofendida EE no telemóvel desta, ligou de volta para o cliente a descompô-lo, e de seguida, dirigindo-se à ofendida, atirou com o telemóvel à barriga desta e disse-lhe “és uma puta, andas com todos, uma porca, uma nojenta, andas-me a fazer de otário”, cuspiu-lhe na cara e desferiu-lhe chapadas e pontapés;
8.Em data não concretamente apurada do mês de junho de 2020, por volta da hora de jantar, na sequência de mais uma discussão, o arguido AA atirou a ofendida EE para cima do sofá, colocou-se em cima dela, e de molde a imobiliza-la, colocou os joelhos em cima das costelas da ofendida EE, provocando-lhe dores, que perduraram durante alguns dias;
9. De todas as agressões acima referidas a ofendida EE nunca recebeu tratamento médico;
10. Em dia não concretamente apurado, mas no mês de julho ou agosto de 2020 o arguido AA pegou em € 400,00 que a ofendida EE tinha guardado para tirar um curso de unhas, e adquiriu uma arma pois dizia que andava com problemas com o pessoal a quem comprava droga, e precisava dela para se defender;
11. Em data não concretamente apurada mas posterior à data da aquisição da arma por parte do arguido AA, na sequência de uma discussão, este foi buscar a arma, apontou-a à nunca da ofendida EE, dizendo-lhe eu mato-te, sai daqui senão desgraço a minha vida e a tua”.
12. No dia 11 de abril de 2021, na sequência de saber que a ofendida EE estava grávida, o arguido AA ligou à mãe daquela dizendo-lhe “venha buscar a sua filha antes que eu lhe corte o pescoço”, tendo posto a ofendida EE fora de casa;
13. O arguido AA e a ofendida EEestiveram separados cerca de 2 ou 3 meses, tendo reatado a relação em junho ou julho de 2021;
14. Após o reatar da relação, no dia 28 de agosto de 2021, por causa de ciúmes, o arguido AA disse à ofendida que “enquanto estiveram separados ela tinha andado com meia Sesimbra”, “que era uma puta, uma oferecida, uma nojenta, que andava com conversas porcas na net com os gajos”, tendo a ofendida EE respondido que, se fosse necessário ia confrontar as pessoas com quem o arguido AA disse que tinha andado para ver se era verdade;
15. Descontente com a resposta dada pela ofendida EE, o arguido AA agarrou numa faca encostou-a ao pescoço da ofendida EE e disse-lhe “não faças isso senão mato-te a ti e aos gajos em questão”;
16. De molde a afastar o arguido AA de si, a ofendida EE colocou a mão no peito do arguido, e ato contínuo, aquele foi buscar uma chave de fendas e disse-lhe “sai daqui senão eu furo-te toda, eu mato-te”, ao mesmo tempo que a empurrava, levando a que a ofendida EE se desequilibrasse e caísse ao chão;
17. Nesse mesmo dia a ofendida EE saiu de casa;
18. Como consequência direta e necessária da atuação do arguido AA resultaram para a ofendida EE lesões nas pernas e abdómen;
19. Tais lesões determinaram um período de doença fixável em 10 dias, sem afetação da capacidade de trabalho geral e 5 dias de afetação da capacidade de trabalho profissional;
20. O arguido AA quis atingir a ofendida EE, sua mulher, no corpo, bem sabendo que dessa forma causava-lhe dores e ferimentos, quis dirigir-lhe as palavras acima descritas, estando ciente que as mesmas atingiam a sua honra e consideração, e, com as ameaças que proferiu, quis causar-lhe receio pela sua vida e integridade física, limitando-lhe a sua liberdade de agir, o que conseguiu;
21. Com estas condutas que reiteradamente produziu, o arguido AA quis maltratar, torturar, humilhar, ofender e agredir a ofendida EE, sua esposa, bem sabendo que se encontrava na residência comum do casal, o que quis e conseguiu;
22. Em todas as condutas supra descritas, agiu sempre o arguido AA de forma livre, deliberada e consciente, ciente que as mesmas eram proibidas e punidas por lei penal
23. O arguido frequenta curso profissional de cabeleireiro;
24. Tem o 9º ano de escolaridade;
25. Vive com a ajuda financeira dos seus pais; Faz biscates em manutenção de jardins;
26. Tem um filho de dois anos de idade de outra relação marital, que reside com a respetiva progenitora embora o arguido seja pai presente cumprindo as responsabilidades parentais nomeadamente o regime de visitas;
