HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
REVOGAÇÃO
LIBERDADE CONDICIONAL
CUMPRIMENTO DE PENA
INDEFERIMENTO
Sumário


I- O habeas corpus (providencia que é distinta do recurso e se destina a assegurar o direito à liberdade com base nos fundamentos aludidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP) não serve, nem pode ser utilizado para solicitar explicações/justificações, ou para pedir esclarecimentos, como o faz indevidamente o peticionante.
II- No âmbito desta providência excecional, ao STJ não incumbe, nem cabe nos seus poderes de cognição, analisar questões que extravasam os fundamentos previstos no art. 222.º do CPP.
III- Atento o disposto no art. 222.º, n.º 2, do CPP, não ocorre qualquer fundamento para o deferimento deste habeas corpus, uma vez que é legal a prisão do peticionante, que está em cumprimento de pena de prisão, determinada por entidade competente e por facto que a lei permite.

Texto Integral




Proc. n.º 40/14.2TXLSB-U.S1

Habeas corpus

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I Relatório

1. O arguido AA, por si, através de mail de 18.06.2022, apresentou providência de habeas corpus, com referência ao processo n.º 40/14.... do TEP ..., com os seguintes fundamentos:

“AA, recluso inocente sequestrado/raptado/escondido no E.P. ..., com identificação ...65, nacionalidade portuguesa, vem, por este meio, solicitar a V./Exas. explicação/justificação, para apresentar ao Supremo Tribunal de Justiça, porque revogaram, ilegalmente, a liberdade condicional, do recluso em questão, sem darem/garantirem o seu direito a impugnar a mesma.

Mais solicita, que justifiquem/expliquem a ou as razões que leva o TEP a manter AA, escondido/sequestrado/raptado em instituições prisionais do Estado, E.P. ..., e sem acesso à justiça, como foi o caso presente, onde não lhe foi conferido o direito à impugnação de uma revogação, ilegal, de liberdade condicional.

Desde já, agradece toda a atenção e compreensão dispensada em relação ao solicitado, ficando à V./disposição para o que for necessário para o efeito.”


2. No Juízo de Execução de Penas ... o Sr. Juiz ... prestou a seguinte informação[1]:

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do art. 223.º do CPP consigno que:

- o recluso AA foi condenado, por decisão transitada em julgado, no processo nº 131/08...., do ... Juízo do Tribunal Judicial ..., na pena de 6 anos de prisão, cuja execução foi acompanhada nos autos de liberdade condicional     nº 40/14...., pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes;

- De harmonia com a liquidação efetuada pelo processo da condenação, eram relevantes para efeitos de liberdade condicional as seguintes datas: Início: 1 dia de detenção e preso desde 06.01.2014; Meio da pena: 05.01.2017; Dois terços da pena: 05.01.2018; Termo da pena: 05.01.2020.

- a liberdade condicional foi apreciada nesse apenso A com referência ao meio da pena e foi indeferida por decisão proferida em 03.04.17;

- o recluso interpôs recurso de tal decisão e o Tribunal da Relação ... por decisão proferida em 12.07.17 concedeu a liberdade condicional ao recluso;

- o recluso foi libertado condicionalmente nesse mesmo dia;

- o período de liberdade condicional decorreu de 12.07.17 até 05.01.20;

- a liberdade condicional ficou sujeita a diversas obrigações, entre as quais a de não cometer crimes;

- durante o período de liberdade condicional (de 12.07.17 até 05.01.20) o libertado foi condenado:

a) no processo nº 72/18.... do TJ da Comarca ..., Juízo Local Criminal ... (decisão transitada em julgado em 02.02.21), na pena de 1 ano de prisão pela prática de um crime de denúncia caluniosa, cometido no período da liberdade condicional, designadamente no dia 06.09.17 (apenso M);

b) no processo nº 167/18.... do TJ da Comarca ..., Juízo Local Criminal ... (decisão transitada em julgado em 23.02.19), na pena de 3 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano pela prática de um crime de desobediência, cometido no período da liberdade condicional, designadamente no dia 20.10.17;

- por despacho proferido no processo nº 72/18...., foi efetuada a seguinte liquidação da pena:

- início: 19.04.21, meio da pena em 19.10.21, dois terços em 19.12.21 e termo em 19.04.22 (cfr. fls. 10, 11 e 19 e 20 do apenso M);

- o recluso estava a cumprir a referida pena no EP ...; - o recluso foi transferido para o ... em 08.06.21 (cfr. fls. 22 do apenso M), tendo os autos de liberdade condicional que constituem o apenso M sido remetidos para este J... do Juízo de Execução ...;

- no incidente de incumprimento que constitui o apenso N procedeu-se à audição do libertado no dia 13.07.21, o qual entende que durante o período da liberdade condicional não cometeu qualquer crime, referindo que o processo nº 72/18.... do TJ da Comarca ..., Juízo Local Criminal ... está a ser alvo de uma investigação na PGR, que sofreu um prejuízo de 60 milhões de euros, que lhe tem sido sucessivamente negado o acesso à justiça e que tem sido vítima da justiça;

- por decisão proferida no apenso N (incidente de incumprimento da liberdade condicional) foi revogada a liberdade condicional facultada ao condenado no âmbito do processo nº 131/08...., do ... Juízo do Tribunal Judicial ... e, consequentemente, foi determinada a a execução da pena de prisão remanescente;

- tal decisão foi notificada ao recluso e à sua defensora e transitou em julgado;

- foi calculado em 2 anos, 5 meses e 24 dias o remanescente de pena de prisão que o recluso tem a cumprir à ordem do processo nº 131/08...., do ... Juízo do Tribunal Judicial ...;

- em 08.10.21 foi efetuado o cômputo sucessivo de penas que o recluso se encontra a cumprir, que abrange os processos nº 131/08...., do ... Juízo do Tribunal Judicial ... e 72/18...., cômputo esse que foi judicialmente homologado (cfr. fls. 75 e 76 do apenso M);

- o recluso, que estava em cumprimento de pena à ordem do processo nº 72/18.... desde o dia 19.04.21 foi desligado desse processo no dia 19.10.21 (ao meio da pena) e foi ligado ao processo nº 131/08...., do ... Juízo do Tribunal Judicial ..., estando o termo dessa pena previsto para o dia 12.04.24 (cfr. fls. 88 do apenso M);

- o termo destas duas penas está previsto para 13.10.24;

- o recluso tem apresentado inúmeros requerimentos nos autos alegando que “está inocente, preso, sequestrado/raptado/escondido no ...” e que não lhe foi permitido impugnar a “revogação ilegal da liberdade condicional”;

- no âmbito do processo nº 72/18.... o irmão do recluso apresentou providência de habeas corpus, a qual foi indeferida;

- no âmbito do processo nº 72/18.... o recluso apresentou providência de habeas corpus, a qual foi indeferida;

- no âmbito do processo nº 72/18.... o recluso apresentou outra providência de habeas corpus, a qual foi indeferida;

- no âmbito do processo nº 131/08.... o recluso apresentou outra providência de habeas corpus;

- por decisão proferida no processo nº 15/19.... e transitada em julgado no dia 17.02.22, o recluso foi condenado na pena de um ano e oito meses de prisão pela prática de dois crimes de introdução em lugar vedado ao público e dois crimes de dano em 1 de março e 21 de maio de 2019 (cfr. fls. 156 a 169);

- por decisão proferida no processo nº 209/20...., transitada em julgado em 19.05.22 o recluso foi condenado na pena de 1 ano e 3 meses de prisão pela prática de um crime de denúncia caluniosa (cfr. fls. 210 a 218);

- os autos encontram-se a aguardar informação sobre se o processo nº 209/20.... pondera proceder a cúmulo jurídico com a pena aplicada no processo nº 72/18.....

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Em face de todo o exposto, entendemos que carece de fundamento a providência apresentada.

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Instrua o presente apenso de Habeas Corpus com certidão de fls. 1 a 223 do apenso M e certidão da decisão proferida nos autos de incumprimento, com nota de trânsito em julgado.

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Junte ao apenso A cópia certificada do presente despacho.

