RECURSO PER SALTUM
CÚMULO JURÍDICO
CONCURSO SUPERVENIENTE
FURTO
FURTO QUALIFICADO
CRIME CONTINUADO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
Sumário


I - Sempre que uma decisão condenatória transita em julgado, a factualidade dada como provada e não provada, a respectiva qualificação jurídica, a responsabilidade do arguido e as consequências jurídicas de cada crime ficam definitivamente assentes e não podem mais ser discutidas em sede de recurso ordinário. Se posteriormente, vem a conhecer-se que a multiplicidade de crimes cometidos pelo arguido formam um concurso efectivo, este tem direito a que as penas aplicadas nos diversos processos e por cada crime sejam fundidas numa pena única, e se a multiplicidade de crimes formar dois, três, ou mais concursos efectivos, será condenado em duas, três, ou mais penas únicas, consoante os concursos efectivos verificados.
II - Assim, o Tribunal que procede à realização do cúmulo jurídico limita-se a fundir numa única pena conjunta as diversas penas parcelares aplicadas por sentenças e acórdãos transitados em julgado, não podendo modificar nenhuma das decisões definitivas, seja quanto à matéria de facto fixada, seja quanto à qualificação jurídica dos factos, seja quanto ao número de crimes cometidos, seja quanto à responsabilidade do arguido, uma vez que qualquer alteração de algum destes segmentos das decisões condenatórias onde foram decretadas as penas parcelares ofenderia o caso julgado, e punha em causa a segurança e a paz jurídica.
III - Desta forma, o acórdão recorrido nunca poderia converter num crime continuado a multiplicidade dos crimes de furto simples e de furto qualificado cometidos pelo arguido e que foram incluídos no concurso efectivo pelo qual o mesmo foi condenado numa pena conjunta. Pelo que, caso entendesse que os crimes de furto cometidos constituíam uma continuação criminosa deveria ter impugnado nos respectivos processos a sentença ou o acórdão que o condenou pelos vários crimes em apreço, não podendo nesta fase processual pugnar pela aplicação do art. 79.º, n.º 1, do CP.
IV - A moldura do concurso de crimes a partir da qual deve ser determinada a pena concreta a aplicar ao arguido tem como limite mínimo 3 anos de prisão (correspondente à pena concreta mais elevada) e como limite máximo a pena de 16 anos e 3 meses de prisão (correspondente à soma das penas parcelares aplicadas, nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP).
V - No caso, as penas de prisão do concurso são de média e de curta duração havendo que recorrer ao princípio da proporcionalidade de forma a não aplicar uma pena única superior àquela que é exigida para reafirmar a estabilização dos bens jurídicos ofendidos, face à culpa suportada pelo arguido, à medida da sua vontade, e à sua personalidade.
VI - A actividade criminosa do arguido ocorreu entre 24-11-2018 e 09-07-2020 e foi condicionada pela sua toxicodependência, a qual potenciou uma desorganização na sua vida a todos os níveis, já que vivia centrado nas suas necessidades imediatas, com dificuldades em termos da capacidade de antecipar as consequências do seu comportamento, quer para si próprio, quer para terceiros, sempre norteado pela angariação de meios para fazer face aos seus comportamentos aditivos.
VII - A censurabilidade ético-jurídica é elevada face aos crimes de furto cometidos pelo arguido, tendo sempre agido sempre com dolo directo, situação que demanda a aplicação de uma pena única que respeite os limites traçados pela prevenção geral de integração, e pela culpa, e que seja suficiente e adequada a adverti-lo séria e fortemente, instando-o a reflectir sobre o seu comportamento futuro, permitindo-lhe ao mesmo tempo a sua reintegração na comunidade.
VIII - Considerando as carências de socialização do arguido, e tendo presente o efeito previsível da pena única sobre o seu comportamento futuro, e numa perspectiva do direito penal preventivo, julga-se justo e adequado, face à moldura penal aplicável, proceder à redução da pena unitária aplicada pela 1ª Instância para 8 anos de prisão, entendendo-se que esta pena não afronta os princípios da necessidade, da proibição do excesso, e da proporcionalidade das penas, a que alude o art. 18º, nº 2, da CRP, nem ultrapassa a medida da sua culpa, revelando-se proporcional à defesa do ordenamento jurídico.

Texto Integral




Proc. nº 133/22.2T8PDL.L1.S1
5ª Secção Criminal
Supremo Tribunal Justiça

Recurso Penal de Acórdão da 1ª Instância
(cúmulo jurídico; crimes de furto simples e de furto qualificado; crime continuado; medida da pena única)

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça:

I - RELATÓRIO

1. O Juízo Central Cível e Criminal ... - Juiz ..., da Comarca ..., proferiu acórdão em 27/01/2022, no Proc. Comum Colectivo nº 133/22...., e condenou o arguido AA, em cúmulo jurídico, na pena única de 9 (nove) anos de prisão, que englobou:
- A pena de 1 ano de prisão efectiva aplicada no Proc. nº 106/20...., por decisão proferida em 11/02/2021, e transitada em julgado em 15/03/2021, pela prática, em 06/05/2020, de um crime de furto simples p. p. pelo art. 203º, nº 1, do Cod. Penal;
- A pena de 3 anos de prisão (efectiva), aplicada no Proc. nº 2033/18...., por decisão proferida em 15/03/2021, e transitada em julgado em 05/05/2021, pela prática, em 24/11/2018, de um crime de furto qualificado p. p. pelo art. 204º, nº 2, al. e) do Cod. Penal;
- A pena de 2 meses de prisão (factos praticados em 11/07/2020), a pena de 7 meses de prisão (factos praticados em 09/06/2020), a pena de 10 meses de prisão (factos praticados em 16/07/2020), a pena de 1 ano e 10 meses de prisão (factos praticados em 17/07/2020), a pena de 2 anos e 5 meses de prisão (factos praticados em 09/07/2020), a pena de 2 anos e 3 meses de prisão e a pena de 3 anos de prisão (factos praticados em 10/07/2020), a pena de 3 anos de prisão (factos praticados em 09/07/2020), e a pena única de 6 anos de prisão, aplicadas no Proc. n° 1051/20...., por decisão proferida em 13/04/2021, e transitada em julgado, em 22/11/2021, pela prática, respectivamente, de um crime de furto simples, na forma tentada (art. 203º, nº 1, do Cod. Penal), de dois crimes de furto simples (artigo 203º, nº 1, do Cod. Penal), de um crime de furto qualificado (art. 204º, nº 1, al. a), do Cod. Penal), e de três crimes de furto qualificado (art. 204º, nº 2, al. e), do Cod. Penal);
- A pena de 2 anos e 2 meses de prisão (efectiva) aplicada no Proc. n° 776/20...., por decisão proferida em 21/10/2021, e transitada em julgado, em 22/11/2021, pela prática, em 01/01/2020, de um crime de furto qualificado p. p. pelo art. 204, nº 2, al. e), do Cod. Penal.