27. O arguido reside sozinho em casa sita no Meco;
28. EE é mãe de FF; Que nasceu no dia 29 de outubro de 2021;
29. AA está registado como pai de FF;
30. EE trabalha em estabelecimento comercial de restauração, em Santana, Sesimbra, auferindo o ordenado mínimo nacional;
31. EE reside na casa de sua mãe com o seu filho FF, que se localiza em Sesimbra.
12. Razões pelas quais deverá a douta sentença proferida ser revogada e determinar-se a prolação de sentença devidamente fundamentada, que julgue provados os factos acima descritos e que condene o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, 4 e 5, do Código Penal.
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O recurso foi admitido.
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Não se mostra junta qualquer resposta ao recurso.
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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.
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Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.
No caso sub judice o recorrente limita o recurso às seguintes questões:-
- erro de julgamento;
- preenchimento do tipo de crime de violência doméstica, p. e p. pelo Artigo 152º, nºs 1, alínea a), e 2, 4 e 5, do Código Penal.
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Da Decisão recorrida - Factos e Motivação (transcrição)
“II – Fundamentação de Facto.
A) Factos Provados
Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. AA e EE, iniciaram um relacionamento em março de 2020, tendo casado civilmente no dia 25 de junho de 2020;
2. AA e EE residiam na Rua ….;
3. O arguido não tem antecedentes criminais;
4. O arguido frequenta curso profissional de cabeleireiro;
5. Tem o 9º ano de escolaridade;
6. Vive com a ajuda financeira dos seus pais;
7. Faz biscates em manutenção de jardins;
8. Tem um filho de dois anos de idade de outra relação marital, que reside com a respetiva progenitora embora o arguido seja pai presente cumprindo as responsabilidades parentais nomeadamente o regime de visitas;
9. O arguido reside sozinho em casa sita no Meco;
10. EE é mãe de FF;
11. Que nasceu no dia 29 de outubro de 2021;
12. AA está registado como pai de FF;
13. EE trabalha em estabelecimento comercial de restauração, em …, auferindo o ordenado mínimo nacional;
14. EE reside na casa de sua mãe com o seu filho FF, que se localiza em ….
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B-) Factos Não Provados
Com interesse para a decisão da causa resultaram não provados os seguintes factos:
1. Desde o início do relacionamento, que o arguido AA controlava a vida da ofendida EE, levando a que mesma se afastasse dos seus amigos, e tivesse deixado de trabalhar, para evitar conflitos entre o casal;
2. Desde data não concretamente apurada do relacionamento entre o arguido AA e a ofendida EE que aquele, sempre que era contrariado, gerava uma discussão, e agredia a ofendida EE com murros, chapadas, pontapés e empurrões e chamava-lhe “puta, porca, nojenta”;
3. Em dia não concretamente apurado do mês de maio de 2020, na sequência de uma discussão, o arguido AA desferiu uma chapada na cara da ofendida EE;
4. Em dia não concretamente apurado do mês de junho de 2020, por volta das 03,00 horas, o arguido AA viu uma chamada de um cliente do trabalho da ofendida EE no telemóvel desta, ligou de volta para o cliente a descompô-lo, e de seguida, dirigindo-se à ofendida, atirou com o telemóvel à barriga desta e disse-lhe “és uma puta, andas com todos, uma porca, uma nojenta, andas-me a fazer de otário”, cuspiu-lhe na cara e desferiu-lhe chapadas e pontapés;
5. Em data não concretamente apurada do mês de junho de 2020, por volta da hora de jantar, na sequência de mais uma discussão, o arguido AA atirou a ofendida EE para cima do sofá, colocou-se em cima dela, e de molde a imobiliza-la, colocou os joelhos em cima das costelas da ofendida EE, provocando-lhe dores, que perduraram durante alguns dias;
6. De todas as agressões acima referidas a ofendida EE nunca recebeu tratamento médico;
7. Em dia não concretamente apurado, mas no mês de julho ou agosto de 2020 o arguido AA pegou em € 400,00 que a ofendida EE tinha guardado para tirar um curso de unhas, e adquiriu uma arma pois dizia que andava com problemas com o pessoal a quem comprava droga, e precisava dela para se defender;
8. Em data não concretamente apurada mas posterior à data da aquisição da arma por parte do arguido AA, na sequência de uma discussão, este foi buscar a arma, apontou-a à nunca da ofendida EE, dizendo-lhe eu mato-te, sai daqui senão desgraço a minha vida e a tua”.
