NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
NOTIFICAÇÃO DA ACUSAÇÃO
Sumário

I. O Código de Processo Penal prevê que final do inquérito o Ministério Público notifique a sua decisão, de acusação ou de arquivamento, aos envolvidos (artigo 277.º, n.º 3, 283.º, n.º 5, 284.º e 285.º).
II. O processo só prosseguirá para a fase seguinte – de julgamento – se “os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes” (283.º, n.º 5).
II. Inexistindo notificação da acusação e sendo vício de conhecimento oficioso deve o Tribunal devolver os autos ao Ministério Público para cumprir a função que legalmente lhe compete, não os recebendo enquanto a notificação da acusação se não mostre devidamente efectuada e decorrido o prazo para requerer a instrução, sem prejuízo da efetiva ocorrência de situação enquadrável na segunda parte do n.º 5 do artigo 283.º do Código de Processo Penal.

Texto Integral


Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nos autos de Inquérito supra numerados que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Évora – Évora, Unidade Central Criminal (Local) – em que é arguido AA, a Mmª Juíza do Tribunal considerando que o arguido não se mostrava regularmente notificado da acusação pública, determinou a devolução dos autos ao Ministério Público uma vez que os mesmos foram prematuramente remetidos à distribuição, ordenando a baixa estatística do processo.


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Inconformado o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido interpôs recurso do despacho, com as seguintes conclusões:

1.º- Nos presentes autos de processo comum perante o Tribunal Singular, o Ministério Público acusou os arguidos AA e BB, imputando-lhes a coautoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º; 144.º n.º 1, a) e 145.º, n.º 1, c) por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2 do Código Penal.
2.º- Remetidos os autos à Distribuição na sequência do determinado no despacho final de encerramento de inquérito, último parágrafo, foi proferido o despacho recorrido em 06.01.2022, com a referência 31243157, constante de fls. 259 a 260, onde não foi recebida a acusação pública porquanto se considerou que o arguido Pedro Filipe Calvino Tavares não foi devidamente notificado da acusação pública proferida e determinou a devolução dos autos ao Ministério Público por considerar que os mesmos foram prematuramente remetidos à distribuição.
3.º- Analisado o douto despacho recorrido verifica-se que existem três segmentos decisórios:
- A notificação do libelo acusatório foi dirigida para a morada …. Luxemburgo – pelo que, desde logo, o tribunal considerou que está incorreta.
- O meio utilizado – carta registada com aviso de receção – não é admissível in casu – art.º 283.º n.ºs 5 e 6 e art.º 113.º n.º 1 alínea c) e n.º 10, ambos do Código de Processo Penal, porquanto o arguido prestou TIR e residindo o arguido em país estrangeiro, a sua notificação deveria ter sido solicitada às autoridades luxemburguesas através do envio de carta rogatória;
- Concluiu que a consequência era a devolução dos autos ao Ministério Público uma vez que os mesmos foram prematuramente remetidos à distribuição, devendo dar-se a competente baixa estatística do processo.
4.º- O arguido prestou TIR nos autos (atual fls. 142), onde indicou uma morada em solo nacional. Posteriormente, por requerimento apresentado pelo seu Ilustre Mandatário, comunicou aos autos a sua alteração da morada (requerimento de fls. 180, retificado a fls. 181), indicando nova morada situada no Grão-Ducado do Luxemburgo.
5.º- No que respeita à descrição da morada feita constar na carta, a referência a … (ou, aquela por lapso, a …) diz respeito ao código postal daquela cidade …, pelo que estando devidamente identificada a rua, a porta e a cidade (localidade), tratou-se de lapso manifesto e inócuo, que não impediu a concretização e entrega da correspondência postal.
6.º- Pelo exposto, cumpre concluir que a notificação foi remetida para a morada indicada pelo arguido nos autos.
7.º- Acresce que não era obrigatório realizar a notificação da acusação pública mediante carta rogatória.
8.º- Tratando-se de morada no Grão-Ducado do Luxemburgo, é aplicável o regime da Convenção relativa ao auxílio penal mútuo em matéria penal entre os Estados Membros da EU de 29.05.2000, que vincula a República Portuguesa e o Grão-Ducado do Luxemburgo.
9.º- Assim, no que respeita à forma de notificação do arguido, entendemos ser de aplicar, no caso concreto, o regime previsto no artigo 5.º, n.º 1 da Convenção relativa ao auxílio penal mútuo em matéria penal entre os Estados Membros da EU de 29.05.2000, que estatui que a notificação deve ser realizada por correio para a morada (a constante do TIR nos termos em que foi efetuada).
10.º- Aquela convenção prevê normas específicas quanto ao arguido noutros artigos e no artigo 5.º não faz qualquer distinção quanto ao arguido, pelo que cumpre concluir que era admissível a notificação através de carta registada com aviso de receção.
Sem prescindir,
11.º- Ainda que se viesse a concluir nesta fase que a notificação do despacho de acusação ao arguido sofria de alguma irregularidade, não podia o Juiz de Julgamento devolver os autos ao Ministério Público (MP) e definir os termos em que o MP deve atuar e concretizar a notificação.
12.º- Desta forma, no caso de o Juiz de Julgamento considerar que existe uma irregularidade, designadamente relacionada com alguma notificação da acusação, o artigo 123.º, n.º 2, do CPP e o princípio da autonomia do Ministério Público impõem que seja reparada oficiosamente pela autoridade judiciária que declarar a verificação da irregularidade e a necessidade da sua reparação.
13.º- Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 123.º, n.º 2, 283.º n.ºs 5 e 6, 113.º n.º 1 alínea b) e n.º 10, e 111.º, n.º 3, al. b), todos do CPP, e artigo 5.º, n.º 1 da Convenção relativa ao auxílio penal mútuo em matéria penal entre os Estados Membros da EU de 29.05.2000.
14.º- Em face ao exposto deverá o presente recurso ser julgado procedente, devendo Vªs. Exªs. revogar o despacho recorrido e determinar a sua substituição por outro que receba a acusação pública e considere o arguido regularmente notificado.
15.º- Caso o Tribunal ad quem decida no sentido de existir irregularidade, que que julgue parcialmente procedente o recurso e revogue a decisão recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que ordene aos próprios serviços do Juízo Local Criminal a reparação da irregularidade em causa.

