QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
DISPOSIÇÃO DE BENS
ALIENAÇÃO
ADMINISTRADOR
SOCIEDADE
INSOLVÊNCIA CULPOSA
INDEMNIZAÇÃO
CREDOR
OFENSA DO CASO JULGADO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
CONTRADIÇÃO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OBSCURIDADE
Sumário


I - O conceito jurídico de bens não se limita às coisas propriamente ditas, mas abrange outros possíveis objetos da relação jurídica, como sejam os direitos subjetivos, as universalidades de direito ou as prestações creditícias.
II - Por disposição de bens não se podem entender apenas os atos de alienação de bens da propriedade do devedor mas todo e qualquer ato de disponibilização (afetação) a terceiro de vantagens económicas que, segundo a sua normal ordenação, estavam destinadas a fazer parte unicamente da esfera jurídica do devedor.
III - Mostrando-se que o administrador da sociedade insolvente afetou a outra sociedade recursos (trabalhadores, instalações, clientela) que pertenciam ao acervo económico da insolvente, dispôs em proveito daquela de bens desta, com o que se cai em insolvência culposa, nos termos da alínea d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.
IV - Mostrando-se que a sociedade insolvente não apresentou escrita contabilística com reporte a todo um ano, cai-se na hipótese de insolvência culposa, nos termos da alínea h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.
V - A indemnização devida aos credores a cargo do afetado pela insolvência culposa deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir.

Texto Integral




Processo n.º 291/18.0PRG-C.G2.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Guimarães

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

Tendo sido oportunamente declarada (sentença de 31 de julho de 2018, proferida pelo Juízo de Comércio ...) a insolvência de N..., S.A., apresentou-se a Credora Portal Visual, SL a promover a qualificação da insolvência como culposa, pretendendo que fosse afetado o administrador único da Insolvente, AA.

Imputou a este último a prática dos diversos atos que descreve, traduzidos basicamente no esvaziamento da atividade da Insolvente em favor de uma outra empresa concorrente e no incumprimento do dever de apresentação à insolvência, atos esses que seriam subsumíveis às previsões das alíneas b), e) e f) do n.º 2 e a) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

Proferido despacho a declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, emitiu a Administradora da Insolvência parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa, apontando para a ocorrência de factos subsumíveis á previsão da alínea h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, devendo ser afetado o aludido administrador.

O Ministério Público pronunciou-se igualmente, e por referência à al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, no sentido da qualificação da insolvência como culposa e afetação do mesmo administrador.

O indicado afetado AA deduziu oposição, defendendo a natureza fortuita da insolvência.

Seguindo o processo seus devidos termos, veio depois a ser proferida sentença onde se decidiu qualificar como culposa a insolvência, sendo afetado AA, com as consequências ali determinadas.

Inconformado com o decidido, apelou o afetado AA.

A Relação de Guimarães negou provimento ao recurso quanto às questões que nele eram suscitadas da nulidade da sentença e da modificação da matéria de facto, mas decidiu anular parcialmente o julgamento, determinando a ampliação da matéria de facto relativamente ao facto 25 dos Factos Provados (interessava apurar o período temporal em que se verificou a factualidade dada como provada nesse ponto), sendo que, mais se determinou, a repetição do julgamento não abrangeria a parte não viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto com o fim de evitar contradições.

Repetido o julgamento com vista ao cumprimento do assim determinado, foi proferida nova sentença, onde se decidiu:

“ (…) nos termos do disposto nos arts. 191º nº1, al. c) e 189º nºs 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o tribunal qualifica como culposa a insolvência de N..., S.A. (…), e, em consequência:

a) Declara afetado pela qualificação AA;

b) Decreta a inibição de AA para administrar patrimónios de terceiros pelo período três anos;

c) Declara AA inibido, pelo período de três anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;

d) Determina a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA;

e) Condena AA a indemnizar os titulares dos créditos sobre a insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até ao valor de € 322.477,54 (…)”.

De novo insatisfeito com o sentenciado, apelou o afetado AA, impugnando parte da matéria de facto e defendendo outra solução de direito (natureza fortuita da insolvência e, subsidiariamente, a redução dos efeitos decretados na sentença).

Fê-lo sem qualquer êxito, pois que a Relação de Guimarães confirmou a sentença.

Mantendo-se irresignado, pede o afetado AA revista.

Introduziu o recurso como revista ordinária na parte em que o objetivou na ofensa do caso julgado e na parte em que o objetivou em certos vícios de procedimento do acórdão recorrido em sede de matéria de facto. Quanto ao mais, e subsidiariamente, introduziu o recurso como revista excecional.

Foram os autos à competente Formação para pronúncia sobre a admissão da revista excecional, vindo a esta a ser admitida.

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São as seguintes as conclusões que o Recorrente extrai da sua alegação:

A) DA REVISTA NORMAL:

1 - Para além da temática relativa à factualidade considerada provada sob o ponto 25., consignou-se expressamente no douto Acórdão do Tribunal da Relação de 03 de Dezembro de 2020, e que procedeu à anulação da primitiva sentença proferida pela 1.ª instância, a possibilidade de repetição do julgamento e apreciação de outros pontos da matéria de facto com o fim de evitar contradições,

No entanto,

2 - Na decisão de que se recorre do Tribunal da Relação foi decidido não proceder à reapreciação da matéria factual constante do identificado ponto 22., com o singelo argumento que a mesma não contende com o ponto 25. da factualidade, e que com o primitivo Acórdão do Tribunal da Relação de 03 de Dezembro de 2020, ficou definitivamente apreciada e decidida a impugnação da matéria de facto, com exceção da ampliação do ponto 25. dos factos dados como provados, não podendo o recorrente, depois de não o ter feito anteriormente (no anterior recurso), impugnar outros pontos da matéria de facto ;

Sendo que,

3 - O ponto 22. da factualidade considerada provada, ainda não foi objeto de alegação de recurso e correspondente decisão, e para além de se revelar contraditório com a demais factualidade considerada provada, também não corresponde à verdade, assim enfermando de falsidade;

Ora,

4 - Esta decisão de que se recorre viola frontalmente o caso julgado formal, pois que a primitiva decisão proferida não pode ter o condor de revestir um carácter parcelar restrita ao âmbito do ponto 25. da factualidade, resultando do seu teor literal a possibilidade de repetição e apreciação de outros pontos da matéria factual com o objetivo de evitar contradições, como, aliás, é poder/dever do Tribunal, e resulta expressamente do teor literal do artº. 662º, nº 3, al. b), do C.P.C.;

Pelo que,

5 - Ao não admitir a impugnação processada ao identificado ponto 22., a decisão de que se recorre do Tribunal da Relação a quo violou o caso julgado formal que resulta da sua anterior decisão transitada em julgado e que determinou a repetição do julgamento e apreciação de outros pontos da matéria de facto com o objetivo de evitar contradições, assim violando o preceituado nos artigos 620º e 621º, do Código de Processo Civil.

Sem prescindir,

6 - A matéria factual inserta no ponto 22., revela-se contraditória com a matéria factual constante do ponto 16., no âmbito da qual se consignou que a insolvente apresentou resultados negativos na ordem de 88.735,53€ durante o exercício de 2016, e de 56.323,75€ no exercício de 2017, sendo que estes valores teriam forçosamente de resultar da análise da escrita contabilística e informação fiscal apresentadas pela sociedade insolvente, o que necessariamente pressupõe a sua existência e informação;

Além disso,

7 - A matéria factual inserta no ponto 22. revela-se também contraditória e incompatível com a matéria factual constante dos pontos 11. e 20., no âmbito da qual se considerou provada a existência do órgão fiscal da insolvente bem como de empresa contratada para a execução da respetiva contabilidade, o que necessariamente pressupõe a existência de uma estrutura organizada de contabilidade que comportava um departamento fiscal e financeiro da insolvente, tal como a lei o define e exige, e com os inerentes deveres, deontológicos até, de proceder à respetiva execução, vigilância e fiscalização.

Mais,

8 - A matéria factual inserta no ponto 22. é também contraditória com a matéria factual constante do ponto 19., a qual considerou provado que foram sujeitas a discussão em assembleia geral as contas relativas ao exercício de 2016 ;

Outrossim, e para além de contraditória,

9 - A matéria factual constante do ponto 22. também não corresponde à verdade, enfermando de falsidade na medida em que os autos fornecem elementos seguros e certos no sentido de se concluir que, de facto, foi apresentada em 2017 a escrita contabilística e informações fiscais relativas ao exercício de 2016, assim como em relação a todos os restantes anos, o que resulta nomeadamente da Menção de Depósito de Contas constante da matrícula da sociedade insolvente relativa à prestação de contas do ano de 2016, efetuada através da apresentação registral n.º .../2017-07-25, ou seja em 25 de Julho de 2017, bem como dos documentos contabilísticos juntos com o requerimento apresentado nos autos principais em 31 de Julho de 2018;

10 - Em face da prova que os autos documentam, é manifestamente inconsistente, sem sentido, a valoração processada pelo Tribunal de 1.ª instância na identificada matéria factual posta em crise e correspondente ao ponto 22. da factualidade, pois que para além de resultar contraditória com os pontos 16., 11., 19. e 20. da factualidade, a mesma também não corresponde à verdade, enfermando de falsidade, pois que os elementos probatórios documentais e testemunhais supra citados, e que por razões de economia processual aqui damos por reproduzidos, apontam em sentido diverso, devendo-lhes ser atribuído um valor probatório tal que imponha decisão diversa, devendo em consequência ser eliminada a matéria factual constante do ponto 22. da factualidade, porque contraditória e enfermando de erro de julgamento, o que se requer nos termos do preceituado nos artigos 640º, n.º 1, e 662º, do Código de Processo Civil, e com as legais consequências;

E, por isso,

11 - Ao recusar a apreciação e decisão sobre a matéria de facto constante do ponto 22. da factualidade considerada provada, o Tribunal da Relação a quo violou os seus poderes/deveres relativos ao requerido conhecimento da impugnação da matéria de facto que resultam do preceituado no artigo 662º do C.P.C., e por referência ao art.º 674º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal, e com as legais consequências, nomeadamente com a reapreciação e eliminação da identificada factualidade e consequente prolação de decisão final.

Por outro lado,

12 - Fundamentou em singelo o Tribunal de 1.ª instância que a matéria factual vertida no ponto 25. implicou um “agravamento da situação de insolvência”, ao dispor de recursos da sociedade requerida e, de igual forma, o Tribunal da Relação considerou e reiterou, em singelo, que nesta parte a conduta do Recorrente determinou um “decréscimo progressivo da atividade da insolvente”, assim corroborando o decidido pelo Tribunal de 1ª instância.

No entanto,

13 - Tais expressões de “agravamento da situação de insolvência” ou “decréscimo progressivo da atividade da insolvente” não tem qualquer suporte factual na matéria de facto considerada provada, assim se traduzindo em inadmissíveis juízos conclusivos sem suporte factual que os sustente;

Aliás,

14 - Tais expressões de “agravamento da situação de insolvência da sociedade requerida” e “decréscimo progressivo da atividade da insolvente” revelam-se manifestamente contraditórias com a           demais fundamentação da sentença final proferida em 1.ª instância, na medida em que foi o próprio Tribunal de 1.ª instância que expressamente admitiu e exarou que as relações comerciais mantidas entre a sociedade requerida e a sociedade “O...” no que respeita a bens, clientes e contrapartidas, não foram suscetíveis de causarem quaisquer prejuízos àquela;

Por outro lado

15 - Também não resulta da matéria de facto considerada provada que o Requerido aqui recorrente tenha logrado obter qualquer benefício pessoal com a disposição de bens da sociedade insolvente ou com as suas relações comerciais e, nomeadamente, com a sociedade “O...”, com o correspondente prejuízo da sociedade insolvente;

E,

16 - Também não resulta da matéria de facto considerada provada que a sociedade “O...” tenha logrado obter qualquer benefício com a disposição de bens da sociedade insolvente ou com as relações comerciais mantidas, não            se encontrando sequer demonstrado e provado a importância económica desses bens, nomeadamente o seu valor e importância económica, e com o correspondente prejuízo da sociedade insolvente;

Além disso,

17 - O Tribunal de 1.ª instância, não procedeu à audição de um único cliente, ou de um único fornecedor, quer da sociedade insolvente quer da “O...”, e que sustentasse qualquer desvio de clientela ou mercadoria e, com respeito a estas duas sociedades, e quanto a faturação e negócios, o Tribunal de 1.ª instância, corroborado pelo Tribunal da Relação, não analisaram criticamente, e porque não alegado pela Requerente, uma única ou qualquer fatura ou faturas em concreto, nem um único documento contabilístico, nomeadamente balanços ou balancetes relativo às sociedades em questão, e que fossem suscetíveis de indicar qualquer irregularidade,

Mais,

18 - As instâncias não analisaram um único negócio em concreto, e porque não concretizado pela requerente, que fosse suscetível de prejudicar a sociedade insolvente e beneficiar a “O...”, sendo que no que se reporta a “contrapartidas”, é incontornável no processo de insolvência que a “O...” configura ser a maior credora da sociedade insolvente, tendo sido            inicialmente indicada e posteriormente verificada e graduada, sem qualquer contestação de quem quer que fosse, nomeadamente por parte da requerente, como detentora de um crédito no montante de 129.532,06€, relativo a faturas vencidas e não pagas.