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Após, remeta de imediato este apenso de Habeas Corpus acompanhado do suporte informático da presente informação para apreciação pelo Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

3. Realizada a audiência aludida no art. 223.º, n.º 3, do CPP, cumpre conhecer e decidir.

II Fundamentação

4. Invoca o aqui peticionante que é um recluso inocente e que vem através do habeas corpus solicitar uma explicação/justificação, para saber porque revogaram a sua liberdade condicional, na sua perspetiva ilegalmente, sem lhe terem dado ou garantido o seu direito a impugnar essa decisão, pedindo que lhe expliquem porque é que o TEP o mantém ilegalmente preso (nas suas palavras, “escondido/sequestrado/raptado em instituições prisionais do Estado, E.P. ...”), sem acesso à justiça.

Vejamos então.

5. Dispõe o artigo 222.º (habeas corpus em virtude de prisão ilegal) do CPP:

1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

São taxativos os pressupostos do habeas corpus (que também tem assento no art. 31.º da CRP), o qual não se confunde com o recurso, nem com os fundamentos deste.

Aliás, como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Lisboa: Editorial Verbo, 1993, p. 260, o habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”.

De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determina a prisão ou a privação da liberdade, nem tão pouco erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

6. E, o que é que se passa neste caso concreto?

Conforme resulta das certidões constantes deste habeas corpus, por decisão proferida no Juízo de Execução de Penas ..., Juiz ..., de 20.07.2021, transitada em julgado em 25.08.2021, proferida nos autos de Incidente de Incumprimento (Lei 115/2009), registados sob o n.º 40/14...., foi revogada a liberdade condicional facultada ao condenado AA e determinada a execução da pena de prisão remanescente no processo nº 131/08...., do ... Juízo do Tribunal Judicial ....

Tendo transitado em julgado a referida decisão que revogou a liberdade condicional, foi efetuado o cálculo da pena remanescente a cumprir no referido processo nº 131/08.... (remanescente total de 2 anos, 5 meses e 24 dias de prisão) e posteriormente, foi homologada a contagem sucessiva de penas que se encontrava a cumprir, que abrangia os processos nº 131/08...., do ... Juízo do Tribunal Judicial ... e n.º 72/18...., do Juízo Local Criminal ..., sendo que em 19.04.2021 foi desligado deste processo (por ter aí atingido o meio da pena) para o processo nº 131/08...., estando o termo desta pena previsto para o dia 12.04.2024 e o termo de ambas as penas previsto para 13.10.2024 (ver certidão dos autos n.º ...4...).

Portanto, o peticionante está em cumprimento de pena, não sendo ilegal a sua prisão, uma vez que foi ordenada por autoridade competente, com base em facto que a lei permite.

O habeas corpus não serve, nem pode ser utilizado para solicitar explicações/justificações, ou para pedir esclarecimentos, como o faz indevidamente o peticionante.

No âmbito desta providência, ao STJ não incumbe, nem cabe nos seus poderes de cognição, analisar questões que extravasam os fundamentos previstos no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

Se o peticionante pretende impugnar decisões do TEP ou arguir eventuais irregularidades que entende terem sido ali cometidas terá de, atempadamente, nomeadamente através de advogado ou defensor oficioso, usar dos mecanismos próprios, o que não se confunde com a utilização da providencia de habeas corpus, cuja natureza excecional (distinta do recurso) se destina a assegurar o direito à liberdade, considerando os fundamentos aludidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

Ou seja, não é no habeas corpus que pode discutir as questões que coloca relacionadas com a revogação da liberdade condicional, tanto mais que, como consta da certidão junta aos autos, essa decisão transitou em julgado, não se mostrando ilegal (como, aliás, bem sabe, tal como já foi igualmente referido na decisão deste STJ de 2.06.2022 proferida no habeas corpus nº 131/08....).

De resto, como já se viu, atento o disposto no art. 222.º, n.º 2, do CPP, não ocorre qualquer fundamento para o deferimento deste habeas corpus, sendo legal a prisão do peticionante.

Assim, conclui-se que esta providencia excecional carece manifestamente de fundamento que a justifique.

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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus ora em apreciação.

Custas pelo requerente, com 4 UC`s de taxa de justiça e, sendo ainda condenado, nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP, na importância de 6 UC`s a título de sanção processual.

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Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria, pelo Senhor Juiz Conselheiro Adjunto e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente.

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Supremo Tribunal de Justiça, 07.07.2022

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Cid Geraldo

Eduardo Almeida Loureiro

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[1] Transcrição da informação sem negritos.