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Não houve resposta.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1.1 - São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo os que constam do relatório que antecede, bem como o teor do despacho recorrido, como segue:

«Compulsados os autos verifico que o arguido AA prestou TIR a fls. 117 e, posteriormente, por requerimento apresentado pelo seu Ilustre Mandatário, comunicou aos autos a sua alteração da morada (requerimento de fls. 180, rectificado a fls. 181).
À data da prolação do despacho de acusação a morada do arguido AA era: …. Luxembourg.
A notificação do libelo acusatório dirigida a este arguido foi endereçada para a seguinte morada: …. Luxemburgo – pelo que, desde logo, refira-se que a morada utilizada para a concretização da notificação em causa está incorrecta.
O meio utilizado – carta registada com aviso de recepção – não é admissível in casu – art.º 283.º n.ºs 5 e 6 e art.º 113.º n.º 1 alínea c) e n.º 10, ambos do Código de Processo Penal, porquanto o arguido prestou TIR – pelo que o meio utilizado deveria ter sido a via postal simples.
Mas, residindo o arguido em país estrangeiro, a sua notificação deveria ter sido solicitada às autoridades luxemburguesas através do envio de carta rogatória (art.º 111.º n.º 3 alínea b) do diploma em referência), sendo inaplicável o regime válido para a via postal simples: isto porque, para além de estar “em causa o respeito pela soberania do Estado onde a notificação se deve efectuar” - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 30.06.2021 no P.º n.º 343/19.9JALRA-A.C1, disponível para consulta in www.dgsi.pt., o distribuidor postal luxemburguês não tem as obrigações que impendem sobre o distribuidor postal português – que, em caso de uso da via postal simples deposita a carta na caixa de correio do notificando, lavra uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, enviando-a na sequência e de imediato ao serviço ou ao Tribunal remetente – lavrando nota do incidente caso se revele impossível proceder ao depósito da carta na caixa de correio.
Assim, levando em conta os factos ora referidos considero terem sido violadas as regras previstas nos n.º 3 do art.º 277.º e n.º 5 do art.º 283.º, ambos do Código de Processo Penal – com efeito, o arguido AA não se mostra regularmente notificado da acusação pública.
Em face do exposto, determino a devolução dos autos ao Ministério Público uma vez que os mesmos foram prematuramente remetidos à distribuição, devendo dar-se a competente baixa estatística do processo».

