PROCESSO EXECUTIVO
INSOLVÊNCIA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
MASSA INSOLVENTE
Sumário

Verificando-se que presente execução para entrega de coisa certa não atinge bens integrantes da massa insolvente, e ainda que a exequente não é credora da insolvência, não há lugar à suspensão da execução ao abrigo do disposto no n.º1 do art.º 88.º do CIRE.

Texto Integral

Proc. n.º 652/21.8T8PRT.P1
(Recurso)

Acordam, em audiência de julgamento, na 3ª Secção (2ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

O MUNICÍPIO ... inconformado com o despacho proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Execução do Porto -Juiz 2, em 8 de Março de 2022, que indeferiu o seu pedido de determinar o prosseguimento da presente execução para entrega de coisa certa, veio interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal e, em sede de alegações, formulou as seguintes conclusões:

“A. Vem o presente recurso interposto do despacho datado de 08.03.2022, o qual indeferiu o pedido do Recorrente de determinar o prosseguimento da presente execução para entrega de coisa certa, não obstante a declaração de insolvência da Recorrida, proferida no âmbito do processo n.º 1215/22.6T8VNG, e que, consequentemente, determinou a manutenção da suspensão da instância.
B. Pode ler-se na sucinta fundamentação do despacho recorrido que “Independentemente da natureza da execução e da obrigação exequenda, o artº 88º, do CIRE é imperativo, não distinguindo, quanto à suspensão – legal e automática- a natureza da execução. Assim, indefiro o requerido”.
C. Salvo melhor entendimento, o despacho recorrido, enferma de erro de julgamento de Direito, por violação do disposto nos artigos 88.º do CIRE, motivo pelo qual, deverá ser revogado por V. Exas. com todas as legais consequências daí decorrentes.
D. Conforme resulta do acervo factual convocado nos presente autos, desde o ano de 2019, a Recorrida não tem qualquer título que legitime a ocupação do prédio sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho do Porto, constituído por rés-do-chão e três andares, com quintal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...,
E. Ocupando, ilegalmente, um imóvel sem qualquer título para ou autorização para esse efeito.
F. Assim, atenta a factualidade em crise, e na iminência de proceder à entrega do referido imóvel, a Recorrida, ardilosamente, apresentou-se à insolvência de forma a prolongar uma situação manifestamente abusiva e lesiva dos interesses e direitos do Recorrente.
Sopesa ainda que,
G. Nos termos do disposto no artigo 88.º do CIRE, a suspensão diligências executivas, requeridas pelos credores da insolvência, só se verifica em relação a diligências ou providências que tenham por objeto bens integrantes da massa insolvente.
Porquanto,
H. Destinando-se a liquidação do ativo, no processo de insolvência, à satisfação dos créditos reclamados e verificados, a prévia suspensão das execuções pendentes contra o insolvente revela-se um meio eficaz para assegurar que os credores concorram em condições de igualdade a este pagamento, fazendo jus ao princípio par conditio creditorum. Por tal motivo, com a declaração de insolvência, decreta-se a apreensão, para entrega imediata ao administrador da insolvência, de todos os bens do devedor insolvente e destinados à satisfação dos credores da insolvência e pagamento das dividas próprias da massa insolvente.
I. Ora, nos termos do disposto no artigo 46.º, n.º 1 do CIRE, a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência.
J. Volvendo novamente à factualidade em crise, constata-se que à data da declaração de insolvência, o imóvel, cuja entrega coerciva se requer na presente execução, não era, à data da declaração da insolvência, património da Executada, ora Recorrida.
K. Com efeito, a não suspensão da presente ação executiva para entrega do imóvel –reitere-se, ocupado ilegalmente pela Recorrida – ao aqui Recorrente não atinge, de modo algum, os bens integrantes da massa insolvente, não sendo, em virtude disso, enquadrável no disposto no artigo 88.º, n.º 1 do CIRE.
L. Na verdade, o prosseguimento do processo executivo em crise não impede que todos os bens que se encontram no imóvel sito na Rua ..., ...– e que constituem bens integrantes da massa insolvente – possam ser apreendidos pelo Administrador de Insolvência para os fins tidos por convenientes.
M. Com o devido respeito, entende o Recorrente que o Tribunal a quo ignorou, por completo, toda a factualidade em crise nos presentes, nomeadamente o facto de a presente ação executiva para entrega de coisa certa não atingir os bens da massa insolvente e, por outro lado, o Recorrente não ser credor da insolvência.
N. De facto, o legislador é inequívoco ao referir, no n.º 1 do artigo 88.º do CIRE, que a declaração de insolvência só suspende as diligências executivas “que atinjam os bens integrantes da massa insolvente” e “requeridas pelos credores da insolvência”. O que, in casu, nenhuma das circunstâncias se verifica.
O. Tudo visto, o despacho recorrido padece de erro de julgamento de Direito, por violação do disposto no artigo 88.º, n.º 1 do CIRE, devendo, em virtude disso, ser revogado pelo Tribunal ad quem, determinando o prosseguimento da presente execução para entrega de coisa certa, com as legais consequências daí decorrentes.”