9. No dia 11 de abril de 2021, na sequência de saber que a ofendida EE estava grávida, o arguido AA ligou à mãe daquela dizendo-lhe “venha buscar a sua filha antes que eu lhe corte o pescoço”, tendo posto a ofendida EE fora de casa;
10. O arguido AA e a ofendida EE estiveram separados cerca de 2 ou 3 meses, tendo reatado a relação em junho ou julho de 2021;
11. Após o reatar da relação, no dia 28 de agosto de 2021, por causa de ciúmes, o arguido AA disse à ofendida que “enquanto estiveram separados ela tinha andado com meia …..”, “que era uma puta, uma oferecida, uma nojenta, que andava com conversas porcas na net com os gajos”, tendo a ofendida EE respondido que, se fosse necessário ia confrontar as pessoas com quem o arguido AA disse que tinha andado para ver se era verdade;
12. Descontente com a resposta dada pela ofendida EE, o arguido AA agarrou numa faca encostou-a ao pescoço da ofendida EE e disse-lhe “não faças isso senão mato-te a ti e aos gajos em questão”;
13. De molde a afastar o arguido AA de si, a ofendida EE colocou a mão no peito do arguido, e ato contínuo, aquele foi buscar uma chave de fendas e disse-lhe “sai daqui senão eu furo-te toda, eu mato-te”, ao mesmo tempo que a empurrava, levando a que a ofendida EE se desequilibrasse e caísse ao chão;
14. Nesse mesmo dia a ofendida EE saiu de casa;
15. Como consequência direta e necessária da atuação do arguido AA resultaram para a ofendida EE lesões nas pernas e abdómen;
16. Tais lesões determinaram um período de doença fixável em 10 dias, sem afetação da capacidade de trabalho geral e 5 dias de afetação da capacidade de trabalho profissional;
17. O arguido AA quis atingir a ofendida EE, sua mulher, no corpo, bem sabendo que dessa forma causava-lhe dores e ferimentos, quis dirigir-lhe as palavras acima descritas, estando ciente que as mesmas atingiam a sua honra e consideração, e, com as ameaças que proferiu, quis causar-lhe receio pela sua vida e integridade física, limitando-lhe a sua liberdade de agir, o que conseguiu;
18. Com estas condutas que reiteradamente produziu, o arguido AA quis maltratar, torturar, humilhar, ofender e agredir a ofendida EE, sua esposa, bem sabendo que se encontrava na residência comum do casal, o que quis e conseguiu;
19. Em todas as condutas supra descritas, agiu sempre o arguido AA de forma livre, deliberada e consciente, ciente que as mesmas eram proibidas e punidas por lei penal.
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C-) Motivação da Matéria de Facto.
O Tribunal gizou a sua convicção na dúvida suscitada pela palavra de EE contra a palavra de AA, o mesmo sucedendo relativamente às respetivas mães, BB e DD.
EE e AA discutiam mutuamente por ciúmes por ambos sentidos em relação um ao outro.
AA negou os factos que o incriminam. EE confirmou os factos da acusação.
A mãe de EE ao início do seu depoimento pareceu objetiva e firme, mas depois passou a depor com subjetividade confirmando a versão da sua filha. Exemplificando, a testemunha BB ao início afirmou que a sua filha EE sempre foi muito independente e que antes de viver e casar com AA, já residia sozinha na sua própria habitação sendo certo que ambas, mãe e filha, eram nessa altura sozinhas na vida. Mas, esta testemunha, logo passou a depor em desfavor de AA, afirmando nomeadamente viu nódoas negras nos braços da sua filha sendo certo que esta factualidade não vem narrada na acusação. Na verdade, em nenhum momento escrito da acusação vêm referidas nódoas negras (ou expressão equipada) nos braços.