***

Cumpre conhecer.

B.2.1 – O objecto do presente recurso é de simples formulação. A questão a apreciar nesta decisão, em função das conclusões de recurso, é a de saber se o tribunal recorrido podia considerar a eventual invalidade processual praticada nos autos por ausência de notificação da acusação ao arguido.

Por isso que sigamos aqui o nosso relato no acórdão desta Relação de de 08 de Abril de 2014 (proc. 650/12.2PBFAR-A.E1), no qual se sumariou:

(…)
III - Se a acusação não se pode considerar validamente efectuada, estamos face a uma irregularidade de conhecimento oficioso, que o juiz de julgamento deve conhecer no momento do cumprimento do art. 311.º do Código, na vertente de saneamento do processo.
IV - Não é indiferente a fase do processo em que o arguido é notificado da acusação, nem a entidade que procede a essa notificação.
V - A jurisprudência também tem uma função de “deterrence example” ou efeito dissuasor sobre condutas processuais inadequadas.

E aí se constatou que a jurisprudência maioritária vai no sentido de qualificar a dita invalidade como uma irregularidade de conhecimento oficioso, afastando de há muito a tese da nulidade insanável.

Como o vício processual não só tem importantes reflexos processuais e substantivos como, em si, pode não ter cumprido a função comunicacional que lhe é própria (dar conhecimento de factos e normas), temos que estar seguros de que o arguido teve conhecimento desses factos.

Também se não suscitam dúvidas sobre o saber se o juiz pode conhecer de tal vício neste momento processual, no âmbito do artigo 311º do Código de Processo Penal.

Mas se assim é, a jurisprudência divide-se quanto a quem deve sanar tal irregularidade. Ou seja, as divergências surgem na definição de quem deve supri-la. - Num simples bosquejo histórico, os acórdãos do TRL de 14-11-1990 (Nunes Ricardo, proc. 0263233) e de 27-01-1998 (Granja da Fonseca, proc. 0054405), do TRP de 10-12-2003 (Agostinho Freitas, proc. 0343640) e de 20-02-2008 (Maria Elisa Marques, proc. 0840059).

Constatemos que o juiz de julgamento está impedido de se pronunciar quanto à acusação, por mera decorrência do princípio do acusatório.

Mas no caso concreto não é isso que está em causa. Ninguém discute o conteúdo da acusação. Ninguém pretende dar - nem dá - ordens ao Ministério Público. O que se discute é saber se o Ministério Público notificou o conteúdo da acusação ao arguido. Tão só!

E para isso também serve o artigo 311º do Código de Processo Penal na sua vertente de saneamento do processo. Porque o artigo não limita o seu papel ao possível controlo dos defeitos manifestos da acusação em termos substanciais, nem ao conhecimento de uma precisa questão processual - a al. b) do n. 2 – também, e com prioridade, a conhecer das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e que possa desde logo conhecer.

E a inexistência de notificação da acusação é uma questão prévia que obsta a conhecer de mérito e que o juiz está legitimado a conhecer no momento do artigo 311º do Código de Processo Penal.

E, vendo o juiz que a notificação da acusação não existe na forma exigida por lei, tem que constatar um vício processual de grande relevo, na medida em que essa notificação é uma exigência processual com bastos aspectos substantivos. Esse vício processual tem importantes reflexos substantivos – não é uma mera questão processual – já que briga com o direito a conhecer os factos de que se é acusado, a saber qual o objecto do processo e o âmbito do julgamento a que poderá ser-se submetido.


