CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
RECUSA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Sumário


I - Os domínios jurídicos de atuação do administrador judicial provisório em sede de PER e do administrador da insolvência em sede de liquidação da massa insolvente não coincidem necessariamente, sendo por isso perfeitamente congruente que num domínio e noutro sejam usados critérios de decisão diferentes.
II - Deste modo, não se constitui uma situação de exercício abusivo do direito, na modalidade do chamado venire contra factum proprium, se, tratando-se embora da mesma pessoa em vestes diferentes:
(i) o administrador judicial provisório em sede de PER, que se frustrou, autoriza a devedora a vender um prédio objeto de contrato-promessa, mas não se tendo realizado a venda por razões estranhas às funções do AJP;
(ii) e depois, em sede de processo insolvencial destinado à liquidação da massa, e na qualidade de administrador da insolvência, opta por recusar, ao abrigo do art. 102.º do CIRE, o cumprimento desse contrato-promessa;
(iii) sendo que a recusa de cumprimento foi fundada na circunstância de ter verificado que o valor do prédio era muito superior àquele que foi convencionado ser pago e recebido em cumprimento do contrato;
(iv) agindo o administrador da insolvência à luz exclusivamente da defesa dos interesses dos credores.

Texto Integral




Processo n.º 18172/16.0T8LSB-G.L2.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Lisboa

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

SILVERLEVEL – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS E TURÍSTICOS, S.A. demandou, pelo Juízo de Comércio ... e por apenso ao processo de insolvência da 3ª Ré:

- MASSA INSOLVENTE DE LUSÍADAS – FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO;

- CREDORES DA MASSA INSOLVENTE e,

- LUSÍADAS – FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO,

pedindo que:

a) se declare que a 1.ª ré incumpre culposa e ilicitamente com as obrigações decorrentes do contrato-promessa a que se refere, decretando-se a respetiva execução específica e proferindo-se sentença que produza os efeitos jurídicos da declaração negocial da faltosa 1ª Ré;

Caso assim não se entenda,

b) se declare que a recusa do cumprimento do contrato pela 1.ª ré constitui abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, decretando-se a execução específica do contrato-promessa e proferindo-se sentença que produza os efeitos jurídicos da declaração negocial da 1.ª ré faltosa;

Caso ainda assim não se entenda,

c) se condenem as rés a pagar à autora a quantia de 465.000,00€ referentes à devolução do sinal prestado (250.000,00€) acrescido de indemnização correspondente à diferença (215.000,00€[1]) entre o valor do imóvel à data da promessa e à data da recusa do cumprimento, o qual deverá ser graduado como dívida da massa insolvente nos termos previstos na al. c), d), e), f) e h) do n.º 1, do artigo 51.º do CIRE, e o seu pagamento ser efetuado precipuamente, com as legais consequências.

Alegou para o efeito, em apertada síntese e no que para este recurso importa, que:

- Na qualidade de compradora, celebrou oportunamente com a 3ª Ré, esta na qualidade de vendedora, o contrato-promessa de compra e venda do imóvel a que se reporta;

- A Autora prestou sinal que totalizou €250.000,00;

- Tendo corrido PER (Processo Especial de Revitalização) requerido pela 3ª Ré, o AJP (Administrador Judicial Provisório) deu a sua autorização à realização do contrato prometido;

- A Autora ficou convencida que a compra e venda se iria realizar, tendo inclusivamente reforçado o sinal;

- Porém, o contrato prometido acabou por não ser concretizado por razões ligadas à emissão de guias para pagamento do IMT e IS e ao comportamento omissivo e indevido do AJP inerente à (não) superação dessas razões;

- A 3ª Ré foi entretanto declarada insolvente, tendo sido nomeado como AI (Administrador da Insolvência) a mesma pessoa que exerceu o cargo de AJP;

- O AI declarou recusar o cumprimento do contrato-promessa;

- Face às descritas circunstâncias, tal recusa representa um exercício abusivo do direito, o que confere à Autora o direito à execução específica do contrato;

- A assim não ser, tem a Autora direito à restituição do montante do sinal que prestou, acrescido de uma indemnização pelo prejuízo sofrido (não inferior a €215.000,00), correspondente à valorização do imóvel (diferença entre o que valia à data da promessa e o que passou entretanto a valer).