A testemunha CC que foi e é patroa de EE, no estabelecimento comercial de restauração não presenciou agressões físicas nem verbais, e nunca acompanhou EE à farmácia, ao centro de saúde ou ao hospital na sequência de condutas praticadas pelo arguido.
A mãe do arguido revelou-se sempre firme no seu depoimento, mas subjetiva a favor do seu filho. Apenas confirmou com objetividade que viu os dois, por várias vezes, a discutir por ciúmes mútuos. E contribuiu para suscitar a dúvida sobre o depoimento de EE ao afirmar que o casal não se respeitava um ao outro e que ofendida, no dia 28.08.2021., destruiu a mobília e a televisão da residência de ambos, e bem assim a roupa do arguido que foi cortada por ela.
Da prova documental clínica de fls. 6, 54 e 55 deriva que a ida ao hospital de EE, no referido dia 28.01.2021., em episódio de obstétrica.
Todavia é relatado pela médica que a observou, abdómen sem sinais de agressão.
No exame pericial realizado a 07.09.2021., muito próximo da alegada agressão de 28.01.2022., vêm descritas lesões joelhos relacionadas com o evento, mas na acusação não se mencionam lesões nos joelhos. Pelo que a perícia não relevou.
A faca não foi apreendida e examinada ao e no presente procedimento criminal.
Por diga-se que em muitos dos factos descritos na acusação não vem indicado o dia e a hora da sua verificação, vem escrito por exemplo “Em dia não concretamente apurado do mês de junho de 2020(…)”, o que impede uma cabal defesa do arguido.
Os factos provados foram confirmados por EE e AA, e o casamento resulta dos respetivos assentos de nascimento.
Teve em consideração o certificado de registo criminal do arguido.
As declarações de EE constituíram o meio de prova das suas condições pessoais, familiares, profissionais e económicas.
As declarações de AA constituíram o meio de prova das suas condições pessoais, familiares, profissionais e económicas.
Por fim, teve-se em conta a certidão de nascimento de FF. “
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Apreciando
- Do erro de julgamento
A pretensão do recorrente dirige-se à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, sustentando ter o arguido sido incorretamente absolvido por não terem sido devidamente valorados meios de prova produzidos em audiência de julgamento.
Nesta decorrência, alega o recorrente nas conclusões 2 a 11:
“2. A matéria de facto encontra-se deficiente e insuficientemente fundamentada e padece de erro na apreciação da prova;
3. Não se mostra devidamente fundamentada a razão que levou a Mma. Juiz do tribunal a quo a absolver o arguido por aplicação do principio in dubio pro reo;
4. A vÍtima descreveu os factos de forma escorreita, pese embora compreensivelmente emocionada, não havendo qualquer reparo a fazer ao seu depoimento, que foi corroborado pelo depoimento das demais testemunhas e dos demais elementos de prova, documentais e periciais;
5. O depoimento das testemunhas BB e CC forma objectivos e consonantes com a realidade, contribuindo para corroborar o depoimento da vítima, e não para suscitar a dúvida no Tribunal conforme se afirma na douta sentença recorrida, sem ser avançado qualquer fundamento válido para tal;
6. O depoimento da testemunha DD foi tendencioso e pretendia a absolvição do arguido;
7. Os factos relatados por esta testemunha e pelo arguido não tem qualquer sustentação noutro elemento de prova e nunca forma alegados ao longo processo;
8. Os factos constantes do relatório do exame pericial estão subtraídos á livre apreciação do julgador e por isso, a Mma. Juiz do Tribunal a quo não podia desvalorizar a referida perícia, sendo premente que se considere provado o facto 16, dos factos não provados;
9. O arguido não alegou qualquer dificuldade na sua defesa, tendo identificado todos os factos descritos na acusação, pelo que não se compreende a razão de ser de tal questão ser levantada na fundamentação da matéria de facto da douta sentença recorrida;
10. Não existe qualquer duvida acerca dos factos descritos na acusação, pois que a postura agressiva, altiva e desafiadora com que o arguido prestou as suas declarações retiram credibilidade às mesmas, o que não permite afastar a credibilidade do depoimento da vitima que vivenciou os factos, porquanto corroborado também pelo depoimento das demais testemunhas e pelos demais elementos de prova juntos aos autos.