Sendo que, e também,

19 – Com a força do caso julgado, o Requerido/recorrente foi reconhecido por sentença judicial transitada em julgado, sem qualquer tipo de impugnação ou contestação, nomeadamente pela Requerida, como também sendo credor da sociedade insolvente da quantia de 81.075,35€, relativa a avais pessoais que lhe prestou e que após a declaração de insolvência teve de pessoalmente liquidar

E, por isso,

20 - Não se compreende nem se descortina da matéria de facto considerada provada em que concreta medida, e ao abrigo do preceituado no art.º 186º, n.º 2, al. d), do C.I.R.E., se poderá extrair que qualquer conduta do            Requerido tenha contribuído para o “agravamento da situação de insolvência” ou para o “decréscimo progressivo da atividade da insolvente”, tal como de forma abstrata e arbitrária foi declarado pelas instâncias, sem qualquer menção a concretos valores, prejuízos, períodos temporais, concretos trabalhadores ou clientes;

Por outro lado,

21 - Esta questão, nesta parte a que alude o art.º 186º, n.º 2, al. d), do C.I.R.E., relativa aos prejuízos da sociedade insolvente e dos benefícios do recorrente ou da sociedade “O...” foi amplamente discuta nas instâncias, nomeadamente em sede de oposição, do julgamento e de recurso de apelação, e respeita a factualidade relevante;

22 - Considera, por isso, o Recorrente que o Tribunal a quo violou o dever de reapreciação da sociedade “O...” ;

23 - E, assim, o Acórdão de que se recorre é omisso relativamente a factos essenciais indispensáveis para conhecimento do mérito da causa, e por isso o Tribunal a quo violou o preceituado no art.º 662º, n.º 2, al. c), do C.P.C., determinando a respetiva anulação, por forma a que a matéria de facto seja ampliada para apuramento dos prejuízos da sociedade insolvente e benefícios do recorrente e de terceiros a que alude o ponto 25. da factualidade, devendo o Tribunal a quo expressar de forma clara e objetiva a convicção a que chegou sobre esses concretos factos (na versão de quem tem o ónus da prova).

De igual forma,

24 – No que respeita ao art.º 186º, n.º 2, al. h), do C.I.R.E., relativa a factualidade consubstanciadora de que o alegado incumprimento substancial de manter a contabilidade organizada tenha sido devida a algum intuito do recorrente de ocultar a situação financeira da sociedade insolvente, foi amplamente discutida nas instâncias, em sede de oposição, de julgamento e de recurso de apelação, e também respeita a factualidade relevante, não encontrando qualquer reflexo na matéria de facto considerada provada;

25 - Considera, por isso, o Recorrente que o Tribunal a quo também nesta parte violou o dever de reapreciação da matéria de facto por não ter utilizado os poderes que a lei lhe confere de ampliar a matéria de facto relativa ao intuito do recorrente de ocultar a situação financeira da empresa, e mais propriamente no que respeita à informação contabilística relativa aos anos de 2015 a 2017;

26 - E, assim, também nesta parte o Acórdão de que se recorre é omisso relativamente a factos essenciais indispensáveis para conhecimento do mérito da causa, e por isso o Tribunal a quo violou o preceituado no art.º 662º, n.º 2, al. c), do C. P. C., determinando a respetiva anulação, por forma a que a matéria de facto seja ampliada para apuramento do intuito do recorrente em ocultar a matéria factual a que aludem os pontos 21. a 23. da factualidade, devendo o Tribunal a quo expressar de forma clara e objetiva a convicção a que chegou sobre esses concretos factos (na versão de quem tem o ónus da prova).

Por fim,

27 - Nos termos e para os efeitos previstos nos art.ºs 189º, n.º 2, als. a) a c), do C.I.R.E., e no que se reporta à fixação das consequências derivadas da qualificação da insolvência como culposa quanto à inibição  do exercício de administração de patrimónios de terceiros e exercício do comércio, considerou e decidiu o Tribunal da Relação a quo que o período de 3 anos fixado pelo Tribunal de 1.ª instância, próximo do limite mínimo da moldura legal, foi fixado em função do considerado grau diminuto de culpa do recorrente

No entanto,

28 - Ainda a titulo de fixação das consequências derivadas da qualificação da insolvência, e no que se reporta à aplicação do preceituado do mesmo art.º 189º, n.º 4, do C.I.R.E., e para efeitos de condenação do recorrente a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente, o Tribunal da Relação a quo, não teve por pressuposto o referido grau de culpa diminuta, pois que considerou que: “Pese embora se admita, em tese, que na fixação do montante indemnizatório, a responsabilidade do afetado pela qualificação da insolvência possa ser ponderada, diminuída, em função da sua culpa, o facto é que, é necessário que esteja assegurado igualmente que o prejuízo dos credores possa ser atribuído a um ato ou atos concretos determinantes dessa mesma culpa.” ; E, por isso, condenou o recorrente a pagar aos credores a totalidade dos créditos reclamados e não satisfeitos, até ao limite de 322.477,54€;

29 - Trata-se, na verdade, de uma construção viciosa da sentença, uma vez que os fundamentos referidos pelo Tribunal de 1.ª instância para justificar a aplicação das consequências    da qualificação da insolvência previstas nas alíneas a) a c), do n.º 2, do art.º 189º, do C.I.R.E., e se aplicados à fixação da indemnização constante do n.º 4 do mesmo dispositivo legal, e porque assim o é, conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto àquela que foi declarada e decidida nesta parte;

Ou seja, e pelo menos,

30 - Nesta parte, o Acórdão do Tribunal da Relação a quo revela-se contraditório e ambíguo, pois que com um sentido duplo, e esta ambiguidade redunda em obscuridade, pois que em face da sua evidência não é possível alcançar o sentido a atribuir a esta decisão ambígua, sendo que a divergência de fundamentação apontada não consubstancia um mero erro de julgamento, mas sim uma evidente contradição e oposição entre os fundamentos factuais e a decisão;

31 - Pelo que, nesta parte que decidiu as consequências da qualificação da insolvência como culposa, nos termos e para os efeitos do art.º 189º, do C.I.R.E., o Acórdão enferma de nulidade, que aqui expressamente se invoca nos termos dos art.ºs 615º, n.º 1, al. c), 684º, n.º 2, e 674º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil e, como tal, não poderá manter-se devendo ser anulado, devendo em consequência os autos serem remetidos ao Tribunal da Relação para suprimento da invocada nulidade, com a consequente eliminação da parte do Acórdão viciada.

B) DA REVISTA EXCECIONAL:

32 - Tal como refere a doutrina e a jurisprudência, “As situações de insolvência culposa devem ser interpretadas com ponderação, de modo a alcançar um efeito responsabilizante equilibrado, nem é qualquer factualidade, traduzida em deficiência ou irregularidade que fará despoletar a decisão de insolvência culposa ; Exige-se gravidade de atuação e nexo causal com o surgimento ou agravamento da situação de insolvência”.

33 - Quanto à matéria de qualificação da insolvência com base em presunções judiciais e suas consequências, têm sido vários os entendimentos e decisões emitidas pelos nossos tribunais, sendo que no quadro de relevância social e melhor aplicação do direito que justifica o presente recurso, a questão de fundo que se coloca no âmbito do presente recurso centra-se em de decidir e aceitar que para os identificados casos de presunções previstos nas als. d) e h), do n.º 2, do art.º 186º, do C.I.R.E., para que se conclua pelo carácter culposo da insolvência e correspondentes consequências, não basta assentar na culpa, grave ou meramente negligente, ainda que simplesmente presuntiva, dos seus administradores na omissão do cumprimento de qualquer daquelas obrigações, devendo exigir-se a prova da relação ou nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor;

Na verdade,

34 - Está em causa saber se a interpretação destes normativos colhida pelas instâncias recorridas, no caso concreto dos autos ou noutros idênticos que, ex tunc, possam vir a surgir no futuro, terá sido a mais ajustada à realidade ou, ao invés, demasiado espartilhada pela estrita redação literal que em ambas as decisões se privilegiou, tudo como o suplicante tentará demonstrar com base nos factos assentes.

Pois que,

35 - Revela-se notório e do conhecimento geral que os procedimentos inerentes ao processo de insolvência assumiram nos últimos anos um acentuado crescimento e relevância social e, nomeadamente, no que se reporta à questão da qualificação como culposa da insolvência são dispares e de diferentes interpretações as decisões judiciais, no que concerne à conciliação dos regimes jurídicos decorrentes das presunções de culpa que resultam do preceituado no art.º 186º do C.I.R.E., e a necessidade de demonstração de prejuízos para a ocorrência da situação de insolvência e respetiva qualificação;

Na verdade,

36 - No que se reporta às alíneas d) e h), do art.º 186º, do C.I.R.E., que estabelecem presunções de culpabilidade, trata-se de aferir, e para melhor aplicação do direito, se a insolvência deve ser qualificada como culposa ainda que se verifique a ausência de demonstração de prejuízos decorrentes de atos do agente visado, ou se a ausência da organização da contabilidade correspondente a um comportamento negligente, faz concluir, per se, um incumprimento            substancial, quando não seja acompanhada de elementos factuais consubstanciadores de que tenha sido devida a algum intuito de ocultar a situação financeira da empresa

37 - Visa-se, nesta parte, a proteção do interesse geral na boa aplicação do direito, sendo que as questões objeto de recurso de revista excecional podem entrar em colisão com os valores sócio-culturais dominantes e cuja eventual ofensa pode suscitar alarme  social e sentimentos de intranquilidade e inquietação, de tal forma que fique posta em causa a eficácia do direito e a sua credibilidade.

É que,

38 – Ninguém pode hoje desconhecer a extraordinária relevância que tem vindo a assumir, no contexto da atividade judiciária, toda a problemática relacionada com os procedimentos de insolvência, com o disparo do número de estados de insolvência em função das dificuldades económicas e financeiras do país, nomeadamente de insolvências pessoais e de sociedades comerciais que por via de qualificações derivadas de presunções de culpa, podem também determinar a insolvência das pessoas singulares que as representam, sem sequer que ocorra a demonstração de qualquer prejuízo concreto na sua atuação.

Por outro lado.

39 - O que aqui se questiona neste recurso é a abrangência dos factos-índice aludidos nas alíneas d) e h), do art.º 186º, n.º 2, do C.I.R.E. e, nomeadamente, se exigem a verificação e prova de prejuízos, ou se o apelo a um conceito indeterminado traduzido na alocução “incumprimento em termos substanciais”, obriga a apelar à materialidade em discussão e às circunstâncias específicas do caso em análise.

40 - Por fim, e de igual forma, visa-se no presente recurso, e atentas as razões que o motivam, uma melhor aplicação e concretização do direito no que se reporta às consequências da qualificação da insolvência assente em culpa, ainda que presumida, e atenta a contradição e divergência de julgados nesta parte.

Assim,

41 - As instâncias declararam qualificar a insolvência como culposa ao abrigo do disposto no art.º 186º, n.º 2, al. d), tendo única e exclusivamente por referência a factualidade constante do ponto 25., com recurso a afirmações conclusivas de “agravamento    da situação económica” e “decréscimo da atividade da insolvente”, e assim prescindindo da concreta prova que este preceito deve impor relativa ao apuramento do relevo patrimonial significativo dos bens cedidos em benefício do aqui recorrente ou de terceiro, e mais especificamente da concreta prova e contabilização dos prejuízos que daí advieram para a insolvente, conforme deve ser pressuposto e exigência para a verificação do facto-índice em apreço, sendo que no caso dos autos era à interessada requerente “Portalvisual” na qualificação da insolvência e na afetação a quem cabia o ónus de prova dessa factualidade.