Contestou a 3ª Ré, concluindo pela improcedência da ação.

Entre o mais que para o presente recurso não importa, alegou que a decisão de recusa de cumprimento do contrato-promessa teve em vista o interesse dos credores, respeitou a lei e foi feita dentro dos limites das competências atribuídas ao AI, razão pela qual não há que falar em qualquer abuso do direito nem na possibilidade de execução específica do contrato.

Seguindo o processo seus devidos termos veio, a final, a ser proferida sentença que julgou:

a) improcedente o pedido de execução específica do contrato-promessa, sendo os Réus absolvidos do inerente pedido;

b) procedente o pedido subsidiário, sendo declarado verificado o crédito da autora, no montante de € 465.000,00, a ser pago como crédito comum sobre a insolvência e a ser graduado no lugar que lhe competir.

Inconformada com o assim decidido, apelou a Autora.

Fê-lo sem sucesso, pois que a Relação de Lisboa confirmou a sentença.

Ainda irresignada, pede a Autora revista.

Dada a existência de uma dupla conformidade decisória das instâncias, introduziu o seu recurso como revista excecional.

Neste Supremo Tribunal de Justiça a competente formação admitiu o recurso assim interposto.

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São as seguintes as conclusões que a Autora extrai da sua alegação:

1.ª Vem o presente recurso de revista excecional interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 25/01/2022, notificado por ofício via CITIUS, cuja elaboração foi certificada pelo sistema em 26/01/2022, pelo qual foi julgado totalmente improcedente o recurso de apelação que a autora, agora recorrente, havia interposto contra sentença proferida pelo Juízo do Comércio ... - Juiz ..., no âmbito da ação de processo comum que constitui os presentes autos, pela qual julgou improcedente o pedido de execução específica do contrato-promessa objeto dos presentes autos.

2.ª A questão que se traz à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça é saber se é lícito ao Administrador da Insolvência recusar o cumprimento de contrato promessa ao abrigo do disposto no art. 102.º, n.º 1 do CIRE, quando desempenhou anteriormente, em contexto de Processo Especial de Revitalização, funções de Administrador Judicial Provisório, e, nessa sede, autorizou a celebração desse mesmo negócio nos termos do art. 17.º-E, n.º 2 do CIRE, e ocorreram adiantamentos por conta do sinal na sequência desta autorização.

3.ª A recorrente entende que está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, uma vez que a mesma lida diretamente com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança (os quais são inerentes ao estado de direito democrático estabelecido no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa), face à necessidade de esclarecer de que forma é que os cidadãos podem confiar nas normas jurídicas existentes, e na atuação dos vários agentes judiciários, tendo em vista a tomada de decisões e a consequente prática de atos.

4.ª No caso dos autos está em apreciação a situação de uma empresa que, sendo promitente compradora num contrato promessa de compra e venda de um imóvel pelo preço de 785.000,00€, com sinal prestado de 225.000,00€, em que a promitente vendedora entra em Processo Especial de Revitalização, após conhecer a decisão do Administrador Judicial Provisório de autorização da realização do negócio, reforça o sinal em mais 25.000,00€, e, convertido o processo em insolvência, vê este mesmo interveniente processual, agora na qualidade de Administrador da Insolvência, recusar o cumprimento do contrato promessa.

5.ª A confiança criada pelo ato de autorização de negócio, nos termos do art. 17.º-E, n.º 2 do CIRE por Administrador Judicial Provisório cria na convicção da pessoa (singular ou coletiva) uma confiança, com efeitos patrimoniais, consubstanciado nos pagamentos de reforço de sinal, determina que não possa ser juridicamente aceitável uma posterior recusa do cumprimento do contrato, agora nos termos disposto no art. 102.º, n.º 1 do CIRE, com a invocação de que o então Administrador Provisório atua agora com vestes e ao abrigo de um poder / direito diferente.