11. Assim, e de acordo com a prova que foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugada com os demais elementos de prova documental e pericial, analisados à luz das regras da experiência comum, devem ser julgados como provados (…) “ os factos que seguidamente enumera sob os nºs 1 a 31.
Vejamos, então.
Nos termos do disposto no artigo 428.º do Código de Processo Penal, «as relações conhecem de facto e de direito».
Tal constitui uma concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto - reapreciação por um Tribunal superior das questões relativas à ilicitude e à culpabilidade.
O recurso em matéria de facto não constitui, contudo, uma reapreciação total pelo Tribunal de recurso do complexo de elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas poderá ter como objeto uma reapreciação autónoma do Tribunal de recurso sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o Recorrente considere incorretamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do Recorrente, imponham decisão diversa da recorrida ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova ( cfr. Ac. do STJ de 20.01.2010, in www.stj.pt/jurisprudência/sumáriosdeacórdãos).
O recurso da matéria de facto perante a Relação não é, assim, um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros.
A Relação não pode proceder à reapreciação das provas na exata medida em que o fez o juiz de julgamento porque não se encontra na mesma posição perante as provas – não dispõe de uma imediação total (embora tenha uma imediação parcial: relativamente a provas reais e à componente voz da prova pessoal) e não tem a possibilidade de interagir com a prova pessoal, estando impedida de intervir na orientação da produção da prova e de questionar diretamente. Também o objeto do recurso não coincide com o objeto da decisão do tribunal de julgamento (este decide sobre a acusação, aquele decide sobre a sentença).
Há, por tudo, que reconhecer a existência de uma impressão causada no julgador, pelo prestador da prova oral, que só a imediação, em primeira instância, possibilita ao nível mais elevado. E tem de aceitar-se que, no modelo de recurso plasmado no Código de Processo Penal e numa interpretação conforme à Constituição, existirá sempre uma margem de insindicabilidade da decisão do juiz de primeira instância sobre a matéria de facto.
Regressando à concreta matéria objeto de apreciação, dir-se-á, desde já, que do confronto das razões do recurso com a sentença, resulta que a sentença, num exame crítico de prova bastante cuidado, dá resposta às objeções suscitadas no recurso.
Com efeito, em julgamento foram efetivamente apresentadas duas versões dos factos integrantes do crime imputado – a do arguido e a da ofendida.
Estas versões foram antagónicas ou opostas quanto aos factos essenciais (ou seja, quanto aos pontos impugnados em recurso), coincidindo já quanto a factos circunstanciais. E de tudo se dá conta detalhadamente, repete-se, no exame crítico das provas, para o qual se remete.
A problematização da oposição de versões ali tratada ocorre frequentemente em casos de criminalidade como a presente. E da constatação desta circunstância não derivam, nem regras especiais de valoração de prova que conduzam a uma sobreavaliação injustificada do depoimento da vítima (ou das “suas” testemunhas) por contraposição a uma negação dos factos pelo arguido, nem uma impossibilidade de realização da prova da acusação.
Inexistem regras processuais penais especiais que confiram, só por isso e por si só, um “estatuto” especial às declarações da vítima, como regras que imponham que estas declarações tenham de ser corroboradas sob pena de nada valerem, sendo certo que no confronto de prova oral de sinal contrário – como sucede com as declarações do arguido versus as declarações da vítima –, o tribunal não fica desobrigado de justificar a maior credibilidade que estas tenham eventualmente merecido, em detrimento daquelas. Sob pena de, não o logrando, dever fazer operar o princípio do in dubio pro reo, como ocorreu no caso sub judice.
As declarações de arguido e as declarações de ofendido são, pois, valoradas segundo o princípio da livre apreciação da prova que significa ausência de critérios legais pré-fixados e, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, p. 202-3), não podendo tratar-se de uma convicção puramente subjetiva ou emocional, curando-se sempre de uma convicção pessoal, mas necessariamente objetivável e motivável.