42 - Tais expressões de “agravamento da situação de insolvência da sociedade requerida” ou de “diminuição da atividade da insolvente” revelam-se manifestamente contraditórias com a demais fundamentação da sentença final proferida em 1.ª instância, na medida em que foi o próprio Tribunal a quo que expressamente admitiu e exarou que as relações comerciais mantidas entre a sociedade insolvente e a sociedade “O...” no que respeita a bens, clientes e contrapartidas, não foram suscetíveis de causarem quaisquer prejuízos àquela, conforme exposto e transcrito em sede de revista normal e que aqui se dá por reproduzido;

Ora, revertendo ao caso dos autos,

43 - Da matéria factual considerada como provada não resulta que o requerido aqui recorrente tenha procedido à transferência do direito de propriedade de bens da sociedade insolvente a favor de terceiro, nomeadamente da “O...”, nem sequer resulta que dispôs de tais bens, sobre os mesmos constituindo quaisquer outros direitos menores ou limitando com algum ónus ou garantia que sobre os mesmos pudessem incidir;

44 - Não se retira da matéria de facto considerada provada qualquer ato do Requerido/recorrente no sentido de retirar do património da sociedade insolvente (total ou parcialmente) um bem que devia ali ser mantido para pagamento dos credores em geral, segundo as regras consignadas no C.I.R.E., e se beneficiou com esse ato um determinado credor ou terceiro em prejuízo dos demais;

Por outro lado,

45 - Também não resulta da matéria de facto considerada provada que o Requerido aqui recorrente tenha logrado obter qualquer benefício pessoal com a disposição de bens da sociedade insolvente ou com as suas relações comerciais e, nomeadamente, com a sociedade “O...”;

Sendo que,

46 - A prova concreta de que o Requerido/recorrente nada beneficiou com os negócios ou bens da requerida insolvente, reside na circunstância de, com força de caso julgado, o Requerido ter sido reconhecido por sentença transitada em julgado proferida nos presentes autos, sem qualquer tipo de impugnação ou contestação, como         também sendo            credor da sociedade insolvente da quantia de 81.075,35€, repete-se, oitenta e um mil e setenta e cinco euros e trinta e cinco cêntimos, relativa a avais pessoais que lhe prestou e que após a declaração de insolvência teve pessoalmente de liquidar, conforme se poderá verificar pela sentença transitada em julgado proferida no apenso E dos presentes autos.

Por fim,

47 - Também não resulta da matéria de facto considerada provada que a sociedade “O...” tenha logrado obter qualquer benefício com a disposição de bens da sociedade insolvente ou com as relações           comerciais            mantidas,         não      se encontrando sequer demonstrado e provado a importância económica desses bens, nomeadamente o seu valor e importância económica.

Aliás,

48 - As únicas certezas materiais e processuais que subsistem é que a “O...” é credora reclamante verificada e graduada com o crédito sobre a insolvente no montante de 129.532,06€, e que o requerido também o é, por pagamento de avais, no montante de 81.075,35€;

E, por isso,

49 - Não se compreende nem se descortina da matéria de facto considerada provada em que concreta medida, e ao abrigo do preceituado no art.º 186º, n.º 2, al. d), do C.I.R.E., se poderá extrair que qualquer conduta do Requerido/recorrente tenha contribuído para o agravamento da situação de insolvência ou para a diminuição da respetiva atividade, tal como de forma abstrata e arbitrária foi declarado pelas instâncias, sem qualquer menção a concretos valores, prejuízos, períodos temporais, concretos trabalhadores ou clientes;

50 - É indubitável que nos últimos anos os procedimentos inerentes ao processo de insolvência sofreram um significativo aumento de pendência, senão mesmo muito elevado, sendo hoje um fenómeno de evidente relevância social;

51 - Por outro lado, também pensamos ser certo o entendimento que, nomeadamente para efeitos de qualificação da insolvência, as suas consequências poderão tornar-se extremamente gravosas em termos de responsabilidade pessoal, o que até poderá suscitar alarme social, acrescida da circunstância da lei estabelecer presunções inilidíveis de culpabilidade no que se reporta aos factos determinantes dessa culpabilidade, sendo também certo que têm sido diversas as interpretações doutrinais e jurisprudenciais nestas matérias, o que determina a desconfiança e em nada beneficia a boa aplicação do direito.

52 - Daí que, no caso concreto, entendemos que para efeitos de verificação do facto-índice de culpabilidade a que corresponde a presunção vertida no art.º 186º, n.º 2, al. d), do C.I.R.E., a respetiva boa interpretação reclama que seja demonstrado e provado um benefício com relevo económico do respetivo administrador de direito ou de facto, ou de terceiro, bem como a prova concreta do prejuízo que essa disposição de bens acarretou para a sociedade insolvente;

53 - Interpretação esta que não se acolheu no caso que os autos documentam quer por ausência de prova de benefícios ou quaisquer prejuízos com relevo económico, pelo que assim não tendo decidido o Tribunal da Relação a quo violou o preceituado no art.º 186º, n.º 2, al. d), do C.I.R.E., devendo ser proferida decisão que a altere e substitua.

Por outro lado, e acrescendo

54 - A questão que aqui também se coloca para efeitos de revista excecional, e com a fundamentação que a motiva, resulta da circunstância de se entender que a melhor interpretação que deriva da presunção decorrente do facto-índice constante da identificada alínea h), do n.º 2, do art.º 186º, do C.I.R.E. é aquela que vai no sentido da demonstração do prejuízo relevante que a imputada omissão contribuiu para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora, e que tenha havido um qualquer comportamento tendente a esconder, alterar, ou adulterar as contas da empresa, por forma a dar a entender um giro comercial diverso do existente;

Ora,

55 - Cumpre liminarmente referir que no caso concreto dos autos, tal presunção decorrente do preceituado no art.º 186º, n.º 2, al. h), deverá ter-se como irremediavelmente por não verificada, pois que de acordo com o relatório que a Sra. Administradora apresentou nos autos principais para efeitos de cumprimento do preceituado no art.º 155º, do C.I.R.E., foi possível determinar com clareza e segurança a causa e motivos da insolvência, o que foi consignado, sem qualquer tipo de impugnação;

Na verdade,

56 - Os autos demonstram que a organização da contabilidade da sociedade insolvente competiu inicialmente ao gabinete de contabilidade (T.O.C) da sociedade “P..., Unipessoal, Lda.”, com sede em ..., passando posteriormente, e por imposição da co-acionista “G...” para a sociedade “C..., S.L.”, com sede em ..., e ainda posteriormente foi atribuída à sociedade “M..., Lda.”, com sede em ...;

Outrossim,

57 - A sociedade insolvente também sempre dispôs de órgão fiscal, sendo que até meados de 2016 os cargos de fiscal único e fiscal suplente foram exercidos, respetivamente, pela sociedade “F..., Lda.” e por BB, e após essa data, até à declarada insolvência, e mercê de nomeação oficiosa processada por parte da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (art.º 416º, do Código das Sociedades Comerciais), tais cargos foram exercidos pela sociedade de revisores oficiais de contas “R..., Lda.”, representada pelo Revisor Oficial de Contas Dr. CC, conforme se poderá atestar pelo documento (certidão) junto sob o n.º 1 com o requerimento inicial de insolvência, das declarações prestadas pelo Requerido no dia 16/Junho/2020, bem como da factualidade considerada provada sob o ponto 11.

Ou seja,

58 - Tudo considerado, e eliminada a factualidade, porque não verdadeira, do ponto 22. da matéria de facto considerada provada, não resulta dos autos qualquer violação substancial do Requerido/recorrente de manter a contabilidade organizada e que impedisse a indicação segura da causa da insolvência e seus responsáveis;

59 - Assim, dão-se aqui por reproduzidos os fundamentos expostos no número anterior que justificam o presente recurso excecional, seja pela sua relevância social seja pela melhor aplicação do direito, atenta a existência de presunções inilidíveis e as diversas interpretações doutrinais e jurisprudenciais nesta matéria;

60 - Daí que, no caso concreto, entendemos que para efeitos de verificação do facto-índice de culpabilidade a que corresponde a presunção vertida no art.º 186º, n.º 2, al. d) do C.I.R.E., a respetiva boa interpretação reclama que o incumprimento substancial que a mesma exige seja acompanhado da demonstração de prejuízo relevante que a imputada omissão de manter uma contabilidade organizada contribuiu para a situação patrimonial e financeira da devedora, e que tenha havido um qualquer comportamento tendente a esconder, alterar, ou adulterar as contas da empresa, por forma a dar a entender um giro comercial diverso do existente;

61 - Interpretação esta que não se acolheu no caso que os autos documentam por ausência de prova nesse sentido, pelo que assim não tendo decidido o Tribunal da Relação a quo violou o preceituado no art.º 186º, n.º 2, al. h), do C.I.R.E., impondo-se a prolação de decisão que a substitua.

Por fim,

62 - Com respeito ao preceituado no art.º 189º, do C.I.R.E., no que se reporta à fixação das consequências derivadas da qualificação da insolvência como culposa, considerou-se, assim se decidindo, no Acórdão do Tribunal da Relação o seguinte: “III. Pese embora se admita, em tese, que na fixação do montante indemnizatório, a responsabilidade do afectado pela qualificação da insolvência possa ser ponderada, diminuída, em função da sua culpa, o facto é que, é necessário que esteja assegurado igualmente que o prejuízo dos credores possa ser atribuído a um acto ou actos concretos determinantes dessa culpa.”

Ora,

63 - Cumpre liminarmente referir que a decisão assim proferida releva-se manifestamente contraditória, pois que apesar de admitir que a culpa do recorrente é “diminuta”, daí não retirou as devidas consequências para efeitos de fixação da indemnização, apesar de admitir, em tese, essa possibilidade, e ao contrário do que processou para as consequências relativas à administração de património de terceiros e do exercício do comércio;

64 - É que se o prejuízo dos credores não pode ser atribuído a um acto ou actos concretos determinantes dessa culpa, fica-se sem saber por que razão a insolvência foi qualificada como culposa !

Mais ainda,

65 - Apesar de se ter considerado que a culpa do recorrente é diminuta, condenou-se o mesmo ao pagamento da totalidade dos créditos reclamados até ao limite de 322.477,54€, o que em rigor afasta qualquer sentido de proporcionalidade;

Ora,

66 - O Acórdão de que se recorre está em manifesta contradição com o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16 de Dezembro de 2015, proferido no processo n.º 1430/13.3TBFIG-C.C1, e devidamente transitado em julgado, o qual para efeitos do preceituado no art.º 189º, do C.I.R.E., e no que se reporta à fixação do montante indemnizatório por virtude da qualificação, impõe como dever do Tribunal que a mesma seja aferida em função da culpa, e apenas nessas circunstâncias.

Isto posto,

67 - Pensamos  inexistirem dúvidas que o Requerido/recorrente nunca auferiu qualquer retribuição a título do exercício da qualidade de administrador, ou qualquer distribuição de lucros, e que pretendeu manter a todo o custo a atividade da sociedade insolvente com o principal propósito de garantir os postos de trabalho, também inexistem dúvidas que mercê da declaração da insolvência o Requerido teve de liquidar pessoalmente a avultada quantia de 81.075,35€, relativa a avais pessoais que prestou à insolvente, assim figurando com sentença transitada em julgado, como o segundo maior credor reconhecido nos autos principais;

68 - Ainda que se entenda que nenhuma culpa poderá ser imputada ao recorrente, ou que a mesma seja diminuta, o certo é que ainda que assim não fosse, tal condenação revela-se manifestamente brutal, excessiva, sendo avessa a bons e ponderados princípios éticos;

69 - É que se por um lado, os autos documentam o prejuízo sofrido pelo Requerido com a declaração de insolvência, traduzido no não pagamento de remunerações e pagamento de avais pessoais no montante de mais de 80.000,00€, por outro também não resulta dos autos qual o concreto prejuízo que o recorrente provocou à sociedade insolvente ou à respetiva massa, ou sequer que os seus comportamentos tivessem em exclusivo determinado a situação de insolvência;

70 - A interpretação processada pelo Tribunal da Relação a quo do art.º 189º, do C.I.R.E. é inaceitável por ser demasiado severa e desproporcional, e daí inconstitucional, no limite poderia conduzir à insolvência da pessoa afetada pela insolvência;

Ora,

71 - No caso dos autos, não se provou qualquer valor de prejuízo causado à massa com a prática dos factos fundamentadores da qualificação, pelo que independentemente do grau de ilicitude ou culpa, ou da concorrência de culpas, não é possível nem com recurso à equidade fixar qualquer valor para pagamento aos credores, ainda que na parte dos seus créditos que não foi satisfeita.