*
A Apelada A..., LDA contra-alegou pugnando pela manutenção do decidido.
*
Colhidos os vistos legais vem o processo submetido à audiência de julgamento.
*
II - DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com relevo para a decisão são de considerar assentes os seguintes factos que se passam a transcrever:
1 - Por escritura pública celebrada em 4 de abril de 2019, o ora Apelante, na qualidade de Exequente, adquiriu à X...- Companhia de Seguros, S.A. o prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho do Porto, constituído por rés-do-chão e três andares, com quintal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ....
2 - O referido prédio foi adquirido livre de ónus e encargos, com excepção de três contratos de arrendamento relativos às habitações do 2.º andar direito, 3.º andar direito e rés-do- chão.
3 – Como se alcança da referida escritura de compra e venda em 2., o rés-do-chão encontrava-se arrendado à Apelada, A…, Lda., por contrato de arrendamento, datado de 13 de Janeiro de 1986.
4 - À data da celebração da escritura de compra e venda mencionada em 1. encontrava-se a decorrer os seus termos uma acção declarativa comum no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível do Porto, Juiz 2, Processo n.º 15304/18.8T8PRT, que opunha a X... - Companhia de Seguros, S.A. à Recorrida, e onde era peticionado, além do mais, a declaração de resolução do contrato de arrendamento e a entrega do locado livre de pessoas e bens.
5 - Por sentença proferida em 29.04.2019, transitada em julgado, foi julgada a acção procedente e, em consequência, declarado resolvido o contrato de arrendamento, tendo a Ré, ora Apelada, condenada à entrega do locado identificado em 3. livre de pessoas e bens.
6 - Através de missiva datada de 1 de Outubro de 2019, o ora Apelante, na qualidade de dono e legitimo proprietário do prédio sito na Rua ..., ..., solicitou à Apelada a entrega do imóvel no prazo de 30 dias.
7 - Em 14 de Outubro de 2019, a ora Apelada, em resposta à referida missiva em 6., alegou que nunca teve conhecimento da sentença proferida no âmbito do processo n.º 15304/18.8T8PRT, referindo que iria diligenciar por informar-se “do sucedido e arguir nulidades ou apresentar recurso da decisão se for caso”.
8 - Em 26 de Junho de 2020, data em que foi requerida a certidão electrónica do estado do processo n.º 15304/18.8T8PRT, o mesmo já se encontrava arquivado.
9 – O ora Apelante apresentou a presente execução em 13 de Janeiro de 2021, sendo que, a Apelada, regularmente citada, não deduziu oposição por meio de embargos.
10 – A ora Apelada foi declarada insolvente por sentença datada de 17 de Fevereiro de 2022, transitada em julgada, proferida no âmbito do Processo que correu termos com n.º 1215/22.6 T8VNG.
11 - No âmbito do processo de insolvência mencionado em 10. foi comunicado aos presentes autos, em 2 de Março de 2022, e com cópia do despacho que determinou a suspensão da execução judicial o seguinte:
Assunto: Informação - MUITO URGENTE Por ordem do Mmº Juiz de Direito Dr(a). AA, informa-se Vª Exª de que na Insolvência pessoa colectiva (Apresentação), 1215/22.6T8VNG foi proferida sentença de declaração de insolvência ainda não transitada em julgado, cuja cópia se anexa. Mais se envia cópia do requerimento formulado pela devedora/insolvente e do despacho que sobre o mesmo recaíu, nos termos a para os efeitos do disposto no art.º 88º do CIRE. “
12 – Em 8 de Março de 2022 foi proferido o despacho recorrido que se passa a transcrever:
“Independentemente da natureza da execução e da obrigação exequenda, o artº 88º, do CIRE é imperativo, não distinguindo, quanto à suspensão – legal e automática- a natureza da execução.
Assim, indefiro o requerido. “
*
III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Vem o presente recurso interposto do despacho proferido Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Execução do Porto -Juiz 2, em 8 de Março de 2022, que indeferiu o pedido do ora Apelante MUNICÍPIO ... de determinar o prosseguimento da presente execução para entrega de coisa certa.

É do seguinte teor o despacho recorrido que se passa a transcrever:
“Independentemente da natureza da execução e da obrigação exequenda, o artº 88º, do CIRE é imperativo, não distinguindo, quanto à suspensão – legal e automática- a natureza da execução.
Assim, indefiro o requerido. “