Do princípio do in dubio pro reo decorrerá, por último, que ao arguido basta fragilizar a um certo nível a prova da acusação, já que, no enfoque probatório, acusação e defesa não se encontram em situação de igualdade. Inexiste repartição de ónus de prova em processo penal.
No caso sub judice não é visível que o julgador se tenha afastado do cumprimento de qualquer regra e princípio de prova enunciados, particularmente dos relativos à apreciação, e que tenha sido atribuído aqui um peso incompreensivelmente diminuído à negação do arguido.
Da sentença resulta que o tribunal se deparou, efetivamente, com provas de sinal contrário e abstratamente de igual peso probatório, tendo o sentido das declarações do arguido e do depoimento da ofendida sido corretamente apreendido pelo Tribunal.
Como já supra dito, o recorrente, como questão central do presente recurso, não põe em causa a prova admitida e valorada pelo tribunal ou a sua fiabilidade, nem invocando, a seu favor, qualquer outro meio de prova que contrarie aqueles que foram considerados na decisão recorrida.
Fundamenta a sua pretensão apenas no facto de a prova produzida não ser suficiente para alicerçar a decisão proferida.
Tal impugnação é feita, antes de mais, através do isolamento de cada um dos indícios.
Depois de isolados e separados, o recorrente formula um juízo de debilidade quanto a alguns, apontando um ou outro contra-argumento às ilações extraídas pelo tribunal.
Esse procedimento não é, a nosso ver, justificado porquanto a força probatória dos meios de provas resulta precisamente da sua independência, concordância e pluralidade.
Por isso, mesmo a debilidade da força probatória de alguns dos elementos de prova não tem a consequência pretendida pelo recorrente. Cada um desses elementos não pode ser separado do conjunto em que se insere e ser valorado autonomamente.
Como resulta da motivação da decisão de facto não há dúvida que o Tribunal atendeu quer às declarações do arguido, quer ao depoimento da ofendida e das diversas testemunhas, quer a prova documental inserta nos autos, explicitando de uma forma coerente, convincente e lógica, o entendimento e a convicção com que ficou sobre as mesmas.
A divergência do recorrente assenta precisamente nesta circunstância, já que no seu entender a convicção formada sobre a prova, não pode ser suficiente para que o Tribunal conclua pela prova dos factos assentes como provados e não provados na sentença e conclua pela absolvição do arguido.
Como é sabido em processo penal vigora o princípio da livre apreciação da prova inserto no art. 127º, do CPP, segundo o qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, que não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, mas tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Não há dúvida que a livre apreciação da prova não consiste na afirmação do livre arbítrio, já que também está vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório.
A liberdade que aqui importa é a liberdade para a objetividade, aquela que se concede e que assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjetividade e que se comunique e que se imponha aos outros. Isto significa, por um lado que, que a exigência de objetividade é ela própria um princípio de direito, ainda que no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objetiva.
E, atentando na apreciação da prova no caso sub judice, o que se constata é que o tribunal fundamentou esclarecidamente a valoração que fez da prova produzida em audiência, como claramente resulta da pormenorizada e crítica motivação da decisão de facto.
Ora, quando a atribuição ou não da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum. Não se trata, na instância de recurso, de encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só de verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos.
“A convicção do tribunal é construída dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos» (cfr. Ac. STJ de 20SET05, in www.dgsi.pt)
Aplicando esta doutrina ao caso dos autos, conclui-se que o Tribunal “a quo”, tal como resulta da motivação da decisão de facto, não atendeu a prova proibida por lei (art. 125º, do CPP), mas, pelo contrário, todas as provas apresentadas foram objeto de apreciação segundo as regras da experiência comum e da sua convicção (art. 127º, do CPP), não resultando qualquer apreciação arbitrária, procedendo à análise crítica da prova (art. 374º, nº2, do CPP). Aí se referem quais de entre as várias provas produzidas aquelas que serviram para a formação da convicção do tribunal, com uma fundamentação convincente, em que é feita a análise crítica das provas atendidas.
Assim, reexaminada a prova em que o Tribunal “a quo” se baseou para dar como assente a matéria de facto, não há qualquer razão para este Tribunal de recurso alterar a matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida, nem se mostra violado o princípio da livre apreciação da prova, inserto no art. 127º, do CPP.