2. O arguido AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação ..., alegando que a sua conduta deveria ser integrada na figura do crime continuado do art. 30º, nº 2, do Cod. Penal, e pugnando pela redução da pena conjunta, fixando-a em medida igual ou próxima ao limiar mínimo da moldura penal do respectivo concurso, concluindo nos seguintes termos (transcrição)[1]:
I. Vai o presente recurso interposto do acórdão proferido nos autos quanto à matéria de facto e de direito.
II. Resulta que, desde 24 de Novembro de 2018 a 17 de Julho de 2020, o arguido concretizou furtos nas diversas formas.
III. Estamos, em grande medida, perante uma situação de crime continuado, conforme resulta do disposto no artigo 30º, nº 2, do Código Penal.
IV. O Arguido realizou o mesmo tipo de crime e aproveitando-se da mesma situação exterior.
V. Com o finalizar de todos os processos, pode configurar-se a prática dos factos como constituindo um só crime continuado, ponderadas circunstâncias que levaram à determinação do agente e à sua
conduta uniforme.
VI. Nenhuma norma legal impede, antes o impõe o artigo 79º, n.º 2, do Código Penal, que a continuação criminosa seja declarada em momento posterior ao trânsito em julgado das condenações das condutas criminosas parcelares.
VII. O Tribunal que realizar o cúmulo jurídico de penas não está impedido de assim concluir.
VIII. Caso assim não se entenda, nos termos do artigo 77º, n.º 2, do CP, a pena do concurso teria um limite máximo de 16 anos e 3 meses de prisão e como limite mínimo 3 anos de prisão.
IX. Determina, ainda, o artigo 77º, n.º 1, do CP, que na determinação da medida da pena, serão tidos em consideração, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
X. Salvo devido respeito, o Tribunal a quo não valorou devidamente a personalidade do agente aquando da determinação da medida da pena e que despoletou numa pena excessiva e desproporcional.
XI. Como decorre do acórdão, quanto à personalidade e situação pessoal do arguido, nada fundamenta, limitando-se a referir, ainda que vagamente, tipo e número de infrações praticadas e ao período temporal em que as mesmas foram cometidas, aos antecedentes criminais.
XII. O tribunal não fez referência ao estado actual do tratamento do arguido respeitante à toxicodependência.
XIII. Hodierna, o arguido deixou de consumir e encontra-se a ser acompanhado nas consultas de desintoxicação.
XIV. O arguido tem um filho, BB, menor de 4 anos de idade.
XV. Em cada processo-crime, o arguido deixou claras as circunstâncias que o levaram à prática criminosa, admitindo, contudo que o seu comportamento foi errado, manifestou arrependimento, conforme constam nas doutas decisões pelo que não revela propensão para a prática de crimes.
XVI. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente.
XVII. Como ficou provado, o arguido tem recebido visitas da companheira CC e do filho menor BB, e bem se sabe que, neste momento é um forte e amplo apoio familiar, que o prolongar da sua reclusão cria dificuldades nesta matéria.
XVIII. A determinação da pena próxima dos seus limites mínimos é também a mais próxima do respeito por um princípio de humanidade que deve estar sempre subjacente.
XIX. Não será de ignorar que, na sentença do processo nº 776/20...., que correu termos no Juízo Local Criminal ..., J..., da Comarca ..., ficou provado que “Em termos laborais, manteve-se ocupado entre Setembro de 2020 e Janeiro de 2021, bem como no mês de Abril de 2021”.
XX. Importa frisar que, em plena pandemia, com as dificuldades na obtenção de emprego, o arguido sempre visou ocupação profissional.
XXI. Uma pena mais próxima dos limites mínimos seria mais adequada ao cumprimento do propósito da reintegração do agente na sociedade.
XXII. Por outro lado, as necessidades de prevenção geral não justificam penas tão distantes dos mínimos.
XXIII. Embora possa impressionar o número de crimes cometidos, a sua prática decorreu num período relativamente limitado.
XXIV. Daqui se retira a desproporcionalidade da pena aplicada.
XXV. O tribunal deve ponderar as condições pessoais do recorrente.
XXVI. A dignidade da pessoa humana impede que a pena ultrapasse a culpa, limite consagrado no nº 2 do artigo 40º do Código Penal.
XXVII. Para o arguido, com trinta anos de idade, a aplicada pena de prisão cumulativa pode ter como reflexo ou como consequência mais do que provável a sua desinserção quase total da sociedade civil, o corte das relações familiares, no fundo pode constituir uma dificuldade para um futuro próximo da almejada reinserção social.
XXVIII. Nem se tratam de crimes de tal gravidade, que apontem para a necessidade drástica de quase somar as penas constitutivas do operado cúmulo.
XXIX. O cúmulo espelhado no acórdão recorrido excede, em muito, a culpa do recorrente.
XXX. Por isso se entenda ter havido senão violação, pelo menos errada ou deficiente interpretação do disposto nos artigos 40º, n.º 2, 71º, 77º, nº1, 78º e 79º, nº1, todos do CP.
Nestes termos, recebido o presente recurso, deve ser revogada a decisão recorrida e deverá o Tribunal ad quem unificar num só crime cometido em continuação criminosa, da multiplicidade os furtos cometidos. Subsidiariamente, requer-se a redução das penas conjuntas, fixando-as em medida igual ou próxima ao limiar mínimo da moldura penal dos respectivos concursos.
Justiça!”

3. O recurso foi admitido a subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo, nos termos dos arts. 406º, nº 1, 407º, nº 2, al. a), 408º, nº 1, al. a), e 427º, todos do Cod. Proc. Penal – cfr. despacho judicial de 00/03/2022.

4. O Ministério Público em 1ª Instância respondeu ao recurso, considerando que o mesmo deveria ser julgado improcedente, formulando as seguintes conclusões: (transcrição)
1. A pretensão do recorrente de que o tribunal a quo devia ter aplicado o artigo 79.º, n.º 2 do Código Penal, defendendo que tal normativo não obsta a que se considere que o trânsito em julgado da condenação por crime de idêntica natureza não conforma caso julgado no caso de virem a ser descobertos “novos atos” que se integram que levem aplicação da figura do crime continuado,
ainda que nenhum de tais atos seja mais grave do que aqueles pelos quais já foi julgado.
2. Acontece, porém, que no caso dos autos, embora exista uma proximidade temporal das imputações criminosas ao arguido nenhuma delas foi considerada pelo Tribunal a quo como uma pluralidade de crimes continuados e que se possa considerar que uma delas assume maior gravidade do que aquelas pelas quais já fora julgado e condenado, em ordem a demandar a alteração das molduras penais abstratas dos crimes continuados objeto das suas anteriores condenações.
3. Consequentemente, tal pretensão constitui violação frontal do prescrito no citado normativo, não tendo no texto da lei o mínimo de correspondência verbal como sempre se exige de acordo com o determinado no artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil.
4. Na verdade, da redação do artigo 79.º, n.º 2, do Código Penal, resulta de forma expressa, clara e incontornável que apenas a descoberta de uma conduta mais grave é suscetível de levar a nova condenação em substituição da anterior, o que não é o caso dos autos. Daí não qualquer violação do artigo 79.º, n.º 2 do Código Penal
5. Quanto à medida da pena o Ministério Público entende que a pena de 9 anos de prisão se mostra justa e adequada, em nada excessiva atentos os circunstancialismos apontados no douto acórdão, a gravidade dos ilícitos da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial. Isto é,
6. Nenhuma censura merece a determinação da medida da pena, sendo a pena aplicada ao arguido ora recorrente adequadas à sua culpa, à sua conduta anterior e posterior aos factos, às exigências de prevenção geral e especial e não peca por excesso, bem como é acertada face às condições pessoais e potencial de inserção social do arguido.
7. Em concreto, a medida da pena, tal como vem sendo unanimemente afirmado pela jurisprudência e doutrina, é determinada, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, a que acresce, como decorre do nº 1, do artigo 77.º do Código Penal, um critério específico– “a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente”.
8. Ainda que houvesse uma redução da pena única e a mesma se situasse nos 5 anos de prisão, além ser desadequada nunca seria caso de suspender a sua execução por se não verificarem os respetivos pressupostos, pois no caso vertente, são particularmente elevadas as exigências de prevenção geral, uma vez que, estes tipos de crime, assume relevantes proporções, com graves consequências, no seio da comunidade, as quais provocam grande alarme social e sentimento generalizado de insegurança e medo para além de situações análogas à dos autos sucederem com grande frequência, especialmente nesta comarca, o que provoca justificado temor na comunidade, abala a confiança que esta deve ter na eficácia do sistema penal, e impõe, consequentemente, uma necessidade acrescida de dissuadir a prática destes factos pela generalidade das pessoas e de incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes.
9. Por outro lado, a factualidade sob colação revela-se particularmente censurável, visto que a conduta do arguido denotou total, absoluto e reiterado desrespeito pelas normas penais vigentes, bem como os crimes em causa se revestem de incisiva gravidade e é profundamente atentatório dos bens jurídicos fundamentais de índole patrimonial, devassando esses bens pessoais dos ofendidos.
10. Por fim sempre se dirá que, no caso “sub judice”, a simples censura do facto e a ameaça da prisão, subjacentes à suspensão de execução da pena, não atingem, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, aliás o recorrente já beneficiou tal oportunidade e a mesma foi revogada. Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pela recorrente., pelo que o recurso não merece provimento”.