E, por isso,

72 - Em face da ausência de indicação de prejuízos, e na eventualidade de se aferir do grau de ilicitude e culpa do recorrido, o que de todo não se concede pelos aduzidos motivos, pensamos que inexistem razões para fixar as inibições pelo período legal mínimo de dois anos, acrescido da perda de créditos sobre a insolvência, não se fixando qualquer outro valor indemnizatório, atentos os pagamentos entretanto processados pessoalmente pelo Requerido aos credores, assim se recorrendo nesta parte à equidade de modo a alcançar um efeito responsabilizante equilibrado;

73 - Por todo o exposto, deverá o Acórdão da Relação de que se recorre ser revogado e substituído por outro, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 672º, n.º 1, al. c), do C.P.C.

+

O Ministério Público, pela pessoa do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

Mais suscitou a questão da inadmissibilidade do recurso.

+

A Credora Portal Visual, SL contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

Mais suscitou a questão da inadmissibilidade do recurso.

+

O tribunal recorrido pronunciou-se sobre a nulidade imputada ao acórdão sob recurso, julgando-a inverificada.

+

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

+

Quanto à questão (prévia) da inadmissibilidade do recurso

Revista ordinária:

Constitui jurisprudência pacífica deste Supremo que, com exceção do processo de embargos à decisão que decretou a insolvência, aos recursos suscitados no âmbito dos procedimentos que correm por apenso ao processo de insolvência em si mesmo - como é precisamente o caso do presente procedimento de qualificação da insolvência (art. 188.º, n.º 1 do CIRE) - não se aplica o n.º 1 do art. 14.º do CIRE, estando antes submetidos ao regime geral constante do CPCivil[1].

Daqui que o presente recurso seja ordinariamente admissível na parte (e apenas na parte) em que vem sustentado, por via principal, na ofensa do caso julgado (art. 629.º, n.º 2, alínea a) do CPCivil), na violação de normas de procedimento em sede de matéria de facto e (visto o n.º 4 do art. 615.º do CPCivil) na nulidade do acórdão recorrido. Quanto a estas matérias não há que falar em dupla conforme nem, consequentemente, em revista excecional[2], na medida em que, logicamente, só existe dupla conforme quando se está perante uma reapreciação sucessiva da mesma questão[3], e não é o caso.

Revista excecional:

A revista excecional interposta a título subsidiário foi admitida pela competente Formação, pelo que a respetiva admissibilidade se resolve agora em assunto insuscetível de discussão (assunto já exaurido).

Deste modo, e para o caso de improceder a revista interposta a título principal (revista ordinária com os supra aludidos fundamentos), impor-se-á conhecer do objeto da revista excecional interposta a título subsidiário.

E sendo tudo isto assim, como é, segue-se que a questão prévia da inadmissibilidade do recurso suscitada pelo Ministério Público (que, aliás, confunde entre a questão prévia da inadmissibilidade do recurso e a questão subsequente da improcedência do recurso) e pela Credora Portal Visual, SL (que citando embora jurisprudência exata, parece olvidar que não estamos aqui perante um incidente tramitado endogenamente no próprio processo de insolvência, mas sim perante um procedimento incidental que é tramitado por apenso) improcede.

O que se declara.

O que significa que se impõe conhecer do recurso tal como se mostra estruturado.

+

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

+

São questões a conhecer:

- Se o acórdão recorrido ofende o caso julgado;

- Se o acórdão recorrido viola os respetivos poderes/deveres relativos ao conhecimento da impugnação da matéria de facto;

- Se existe contradição entre a matéria de facto provada;

- Se a matéria de facto é insuficiente, devendo ser ampliada;

- Se o acórdão recorrido padece de nulidade;

- Se a insolvência deve ser qualificada como fortuita;

- Se a indemnização aos credores e o período das inibições são excessivos, devendo ser reduzidos;

- Se o art. 189.º do CIRE padece de inconstitucionalidade.

+

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes, como tal descritos no acórdão recorrido:

1. N..., S.A., pessoa coletiva nº ..., com sede na Rua ..., ..., ..., em ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo numero, foi declarada insolvente por sentença de 31/07/2018, transitada em julgado, conforme teor de fls. 48/51 (processo em papel) dos autos principais, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

2. Tem por objeto social o comércio por grosso e retalho de material ótico, bem como revenda e tem o capital social de € 50.000,00.

3. O capital social encontra-se repartido, na proporção de metade, pelo sócio AA e pela sócia espanhola G..., S.L..

4. A requerida foi constituída em 2013, tendo resultado da transformação em sociedade anónima da primitiva sociedade unipessoal “N..., Unipessoal, Lda.”, constituída em 2010, que tinha como gerente AA.

5. A sociedade requerida apresentou-se à insolvência em 30/07/2018, nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 3/9 (processo em papel) dos autos principais, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

6. A insolvência foi decretada com fundamento no disposto no art. 20º nº1 als. a) e b), face ao incumprimento das suas obrigações vencidas e incapacidade de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.

7. Foi prescindida a realização da assembleia de apreciação do relatório e ordenado a prossecução dos autos de insolvência para liquidação.

8. A administradora da insolvência, DD, nomeada na sentença que decretou a insolvência veio a ser destituída por violação do dever de colaboração e informação e nomeada a atual administradora, aos 17/12/2018.

9. Mostra-se registado como membro do conselho de administração para o triénio 2014/2017: AA – administrador único, que renunciou a tais funções em 04/05/2018.

10.O local correspondente à sede da requerida é um imóvel propriedade de AA.

11. O cargo de fiscal único da requerida é exercido pela sociedade de Revisores Oficiais de Contas “R..., Lda”, representada pelo revisor oficial de contas, CC.

12. A requerida cessou a atividade em junho de 2018.

13. Foram reclamados, nos termos dos art.s 128º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, créditos sobre a insolvente no valor global de € 322.477,54 conforme teor da lista de credores junta no apenso da reclamação (G), homologada por sentença transitada em julgado.

14. A insolvente tem como principal credora a sociedade O..., Lda., detentora de um crédito no valor de € 129.532,06.

15. Foram apreendidos móveis e saldos, no valor global de € 2.009,11, conforme apenso H.

16. A requerida apresentou resultados negativos na ordem dos 8.410,51€ em 2015, 88.735,53€ em 2016, e 56.323,75€ durante o exercício de 2017.

17. Da certidão de matrícula da requerida, emitida em 23/06/2020 não consta o registo do depósito de prestação de contas do ano de 2017.

18. A Administradora da Insolvência em funções apresentou o relatório constante de fls. 309 a 320 (processo em papel) do processo principal, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, em 24/01/2019, no qual conclui que desde 2014 que as contas dos exercícios comerciais e contabilísticos da requerida não são aprovadas, porque a acionista G... não as aprovou nas assembleias gerais realizadas para o efeito.

19. Na acta da assembleia geral datada de 29/09/2017, convocada com vista à apresentação e deliberação sobre as contas de 2015 e 2016, consta a não aprovação das mesmas pela acionista G..., com fundamento na falta de documentação e informação solicitadas ao administrador AA, sobre os exercícios respetivos e na falta de clarificação de várias rúbricas dos balanços (caixa, saldos, financiamentos, vendas e serviço, gastos com pessoal).

20. A execução da contabilidade da insolvente estava a cargo da M..., Lda..

21. Dos elementos contabilísticos solicitados pela administradora da insolvência ao requerido, apenas lhe foram facultados alguns documentos referentes aos anos de 2017 e 2018, sem qualquer suporte contabilístico (faturas ou recibos, diário de vendas, balancetes analíticos, etc.).

22. A insolvente não apresentou escrita contabilística nem informação fiscal no ano de 2017, apresentando um saldo no acumulado de 2018, não correspondente à realidade apurada pela administradora da insolvência.

23. Da perícia realizada à contabilidade da insolvente, no âmbito do processo de inquérito judicial que correu termos neste Juízo, com o n.º 277/16...., concluiu-se que mesmo tendo em consideração a falta de contabilidade de 01/06 a 31/12 de 2015, a contabilidade analisada contém erros grosseiros nos registos contabilísticos, ausência de documentos, por os movimentos serem feitos mediante informações verbais do referido sócio gerente, ausência da inventariação das existências, não validação dos saldos dos valores a receber e a pagar e, por conseguinte a contabilidade não reflete a real e efetiva situação económica e financeira da sociedade.

24. A administradora da insolvência recebeu, com data de 21 de dezembro de 2018, o escrito (mail) de fls. 139 dos autos (processo em papel), cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

25. A sociedade O..., referida em 14 tem como objeto social o comércio por grosso e retalho de material ótico, bem como revenda, e no período que mediou entre fevereiro de 2016 e pelo menos abril de 2017 a sua sede de laboração era no mesmo local que a sociedade requerida, partilhando com esta os mesmos funcionários, sem contrapartida, e clientes geridos pelo requerido AA.

Foi considerado não provado:

i. Que o requerido dava instruções expressas aos agentes comerciais da insolvente para que as vendas efetuadas por esta fossem faturadas pela O..., bem como que os stocks existentes naquela fossem transferidos para esta;

ii. Que o requerido manteve dívidas substanciais do seu estabelecimento comercial em nome individual para com a insolvente, sem promover a cobrança, beneficiando pessoalmente do crédito e bens da insolvente;

iii. Que a sociedade requerida comercializava produtos a terceiros e à O..., a preço de custo;

iv. Que o requerido nunca foi gerente ou deteve qualquer outra qualidade na sociedade O...;

v. Que a insolvente sempre dispôs de contabilidade organizada e procedeu à entrega regular nos gabinetes de contabilidade de todos os documentos contabilísticos, relativos a lançamentos e compras e vendas;

vi. Que todas as contas relativas aos anos de 2015, 2016 e 2017 foram fiscalizadas e certificadas pelos órgãos fiscais competentes e apresentadas à AT;

vii. Que a administradora da insolvência não tenha solicitado ao gabinete de contabilidade da insolvente documentação e informação contabilística;

viii. Que o requerido mantém armazenada na sede social documentação contabilística relativa aos anos de 2016 a 2018, não solicitada pela administradora da insolvência.

De direito

Importa conhecer em primeiro lugar das questões suscitadas na revista ordinária, pois que deduzida a título principal.

Vejamos então:

Quanto à questão da ofensa ao caso julgado

Defende o Recorrente que ao não admitir a impugnação à factualidade do ponto 22 dos factos provados, o acórdão recorrido “violou o caso julgado formal que resulta da sua anterior decisão transitada em julgado e que determinou a repetição do julgamento e apreciação de outros pontos da matéria de facto com o objetivo de evitar contradições, assim violando o preceituado nos artigos 620º e 621º, do Código de Processo Civil”.

É por demais óbvio que este ponto de vista do Recorrente não tem o menor fundamento jurídico.

A autoridade do caso julgado (seria nesta vertente, a da vertente positiva do caso julgado, que se poderia aqui falar) é restrita à parte decisória ou injuntiva da sentença (conquanto essa parte não possa ser dissociada dos fundamentos, e compreenda, por imperativo lógico, o que se encontra implícito mas não necessariamente negado pelo acolhimento contido no dispositivo da sentença, bem como o que se encontra implícito, mas necessária e incindivelmente acolhido pela negação que aquela possa conter[4]).

Ora, o que se determinou (se decidiu) no primeiro acórdão proferido nos autos pelo Tribunal da Relação de Guimarães (acórdão de 3 de dezembro de 2020) foi, por se ter considerado indispensável a ampliação da matéria de facto, o apuramento do período temporal em que se verificou a factualidade inserta no ponto 25. Mais se definiu (aliás desnecessariamente, pois que sempre assim teria de ser, nos termos da alínea c) do n.º 3 do art. 662.º do CPCivil) que tal ampliação não abrangia a parte da decisão que não estava viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto com o fim de evitar contradições.

Foi, portanto, nesta estrita dimensão (que representa, pois, a matéria que se pode considerar julgada, e que, por seu turno, determina os limites objetivos do caso que foi julgado) que o acórdão formou caso julgado.

Em sítio algum se determinou no acórdão recorrido, ou nele tal se encontra implícito, a reapreciação da matéria do ponto 22. (que, de resto, nem sequer fora objeto de impugnação por parte do apelante). Muito pelo contrário, o acórdão até proibiu que se colocasse essa matéria em causa (“…a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não está viciada…”), sendo certo que não há a menor possibilidade de o facto cujo apuramento se determinou poder entrar em contradição com o facto do ponto 22. Isto é evidente pois que se trata de factos totalmente diferentes, independentes, sem qualquer ponto de intersecção entre si.