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B.2.2 – Logo, a questão central coloca-se no saber se a notificação da acusação foi realmente efectivada pelo Ministério Público em termos juridicamente aceitáveis já que não se pode falar da sua inexistência física: o Ministério Público, de facto, enviou carta ao arguido. E enviou-a para a morada certa, mas com lapso de escrita, a que constava, após ser lavrado o TIR adequando, de carta enviada aos autos pelo próprio arguido, através de requerimento apresentado pelo seu Ilustre Mandatário, no qual se comunicava aos autos a sua alteração da morada.

A Mmª Juíza não aceitou esta notificação através de um argumento formal pois que, «residindo o arguido em país estrangeiro, a sua notificação deveria ter sido solicitada às autoridades luxemburguesas através do envio de carta rogatória (art.º 111.º n.º 3 alínea b) do diploma em referência), sendo inaplicável o regime válido para a via postal simples: isto porque, para além de estar “em causa o respeito pela soberania do Estado onde a notificação se deve efectuar”, o distribuidor postal luxemburguês não tem as obrigações que impendem sobre o distribuidor postal português – que, em caso de uso da via postal simples deposita a carta na caixa de correio do notificando, lavra uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, enviando-a na sequência e de imediato ao serviço ou ao Tribunal remetente – lavrando nota do incidente caso se revele impossível proceder ao depósito da carta na caixa de correio».

Chamar-lhe “argumento formal” não é diminuir a sua relevância, é apenas constatar que há uma forma de notificação prevista pelo C.P.P. português e tudo está em saber se tal “forma” pode ser dispensada por um tribunal.

Como refere o tribunal recorrido dispõe o nº 6 do artigo 283.º do diploma que (6) «As comunicações a que se refere o número anterior efectuam-se mediante contacto pessoal ou por via postal registada, excepto se o arguido e o assistente tiverem indicado a sua residência ou domicílio profissional à autoridade policial ou judiciária que elaborar o auto de notícia ou que os ouvir no inquérito ou na instrução, caso em que são notificados mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º».

A remissão para a al. c) do nº 1 do artigo 113º do C.P.P. permite-nos concluir que neste caso “expressamente previsto” a notificação da acusação se faz por “Via postal simples, por meio de carta ou aviso, (…)

E, até aqui, tudo nos permitiria concluir que uma simples carta ou aviso seriam suficientes para que a acusação se considerasse regularmente notificada.

O busílis surge-nos com o nº 3 do artigo 113º do C.P.P. quando este diploma exige que «Quando efectuadas por via postal simples, (…) o distribuidor do serviço postal deposita a carta na caixa de correio do notificando, lavra uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente, considerando-se a notificação efectuada no 5.º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal, cominação esta que deverá constar do acto de notificação”.

Se é certo que o legislador português pode fazer esta exigência aos correios nacionais, mais certo é que o não pode exigir a qualquer outro serviço europeu, mesmo que alguns destes sejam sabidamente mais competentes.

E se esta exigência da lei nacional não pode ser imposta a serviços de correio de outros Estados membros, o Digno recorrente tem razão quando faz apelo à Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros da União Europeia, concluída em Bruxelas em 29/05/2000, e com início de vigência em Portugal em 23/08/2005 (https://files.dre.pt/1s/2001/10/240a00/65326545.pdf), já que se trata de norma convencional relevante para o caso concreto.