5. O Sr. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação ... emitiu parecer pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso, acompanhando as considerações vertidas na resposta apresentada pelo Ministério Público em 1ª Instância.

6. O Sr. Juiz Desembargador Relator junto da ... Secção do Tribunal da Relação ... proferiu decisão sumária na qual declarou aquele tribunal incompetente para conhecer do recurso determinando a sua remessa a este Supremo Tribunal, nos termos do art. 432º, nº 1, al. c), e nº 2, do Cod. Proc. Penal.

7. A Sra. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu parecer, nos termos do art. 416º, nº 1, do Cod. Proc. Penal, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso, acompanhando as considerações vertidas na resposta do Ministério Público em 1ª Instância.

8. O arguido AA foi notificado nos termos do art. 417º, nº 2, do Cod. Proc. Penal, e nada disse.

9. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, para a emissão de decisão.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A - Dos Factos

Com interesse para a decisão da causa foram dados como provados os seguintes factos (transcrição)[2]:
Processo A
No dia 16/05/2020, o condenado, no interior da ..., sita na Rua ..., em ..., apoderou-se de um computador da marca ..., no valor de 2 199,00€, que se encontrava exposto numa prateleira, ocultando-o debaixo do casaco, abandonou o local e integrou-o no seu património, fazendo-o seu.
O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Processo B
Entre as 08h30m do dia 24/11/2018 e as 00h15m, o condenado decidiu entrar na residência sita no Bairro ..., ..., com o propósito de se apoderar de objetos de valor que lá se encontrassem, tendo saltado o muro de vedação da habitação, após o que forçou a porta e a janela da marquise da residência. Tirou de tal morada objetos no valor superior a mil euros e ainda 116,85€ em dinheiro. Posteriormente abandonou o local, fazendo seus aqueles objetos, contra a vontade e sem consentimento do seu legítimo dono.
O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Processo C
No dia 9 de julho de 2020, cerca das 1h40m, AA decidiu entrar nas instalações do «N..., SA.», na freguesia ..., no concelho ..., com o propósito de se apoderar de objetos de valor e/ou de dinheiro que lá se encontrassem. Para tanto, e em concretização do seu plano, muniu-se de uma pedra, que atirou contra o vidro de uma janela das instalações do «N..., SA.», logrando, assim, partir o antedito vidro. Perante o sucedido, foi, de imediato, acionado o alarme da antedita agência bancária, razão pela qual abandonou o local, sem que tivesse logrado apoderar-se de quaisquer objetos de valor e/ou de dinheiro que se encontrassem naquele local.
No dia 9 de julho de 2020, entre as 10h45m e as 11h10m, AA decidiu entrar na loja da «M...», situada no Centro Comercial ..., na Rua ..., na freguesia ..., no concelho ..., com o propósito de se apoderar de objetos de valor que lá se encontrassem. Para tanto, e em execução dessa decisão, o arguido AA entrou na referida loja, que se encontrava aberta ao público, e apoderou-se de um alicate avaliado em €5,00 e de um molho de chaves, os quais levou consigo.
No dia 9 de julho de 2020, cerca das 11h20m, AA decidiu entrar na loja da «W...», situada no Centro Comercial ..., na Rua ..., na freguesia ..., no concelho ..., com o propósito de se apoderar de objetos de valor que lá se encontrassem. Para tanto, e em execução desse fito, o arguido AA entrou na referida loja, que se encontrava aberta ao público. Em ato contínuo, usando o alicate de que, minutos antes, se havia apoderado na loja da «M...», o arguido AA cortou os respetivos alarmes e tirou dos expositores, em que se encontravam expostos para venda, os seguintes objetos: - Uns headphones com fio, de cor ..., da marca ..., de modelo ...», avaliados em €67,79; e Um smartphone, “CAT ...”, de cor ..., com o IMEI ...02, no valor de €466,09, avaliado, a 29 de outubro de 2020, em €450,00. Em ato contínuo, o arguido AA abandonou a antedita loja, passando pelas respetivas linhas de caixa, levando consigo os referidos objetos, que fez seus, contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo dono, sem ter procedido ao respetivo pagamento.
Em data não concretamente apurada, mas ocorrida, seguramente, no dia 10 ou no dia 11 de julho de 2020, na Rua ..., ..., na freguesia ..., no concelho ..., AA apoderou-se do veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca ..., de modelo ... (X SERIE)», de matrícula ..-..-UX, no valor estimado de €6.000,00, pertencente ao ofendido DD, objeto que fez seu, contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo dono. Para tanto, AA usou a chave da mencionada viatura automóvel, de que se apoderara, por forma não concretamente apurada. Além disso, nas mesmas circunstâncias de tempo apontadas, AA tirou do porta-bagagens da referida viatura automóvel uma cela de equitação, de cor ..., feita à mão, no valor estimado de €2.000,00, pertencente ao ofendido DD, objeto de que se apoderou e que fez seu, contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo dono;
Entre as 23h00m do dia 11 de julho de 2020 e as 00h30m do dia 12 de julho de 2020, o arguido AA decidiu entrar no «...», sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., no concelho ..., pertencente ao ofendido EE, com o propósito de se apoderar de objetos de valor que lá se encontrassem. Para tanto, e em concretização do plano previamente traçado, o arguido AA forçou a porta principal do referido café. Para esse efeito, o arguido AA usou a viatura automóvel de matrícula ..- ..-UX, em que circulava, e que fez embater, com a respetiva parte frontal, contra a porta principal do mencionado café. O arguido AA logrou, assim, abrir tal porta, através da qual se introduziu no interior do café. Em ato contínuo, tirou da gaveta da caixa registadora a quantia aproximada de €485,00, em dinheiro. Em consequência da conduta de AA, que usou a sobredita viatura automóvel para forçar a porta principal do «...», resultaram estragos na pintura da identificada viatura automóvel, concretamente no para-choques frontal, bem como amolgadelas na respetiva parte frontal, e, ainda, a quebra da chapa de matrícula frontal.
Entre as 3h00m e as 4h10m do dia 16 de julho de 2020, AA decidiu entrar no snack-bar «...», sito na Rua ..., na freguesia ..., no concelho ..., com o propósito de se apoderar de objetos de valor que lá se encontrassem. Para tanto, e em concretização do seu plano, AA forçou a porta de entrada do referido café, através da qual se introduziu no interior do snack-bar. Em ato contínuo, tirou da gaveta da caixa registadora a quantia de €160,00, em dinheiro. Além disso, o arguido AA tirou do local em que se encontravam guardados entre 30 e 50 cartões de jogo instantâneo, no valor de €0,50 cada. Posteriormente, o arguido AA abandonou o local, levando consigo a aludida quantia monetária e os aludidos objetos, que fez seus, contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo dono. Entre as 15h00m do dia 17 de julho de 2020 e as 18h00m do dia 18 de julho de 2020, AA decidiu entrar na residência sita na Rua ..., ..., na freguesia ..., no concelho ..., pertencente à ofendida FF, com o propósito de se apoderar de objetos de valor que lá se encontrassem. Para tanto, e em concretização desse fito, saltou o muro de vedação da sobredita habitação e ao interior dela acedeu por uma das janelas que forçou. Uma vez no respetivo interior, forçou a porta de madeira do quarto da ofendida e, assim, se introduziu no referido quarto. Em ato contínuo, o arguido AA tirou de uma gaveta de uma mesa-de- cabeceira objetos com um valor global estimado não inferior a 9 000,00€. AA agiu, sempre e em tudo, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas, supra descritas, eram proibidas e punidas por lei penal.
Processo D
No dia 1 de junho de 2020, pelas 05h50, o condenado decidiu entrar no supermercado denominado “...”, sito na Rua ..., ... e agarrar em artigos que ali encontrasse e lhe interessassem. Em execução de tal propósito com objeto não apurado partiu o vidro de uma das portas de entrada do supermercado. No interior dirigiu-se ao balcão de onde retirou 33 cautelas das lotarias. Na posse dos referidos artigos, que fez seus, abandonou o local. O arguido agiu de forma deliberada, livre e conscientemente com o propósito de se apoderar de bens que sabia não lhes pertencer, e que agiam sem o consentimento ou autorização do seu dono. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
Das condições socioeconómicas do condenado
AA é um indivíduo que desde muito cedo perdeu os seus progenitores, tendo sido os irmãos mais velhos a exercer o processo educativo do mesmo. Contudo o condenado viu o seu percurso ser condicionado quer pelo seu comportamento desajustado, quer pela toxicodependência, o que vieram a constituir-se como fatores potenciadores de uma desorganização a todos os níveis, culminado nas diversas ligações ao Sistema de Justiça.
Denota défice ao nível das competências pessoais e sociais e um estilo de funcionamento centrado nas suas necessidades imediatas, com dificuldades em termos da capacidade de antecipar as consequências do seu comportamento, quer para si próprio, quer para terceiros, bem como dificuldades em ajustar o seu comportamento às normas e regras sociais vigentes.
O condenado regista duas infrações disciplinares em meio prisional.
Tem recebido visitas irregulares da companheira CC e do filho BB.
Para além dos crimes em cúmulo, o arguido já foi julgado e condenado:
· por sentença transitada em julgado em 12/06/2014, pela prática em 01/10/2010, de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 13 meses de prisão suspensa por igual período 3 anos e 6 meses, declarada extinta;
· por sentença transitada em julgado em 30/05/2018, pela prática em 18/06/2016, de um crime de furto simples, na pena de 110 dias de multa à taxa diária de € 5,00, tendo cumprido 73 dias de prisão subsidiária;
· por sentença transitada em julgado em 15/03/2019, pela prática em 01/12/2016 de um crime de furto qualificado e em 21/02/2017 de um crime de furto simples, na pena única de 2 meses e 4 anos de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, entretanto revogada”