Importa para tanto trazer à colação o que dispõe o artigo 88.º do CIRE que passamos a citar:
“1 - A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes.
2 - Tratando-se de execuções que prossigam contra outros executados e não hajam de ser apensadas ao processo nos termos do n.º 2 do artigo 85.º, é apenas extraído, e remetido para apensação, traslado do processado relativo ao insolvente.
3 - As ações executivas suspensas nos termos do n.º 1 extinguem-se, quanto ao executado insolvente, logo que o processo de insolvência seja encerrado nos termos previstos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 230.º, salvo para efeitos do exercício do direito de reversão legalmente previsto.
4 - Compete ao administrador da insolvência comunicar por escrito e, preferencialmente, por meios eletrónicos, aos agentes de execução designados nas execuções afetadas pela declaração de insolvência, que sejam do seu conhecimento, ou ao tribunal, quando as diligências de execução sejam promovidas por oficial de justiça, a ocorrência dos factos descritos no número anterior”.
A fórmula ampla usada pelo legislador – “quaisquer diligências executivas”- permite considerar abrangidas na sua estatuição diligências compreendidas tanto em acções executivas, como em processo comum, processos especiais e em procedimentos cautelares.
Em qualquer dos casos, a suspensão só se verifica em relação a diligências ou providências que tenham por objecto bens integrantes da massa insolvente (Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Efeitos da declaração de insolvência – efeitos processuais, página 436 e seguintes).
Ora, destinando-se a liquidação do activo, no processo de insolvência, à satisfação dos créditos reclamados e verificados, a prévia suspensão das execuções pendentes contra o insolvente revela-se um meio eficaz para assegurar que os credores concorram em condições de igualdade a este pagamento, fazendo jus ao princípio par conditio creditorum.
Por tal motivo, com a declaração de insolvência decreta-se a apreensão, para entrega imediata ao administrador da insolvência, de todos os bens do devedor insolvente e destinados à satisfação dos credores da insolvência e pagamento das dividas próprias da massa insolvente (Cfr. artigos 36º, nº 1, g), 149º, nº 1, 150º, nº 4, al. a) e nº 6, todos do CIRE)
Nos termos do disposto no artigo 46.º, n.º 1 do CIRE, a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência.
No caso dos presentes autos, como se alcança da matéria de facto transcrita, constata-se que à data da declaração de insolvência em 17 de Fevereiro de 2022 , o imóvel a que se reporta os presentes autos já não era património da Apelada.
Por conseguinte, a não suspensão da presente acção executiva para entrega do imóvel ao aqui Apelante não atinge, de modo algum, os bens integrantes da massa insolvente, não sendo, em virtude disso, enquadrável no disposto no artigo 88.º, n.º 1 do CIRE. Sem prejuízo, o prosseguimento do processo executivo em crise não impede que todos os bens que se encontram no imóvel sito na Rua ..., ...– e que constituem bens integrantes da massa insolvente – possam ser apreendidos pelo Administrador de Insolvência.
Andou mal, pois, o Tribunal a quo ao ignorar, por um lado, a factualidade que descrevemos nos presentes autos, nomeadamente o facto de a presente acção executiva para entrega de coisa certa não atingir os bens da massa insolvente, bem como o facto de o aqui Apelante não ser credor da insolvência.
Aliás, o legislador é inequívoco ao referir, no n.º 1 do artigo 88.º do CIRE, que a declaração de insolvência só suspende as diligências executivas “que atinjam os bens integrantes da massa insolvente” e “requeridas pelos credores da insolvência”. O que, in casu, nenhuma das circunstâncias se verifica.
A este propósito, por revelar especial acuidade, cite-se o entendimento de Artur Dionisio Oliveira in “Os efeitos externos da insolvência - As ações pendentes contra o insolvente” (disponível para consulta em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/11/173-187-Efeitos-externos-da-insolv%C3%AAncia.pdf.), ao referir que “Apesar da lei o não referir de forma expressa, cremos que a suspensão não deve abranger a execução para entrega de bens que, por força da resolução de contrato de locação financeira ou de compra e venda com reserva de propriedade, não integrem a massa insolvente. Também não se vislumbra qualquer motivo válido para a suspensão de execução para entrega de imóvel baseada em sentença que tenha decretado o respectivo despejo ou de execução para entrega de bens de qualquer natureza baseada sentença que tenha julgado procedente uma acção de reivindicação. De uma forma mais genérica, julgamos que da suspensão deverão excluir-se as execuções que não tenham por objecto bens patrimoniais do insolvente”.
No mesmo sentido, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.05.2016, proferido no âmbito do processo n.º 2060/14.8YYPRT.P1, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Aqui chegados, importa reafirmar que a não suspensão da presente acção executiva para entrega do imóvel ao aqui Apelante não atinge, de modo algum, os bens integrantes da massa insolvente, pelo que não é enquadrável no disposto no artigo 88.º, n.º 1 do CIRE. Apenas, e tão somente, todos os bens que se encontram no imóvel sito na Rua ..., ...– e que constituem bens integrantes da massa insolvente – podem ser apreendidos pelo Administrador de Insolvência para os fins tidos por convenientes.
Concluímos do exposto que o despacho recorrido incorreu em erro de julgamento de Direito, por violação do disposto no artigo 88.º, n.º 1 do CIRE, sendo de revogar o mesmo com o consequente prosseguimento da presente execução para entrega de coisa certa – o imóvel sito na Rua ..., ... rés- do- chão.

IV – DECISÃO
Acordam, pois, os juízes que compõem a 3ª Secção (2ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido o com o consequente prosseguimento da presente execução para entrega de coisa certa relativa ao imóvel sito na Rua ..., ... rés-do-chão.
*
Custas pela Apelada.

Porto, 15 de Junho de 2022
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço
Judite Pires