Do seu articulado e Protocolo que se lhe seguiu em 2001 apenas nos interessam os nsº 1 e 2 do artigo 5º da Convenção, com este texto:


Artigo 5º
Envio e notificação de peças processuais
1 — Cada Estado membro enviará directamente pelo correio às pessoas que se encontrem no território de outro Estado membro as peças processuais que lhes sejam destinadas.
2 — As peças processuais só poderão ser enviadas por intermédio das autoridades competentes do Estado membro requerido, se:
a) O endereço da pessoa a que se destinam for desconhecido ou incerto; ou
b) A legislação processual aplicável do Estado membro requerente exigir uma prova, diferente da que pode ser obtida por via postal, de que o acto foi notificado ao respectivo destinatário; ou
c) Não tiver sido possível enviar a peça processual pelo correio; ou
d) O Estado membro requerente tiver motivos fundamentados para considerar que o envio pelo correio será ineficaz ou inadequado.

A sua interpretação é clara e ajudada pelo «Relatório Explicativo sobre a Convenção, de 29 de Maio de 2000, relativa ao auxílio judiciário mutuo em matéria penal entre os Estados-Membros da União Europeia (Texto aprovado pelo Conselho em 30 de Novembro de 2000) - (2000/C 379/02)». - https://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2000:379:0007:0029:PT:PDF

Quanto ao indicado artigo 5º da Convenção afirma o Relatório Explicativo:


«Envio e notificação de peças processuais
O objectivo deste artigo é assegurar que as peças processuais sejam enviadas e notificadas o mais rapidamente possível por um Estado-Membro, quando o destinatário se encontre no território de outro Estado-Membro. (…)
O nº 1 determina a regra geral, segundo a qual as peças processuais relativas a um processo penal a ser enviadas por um Estado-Membro a pessoas que se encontrem no território lhes devem ser directamente enviadas. (…)
A regra passa, portanto, a ser a do envio por correio. As exceções à via postal para o envio de peças processuais constam do no nº 2. Quando essas excepções sejam aplicáveis, poderão ser enviadas por intermédio das autoridades competentes de outro Estado-Membro, para posterior entrega ao respectivo destinatário. Essas excepções dizem respeito a casos em que o envio pelo correio não é possível ou adequado» (…).

Tudo está, pois, em saber se o caso dos autos cabe ou na al. b) ou na al. d) do nº 2 do artigo 5º da Convenção como excepção à regra geral de envio preferencial pelo correio da notificação da acusação.

E se é certo que podemos afirmar que Portugal como Estado membro requerente não exige «uma prova, diferente da que pode ser obtida por via postal», também é certo que nos termos da Convenção não pode impor a cada um dos serviços postais europeus a forma de actuação exigida pelo nº 3 do artigo 113º do C.P.P.!

O que nos abriga a concluir que a al. d) do nº 2 do artigo 5º da Convenção é a aplicável ao caso dos autos pois que há «motivos fundamentados para considerar que o envio pelo correio será ineficaz ou inadequado« por não permitir garantir que todos e cada um dos Estados membros da Convenção garantam, sem mais, que a notificação é efectuada nos termos ali indicados.

Ou seja, «as peças processuais só poderão ser enviadas por intermédio das autoridades competentes do Estado membro requerido» pois que só desta forma se garante a prova de notificação do arguido nos termos exigidos pela lei nacional.

Em suma, é exigível que a notificação se faça por carta rogatória.


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B.2.3 – Quanto ao saber quem deve fazer tal notificação mantemos o já por nós decidido no acórdão desta Relação de 08 de Abril de 2014 (proc. 650/12.2PBFAR-A.E1), cujo sumário se indicou supra.

Seguindo a mesma fundamentação, iniciamos com a formulação da mesma questão: deve o tribunal suprir tal irregularidade?

Comecemos por recordar que o actual Código de Processo Penal português se perfila como um processo de “máxima acusatoriedade … compatível com a manutenção, na instrução e em julgamento, de um princípio de investigação judicial”, tal como afirmado pelo Prof. Figueiredo Dias em nome da Comissão de Reforma do Código de Processo Penal. - “Grandes princípios orientadores da elaboração do projecto de Código de Processo Penal”, 1984, in “Jornadas de Processo Penal” – Revista do MP, Cadernos 2 – pag. 330.

Ora, os pilares do acusatório – e não olvidemos que tem dimensão constitucional - são as suas vertentes orgânica e material, que têm que enquadrar a solução do caso em apreço.