B – Do Direito

O objecto do recurso e os limites cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça são delimitados pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, nas quais o mesmo sintetiza as razões de discordância com o decidido, e resume o pedido por si formulado (art. 412º, nº 1, do Cod. Proc. Penal)[3], sem prejuízo da pronúncia sobre questões de conhecimento oficioso.

Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do Cod. Proc. Penal) e ao conhecimento dos vícios enunciados no art. 410º, nº 2, e nº 3, do Cod. Proc. Penal, face à redacção da Lei nº 94/2021, de 21/12.

Previamente ao conhecimento do objecto do recurso, entende-se pertinente proceder a uma breve consideração sobre a competência do tribunal uma vez que o arguido AA o dirigiu ao Tribunal da Relação ..., e a ... Secção deste Tribunal da Relação proferiu decisão sumária, em sede de exame preliminar, nos termos do art. 417º, nº 6, al. a), do Cod. Proc. Penal, declarando-se incompetente para o conhecer do recurso, entendendo ser competente este Supremo Tribunal.

Ora, art. 432º do Cod. Proc. Penal estabelece taxativamente os casos em que tem lugar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, aí se referindo que:
1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: (…)
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito; (…)
2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.”

Assim, o art. 432º, nº 2, do Cod. Proc. Penal determina a obrigatoriedade do recurso per saltum, para este Supremo Tribunal desde que o recorrente tenha sido condenado em pena superior a 5 anos de prisão, e o recurso verse exclusivamente matéria de direito.

No caso, o arguido AA foi condenado em 1ª Instância, por acórdão proferido por um tribunal colectivo, que lhe aplicou uma pena em cúmulo jurídico de 9 (nove) anos de prisão, pela prática de crimes de furto simples e de crimes de furto qualificado, sendo que o recurso por si apresentado só se circunscreve à apreciação de matéria de direito, como iremos de seguida enunciar, pelo que é efectivamente competente para o conhecer este Supremo Tribunal.

Concluindo, o recurso interposto pelo arguido AA é directo, per saltum, para este Supremo Tribunal, que é o competente para o conhecer, face ao disposto no art. 432º, nº 1, al. c), e nº 2, do Cod. Proc. Penal.

Posto isto, começaremos por fazer referência aos preceitos legais que versam sobre as regras da punição, numa situação de concurso de crimes e, de seguida, iremos apreciar o recurso apresentado pelo arguido AA.

O art. 77º versa sobre as regras da punição do concurso, e estatui que:

“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente “.

2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

Resulta do citado art. 77º do Cod. Penal, que há lugar à aplicação de uma pena única, em cúmulo jurídico, quando todas as penas parcelares forem de prisão ou forem penas de multa, isto é, quando forem da mesma espécie.

Desta forma, o pressuposto para o conhecimento superveniente do concurso de crimes, e para a aplicação do cúmulo jurídico das penas, consiste na prática pelo agente de diversos crimes, antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, como consta da primeira parte, do citado art. 77º, nº 1, do Cod. Penal.

O art. 78º do Cod. Penal, regula o “Conhecimento superveniente do concurso”, e estatui que:

“1. Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.

2. O disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado”.

O Supremo Tribunal de Justiça, no AUJ nº 9/2016, publicado no DR nº 111, Série I, de 09/06/2016, fixou jurisprudência no sentido de que “o momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso”.

Resulta dos factos dados como provados e que deram origem a cada uma das condenações sofridas pelo arguido AA (objecto do presente cúmulo jurídico), bem como da data do respectivo trânsito em julgado de cada uma delas, que a data da sua primeira condenação transitada em julgado (que delimita todas as relações de concurso, face ao citado art. 78º, nº 1, do Cod. Penal) ocorreu em 22/02/2021, no Proc. nº 106/20...., tendo os restantes factos referentes aos Procs. nº 2033/18...., nº 1051/20...., e nº 776/20...., e nos quais foi condenado em penas de prisão parcelares, ocorrido em data anterior, sem que tivesse sido decretada a sua condenação por qualquer um deles.

O arguido AA suscita as seguintes questões:

- Que a sua conduta deverá ser integrada na figura do crime continuado, com a consequente aplicação do art. 79º do Cod. Penal;

- Que a pena única de prisão aplicada em cúmulo jurídico deverá ser mais justa e proporcional.

B.1. Da integração da conduta do arguido na figura do crime continuado  

O arguido AA alega que: (i) os furtos que praticou, entre 24/11/2018 a 17/07/2020, e pelos quais veio a ser condenado, configuram uma situação de crime continuado (art. 30º, nº 2, do Cod. Penal), uma vez que realizou o mesmo tipo de crime aproveitando-se da mesma situação exterior; (ii) a configuração da prática dos factos como constituindo um só crime continuado pode ser efectuada após a finalização de todos os processos e após terem sido ponderadas todas as circunstâncias que levaram à determinação do agente e à sua conduta uniforme; (iii) o Tribunal que realizar o cúmulo jurídico de penas não está impedido de concluir pela verificação desta continuação criminosa em momento posterior ao trânsito em julgado das condenações das condutas criminosas parcelares, e consequentemente aplicar o art. 79º, nº 2, do Cod. Penal.

O arguido AA pugna assim para que este Supremo Tribunal o condene pela prática de um único crime de furto na forma continuada, desconsiderando que a decisão que impugnou é um acórdão de cúmulo jurídico, que se limita a fundir numa única pena conjunta as diversas penas parcelares que lhe foram já aplicadas por sentenças e acórdãos transitados em julgado, proferidos nos quatro processos inicialmente identificados[4].

Ora, no nosso sistema penal, o tribunal após julgar provados os factos constitutivos de um determinado crime e a responsabilidade do respectivo agente condena-o numa pena. E, caso considere ao julgar provados os factos que estes integram a prática de um crime continuado, condena-o também numa só pena. E, caso considere ao julgar provados os factos que o agente cometeu factos que integram a prática de vários crimes condena-o em igual número de penas. E, quando verifica na mesma sentença e/ou acórdão que os crimes cometidos estão entre si numa relação de concurso efectivo aplica o critério especial estabelecido no art. 77º do Cód. Penal, e condena numa pena conjunta, fundindo as penas parcelares aplicadas a cada um dos crimes correspondentes.