Com efeito, a prova produzida consente as ilações retiradas pelo tribunal e as regras da experiência não a contradizem.
Assim, dada a dependência, concordância e pluralidade dos meios de prova e a sua força probatória, que assenta em “máximas de experiência” fundadas e que não foi contrariada pela argumentação do recorrente, não pode deixar de improceder o recurso neste particular.
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- Do alegado preenchimento do tipo de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a), 2, 4 e 5, do Código Penal.
De acordo com o art.º 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, «Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex cônjuge; (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.».
O n.º 2 seguinte refere «No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.».
O bem jurídico tutelado por esta incriminação é plural e complexo, visando essencialmente a defesa da integridade pessoal (física e psicológica) e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.
“ (…) o interesse comunitário tutelado pela norma é a dignidade e a integridade das pessoas na sua veste de participantes numa realidade familiar, nas suas dimensões de saúde física, psíquica, mental e emocional. (...) o bem jurídico protegido vai para além da mera tutela da integridade física, restringida esta ao seu núcleo essencial, abrangendo, sim, a saúde nas suas vertentes física, psíquica, mental, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da integridade pessoal.” (cfr. Ricardo Jorge Bragança de Matos in Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo na tutela da vítima, Revista do Ministério Público, ano 27, n.º 107, p. 102-103).
Quanto aos elementos típicos da incriminação, refere-se que para a prática do crime de violência doméstica, exige-se uma especial relação entre o agente e o ofendido ou uma especial qualidade deste. Assim, tal crime apenas se verifica se a vítima for “cônjuge ou ex-cônjuge (do agente); pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou, pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;”.
A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”, mas também ofensas verbais ou insultos, a indiferença constante, a desconsideração pessoal, o vexame.
Contudo, para a densificação do conceito de mau trato não basta que o agente pratique uma destas condutas. Exige-se que todas estas ações ou omissões sejam particularmente graves, quer porque constantes ou reiteradas, traduzindo um padrão comportamental, quer porque particularmente intensas ou desvaliosas, prescindindo-se então dessa reiteração.
“O tipo legal do artigo 152.º do Código Penal, que cobre acções típicas semelhantes àquelas que se achavam já prevenidas noutros tipos legais (…), não pode ser visto como reconduzindo-se à punição de um qualquer somatório de comportamentos deste tipo ocorridos entre pessoas que, a ligá-las, tenham ou tenham tido, uma qualquer relação de proximidade familiar ou afectiva; o seu fundamento deve ser encontrado na protecção de quem, no âmbito de uma concreta relação interpessoal – conjugal ou não – vê a sua integridade pessoal, liberdade e segurança, ameaçadas com tais condutas. (…) Assim este tipo legal previne e pune condutas perpetradas por quem afirme ou atue dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação. Este é, segundo cremos, o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual. (…) Daqui sobressai o que cremos essencial para a caracterização do crime de violência doméstica, que se evidencia na sua génese e evolução: a existência de uma vítima e de um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela.”.
«I - O preenchimento do tipo legal de violência doméstica exige uma relação de proximidade afectiva entre o agente e a vítima, mormente análoga à da conjugalidade, actual ou entretanto terminada, e falando a norma em maus tratos físicos ou psíquicos, castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais. II - Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano. III - O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc. IV - Uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela. V – Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo. VI – No crime de violência doméstica, o conceito de maus tratos, de que fala a norma, exige o desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e a gravidade destas manifestações.» /cfr, Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 02/11/2015 e 17/01/2018, in www.dgsi.pt).
Ora, revertendo ao caso concreto e recordando a factualidade apurada, constata-se a inexistência de factos provados que consubstanciem o preenchimento dos elemento objetivo e subjetivo do tipo de crime de violência doméstica.
Com efeito, não resultaram provadas condutas do arguido, no contexto descrito, que atinjam o patamar do mau trato físico ou psíquico pressuposto pela violência doméstica.
Termos em que, também neste particular improcede a pretensão do recorrente.
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Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- negar provimento ao recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
- Sem custas, por o recorrente delas estar isento.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 13 de setembro de 2022
Laura Goulart Maurício
Maria Filomena Soares
J.F. Moreira das Neves