Deste modo, não estava o acórdão ora recorrido inibido (por respeito ao caso julgado formal) de concluir, como concluiu, que a repetição do julgamento não abrangia a reapreciação do facto do ponto 22. e que, ademais, estava exaurida a possibilidade de impugnar esse facto (a primeira apelação interposta, que constituiu a sede própria para impugnar a matéria de facto, não compreendera a impugnação de tal facto, limitando-se o tribunal, repete-se, a determinar o apuramento do mencionado período temporal). Aliás, se o acórdão recorrido decidisse reapreciar tal facto então é que estaria, aqui sim, a ofender o caso julgado formado a partir do anterior acórdão.

Sendo assim, como é, resulta claro que improcede a questão da ofensa do caso julgado, como improcede em toda a linha a argumentação do Recorrente em ordem a dar sustentação à ofensa do caso julgado (na realidade pseudo-ofensa, tal é a incipiência jurídica dessa argumentação).

Quanto à questão da violação pelo tribunal recorrido dos respetivos poderes/deveres relativos ao conhecimento da impugnação da matéria de facto

Mais defende o Recorrente que “ao recusar a apreciação e decisão sobre a matéria de facto constante do ponto 22. (…) o Tribunal da Relação a quo violou os seus poderes/deveres relativos ao requerido conhecimento da impugnação da matéria de facto que resultam do preceituado no artigo 662º do C.P.C., e por referência ao art.º 674º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal, e com as legais consequências, nomeadamente com a reapreciação e eliminação da identificada factualidade e consequente prolação de decisão final”.

Também neste conspecto é patente a sua falta de razão.

De acordo com o que se retira da alegação (e isto está mais bem evidenciado na conclusão 11ª), uma tal imputação teria a ver exclusivamente com o facto do acórdão recorrido ter decidido (pp. 35 a 38) que não era admissível a impugnação do facto do ponto 22.

Ora, e como resulta do acima exposto, o assim decidido não é passível de qualquer censura.

Efetivamente, a primeira apelação que o Recorrente interpôs constituiu o sítio e o tempo processualmente próprios para a impugnação da matéria de facto julgada pela sentença então recorrida da 1ª instância, porém é certo que, pese embora o ter feito relativamente a outros factos provados e a certos factos não provados, o Recorrente não impugnou o julgamento do facto do ponto 22. E se não o fez foi porque considerou o facto como verdadeiro (contraditoriamente, portanto, com o que agora defende) ou então foi por inépcia sua (neste caso sibi imputat). O que significa que com a primeira apelação ficou precludida a possibilidade de pôr em causa futuramente (num novo recurso) tal matéria.

Ocorre que a repetição do julgamento ordenada pelo primeiro acórdão do tribunal recorrido cingiu-se à questão da supra mencionada ampliação, assunto que, como sobredito, nada tem a ver com a matéria do ponto 22. Logo, apenas quanto à estrita matéria que foi objeto da ampliação poderia o Recorrente tergiversar na segunda apelação que deduziu e sobre que se pronunciou o acórdão ora recorrido.

Daqui que se apresenta inteiramente correta a conclusão que o acórdão recorrido encerra no sentido de que não podia o apelante “pretender agora, depois de não o ter feito anteriormente (no anterior recurso), impugnar outros pontos da matéria de facto”.

Do mesmo passo que se apresenta inteiramente errática e imprestável a afirmação do Recorrente, vertida algures na alegação, aí onde diz que “Ao recusar a apreciação e decisão sobre a matéria de facto constante do ponto 22. (…), o Tribunal da Relação a quo violou os seus poderes/deveres relativos ao requerido conhecimento da impugnação da matéria de facto que resultam do preceituado no artigo 662.º do C.P.C. (…)”.

Conclusão necessária: improcede a questão em destaque.

Quanto à questão da contradição entre a matéria factual inserta no ponto 22. e a matéria dos pontos 16., 11., 20. e 19., e quanto à questão da falsidade do facto do ponto 22.

Mais defende o Recorrente que o facto do ponto 22. está em contradição com os factos dos pontos 16., 1.1, 20. e 19. e que, ademais, o facto do ponto 22. “enferma de falsidade”.

Trata-se, porém, de um posicionamento que está destinado a não prosperar, por carecido de qualquer base jurídica. Aliás, é até um pouco estranho um tal posicionamento do Recorrente, na medida em que na primeira apelação que interpôs não se lhe antolhou a contradição de que vem agora falar tão enfaticamente nem (e repetindo) pôs em causa a veracidade do facto do ponto 22.

Ora, para vermos que a pretensa contradição não existe, nada melhor que ler os pontos em causa e confrontar entre si os factos neles contidos:

Ponto 22. “A insolvente não apresentou escrita contabilística nem informação fiscal no ano de 2017, apresentando um saldo no acumulado de 2018, não correspondente à realidade apurada pela administradora da insolvência”.

Ponto 16. “A requerida apresentou resultados negativos na ordem dos 8.410,51€ em 2015, 88.735,53€ em 2016, e 56.323,75€ durante o exercício de 2017”.

Ponto 20. “A execução da contabilidade da insolvente estava a cargo da M..., Lda.”.

Ponto 11. “O cargo de fiscal único da requerida é exercido pela sociedade de Revisores Oficiais de Contas “R..., Lda”, representada pelo revisor oficial de contas, CC”.

Ponto 19. “Na acta da assembleia geral datada de 29/09/2017, convocada com vista à apresentação e deliberação sobre as contas de 2015 e 2016, consta a não aprovação das mesmas pela acionista G..., com fundamento na falta de documentação e informação solicitadas ao administrador AA, sobre os exercícios respetivos e na falta de clarificação de várias rúbricas dos balanços (caixa, saldos, financiamentos, vendas e serviço, gastos com pessoal)”.

Como se pode constatar, cremos que à evidência, estamos aqui perante factos que não se intersectam de forma alguma, de sorte que não existe a menor possibilidade lógica ou naturalística de contradição entre eles. O facto do ponto 22. pode perfeitamente existir do ponto de vista naturalístico ou lógico a despeito de tudo aquilo que se contém nos demais pontos, pois que se trata de factos diferentes ou independentes. E mais não podemos dizer, pois que in claris non fit interpretatio. Leiam-se os factos em presença e ver-se-á que é como dizemos.

De resto, é patente que o Recorrente o que pretende fazer, a expensas do expediente processual da “contradição”, é atacar, bem se vê que de forma enviesada, o julgamento que foi feito pela 1ª instância do facto do ponto 22., de que diz enfermar de “falsidade”. Para isso embrenha-se na temática da prova documental e no descuido a que a sua avaliação teria sido sujeita por parte do tribunal de 1ª instância, alude à forma como a Administradora da Insolvência entendeu proceder e manifestar-se no âmbito do exercício das suas funções e parece mesmo discordar de um despacho (de 24/9/2019) da 1ª instância que indeferiu uma diligência probatória (inspeção judicial à sede da Insolvente), mas que não impugnou a seu tempo e que está há muito transitado em julgado.

Ora, se é exato que o Supremo pode verificar se a Relação, ao usar os seus poderes em sede de decisão de facto, agiu dentro dos limites traçados na lei para os exercer, menos exato não é que o que está aqui em causa não é nada disso, mas sim uma insurgência do Recorrente relativamente ao julgamento oportunamente feito (e não contestado) do facto do ponto 22. Porém, e como resulta claro dos art.s 674.º, n.º 3 e 682.º, n.ºs 1 e 2 do CPCivil, o Supremo Tribunal de Justiça não pode imiscuir-se na temática das provas de livre apreciação e dos factos, para, a partir daí, concluir pela falsidade de qualquer facto ou para impor à Relação um novo julgamento dos factos.

Improcede pois a questão em destaque.

Quanto à questão da insuficiência da matéria de facto

A título desta questão afirma o Recorrente, que o acórdão recorrido “é omisso relativamente a factos essenciais indispensáveis para conhecimento do mérito da causa, e por isso o Tribunal a quo violou o preceituado no art.º 662.º, n.º 2, al. c) do C.P.C., determinando a respetiva anulação, por forma a que a matéria de facto seja ampliada para apuramento dos prejuízos da sociedade insolvente e benefícios do recorrente e de terceiros a que alude o ponto 25. (…)” e que “é omisso relativamente a factos essenciais indispensáveis para conhecimento do mérito da causa, e por isso o Tribunal a quo violou o preceituado no art.º 662.º, n.º 2, al. c) do C.P.C., determinando a respetiva anulação, por forma a que a matéria de facto seja ampliada para apuramento do intuito do recorrente em ocultar a matéria factual a que aludem os pontos 21. a 23. e (…)”.

Para chegar a tais conclusões o Recorrente dedica-se exclusivamente (e latamente aliás) a contestar a bondade da decisão de mérito que foi tomada pelas instâncias, olvidando que uma tal insurgência constitui matéria que exorbita o objeto da revista ordinária que interpôs (fundada na ofensa do caso julgado e na violação de disposições processuais por parte do tribunal recorrido, e somente disto se poderia aqui conhecer) e cuja sede de conhecimento própria será, atenta a dupla conforme que está formada, a revista excecional.

Mas, à parte isso, é óbvia a falta de razão do Recorrente.

O tribunal de 1ª instância considerou - ou como provados ou como não provados - todos os factos relevantes que os sujeitos processuais, a começar pelo agora Recorrente, alegaram oportunamente, sendo certo que embora impere nesta matéria o princípio do inquisitório (art. 11.º do CIRE) em sítio algum se revela que fosse necessário escrutinar outros eventuais factos. E tanto assim é que nos seus dois recursos de apelação o ora Recorrente não deu pela falta de quaisquer factos para a justa e adequada decisão da causa, limitando-se a impugnar certos factos julgados e a defender outra solução de direito.

De resto, o Recorrente até se contradiz, na medida em que neste seu recurso (revista ordinária) defende ao mesmo tempo dois efeitos incompatíveis: por um lado defende a necessidade de ampliar a base factual da causa para a qualificação da insolvência (logo, existe insuficiência da matéria de facto) e, por outro, defende que os factos apurados devem levar à qualificação da insolvência como fortuita (logo, existe suficiência da matéria de facto). Em que ficaríamos?

Consequentemente, por carecido de objeto, nada há a ampliar do ponto de vista factual. O que há, isso sim, é que aplicar o direito aos factos que foram apurados, o que será feito adrede em sede de conhecimento dos fundamentos da revista excecional.

E sendo assim, como é, de nenhum desvalor padece o acórdão recorrido por não ter determinado qualquer ampliação da matéria de facto ao abrigo da alínea c) do n.º 2 do art. 662.º do CPCivil.

Termos em que improcede a questão em destaque.

Quanto à questão da nulidade do acórdão recorrido por contradição e/ou obscuridade

Diz o Recorrente que o acórdão recorrido enferma de nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPCivil, isto porque dele consta que a culpa do afetado é de “gravidade mediana/baixa” mas tal pressuposto não foi feito refletir na condenação em indemnização aos credores (€322.477,54).

O Recorrente vê nisto “uma construção viciosa da sentença”, uma vez que os fundamentos deviam levar a outra decisão, de sorte que “Nesta parte, o Acórdão do Tribunal da Relação a quo revela-se contraditório e ambíguo, pois que com um sentido duplo”.

Mas é evidente a sua falta de razão.

Nem há qualquer contradição, nem há qualquer ambiguidade, nem há qualquer obscuridade.

Basta dizer que se o acórdão recorrido decretou (aliás, manteve) a indemnização em causa mas se a tal culpa de “gravidade mediana/baixa” devia acaso (na tese do Recorrente) ter levado a outro diferente montante indemnizatório, então o assunto é de erro de decisão (decisão ilegal ou injusta) e não de nulidade da decisão.

Ora, como tem sido repetidamente salientado na jurisprudência, não há que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento (seja em matéria substantiva, seja em matéria processual). As primeiras (errores in procedendo) são vícios de formação ou atividade (referentes à autenticidade, à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade da decisão ou do silogismo judiciário) da peça processual que é a decisão, nada tendo a ver com erros de julgamento (errores in iudicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito. As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por ser destituída de mérito jurídico (ilegal ou injusta).

Deste modo, se a objeção do Recorrente nada tem a ver com a temática das nulidades de decisão, então necessariamente que o desvalor que imputa ao acórdão recorrido nunca se poderá traduzir numa nulidade que tal[5].

Termos em que improcede imediatamente a arguição da nulidade do acórdão recorrido.

Passemos agora à apreciação do objeto da revista excecional.

Quanto à questão da qualificação da insolvência

Sustenta o Recorrente que as instâncias erraram ao terem qualificado como culposa a insolvência. Na perspetiva do Recorrente a insolvência havia de ser considerada fortuita.