Assim, quando o tribunal julga provados factos que constituem uma pluralidade de crimes cometidos pelo arguido que se encontram em situação de concurso efectivo nessa sentença e/ou acórdão deverá condená-lo numa pena única, e caso tal não se verifique, o arguido e os demais sujeitos processuais têm a possibilidade de interpor recurso ordinário desta decisão, de forma a questionar e a submeter à reapreciação de um tribunal superior, da verificação ou não dos pressupostos do concurso efectivo, invocando designadamente a verificação de uma repetição dos actos ilícitos típicos provadamente cometidos que consubstanciam a prática de um só crime continuado, e pugnando pela aplicação de uma só pena singular.

Contudo, sempre que a decisão condenatória proferida transita em julgado, a factualidade dada como provada e não provada, a respectiva qualificação jurídica, a responsabilidade do arguido e as consequências jurídicas de cada crime ficam definitivamente assentes e não podem mais ser discutidas em sede de recurso ordinário. Se posteriormente, vem a conhecer-se que essa multiplicidade de crimes formam um concurso efectivo, o arguido tem direito a que as penas aplicadas nos diversos processos por cada crime sejam fundidas numa pena única, e se a multiplicidade de crimes formar dois, três, ou mais concursos efectivos, então será condenado em duas, três, ou mais penas únicas, consoante os concursos efectivos verificados.

Ora, o tribunal que procede ao cúmulo jurídico, por conhecimento superveniente de um concurso de crimes cometido pelo arguido, só tem competência para a aplicação de uma pena única, não podendo modificar nenhuma das decisões definitivas que no mesmo processo e nos demais processos condenou o arguido em penas parcelares pela prática dos crimes resultantes do concurso, seja quanto à matéria de facto fixada, seja quanto à qualificação jurídica dos factos, seja quanto ao número de crimes cometidos, seja quanto à responsabilidade do arguido. Com efeito, qualquer alteração de algum destes segmentos das decisões condenatórias já transitadas em julgado onde foram decretadas as penas parcelares ofenderia o caso julgado, pondo em causa a segurança e a paz jurídica.

Por outro lado, o tipo e o número de crimes em que o arguido foi condenado, bem como as penas que lhe foram aplicadas nos respectivos processos seguiram o respectivo procedimento legal, tendo as decisões aí proferidas transitado em julgado e consequentemente sido definitivamente encerradas todas as questões aí decididas. Conhecendo-se depois que esses crimes ou alguns deles formam um (ou mais) concurso(s) de crimes, como já se disse, terá de condenar-se o arguido numa pena conjunta que será determinada dentro da moldura penal estabelecida pelas penas parcelares aplicadas.

Dito isto, temos que a decisão de aplicação de cúmulo jurídico só pode estabelecer a punição da pluralidade dos crimes do concurso numa pena única.

Desta forma, o acórdão recorrido nunca poderia converter num crime continuado a multiplicidade dos crimes de furto simples e de furto qualificado cometidos pelo arguido AA, incluídos no concurso efectivo pelo qual foi condenado numa pena conjunta de 9 (nove) anos de prisão.

Se o arguido AA entendia que os crimes de furto por si cometidos constituíam uma continuação criminosa deveria ter impugnado nos respectivos processos a sentença ou o acórdão que o condenou pelos vários crimes em apreço.

Também, na apreciação do presente recurso, que se encontra circunscrito à matéria de direito, este Supremo Tribunal não pode conhecer de questões que nem sequer foram colocadas no tribunal recorrido[5].

Acresce que, como se sustenta no Ac. STJ de 27/02/2019, “a figura do crime continuado requer a verificação dos pressupostos exigidos pelo n.º 2 do artigo 30.º do CP, que dependeria de matéria de facto proveniente de modificação não admissível na fase processual de conhecimento superveniente do concurso, em que o que está em causa é a punição de uma pluralidade de crimes, a que foram aplicadas penas por decisões transitadas em julgado, nos termos do n.º 1 do artigo 30.º e do artigo 77.º do CP[6]

Concluindo, o recurso do arguido AA, na parte em que pugna pela sua condenação por um só crime continuado, e pela aplicação do art. 79º, nº 1, do Cod. Penal é manifestamente inoportuno não podendo, por isso, conhecer-se desta sua pretensão.

B.2. Da medida da pena única

O acórdão recorrido aplicou ao arguido AA uma pena única de 9 (nove) anos de prisão, justificando-a, nos seguintes termos (transcrição)[7]:
“Na determinação da medida da pena única são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º, nº1 do Código Penal).
A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77º, nº2 do Código Penal).
Assim, a pena única terá como limite mínimo 3 de prisão e como limite máximo 16 anos e 3 meses de prisão.
Deste modo, há que ter em atenção que o condenado revela uma constante persistência em atuar com desrespeito pelos comandos legais, numa linha de continuidade criminosa, mormente uma tendência para a prática de crimes contra o património, o que evidencia que não interiorizou as anteriores condenações (inclusivamente em pena privativa da liberdade) como uma advertência, nem aproveitou as diversas oportunidades que lhe foram concedidos pelos diversos Tribunais.
No que se refere aos antecedentes criminais, importa considerar as condenações já sofridas pela prática de crimes contra o património, donde se infere que as condutas refletidas nestes factos apreciados no cúmulo não representam episódios isolados na sua vida, antes denotando uma personalidade insensível perante as normas jurídicas que regulam a vida em sociedade e revela resistência em se deixar influenciar positivamente pelas penas sofridas.
Parece-nos assim claro que a conduta delituosa revela uma notória propensão para a prática de ilícitos criminais, até porque, não obstante as diversas condenações, o condenado não colocou um ponto final na sua carreira criminosa.
Assim sendo, consideramos justo, necessário, adequado e proporcional a aplicação de uma pena única de 9 anos de prisão”.
O arguido AA pugna pela aplicação de uma pena única de prisão proporcional e justa.

O legislador instituiu um regime especial, suplementar, para a determinação da medida da pena do concurso de crimes, com a indicação do iter a seguir pelo juiz na quantificação da pena conjunta – cfr. art. 77º do Cod. Penal.

Assim, “A determinação da pena única por conhecimento superveniente do concurso obtém-se de acordo com um processo que se inicia pela identificação dos crimes em concurso e das penas aplicadas a cada um deles, construindo-se, assim, a moldura penal do concurso cujo limite máximo é dado pela soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, com os limites do n.º 2 do art. 77.º, sendo o limite mínimo o correspondente à mais elevada das penas concretamente aplicadas[8].

Numa situação de um concurso de crimes a pena única é obtida através da ponderação dos factos cometidos e da personalidade do agente. A doutrina e a jurisprudência coincidem em especificar que, na fixação do quantum da pena única a aplicar ao concurso de crimes é essencial que se apure do grau da gravidade dos factos e das tendências da personalidade que o agente neles revela, avaliando-se o comportamento global através da ponderação conjugada do número e da gravidade dos crimes e das penas parcelares englobadas e da sua relação de grandeza com a moldura da pena conjunta.

Segundo J. Figueiredo Dias, na escolha da medida da pena única “(…) tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”[9].

Assim, para a determinação da medida da pena única a aplicar há que ponderar o conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, procedendo-se a uma avaliação da gravidade da ilicitude global dos mesmos (tendo em conta o tipo de conexão entre os factos em concurso), e a uma avaliação da personalidade do agente, de forma a aferir em que termos é que a mesma se projecta nos factos por si praticados, de forma a apurar se a sua conduta traduz já uma tendência para a prática de crimes, ou se a sua conduta se reconduz apenas a uma situação de pluriocasionalidade.


No caso, para apreciar da justeza da pena única aplicada, terá de atender-se à globalidade dos factos praticados pelo arguido AA (descritos em todas as decisões condenatórias correspondentes aos processos-crimes em concurso), à natureza dos crimes praticados, ao limite mínimo e máximo da pena unitária a aplicar (a moldura penal abstracta do concurso dos crimes situa-se entre os 3 (três) anos e os 16 (dezasseis) anos e 3 (três) meses de prisão (art. 77º, nº 2, do Cod. Penal), e às diversas condenações já sofridas.