6.ª É assim errado o entendimento do Tribunal recorrido segundo o qual «A declaração do administrador da insolvência de optar pelo não cumprimento do contrato-promessa de compra e venda não representa, em si, uma atitude contraditória (venire contra factum proprium) relativamente à anterior declaração, enquanto administrador judicial provisório, de que não se opunha à celebração do contrato definitivo de compra e venda.».

7.ª Este tema reveste ainda carácter de novidade, não tendo sido discutido na doutrina nem na jurisprudência, o que determina a necessidade de um melhor esclarecimento da mesma, tendo em vista uma melhor aplicação das normas em apreciação (art. 672.º, n.º 1, al. a) do CPC).

8.ª O Tribunal recorrido [entende] que a declaração emitida nos termos do artigo 17º-E do CIRE, não pode limitar a liberdade de opção pelo não cumprimento do contrato conforme determinado pelo nº 1 do artigo 102º do CIRE, porque trata-se de um direito potestativo de opção do administrador pelo cumprimento do contrato e que tem como fim a satisfação dos direitos e interesses dos credores do insolvente, sendo que a conduta do administrador da insolvência só seria abusiva se desrespeitasse, pelo menos de forma grosseira, o princípio do igual tratamento dos credores.

9.ª Assim, entendeu o Tribunal recorrido que apesar de ter resultado provado que a recorrente ficou convencida da realização do negócio, pagando a título de sinal e reforço de sinal o montante de 250.000,00 € (nº 36 do factos provados), não ficou provado que aquele convencimento tenha decorrido da autorização dada pelo, então, administrador judicial provisório em 30/10/2015, porque a recorrente relacionava-se diretamente com a entidade gestora do “Fundo”.

10.ª Ainda no entendimento do Tribunal recorrido, a recusa não foi dada pelo Administrador Judicial Provisório (AJP), mas pelo Administrador da Insolvência (AI), no exercício de um direito potestativo reconhecido pelo nº 1 do artigo 102º do CIRE (sendo, por princípio, os direitos potestativos insindicáveis em sede de abuso de direito).

11.ª Com o devido respeito por melhor opinião, a recorrente entende que o primeiro erro cometido pelo Tribunal recorrido acontece quando, no que à autorização para a prática de atos diz respeito, considera essencialmente diferentes as funções do AJP, por confronto com os do AI.

12.ª Acontece que, como tem sido entendido pela doutrina, designadamente por LUIS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3.ª Ed., Lisboa, 2015, em anotação ao artigo 17.º-E do CIRE, no respeitante à autorização para a prática de atos de especial relevo, as funções do AJP são as mesmas do AI.

13.ª Depois, se é certo que o Administrador da Insolvência deve atuar tendo em vista o respeito pelo princípio par conditio creditorum, também não deixa de ser verdade que deve sempre e também atuar de acordo com os ditames da boa-fé, não logrando criar expectativas que posteriormente vem defraudar.

14.ª A figura jurídica do abuso do direito, verdadeira válvula de escape construída para evitar situações em que a atuação de uma das partes excede manifestamente aquilo que pode ser considerado admissível tendo em conta a boa-fé e os ditames do sentido da justiça (cfr. Acórdão do STJ de 18/12/2008, proc 08B2688; de 12/11/2013, proc 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1; de 24/03/2015, proc 296/11.2TBAMR.G1.S1) deve ser mobilizada para reagir a situações em que tal acontece, mesmo quando se está perante o exercício de direitos potestativos.

15.ª Em situações normais, a declaração emitida nos termos do artigo 17º-E do CIRE, não limitará a liberdade de opção pelo não cumprimento do contrato conforme determinado pelo nº 1 do artigo 102º do CIRE.

16.ª Tendo-se provado, como é o caso dos autos, a existência de um comportamento anterior suscetível de basear uma situação objetiva de confiança (facto 28); a imputabilidade das duas condutas ao agente (AJP e AI, funções desempenhadas pela mesma pessoa) (factos 28 e 57); a boa fé do lesado (confiante, aqui recorrente) (facto 36); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma atividade com base no factum proprium (factos 29, 30 e 36); o nexo causal entre a situação objetiva de confiança e o “investimento” que nela assentou (facto 36), estão verificados todos os requisitos do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

17.ª Esta situação é tanto mais grave que para a recorrente resultou um prejuízo direto consubstanciado nos montantes que despendeu a título de reforço de sinal, conforme resulta do facto provado n.º 36 (Tendo a autora ficado convencida que o negócio era para concretizar, pagou, a título de sinal e reforços de sinal, o montante total de 250.000,00€, apenas permanecendo em dívida a quantia de 535.000,00€, para perfazer o montante global do preço previsto pelas partes do contrato-promessa de compra e venda).