Mas não podemos subscrever um tal ponto de vista.

Liminarmente importa observar que parte da argumentação do Recorrente estriba-se em ilações que retira de certas provas de livre apreciação, passa por cima de factos que as instâncias consideraram não provados ou desnecessário apurá-los e vai contra factos que estão provados. É o caso, por exemplo, da argumentação que desenvolve em torno da regularidade da contabilidade da Insolvente (“…Dúvidas não poderão restar que a contabilidade da sociedade insolvente sempre foi organizada…”), que desrespeita por completo a factualidade que foi julgada provada (maxime facto do ponto 22. dos factos provados) e não provada (maxime facto do ponto v. dos factos não provados).

Ora, como acima se expôs, compete a este Supremo Tribunal simplesmente aplicar a lei aos factos materiais fixados pelo acórdão recorrido, estando fora das suas competências (e salvo as exceções legais, mas que aqui não concorrem) rever e alterar a matéria de facto.

Isto esclarecido:

O acórdão recorrido, tal como sucedera com a sentença da 1ª instância, concluiu pela natureza culposa da insolvência, isto por ter entendido que se verificavam as situações previstas nas alíneas d) e h) (primeiro segmento) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.

E concluiu adequadamente.

Vejamos:

Estabelece o n.º 1 desse art. 186.º que a insolvência é culposa quando a situação (de insolvência) tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Estabelece o n.º 2 do mesmo artigo, entre o mais, que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiro (alínea d) desse número) ou tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada (alínea h)).

Neste n.º 2 estamos perante juízos legais - presunções legais, inilidíveis (absolutas), insuscetíveis de prova em contrário - de culpa e de nexo de causalidade quanto à criação ou agravamento da situação da insolvência. Uma vez verificados os factos integradores das hipóteses contempladas nessas normas, a insolvência tem de ser declarada culposa, mesmo que existam eventualmente outras causas que para ela tenham concorrido[6].

Está provado (ponto 25. dos factos provados) que a sociedade O..., Lda., sociedade com objeto social igual ao da Insolvente (comércio por grosso e retalho de material ótico, bem como revenda), no período que mediou entre fevereiro de 2016 e pelo menos abril de 2017 teve a sua sede de laboração no mesmo local que a sociedade Insolvente, partilhando com esta os mesmos funcionários, sem contrapartida, e sendo a gestão de clientes feita pelo ora Recorrente.

A devida compreensão do significado ou real alcance desta factualidade deve, entretanto, ser aproximada da fundamentação que lhe está subjacente, produzida pelo tribunal de 1ª instância em sede da convicção formada. Percorrendo essa fundamentação vemos que do que se tratou foi do desvio, operacionalizado pelo ora Recorrente, de recursos próprios da Insolvente (instalações, funcionários, clientes) em benefício dessa empresa O..., criada oportunamente pelo mesmo Recorrente. Elucidativas são as seguintes afirmações retiradas da aludida fundamentação:

- “… tendo-se apurado ainda a utilização de recursos próprios da sociedade requerida em proveito da sociedade O..., cuja sociedade era igualmente gerida pelo requerido, utilizando para o efeito o mesmo espaço de laboração, trabalhadores da requerida e clientes desta, com os quais passou a comercializar diretamente”;

- “Relativamente à orgânica da Insolvente, não nos ficaram dúvidas de que a partir da constituição da sociedade O... o administrador daquela que geria esta última utilizou recursos próprios da sociedade requerida em benefício desta empresa”;

- “Apesar do administrador da requerida que também geria a sociedade O... a tivesse beneficiado nos termos em que resultou provado…;

- “… resultou manifesta a intervenção directa do requerido na administração dos negócios da O... e a sua correlação com a sociedade requerida”.

- “…resultando patente que a correlação entre ambas as empresas era dirigida pelo requerido e não se esgotava no mero apoio logístico à O..., abrangendo toda a sua actuação comercial e financeira, com colaboradores comuns aos da requerida, que colocou  ao serviço e em proveito da O...”.

Ora, a factualidade resultante do aludido ponto 25., cuja ocorrência cai no período temporal de três anos estabelecido no n.º 1 do art. 186.º do CIRE, preenche a previsão da alínea d) do n.º 2 deste mesmo artigo 186.º.

Efetivamente, estamos aqui perante uma situação de disposição de bens da sociedade Insolvente em proveito de um terceiro, a sociedade O.... Neste conspecto importa observar que (i) o conceito jurídico de bens não se limita às coisas propriamente ditas, mas abrange outros possíveis objetos da relação jurídica (como sejam os direitos subjetivos, as universalidades de direito ou as prestações creditícias[7], e estas compreendem naturalmente o campo laboral e o campo do direito ao uso de imóveis ou o campo clientelar), enfim, abrange outras relações de vantagem para o seu titular[8]; (ii) por disposição de bens não se podem entender apenas os atos de alienação de bens da propriedade do devedor mas todo e qualquer ato de disponibilização (afetação) a terceiro de vantagens económicas que, segundo a sua normal ordenação (supondo-se aqui sempre o uso de boa-fé, e não o uso de expedientes mais ou menos encapotados), estavam destinadas a fazer parte unicamente da esfera jurídica do devedor[9], ou seja, estavam destinadas a servir aos fins do devedor e não de terceiro. Daqui que, e diferentemente do que parece defender o Recorrente, a circunstância de aquilo que é desviado em benefício do terceiro não ser propriedade do devedor (como no caso sujeito acontece no referente ao local da sede da Insolvente, facto do ponto 10. dos factos provados) carece de qualquer essencialidade.

Deste modo, mostrando-se que o administrador da Insolvente, o ora Recorrente, afetou à outra sociedade recursos (trabalhadores, instalações, clientela) que, segundo a sua normal destinação e para a prossecução dos seus fins, faziam parte (pertenciam) exclusivamente do acervo económico da Insolvente, dispôs em proveito daquela de bens desta, com o que se cai justamente na previsão da alínea d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.

E preenchida tal previsão tem a insolvência que ser declarada culposa sem indagações ou tergiversações adicionais (a lei presume pura e simplesmente a culpa e o nexo de causalidade entre os atos praticados e a criação ou agravamento do estado de insolvência), sendo por isso inútil trazer à colação a questão (a que o Recorrente dá grande ênfase) do prejuízo que dos factos advieram para a Insolvente e do benefício pessoal do seu administrador.

Ainda assim dir-se-á que se é aceitável a ideia (defendida pelo Recorrente) de que uma insolvência não poderá ser qualificada como culposa por referência a bens de escasso valor económico, não é todavia o que se passa no caso vertente, tanto porque nada está provado no sentido dessa escassez como porque o que está provado, vista a natureza dos bens de que se dispôs e o período de tempo em que tal aconteceu, indica precisamente o contrário. Daqui que, e diferentemente do que pretende o Recorrente, a afirmação contida na sentença da 1ª instância no sentido de que “a actuação do requerido implicou um agravamento da situação de insolvência, ao dispor dos recursos da sociedade requerida (local de laboração, trabalhadores e clientes) em proveito de terceiro…” ou a afirmação atribuída ao acórdão recorrido no sentido de haver uma “diminuição da atividade da insolvente” representem conclusões pertinentes, sendo de rejeitar o posicionamento do Recorrente aí onde afirma que se trata de “inadmissíveis juízos conclusivos sem suporte factual que os sustente” e que entram em contradição com o mais que se expressou na sentença.

Mais está provado (ponto 22. dos factos provados) que a Insolvente não apresentou escrita contabilística nem informação fiscal no ano de 2017, apresentando um saldo no acumulado de 2018, não correspondente à realidade apurada pela administradora da insolvência.

Ora, era dever da Insolvente, pela sua administração, manter contabilidade organizada (obrigação estabelecida, e nomeadamente, pelo Sistema de Normalização Contabilística, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, pelo art. 123.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e pelo art. 29.º do CComercial, e pressuposta em várias normas do CSComerciais, nomeadamente em sede de sociedades anónimas).

Contudo, vê-se que a Insolvente não apresentou escrita contabilística no ano de 2017, portanto dentro do período relevante dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (30 de julho de 2018). Não se trata de uma falha circunstancial ou de simples irregularidade na organização da contabilidade, mas sim de uma omissão absoluta da obrigação de contabilidade com reporte a todo um ano.

O que nos leva ao incumprimento, que a nosso ver não pode deixar de ser visto como substancial - precisamente porque se trata de uma omissão absoluta que coenvolve todo um ano - e não meramente ocasional ou venial, do dever de manter contabilidade organizada, tendo a sociedade existido com reporte a esse período à margem do cumprimento de tal obrigação legal. Razão tem, pois, a sentença da 1ª instância, secundada pelo acórdão recorrido, quando aponta que “Temos assim apurada a ausência de contabilidade organizada no período relevante. Ou seja, não se tratou de qualquer irregularidade contabilística, ou seja, uma ocorrência ou grupo de ocorrências, mas de um estado generalizado da contabilidade que não permite, sequer, vislumbrar irregularidades”.

Consequentemente, cai-se na hipótese de insolvência culposa prevista na primeira parte da alínea h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, de sorte que a insolvência deve ser qualificada como tal. De observar que, diferentemente do que parece defender o Recorrente, não há necessidade de fazer intervir aqui qualquer juízo acerca do prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor (embora se antolhe evidente que a referida omissão de contabilidade organizada implica necessariamente um tal prejuízo), requisito este que apenas relevaria na hipótese (e não é disso que aqui se trata) de estar em causa uma irregularidade contabilística, não uma ausência absoluta de contabilidade organizada reportada ao lapso de tempo de um ano[10].

E, repetindo o que acima se disse, a alínea h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE fixa uma presunção absoluta (inilidível) de culpa e de causalidade relativamente à situação de insolvência (criação ou agravamento), sendo irrelevante que existam eventualmente outras causas que tenham concorrido para a insolvência. Consequentemente, está à partida destinada à improcedência a iniciativa do Recorrente tendente a significar que a insolvência teve outra causa. Pelo menos afirma algures que “Cumpre liminarmente referir que no caso dos autos, tal presunção decorrente do preceituado no art. 186.º, n.º 2, al. h), deverá ter-se como irremediavelmente por não verificada, pois que de acordo com o relatório que a Sra. Administradora apresentou nos autos principais (…) foi possível determinar com clareza e segurança a causa e motivos da insolvência …”.

Quanto à questão da condenação a indemnizar os credores até ao montante de €322.477,54 e quanto à questão do tempo das inibições decretadas

Diz o Recorrente que “Ainda que se entenda que nenhuma culpa poderá ser imputada ao recorrente, ou que a mesma seja diminuta, o certo é que ainda assim não fosse, tal condenação revela-se manifestamente brutal, excessiva, sendo avessa a bons e ponderados princípios éticos”, que “não resulta dos autos qual o concreto prejuízo que o recorrente provocou à sociedade insolvente ou à respectiva massa” e que “não se provou qualquer valor de prejuízo causado à massa com a prática dos atos fundamentadores da qualificação”.

Mas não se pode concordar com este posicionamento.

Desde logo não se subscreve o entendimento do Recorrente no sentido da ausência de culpa. Em face do que ficou acima exposto, que nos conduz a uma insolvência culposa (presunção legal inilidível), é uma inevitabilidade falar-se de culpa e uma impossibilidade lógica falar-se de ausência de culpa.

De igual forma, não se pode subscrever o entendimento do Recorrente no sentido da ausência ou não prova de prejuízo para os credores. O prejuízo dos credores é patente, como se verá a seguir.

Isto posto:

A sentença da 1ª instância condenou o ora Recorrente “a indemnizar os titulares dos créditos sobre a insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até ao valor de € 322.477,54”.

Desenvolveu-se para o efeito a seguinte fundamentação:

«Em relação à obrigação de indemnizar, a pessoa afetada pela qualificação da insolvência deve ser condenada a pagar uma indemnização aos credores da devedora “no montante dos créditos não satisfeitos, até à força dos respetivos patrimónios (…), sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados” (alínea e), do n.º 2 do artigo 189.º). Resulta, assim, que a indemnização é limitada ao montante dos créditos não satisfeitos.

Porém, embora a questão não seja pacífica, de acordo com o princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, consideramos que, em relação aos créditos não satisfeitos, o afetado pela qualificação deve ser apenas responsabilizado na medida em que contribuiu para a insolvência e não recebimento do valor dos créditos, tendo em consideração a culpa, a ilicitude da atuação e, bem assim, de acordo com o princípio da proporcionalidade, a incidência que a conduta teve na situação de insolvência e no não recebimento dos créditos. Está em causa o dano da não satisfação dos créditos.