E, como se sustenta no Ac. STJ de 14/09/2016: “na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não releva os que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele "pedaço" de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua atividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão à face da respetiva personalidade, destarte se o mesmo tem propensão para o crime, ou se na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, sem relação com a sua concreta personalidade.

É esta avaliação global resultante desta interconexão geral, que permite apurar legitimamente o ilícito e culpa global, e perante tais conclusões, aferir in concreto a necessidade de prevenção especial e geral, à luz da amplitude que a apreciação total da atividade criminosa do agente permite”[10].

A doutrina maioritária[11] e a jurisprudência deste STJ[12] entendem que nada obsta a que a pena única seja determinada pela ponderação conjunta de factores do critério geral (enunciados no art. 71º do Cod. Penal), e do critério especial (enunciados no art. 77º, nº 1, do Cod. Penal, através da consideração conjunta dos factos e da personalidade).

E, perante a prática do mesmo tipo de crimes há que apurar da personalidade do arguido revelada nos factos praticados e no seu modo de execução, sendo que, “(…) À luz das regras da experiência, a violação, pelo agente, de vários bens jurídicos de igual importância, através da mesma ou de condutas imediatamente seguidas, exprime, geralmente, pluriocasionalidade. A reiteração espaçada de idênticas ou de diferentes condutas delituosas, à mesma luz, poderá evidenciar uma tendência, persistente vontade, ou carreira criminosa”[13]

Ora, como já se referiu o art. 71º do Cod. Penal estabelece os critérios para a determinação da medida da pena, e os arts. 77º e 78º, igualmente do Cod. Penal, estabelecem os critérios para a determinação da pena do concurso.

Assim, os elementos e os critérios para a determinação da pena única do concurso terão de atender às finalidades de prevenção geral (relacionadas com a natureza e o grau de ilicitude dos factos no sentido da provocação de um maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), e às exigências de prevenção especial (condições pessoais do agente atinentes à sua idade, à confissão, ao arrependimento, por forma também à apreciação e à avaliação da sua culpa), pelo que as circunstâncias que já fazem parte do tipo de crimes cometidos não podem ser consideradas na quantificação da pena concreta (proibição da dupla valoração).

E, dentro da moldura penal abstracta, o limite mínimo inultrapassável da dosimetria da pena concreta é dado pela necessidade de tutela dos bens jurídicos violados ou, na expressão do Prof. Jorge Figueiredo Dias, “do quantum da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias[14].

Resulta do Ac. STJ de 30/11/2016, que: “A proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação entre a gravidade do facto global e as características da personalidade do agente nele revelado e a intensidade da medida da pena conjunta.  (…) ,sendo que, “(…) a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da adequação e proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido, de forma uniforme e reiterada, que «no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de fatores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efetuada”[15].

E, como se assinala no Ac. STJ de 14/09/2016[16]Constitui entendimento há muito sedimentado que depois da fixação da moldura legal do concurso a aplicar, em função das penas parcelares, a pena conjunta deverá ser encontrada em consonância com as exigências gerais de culpa e prevenção”, sendo que o modelo do Código Penal é o da prevenção, determinando-se a medida da pena única tendo em conta a necessidade de protecção dos bens jurídicos e a medida da culpa.

No caso, o arguido AA pugna pela redução da pena conjunta de prisão aplicada alegando, em síntese, que:
- O acórdão recorrido nada fundamenta quanto à sua personalidade e situação pessoal, limitando-se a referir vagamente, o tipo e o número de infracções praticadas, o período temporal em que as mesmas foram cometidas, os seus antecedentes criminais, não fazendo referência ao estado actual do tratamento respeitante à sua toxicodependência, tendo deixado de consumir e encontrando-se a ser acompanhado nas consultas de desintoxicação;
- Tem 30 anos de idade, um filho menor de 4 anos de idade, manifestou arrependimento relativamente a todos os factos criminosos praticados, tem apoio familiar, manteve-se ocupado entre Setembro de 2020 e Janeiro de 2021, bem como no mês de Abril de 2021 (cfr. sentença do Proc. nº 776/20....), em plena pandemia tinha dificuldades na obtenção de emprego, e praticou os factos num período relativamente limitado;
- A aplicação de uma pena mais próxima dos limites mínimos seria mais adequada às necessidades de prevenção geral e ao cumprimento do propósito da sua reintegração na sociedade, sendo que a pena de prisão cumulativa aplicada pode ter como reflexo ou como consequência a sua desinserção quase total da sociedade civil, não tendo praticado crimes de tal gravidade, que apontem para a necessidade de quase somar as penas constitutivas do operado cúmulo, que excede em muito a sua culpa, tendo sido feita uma errada ou deficiente interpretação do disposto nos arts. 40º, nº 2, 71º, 77º, nº 1, 78º e 79º, nº 1, todos do Cod. Penal.

Vejamos:


É certa a afirmação do arguido AA que o acórdão recorrido não fez referência ao tratamento actual à sua toxicodependência, que deixou de consumir, e que está a ser acompanhado em consultas de desintoxicação. Contudo, estes factos não constam da matéria de facto dada como provada quanto às suas condições socioeconómicas (a qual se considera definitivamente assente uma vez que não foi impugnada) constando somente que o mesmo viu o seu percurso de vida ser condicionado pelo seu comportamento desajustado e pela sua toxicodependência tendo tais factores sido potenciadores de uma desorganização a todos os níveis, passando a sua vida centrado nas suas necessidades imediatas, com dificuldades em termos da capacidade de antecipar as consequências do seu comportamento, quer para si próprio, quer para terceiros, constando também que regista duas infracções disciplinares em meio prisional. Assim, não pode este Supremo Tribunal em sede de recurso conhecer de factos que não constam da fundamentação de facto do acórdão recorrido mesmo que o arguido os considere essenciais para apurar da justeza da medida da pena única que lhe foi aplicada.

É certa também a afirmação do arguido AA que o acórdão recorrido não teve em conta a sua idade, na determinação da medida da pena única, mas não sendo este, nem jovem, nem pessoa idosa, seria irrelevante essa menção para efeitos de atenuação da sua responsabilidade penal.

Resta agora apreciar se será de aplicar uma pena única mais próxima dos limites mínimos, em face do disposto nos arts. 40º, nº 2, 71º, 77º, nº 1, 78º e 79º, nº 1, todos do Cod. Penal, tal como pugnado pelo arguido.


Tendo presente as normas legais aplicáveis para a determinação da pena única numa situação de concurso de crimes, a posição da jurisprudência deste Supremo Tribunal, e da doutrina[17], e após uma análise das circunstâncias em que decorreu a conduta delituosa do arguido AA, e o período de tempo em que a mesma perdurou, temos que: (i) o primeiro crime de furto ocorreu em 24/11/2018; (ii) os outros nove crimes de furto (de entre eles cinco de furto qualificado), ocorreram em 01/01/2020, em 09/06/2020, e os outros sete entre 09/07/2020 e 17/07/2020; (iii) os crimes de furto simples e qualificado foram cometidos na freguesia ..., concelho ..., em dias diferentes (excepto dois cometidos em 09/07/2020) e consistiram na subtracção de objectos de diversa natureza em estabelecimentos comerciais (um computador da marca ..., no valor de € 2.199,00 numa loja, um alicate no valor de € 5,00, e um molho de chaves noutra loja, uns headphones com fio, de cor ..., da marca ..., de modelo ...”, avaliados em € 67,79 um smartphone, “CAT ...”, de cor ..., com o IMEI ...02, no valor de € 466,09), na subtracção de objectos numa residência de valor não apurado, mas superior a € 1.000,00, e ainda € 116,85 em dinheiro, na subtracção de um veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca ..., de modelo ... (X SERIE)”, de matrícula ..-..-UX, no valor estimado de € 6.000,00, e de uma cela de equitação, no valor estimado de €2.000,00, (retirada do porta-bagagens deste veículo), na subtracção de cerca de € 485,00, em dinheiro da caixa registadora do “...”, na subtracção da quantia de € 160,00, em dinheiro da caixa registadora do Snack-bar “...”, e ainda entre 30 a 50 cartões de jogo instantâneo, no valor de € 0,50 cada, e na subtracção de objectos numa residência de valor global estimado não inferior a € 9.000,00, e ainda na subtracção de 33 cautelas das lotarias do supermercado denominado “...”.