A dimensão orgânico-subjectiva do princípio do acusatório implica a nítida separação entre entidade acusadora e juiz de julgamento (ou de instrução, que ao caso não interessa). A dimensão material daquele princípio implica a distinção entre fases do processo (no caso, acusação e julgamento). - “Constituição da República Portuguesa Anotada – Gomes Canotilho e Vital Moreira, Coimbra Editora, 1993, pag. 206.

É assim que o Código de Processo Penal vem a estabelecer, de forma clara, o papel do Ministério Público, enquanto entidade dominus do inquérito, quanto à promoção do processo e à dedução da acusação nos artigos 48º a 53º do Código de Processo Penal.

Ou seja, pretendeu-se que a magistratura do Ministério Público se assumisse como uma magistratura autónoma - E não “independente” como, certamente por lapso ou entusiasmo retórico, afirmam os acórdãos do TRL de 26-02-2013 e 21-11-2013, se bem recordarmos o artigo 219º, n. 2 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 2º, n. 1 da Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro. e com plenos poderes no âmbito de um processo penal completamente renovado que o exigia.

E um processo penal que – porque acusatório – faria esquecer o antecedente (inquisitório, de má memória) com os apêndices orgânicos e materiais consequentes, designadamente o ter sido o Ministério Público uma magistratura vestibular e o ter que aceder às ordens dadas pelos juízes em circunstâncias determinadas – ver o artigo 351º do Código de Processo Penal de 1929. - “Se o juiz entender que se provam factos, diversos dos apontados pelo Ministério Público, … assim o declarará em despacho fundamentado, ordenando que o processo lhe volte com vista para poder deduzir acusação”.

Na vertente material, pois que a acusação é peça essencial do processo correspondente ao final da fase de inquérito e antes da remessa a tribunal. Na sua vertente orgânica porque da competência do Ministério Público a dedução da acusação.

Daí que o Código de Processo Penal preveja para o final do inquérito, seja qual for a decisão do Ministério Público, que este deva notificá-la. Seja o arquivamento (artigo 277º, n. 3), seja pela dedução da acusação (arts. 283º, n. 5), seja pela existência de assistente (artigo 284º) seja pela necessidade de existência de acusação particular (artigo 285º). - Outras hipóteses com procedimento próprio são irrelevantes para o caso.

E não faz sentido que se defenda que a notificação da acusação seja da competência de um juiz. A não ser que haja quem defenda que a competência de notificação da sentença seja do Ministério Público. E aqui entrámos (mas sairemos de imediato) da fase surrealista da argumentação.

Por isso que a “obrigação” de notificar a acusação seja do Ministério Público como magistratura autónoma e dominus da fase processual em causa.

Desde logo porque o Código de Processo Penal muito claramente determina que o processo só prosseguirá para a fase seguinte – de julgamento – se “os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes” – artigo 283º, n. 5, segunda parte, do Código de Processo Penal.

E isto tem ligação com o regulado nos artigos 332º, n. 1, 335º e 336º, n. 3 do Código de Processo Penal.

E a previsão do n. 3 do artigo 336º do Código de Processo Penal é excepcional, no que implica de um retrocesso à fase anterior do processo, plenamente justificada pelas dificuldades de notificação.

O que se não pode é erigir o excepcional em normal, considerando que o processo deve prosseguir para a fase seguinte quando em termos gerais e abstractos proceder à notificação – face à profusão de casos de que se dá conta - é um “incómodo”, uma questão estatística, de “personalidade” ou outra.

E que se defenda que aos tribunais não cabe um papel de “deterrence example”, “deterrence effect”, ou efeito dissuasor sobre condutas processuais inadequadas. Que não é o nosso caso, que defendemos que todas as decisões dos tribunais têm a virtualidade ou a potencialidade de corrigir condutas processuais deficientes ou de as manter.

E a conduta que se pretende consagrar com o recurso é inadequada pois que – para além do já dito – está em causa o direito de defesa do arguido acusado que pode requerer a instrução.