Perfilha-se o entendimento que o regime legal plasmado no art. 189.º, quanto à indemnização devida aos credores da insolvência, deve ser interpretado, com base numa leitura integrada do texto vertido no seu número 2, alínea e) e número 4 e a exigência de uma leitura conforme ao princípio da proporcionalidade, no sentido de que a indemnização devida pela entidade afetada pela qualificação deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, salvaguardando-se, no entanto, que esse valor possa ser fixado em montante inferior sempre que o comportamento da pessoa afetada pela qualificação justifique essa diferenciação, mormente por ser diminuta a medida da sua contribuição para a verificação dos danos patrimoniais em causa, assim mitigando o recurso àquele critério exclusivamente aritmético e que, por isso, em determinadas circunstâncias, pode ser redutor (neste sentido cfr. Acs. da RG de 28.03.2019, RP de 29.06.2017 e RL de 27.04.2021, in www.dgsi.pt).

O comportamento do requerido causou um dano de € 322.477,54, correspondente ao montante dos créditos incluídos na lista definitiva de credores, do qual o requerido, como administrador da devedora não pode deixar de ser responsabilizado ao dispor de recursos da requerida em proveito de outra sociedade que igualmente administrava, sem contrapartida para sociedade requerida, levando a um decréscimo progressivo da sua actividade, não manteve uma contabilidade organizada, com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da sociedade requerida.

Em consequência, deve ser responsabilizado o requerido pelos danos causados e prejuízos sofridos pelos credores por força do seu comportamento, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património (cfr. em sentido idêntico, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16-12-2015, Processo n.º 1430/13.3TBFIG-C.C1, in www.dgsi.pt).»

O acórdão recorrido dá a sua adesão expressa a este ponto de vista, aduzindo ademais a seguinte fundamentação:

«O valor indemnizatório atribuído aos credores, deve ser fixado tendo por referência o montante dos seus créditos não liquidados, embora nunca para além das forças do património do afectado pela qualificação de insolvência; ou seja, uma insolvência, a qualificada, nunca pode determinar outra insolvência (a dos atingidos por essa qualificação) (cfr. neste sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2013, 5ª edição, Almedina, pág. 255).

Contudo, como se refere no Ac. desta Relação de Guimarães, de 18-12-2017, disponível em www.dgsi.pt:“.. sobre esta temática é importante começar por ter presente que a lei não prima pela clareza.

Depois de impor ao juiz que, na sentença de qualificação, identifique as pessoas por esta afetadas “fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa”, estipula que se condenem também essas pessoas “a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios”, fixando o valor das indemnizações devidas se houver elementos para o efeito. Se o tribunal não dispuser desses elementos, deve estabelecer “os critérios a utilizar para a sua quantificação”, a efetuar em liquidação de sentença.

Ora, estes critérios, como sublinham, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, não podem limitar-se a uma repetição da regra matricial primeiramente referida, que se traduz na diferença entre o valor global do passivo da insolvência e aquele que o ativo, resultante do património dos afetados pela qualificação, pode cobrir. Se assim fosse, não faria sentido a aludida especificação. Até porque, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16/12/2015 (Proferido no Processo n.º 1430/13.3TBFIG-C.C1, e consultável em www.dgsi.pt, “[a] Lei Concursal espanhola, assumidamente a fonte inspiradora do legislador português, na redacção dada ao n.º 1 do art.º 172.º pela Lei 17/2014, de 30 de Setembro, coloca nas mãos do juiz a decisão de condenar (ou não) os afectados com a qualificação (el juez podrá) “a cobrirem, total ou parcialmente, o deficit, na medida em que a conduta que determinou a qualificação como culposa tenha criado ou agravado a insolvência” . Da solução legal espanhola decorre agora claro, parece-nos, que o montante da condenação há-de ser fixado em função da incidência que a apurada conduta, que determinou a qualificação da insolvência como culposa e determinou a sua afectação, teve na criação ou agravação da situação de insolvência, entendimento que, de resto, já vinha sendo adoptado, resultando clarificado pela redacção ora introduzida”…Por isso, acrescenta-se no mesmo Aresto: “Tendo em conta tal solução da lei inspiradora e porque o severo regime que emerge da aplicação conjugada dos art.ºs 186.º e 189.º vincula a uma interpretação que salvaguarde precisamente o princípio da proporcionalidade, conjugando o teor das als. a) e e) do n.º 2 e o n.º 4 do art.º 189º, entendemos que encontra acolhimento no texto legal o entendimento de que na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afectado, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao acto ou actos determinantes dessa culpa”.

Desde que esteja assegurado este último pressuposto, parece-nos razoável que assim seja.

Imagine-se – como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda – “que em determinado processo, a sentença considera um administrador de uma sociedade insolvente culpado apenas pela realização da venda ruinosa de um certo imóvel. Terá ele, ainda assim, de responder por todo o passivo a descoberto, mesmo quando ultrapasse (largamente!) o prejuízo causado aos credores com o ato determinante da culpa?”.

Parece-nos, como já adiantámos, que não. O que, como acrescentam os mesmos Autores, não deixará de se projetar na aplicação do n.º 4, do artigo 189.º, do CIRE”.

Concorda-se com o assim exposto.

Esta diferenciação, porém, em nada interfere com os limites já definidos na sentença recorrida para o dimensionamento do direito dos credores.

Estes têm direito a uma indemnização que não pode exceder os respectivos créditos reconhecidos, nem o montante do património do apelante.

Aqui, sim, pese embora se admita, em tese, que a responsabilidade do afectado pela qualificação da insolvência possa ser ponderada, diminuída, em função da sua culpa, o facto é que, é necessário que esteja assegurado igualmente que o prejuízo dos credores possa ser atribuído a um acto ou actos concretos determinantes dessa mesma culpa.

(…)

[P]erante os credores da massa insolvente prejudicados pela actuação da insolvente (do seu gerente ou administrador), a pessoa afectada, em princípio, tem que responder integralmente pelos montantes dos créditos não satisfeitos decorrentes daquela sua actuação (artigo 497.º e 512º do Código Civil).

Como defendem Carvalho Fernandes e J. Labareda in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, pág. 697 “em termos objetivos, o que está em causa é a diferença entre o valor global do passivo da insolvência e o que o activo pode cobrir.

Esse por isso será o critério matricial a adoptar pelo juiz”.

O princípio da condenação na indemnização dos créditos não satisfeitos, resultantes da actuação culposa dos administradores, não viola os limites da proporcionalidade e da adequação, tanto mais que só respondem até às forças dos respectivos patrimónios.

Definido o critério geral, poderá ser ponderada a eventual diminuição do montante indemnizatório por consideração a um grau de culpa diminuída porque o acto praticado pouca influência teve na verificação dos prejuízos ou contou mesmo com a aprovação ou contributo dos credores.

No caso concreto, em face do quadro factual apurado, não se vislumbram razões para considerar que ao montante dos créditos não satisfeitos deva ser “descontado” qualquer valor em razão de um grau de culpa diminuído do apelante, nem se vislumbra qualquer contributo dos credores que possa produzir também esse efeito.

A ser assim, entendemos que a condenação no pagamento dos créditos não satisfeitos, está em consonância com o grau de culpa do apelante, pois que ao dispor este de recursos da requerida em proveito de outra sociedade, sem contrapartida para sociedade requerida, levando a um decréscimo progressivo da sua actividade, e não mantendo uma contabilidade organizada, com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da sociedade requerida, frustrou o apelante qualquer possibilidade de continuação da actividade económica da devedora.»

Concordamos, no essencial, com estas fundamentações.

Vejamos:

Regulam para o caso a alínea e) do n.º 2 e o n.º 4 do art. 189.º do CIRE.

Estabelece a primeira dessas normas, na sua redação atual[11], que na sentença que qualifique a insolvência como culposa deve o juiz condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios; e estabelece a segunda que o juiz deve fixar (quantificar) o valor das indemnizações devidas (ou, caso tal não seja possível em virtude de não estarem disponíveis os elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos, os critérios a utilizar para a sua quantificação ulterior).

Há quem pareça admitir a ideia de que o grau de culpa deve poder influir na definição do quantum indemnizatório. Dir-se-ia então que o afetado pela qualificação deve ser apenas responsabilizado na medida em que os seus concretos atos culposos contribuíram para a insolvência[12]. Uma tal conclusão será sem dúvida exata no contexto do art. 570.º do CCivil (culpa concorrente dos credores), mas já será menos harmoniosa com o regime das obrigações solidárias a que estão sujeitos os afetados (v. art.s 497.º, n.º 1, 512.º e 519.º, n.º 1 do CCivil, e 189.º, n.º 2, al. e) in fine do CIRE)[13].

Porém, seja como for (e como decorre das supra aludidas fundamentações), a indemnização devida deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, pois é essa diferença que representa o prejuízo dos credores. Só assim poderá não ser se acaso os factos provados revelarem que o comportamento culposo do afetado não foi causal de todo esse dano, antes se tendo limitado a ser apto a produzir um certo dano menor (dano inferior ao do passivo não coberto pelas forças da massa). Cremos que uma tal conclusão recebe algum respaldo na alínea a) do n.º 2 do art. 189.º do CIRE, que se reporta justamente à fixação do grau de culpa “sendo o caso”.

Ora, os factos provados não revelam que o comportamento culposo do Recorrente se limitou a ser apto a produzir um certo e determinado prejuízo aos credores, inferior àquele que estes podem sofrer efetivamente. Pelo contrário, revelam que esse comportamento é causal de todo o prejuízo que possa advir para os credores.

Neste particular do prejuízo é de dizer que os credores, dado o pouco valor (em comparação com o montante dos créditos) dos bens apreendidos (facto do ponto 15.) e dado que são pagos precipuamente os encargos do processo, poderão nada receber, pelo que o seu prejuízo poderá chegar efetivamente ao montante dos respetivos créditos (€322.477,54). É nessa medida que o afetado deve ser responsabilizado.

Compreende-se assim a lógica da condenação em indemnização “até ao valor de €322.477,54” (trata-se aqui de uma espécie de condenação ilíquida, embora se afigure que não foi respeitado integralmente o comando do n.º 4 do art. 189.º do CIRE, mas não é contra isso que se insurge o Recorrente). De notar, a propósito, que conquanto o Recorrente venha falar de “pagamentos entretanto processados pessoalmente pelo Requerido aos credores” (pagamento de avales), o que é certo é a matéria de facto provada, a que temos de nos ater, não reflete tal realidade. Mais do que isto até, na primeira apelação que interpôs o Recorrente pretendeu que a matéria do ponto 14. fosse ampliada de modo a compreender que era credor da Insolvente por €81.073,35 relativamente a avales prestados e cujo montante teria liquidado aos credores da insolvência, mas tal pretensão foi rejeitada por decisão que há muito passou em julgado.

Acresce observar que embora seja verdade que o acórdão recorrido fala em “culpa diminuída” e em culpa de gravidade “mediana/baixa” (e não, diferentemente do que diz o Recorrente, em “culpa diminuta”, e não se trata da mesma coisa), cremos que, bem vistas as coisas, nem sequer há que falar em qualquer “culpa diminuída” ou “mediana/baixa”. O próprio acórdão recorrido imputa na realidade ao afetado uma culpa plena, ampla, causal de todo o prejuízo, e não uma culpa mitigada em algum grau, aí onde menciona que “entendemos que a condenação no pagamento dos créditos não satisfeitos, está em consonância com o grau de culpa do apelante, pois que ao dispor este de recursos da requerida em proveito de outra sociedade, sem contrapartida para sociedade requerida, levando a um decréscimo progressivo da sua actividade, e não mantendo uma contabilidade organizada, com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da sociedade requerida, frustrou o apelante qualquer possibilidade de continuação da actividade económica da devedora”. Se o comportamento culposo do Recorrente frustrou qualquer possibilidade de continuação da atividade económica da devedora Insolvente, prejudicando assim apoditicamente a correspetiva possibilidade de cumprimento das respetivas obrigações para com os credores, então de que culpa “diminuída” ou “média/baixa” é que se poderá falar?

Deste modo, de nenhuma censura é passível o acórdão recorrido ao ter decidido que o Recorrente está obrigado a indemnizar os credores da Insolvente e que a indemnização devida deve poder atingir o valor indicado na sentença da 1ª instância, não havendo qualquer base factual que permita o abaixamento do respetivo limite máximo.

Mais diz o Recorrente que “na eventualidade de se aferir do grau de ilicitude e culpa (…) pensamos que inexistem razões para fixar as inibições pelo período legal mínimo de dois anos, acrescido da perda de créditos sobre a insolvência”.