Ora, o arguido AA cometeu factos graves (dois crimes de furto qualificado em residências, apoderou-se de um veículo que utilizou designadamente para embater na porta principal de um café o “...”, onde se introduziu para fazer seu o que pudesse, e tentou assaltar um Banco não tendo logrado concretizar este seu intento porque o alarme disparou).

Contudo, o arguido AA praticou todos estes factos entre 24/11/2018 e 09/07/2020, na freguesia ..., no concelho ..., para fazer face a necessidades imediatas relacionadas com a sua dependência de estupefacientes, tendo demonstrado em todos os seus actos ter dificuldades em termos da capacidade de antecipar as consequências do seu comportamento, como resulta do acórdão recorrido. Com efeito, as circunstâncias e o denominador comum em que ocorreram os actos delituosos por si praticados é demonstrativa da constante procura de meios para fazer face à sua toxicodependência, sendo que o quadro de interconexão entre os diversos ilícitos cometidos leva-nos a concluir no sentido de se estar perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, sem relação com a sua concreta personalidade.

Assim, dúvidas não restarão que foi preponderante para a formação da personalidade defeituosa do arguido AA a sua dependência de consumo de produtos estupefacientes.


Entendemos serem elevadas as exigências de prevenção geral positiva que se fazem sentir face ao tipo de crimes cometidos que constituem uma importante fonte de alarme social, e as exigências de prevenção especial positiva ou de ressocialização que também se fazem sentir face a todo o comportamento do arguido AA, à sua toxicodependência, à sua personalidade avessa à assunção de responsabilidades, e às suas três anteriores condenações[18].

E, embora se entenda que o arguido AA carece de premente ressocialização, cremos que o ilícito global agora julgado não é resultado de uma tendência criminosa[19], assumindo ainda um carácter pluriocasional, que demanda a aplicação de uma pena única que possa ser por si interiorizada, como dissuasora da prática de novos crimes e que sirva de aviso para que adapte o seu comportamento às normas socialmente vigentes.

Ora, o provado percurso de vida do arguido AA, as suas condições socioeconómicas e familiares, bem como a sua actual situação de preso com um comportamento quase sem problemas [20], bem como o período de tempo da sua actividade criminosa, podem ainda prometer possibilidades de ressocialização.

Estamos perante uma situação de concurso entre penas de prisão de média e de curta duração, em que há que recorrer ao princípio da proporcionalidade, de modo a não aplicar uma pena única superior àquela que é exigida para reafirmar a estabilização dos bens jurídicos ofendidos, face à culpa suportada pelo arguido AA, à medida da sua vontade, e à sua personalidade.

No caso concreto, entende-se que a fundamentação do acórdão recorrido teve por base uma linha de continuidade criminosa por parte do arguido, onde se acentua a sua tendência para a prática de crimes contra o património, uma não interiorização relativamente às suas anteriores condenações face ao não aproveitamento das diversas oportunidades que lhe foram concedidos pelos diversos Tribunais, contudo, não se apreende suficientemente das razões subjacentes à opção por uma pena única de 9 (nove) anos de prisão, face à moldura penal em causa.

Assim, o acórdão recorrido valoriza a natureza e a persistência da actividade criminosa do arguido AA no empreendimento da prática dos crimes de furto sancionada nos referidos processos, faz constar que o mesmo viu o seu percurso ser condicionado pelo seu comportamento desajustado e pela sua toxicodependência mencionando que estes factores foram potenciadores de uma desorganização a todos os níveis, (passando a sua vida centrado nas suas necessidades imediatas, com dificuldades em termos da capacidade de antecipar as consequências do seu comportamento, quer para si próprio, quer para terceiros), mas não sinaliza estas circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns desta sua actividade, de forma a traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos cometidos, no sentido de esboçar uma compreensão dos seus actos em face da respectiva personalidade, norteada pela angariação de meios para fazer face aos seus comportamentos aditivos.

Entende-se que a fundamentação do acórdão recorrido poderia ter sido mais aprofundada quanto à relação dos factos praticados com a personalidade do arguido AA, de forma a obter uma mais concreta visão global do seu percurso de vida subjacente ao seu itinerário criminoso, sendo que a referência a “(…) uma constante persistência em atuar com desrespeito pelos comandos legais, numa linha de continuidade criminosa, mormente uma tendência para a prática de crimes contra o património”, apesar de estar correcta surge desacompanhada da indicação das demais circunstâncias que o levaram a toda esta conduta delituosa, e da indicação das condições de integração social de que o mesmo disporá em meio livre.

Com efeito, e tal como acentua o Prof. Jorge Figueiredo Dias[21] “(…) o substracto da culpa (…) não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível (…). Reside sim na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo a que chamamos a “atitude” da pessoa perante as exigências do dever ser. Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita, e, assim, o critério essencial da medida da pena

No caso, estando este Supremo Tribunal, enquanto tribunal de recurso, habilitado a conhecer (e a decidir) desta questão relacionada com a personalidade do arguido AA e correspondente juízo de culpa, deverá o mesmo estender os seus poderes de cognição a todos os aspectos jurídicos em que a mesma se insere dada a sua relevância no sentido de se encontrar directamente atinente com a determinação da medida pena única que lhe deverá ser aplicada[22].

Ora, não obstante se entender que a censurabilidade ético-jurídica já será acentuada, tendo o arguido AA agido sempre com dolo directo, situação que demanda a aplicação de uma pena única que respeite os limites traçados pela prevenção geral de integração, e pela culpa, e que seja suficiente e adequada a adverti-lo séria e fortemente, instando-o a reflectir sobre o seu comportamento futuro, permitindo-lhe ao mesmo tempo a sua reintegração na comunidade, face à moldura penal abstracta do concurso dos crimes [entre os 3 (três) e os 16 (dezasseis) anos e 3 (três) meses de prisão], entende-se desadequada a pena única de 9 (nove) anos de prisão que lhe foi aplicada.

Com efeito, mesmo considerando as carências de socialização do arguido AA, tendo presente o efeito previsível da pena única sobre o seu comportamento futuro, e numa perspectiva do direito penal preventivo, julga-se justo e adequado proceder à redução da pena unitária aplicada pela 1ª Instância para 8 (oito) anos de prisão, a qual não afronta os princípios da necessidade, da proibição do excesso, e da proporcionalidade das penas, a que alude o art. 18º, nº 2, da CRP, nem ultrapassa a medida da sua culpa, revelando-se proporcional à defesa do ordenamento jurídico.

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:
- Conceder parcial provimento ao recurso do arguido e, em consequência, alterar o acórdão da 1ª Instância quanto à pena única aplicada, que é reduzida para 8 (oito) anos de prisão, mantendo-se, no demais, o decidido.
- Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 7 de Julho de 2022
(Processado em computador, revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do Cod. Proc. Penal)

Adelaide Sequeira (Relatora)

Eduardo Loureiro

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Proc. n.º 133/22.2T8PDL.L1.S1

Declaração de voto (Maria do Carmo Silva Dias)

Voto o acórdão, com a declaração de que quanto à decisão de redução da pena única para 8 anos, discordo da sua fundamentação, uma vez que, na minha perspetiva (salvo o devido respeito pela opinião contrária) entendo, tal como a 1ª instância, que o arguido/recorrente apresenta propensão para a prática de crimes contra o património (como resulta dos dados objetivos que se podem extrair dos factos dados como provados, nomeadamente dos antecedentes criminais que o recorrente tem na mesma área, cujas condenações evidenciam que não serviram de suficiente advertência para o levar a conformar a sua vida de acordo com o direito).