Dir-se-á que tal direito a requerer a instrução sempre poderá ser reclamado adiante. Mas não é isso o pretendido, nem é isso o desejável em termos de eficácia do sistema. - Veja-se o caso de pluralidade de arguidos e os problemas que se suscitam nos acórdãos desta Relação de 28-20-2003 (rel. Sénio Alves, proc. 1968/03-1) e de 15-12-2009 (rel. Gilberto Cunha, proc. 346/02.3JASTB.A-E1).

E existe uma diferença de posição do arguido quando recebe a notificação da acusação logo após a dedução da acusação, de uma outra situação em que o arguido só dela sabe quando o julgamento está marcado. Não é indiferente a fase do processo em que o arguido é notificado da acusação.

É certo que em qualquer fase ele pode requerer a realização da instrução, mas isso é uma abstracção. Pode concretizar-se com facilidade para o arguido que sabe ou tem facilidade de contratar quem saiba. Não para o comum cidadão que não sabe e/ou não tem facilidade de contratar quem saiba em tempo útil. E que tenderá a considerar que a notificação pelo juiz é uma realidade inultrapassável.

Outra alternativa será determinar que o juiz que cumpre o artigo 311º abra uma “fase” nova no processo para notificar o arguido da acusação do Ministério Público.

Note-se, aliás, que sabendo o juiz que cumpre o artigo 311º do Código de Processo Penal que inexiste válida notificação da acusação, mas não podendo fazer notar essa existência, não devendo marcar julgamento, deve ordenar aos “seus serviços” que cumpram o que não foi cumprido pelos serviços do Ministério Público – ver esta ordem nos citados acórdãos do TRL de 2013.

Mas aqui também não é indiferente o arguido ser notificado pelo Ministério Público que o acusa ou pelo juiz de um tribunal que o vai julgar. O cidadão/ã que recebe a notificação não será uma abstracção sabedora, será um cidadão normal com dificuldade em perceber a notificação e seus efeitos.

Tudo isto por razões de celeridade? Este argumento é ínvio e abusivo, para dizer o menos, face ao número de casos que assolam os tribunais da Relação.

Ou seja, as razões de celeridade têm a ver, ao que parece, com o saber quem cumpre no mesmo tempo, se uma ou outra “sala” do mesmo edifício.

Mas a interposição de recurso numa questão de lana caprina, que apenas surge por deficiente cumprimento da lei e que seria facilmente corrigido, aparentemente não afecta a celeridade processual. O irrealismo tem as suas vantagens.

Portanto, que o juiz não pode dar ordens ao Ministério Público é uma asserção lógica em Portugal desde 1988 em virtude da aprovação de um Código de Processo Penal sujeito ao princípio do acusatório.

E tenha-se em mente que no caso concreto a Mmª juíza teve o cuidado de respeitar em absoluto o acusatório e a autonomia do Ministério Público pois que nenhuma ordem deu.

Por isso que, inexistindo notificação da acusação e sendo vício de conhecimento oficioso porque foi afectada a validade do acto – o dar a conhecer os factos de que o arguido foi acusado – este Tribunal entenda que cabe ao Ministério Público cumprir a sua função, que é notificar a sua própria acusação ao arguido e, por isso, secunde a Mª juíza e não dê qualquer ordem.

Não se dá qualquer ordem ao Ministério Público nem se afecta o princípio do acusatório.

Apenas se determina que os autos não serão recebidos no tribunal enquanto a notificação da acusação se não mostre devidamente efectuada e decorrido o prazo para requerer a instrução, sem prejuízo da real ocorrência de situação a enquadrar na segunda parte do n. 5 do artigo 283º do Código de Processo Penal.

Ou seja, o recurso é improcedente.


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Dispositivo

Em face do exposto acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto.

Sem tributação.

Notifique


Évora, 13-09-2022

(processado e revisto pelo relator).

João Gomes de Sousa (Relator)

Carlos Campos Lobo (1º Adjunto)

Ana Bacelar (2º Adjunto)