Se bem se entende este inciso, o Recorrente estará na realidade a defender que o período das inibições que foi estabelecido se revela excessivo, devendo, ao invés, ser fixado em dois anos.

Neste particular, vemos que foi decretada a inibição do Recorrente para administrar patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período três anos.

Sobre esta temática escreveu-se o seguinte na sentença da 1ª instância:

“… visto o valor do passivo que ficou por regularizar, sopesados os demais factos apurados que permitiram a verificação dos fundamentos vertidos no artº 186º, n.º 2, als. d) e h) do CIRE, donde resulta a gravidade objectiva do comportamento do requerido relevante na situação de insolvência, ou, pelo menos, no agravamento dessa situação e considerando que o período de inibição estabelecido no artº 189º, n.º 2, als. b) e c) do CIRE, deve ser fixado entre 2 e 10 anos, consideramos adequado fixar esse período por três anos, por se considerar adequado aos contornos do caso em apreço.”

O acórdão recorrido para além de concordar expressamente com o assim expendido, mais disse:

“… atento o comportamento do apelante, e as respectivas consequências para os credores, há que considerar a culpa do apelante de gravidade mediana/baixa.

Ora, a moldura da inibição varia entre um mínimo de 2 anos e um máximo de 10 anos.

Assim sendo, a fixação de uma medida concreta de inibição próxima do limite mínimo da moldura abstracta de inibição prevista pelo legislador, que foi a aplicada na sentença recorrida, mostra-se correcta, ponderada e acertada.

Com efeito, tendo sido fixado o período de inibição em 3 anos, verifica-se que o mesmo se encontra próximo do limite mínimo da moldura, pelo que não se pode considerar existir um desfasamento entre o grau de culpabilidade e a duração da inibição.

Por isso, afigura-se inteiramente adequado e proporcional o período de inibição fixado na sentença”.

Certamente que, e como se afirma no acórdão da Relação de Guimarães de 31 de janeiro de 2019 (processo n.º 3478/16.7T8VNF-D.G1, disponível em www.dgsi.pt) e à míngua de qualquer outro diferente critério norteador legal, “na ponderação da duração do período de inibição deve levar-se em conta a gravidade da conduta da pessoa afectada com a qualificação culposa da insolvência, as repercussões do comportamento, o grau de culpa (actuação dolosa ou com culpa grave, sendo que no primeiro caso é relevante a natureza do dolo) e o contributo para a situação de insolvência (balizado entre um comportamento que determinou directamente a situação de insolvência e outro que apenas agravou a mesma)”.

Ora, a conduta do Recorrente apresenta-se objetivamente de basta gravidade, a culpa respetiva (e pese embora o acórdão recorrido concluir de forma diversa) tem-se por significativa (ao nível do dolo), como significativa é a magnitude dos interesses em jogo (interesses dos credores, tal como objetivados no quantum dos seus créditos). Considerando que o período de inibição que foi estabelecido (três anos) se aproxima do mínimo legal (que é dois anos), óbvio resulta que se esse período de inibição peca não é seguramente por excesso mas sim por defeito.

Consequentemente, impõe-se manter o período de inibição que foi decretado.

Improcede pois a questão em epígrafe.

Quanto à questão da inconstitucionalidade do art. 189.º do CIRE

Diz o Recorrente algures na sua alegação, aliás de modo mais ou menos telegráfico (permita-se a expressão) e não substanciado, que “A interpretação processada pelo Tribunal da Relação a quo do art.º 189.º, do CIRE é inaceitável por ser demasiado severa e desproporcional, e daí inconstitucional…”.

A ver nisto o levantamento de uma verdadeira questão, diremos que tal ponto de vista não pode ser subscrito.

Atentos os factos provados e os interesses patrimoniais em jogo (interesses dos credores, do comércio e da economia em geral), a interpretação do art. 189.º do CIRE de modo a levar às concretas consequências (culpa, inibições, dever de indemnizar, etc.) que na presente espécie foram fixadas no seu quadro apresentam-se proporcionais e adequadas. Trata-se simplesmente da aplicação ao caso concreto do modo como o legislador ordinário – a quem a Constituição da República Portuguesa não recusa o direito a uma ampla margem de atuação na definição dos termos da vida em sociedade – entende organizar juridicamente as consequências sócio-económicas inerentes à insolvência. A imputação de culpa, ainda que presumida, na produção ou agravamento da insolvência, a definição das consequências daí emergentes para o culpado e a definição dos inerentes direitos dos credores (tal como decorrente do art. 189.º do CIRE), tudo isso nada tem de desproporcionado ou de inadequado.

Deste modo, afigura-se que tal norma não padece de inconstitucionalidade.

De resto, é patente que o Recorrente do que se queixa afinal é da decisão concreta que é produzida e não de qualquer desvalor constitucional da norma que cita.

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Conhecidas que estão todas as questões – de novo, não confundir questões com razões ou argumentos – resta concluir que improcede o presente recurso, tanto na vertente da revista normal como da revista excecional.

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IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas:

O Recorrente é condenado nas custas do recurso.

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Lisboa, 6 de setembro de 2022

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

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Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).

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[1] A bondade desta conclusão resulta dos termos literais do nº 1 do art. 14.º, do cotejo entre esse n.º 1 e o n.º 2 do mesmo artigo e, ademais, do confronto entre o texto que veio a ser consagrado na lei e o texto que constava do anteprojeto do CIRE. E é esse o entendimento reiterado do Supremo Tribunal de Justiça (nomeadamente desta 6ª Secção, que é a incumbida de decidir sobre causas da competência especializada das Secções do Comércio, nos termos do Provimento n.º 15/2014 do Exmo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça), como se pode ver, a título de exemplo, dos acórdãos de 13.11.2014 (processo nº 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1), de 27.4.2017 (processo nº 44/14.5T8VIS-B.C1.S1), de 17.6.2014 (processo nº 3125/11.3TJCBR-B.C1.S1) e de 16.04.13 (processo nº 3410/l0.lT2SNT-E.L1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt. É este também o entendimento de Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., pp. 127 e 128).
[2] A chamada revista excecional o que significa é apenas uma admissão excecional da revista, com vista a superar o obstáculo à irrecorribilidade ditada pela dupla conforme.
[3] Isto tem sido reiteradamente exposto na jurisprudência deste Supremo, como se pode ver dos seguintes exemplos (sumariados em www.stj/jurisprudência/acórdãos/revista-excecional):
- Acórdão de 12 de março de 2015 (Revista excecional n.º 366/12.0TBMDL.P1.S1): “A dupla conformidade relevante supõe, necessariamente, a reapreciação pela Relação da mesma questão de direito que a 1.ª instância já tenha apreciado, e a sua confirmação”
- Acórdão de 19 de março de 2015 (Revista excecional n.º 1668/12.0TBGDM.P1.S1): “I - Pressuposto da revista excepcional é a verificação de uma situação de dupla conformidade, tal como definida no n.º 3 do art. 671.º do NCPC (2013). II - A dupla conformidade supõe, necessariamente, a reapreciação pelo tribunal da Relação da mesma questão de direito que a 1.ª instância já tinha apreciado e a confirme.”
- Acórdão de 14 de maio de 2015 (Revista excecional n.º 29/12.6TBFAF.G1.S1): “I - A dupla conformidade, como requisito negativo geral da revista excecional, supõe duas apreciações sucessivas da mesma questão de direito, ambas determinantes para a decisão, sendo a segunda confirmatória da primeira.”
No mesmo sentido:
- Acórdão de 06-06-2017 (Revista n.º 800/10.3TBOLH-B.E1.S1 (com sumário em www.stj/jurisprudência/sumários): “I - A regra da inadmissibilidade de recurso de revista em caso de “dupla conforme" não abrange, por natureza, as ilegalidades cometidas ex novo na própria Relação, isto é, não se aplica às decisões ou nulidades sem qualquer paralelo, afinidade ou contiguidade com a decisão produzida na 1.ª instância. II - Mas a circunstância da revista ser admissível nesta hipótese não permite estender a sua admissibilidade quanto a outras questões à partida excluídas pela regra da "dupla conforme".
[4] Cfr. António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., pp. 379 a 383.
[5] V. Acórdão deste Supremo de 7 de junho de 2022, processo n.º 4825/20.2T8CBR-A.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, de cujo sumário se pode ler que “II - Se o que contesta a parte recorrente é, na realidade, o entendimento jurídico sufragado no acórdão recorrido, então a questão nada tem a ver com a temática das nulidades de decisão (error in procedendo) mas sim com o erro de decisão (error in iudicando)”.
[6] v. Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 7ª ed., p. 283.
[7] Cfr. Luis Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, I, 6ª ed., pp. 666, 667 e 727 e seguintes.
Segundo informam Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, 9ª ed., p. 255), Gomes da Silva definiu bem, em sentido amplo, como “tudo o que sirva para o homem atingir qualquer fim” e como uma realidade qualquer que “se torne aproveitável para o homem”, e que  para Jhering é bem “tudo aquilo que nos pode servir para alguma coisa”.
[8] Castro Mendes, Direito Civil (Teoria Geral), volume II, 1973, p. 124: «O termo bem destaca a relação de vantagem para o seu titular. Exatamente por isso, o termo bem pode ter um sentido mais amplo [do que o termo coisa], que engloba também outras realidades vantajosas para o seu titular, e “maxime” os direitos subjetivos».

[9] Exatamente como houve já oportunidade de se deixar escrito no sumário do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 15 de fevereiro de 2018, processo n.º 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1 (disponível em www.dgsi.pt), produzido por dois dos juízes que produzem o presente acórdão, “I - A disposição de bens a que alude a alínea d) do nº 2 do art. 186º do CIRE não se reconduz apenas aos atos de alienação”.

Mais pode ler-se do texto desse acórdão que “… o proveito do terceiro exigido na alínea d) do nº 2 do art. 186º do CIRE é compaginável com todas as situações em que os bens do insolvente são afetados (disponibilizados) ao terceiro, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens do insolvente é transferida para o terceiro, mas também quando, independentemente disso, é consentido a este que use, goze e frua os bens, que deles retire as respetivas utilidades em benefício próprio. Neste caso o insolvente fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietário desses bens, ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos”.

Dentro desta linha, pode ler-se do acórdão da Relação de Coimbra de 4 de maio de 2010 (processo n.º 427/07.7TBAGD-G.C1, disponível em www.dgsi.pt) que, apurado que o requerido instalou nas instalações da insolvente a atividade de outra sociedade, esta aí laborando com afetação de equipamento industrial e de pelo menos dois dos seus funcionários, se cai na hipótese prevista na alínea d) do n.º 2 do artº 186º do CIRE.
[10] Como se aponta no acórdão deste Supremo de 5 de julho de 2022, processo n.º 15973/18.9T8SNT-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, que incidiu também sobre uma situação de omissão de contabilidade, a alínea h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE prevê várias hipóteses, “que são distintas e independentes entre si: (i) incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada; (ii) manutenção de uma contabilidade fictícia ou de uma dupla contabilidade; (iii) prática de irregularidade que implique prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor”.
[11] Dada pela Lei n.º 9/2022, que entrou em vigor em 11 de abril de 2022 e que se aplica imediatamente aos processos pendentes (art. 10.º, n.º 1).
[12] Cfr. Luis Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., p. 698: “Imagine-se (…) que em determinado processo, a sentença considera um administrador de uma sociedade insolvente culpado apenas pela realização da venda ruinosa de um certo imóvel. Terá ele, ainda assim, de responder por todo o passivo a descoberto, mesmo quando ultrapasse (largamente!) o prejuízo causado aos credores com o ato determinante da culpa?
Está claro que uma eventual resposta negativa à questão não deixará de se projetar na aplicação do n.º 4.”
[13] A questão não pode, de resto, ser cindida da temática da causalidade, que implica uma responsabilização total independentemente do grau de participação culposa. São de considerar como causa de um evento todas as condições que concorreram diretamente para que o mesmo tenha acontecido como efetivamente aconteceu (rectius, para a produção dos danos). É nisto que se traduz a chamada concausalidade (v. Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., p. 689). Indiferente para o efeito é o peso específico de cada uma dessas condições, a suficiência (causalidade cumulativa) ou insuficiência (concausalidade propriamente dita ou concorrência necessária) de cada uma delas em ordem à produção do dano, e o momento em que, no processo causal, surgem. A concausalidade não pressupõe uma ação concertada ou cooperante dos diversos autores do facto, de modo que estes são responsáveis mesmo que tenham atuado de forma isolada e fora de qualquer atividade conjunta (V. Almeida Costa, ob. cit., p. 541).