Assinale-se, em resumo, que atendendo aos respetivos factos no conjunto[23] (conexão entre os crimes cometidos, seu diferente grau de gravidade, olhando para a sua natureza e dos bens jurídicos violados – sendo certo que parte dos 10 crimes contra o património cometidos se inserem na pequena e média criminalidade - período de tempo durante o qual foram cometidos, em 24.11.2018 e depois em 1.01.2020 e entre 6.05.2020 e 18.07.2020, o que para um adulto da idade do recorrente, nascido em .../.../1992, acentua de alguma forma essa gravidade e realça a sua indiferença para levar uma vida de acordo com as regras e valores subjacentes ao ordenamento jurídico) e à sua personalidade (avessa ao direito, atento o circunstancialismo fáctico global apurado), que se mostra adequada aos factos cometidos, evidenciando uma certa propensão para crimes contra o património e maior perigo de reincidência nessa área (atento todo o seu modo de atuação ao longo do tempo em que cometeu os factos no seu conjunto, vistas as condenações anteriores sofridas e falta de motivação para levar uma vida conforme ao direito), há mais elevadas exigências de prevenção geral e especial relativamente ao ilícito global embora, tendo em atenção que, no conjunto dos factos, parte dos crimes contra o património pertencem à pequena e média criminalidade.

Ainda tendo por referência os factos no conjunto em avaliação, importa considerar a capacidade de reinserção social do arguido/recorrente, particularmente as condições de vida apuradas, incluindo as dificuldades que atravessou (mesmo considerando a problemática relacionada com a toxicodependência que também contribuiu para a sua postura desajustada em relação às regras normativas, mas não esquecendo, que nem todos os cidadãos que vivem nas mesmas condições e tem também problemas aditivos, cometem crimes), o seu comportamento no período em que cometeu os crimes em questão (sendo que ao menos no período entre 25.11.2018 até final de 2019 não consta que tivesse cometido crimes, o que é positivo), e, posteriormente aos factos, que aponta para alguma evolução positiva (desde que está preso, ou seja, desde 24.07.2020 – apesar das duas infrações disciplinares sofridas – conta com apoio familiar da companheira e do filho que o visitam, ainda que irregularmente)[24], o que tudo justifica (mesmo considerando as suas carências de socialização e o efeito previsível da pena única a aplicar sobre o seu comportamento futuro), em nome do princípio da proporcionalidade, a redução da pena única (de 9 anos) aplicada pela 1ª instância para 8 anos de prisão, por esta (além de não ultrapassar a medida da sua culpa, à luz das considerações que acima fizemos) ser ainda adequada para contribuir para a sua futura reintegração social e satisfazer as finalidades das penas, permitindo que o recorrente vá interiorizando o desvalor das condutas que praticou, apure o sentido crítico, reflita sobre as consequências dos seus atos e consiga preparar-se para adotar uma postura socialmente aceite.

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[1] Texto transcrito sem negritos nem sublinhados.
[2] Texto transcrito sem negritos nem sublinhados.

[3] Cfr. Ac. STJ de 09/10/2019, in Proc. nº 3145/17.4JAPRT.S1, Relator Cons. Raúl Borges
[4] Proc. nº 106/20.0PFPDL (condenação de 1 ano de prisão efectiva), Proc. nº 2033/18.1PBPDL (condenação de 3 anos de prisão efectiva), Proc. nº 1051/20.4PBPDL (condenação nas penas parcelares de prisão de 2 meses, de 7 meses, de 10 meses, de 1 ano e 10 meses, de 2 anos e 5 meses, de 2 anos e 3 meses, de 3 anos, e na pena única de 6 anos de prisão, e no Proc. nº 776/20.9PBPDL (condenação de 2 anos e 2 meses de prisão (efectiva).
[5] Neste sentido cr. Ac. STJ de 06/01/2021, Proc. nº 634/15.9PAOLH.S2, acessível em www.dgsi.pt
[6] Proc. nº 186/05.8TASSB.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[7] Transcrição dos 2 últimos § da pag. 16, pag. 17, e pag. 18, do acórdão recorrido sem negritos nem sublinhados.
[8] Cfr. Ac. STJ de 15/11/2017, Proc. nº 27/11.7JBLSB.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[9] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pag. 291.
[10] Proc. nº 71/13.0JACBR.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[11] Máxime: J. Figueiredo Dias e autores que cita na nota 98, da pag. 292, da ob. já anteriormente citada.
[12] Cfr. entre outros, o Ac. STJ de 23/05/2018, Proc. nº 799/15.OJABRG.S1, e o Ac. STJ de 06/01/2021, Proc. nº 634/15.9PAOLH.S2, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[13] Cfr. o já citado Ac. STJ de 06/01/2021, Proc. nº 634/15.9PAOLH.S2.
[14] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pag. 242
[15] Proc. 804/08.6PCCSC.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt/.
[16] In Proc. nº 3/12.2GAAMT-D.S1, acessível em www.dgsi.pt
[17] Embora só tenha sido feita uma breve alusão ao Prof. Jorge Figueiredo Dias.
[18] Foi condenado anteriormente pela prática em 01/10/2010, de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 13 meses de prisão suspensa por igual período 3 anos e 6 meses, que foi declarada extinta, pela prática em 18/06/2016, de um crime de furto simples, na pena de 110 dias de multa à taxa diária de € 5,00, tendo cumprido 73 dias de prisão subsidiária, pela prática em 01/12/2016 de um crime de furto qualificado e em 21/02/2017 e de um crime de furto simples, na pena única de 2 meses e 4 anos de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, entretanto revogada.
[19] Face à inter-relação entre os factos e a personalidade do arguido.
[20] Perdeu muito cedo os seus progenitores, foram os irmãos mais velhos que o acompanharam, viu todo o seu comportamento desajustado devido à toxicodependência que acabou por comandar a sua vida que se centrou em fazer face às suas necessidades imediatas, tendo dificuldades em avaliar as consequências do seu comportamento, quer para si próprio, quer para terceiros, em meio prisional regista duas infracções disciplinares desconhecendo-se a sua natureza e se pelas mesmas foi objecto de uma punição.

[21] Em Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1983, págs. 183 a 185, citado no Ac. STJ de 30/11/2016, Proc. nº 804/08.6PCCSC.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[22] Cfr. neste sentido de raciocínio os comentários inseridos nas notas de rodapé 77 (pag. 581), 87 (pag. 589), 101, (pag. 602), e 195, (pag. 733), da Parte III “Os Recursos Num Processo de Estrutura Acusatória”, de José Manuel Damião da Cunha, in “O Caso Julgado Parcial Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatóra” (Publicações Universidade Católica), Porto 2002.


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[23] Factos concretos esses, dados como provados (excluídas as conclusões que se tem de considerar como não escritas), dos quais (na nossa perspetiva e, salvo o devido respeito por opinião contrária) não se extrai que o arguido/recorrente os tivesse praticado em “constante procura de meios para fazer face à sua toxicodependência”, ou que apresentasse uma “personalidade, norteada pela angariação de meios para fazer face aos seus comportamentos aditivos” e que, também, não sustentam deduções de que os crimes em concurso cometidos fossem “eventos criminosos episódicos, sem relação com a sua concreta personalidade” ou que “foi preponderante para a formação da personalidade defeituosa do arguido AA a sua dependência de consumo de produtos estupefacientes”, assumindo o ilícito global “ainda um carácter pluriocasional”.

[24] No acórdão sob recurso, deveria o Coletivo ter igualmente transcrito os factos concretos relativos à situação pessoal, social e económica, bem como quanto às condições de vida do arguido/recorrente antes, à data dos factos e posteriormente, tal como constam, por exemplo, do acórdão proferido no processo n.º 1051/20.4... (conforme certidão junta aos autos) e, de forma atualizada, tendo por referência a data em que foi proferida a decisão sob recurso, por ser adequado e ajustado à decisão de cúmulo jurídico que proferiu, em vez de fazer uma síntese que em parte foi conclusiva e, por isso, desajustada.