18.ª Este prejuízo direto que resultou para a aqui recorrente, traduziu-se num benefício ilegítimo para a devedora, e para os seus credores, na medida em que estes viram o seu património enriquecido na exata medida do empobrecimento do património daquela.

19.ª É manifesto que se o Administrador da Insolvência recusar o cumprimento de contrato promessa ao abrigo do disposto no art. 102.º, n.º 1 do CIRE, quando desempenhou anteriormente, em contexto de Processo Especial de Revitalização, funções de Administrador Judicial Provisório, e, nessa sede, autorizou a celebração desse mesmo negócio nos termos do art. 17.º-E, n.º 2 do CIRE, tendo, por tal atitude levado ao pagamento de reforços de sinal, age em abuso de direito na citada modalidade.

20.ª Tendo decidido de forma diversa, o Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 334.º do Código Civil e 102.º, n.º 1 do CIRE.

21.ª Se o Administrador da Insolvência recusou o cumprimento de um contrato promessa que, por força do exposto, não poderia ter recusado, a decisão do Tribunal só poderia ser a de produção da autorização e da consequente declaração negocial em falta.

22.ª Pelo que deverá ser revogada a decisão recorrida, substituída por outra que declare que a recusa do cumprimento do contrato pela 1.ª ré constitui abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, decretando-se a execução específica do contrato promessa dos autos, e proferindo-se decisão que produza os efeitos jurídicos da declaração negocial da 1.ª ré faltosa.

Termina dizendo que “deverá o presente recurso de revista excecional ser admitido, julgado totalmente procedente por provado e, em consequência ser revogado o acórdão recorrido, substituindo-se a decisão por outra que que declare que a recusa do cumprimento do contrato pela 1.ª ré constitui abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, decretando-se a execução específica do contrato promessa dos autos, e proferindo-se decisão que autorize o negócio e que produza os efeitos jurídicos da declaração negocial da 1.ª ré faltosa.”

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A Ré Massa Insolvente de Lusíadas – Fundo de Investimento Imobiliário Fechado contra -alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

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É questão a conhecer:

- Se a recusa do cumprimento do contrato-promessa por parte do administrador da insolvência representa um exercício abusivo do direito, devendo haver lugar à execução específica do contrato.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes:

1) A autora é uma sociedade comercial que se dedica profissionalmente à atividade de compra e venda de bens imobiliários.

2) Em 2015, a 3.ª ré era proprietária da fração autónoma identificada pela ..., correspondente ao ... andar do prédio urbano sito na Avenida ..., ... em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...19 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...90.º.

3) Por escrito particular datado de 16 de janeiro de 2015, a autora, na qualidade de promitente compradora, celebrou com a terceira ré, LUSÍADAS – FUNDO DO INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO, gerido e legalmente representado pela BANIF GESTÃO DE      ATIVOS– SOCIEDADE GESTORA DE FUNDOS DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO, S.A., na qualidade de promitente vendedor, um denominado contrato promessa que teve por objeto o indicado imóvel.

4) Neste ato, da parte da promitente compradora, aqui autora, interveio a sua administradora única AA.

5) Conforme consta da cláusula primeira do contrato, sob a epígrafe Definições e Interpretação:

“1. Neste contrato, sempre que expressos ou iniciados por maiúscula e salvo se do texto claramente resultar sentido diferente, os termos abaixo indicados terão o significado que a seguir lhes é apontado:

Contrato: o presente contrato promessa de compra e venda;

Imóvel: a fração autónoma identificada pela ..., correspondente ao ... andar do prédio urbano sito na Avenida ..., ... em ..., com os seguintes elementos de identificação:

Descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...19;

Freguesia: ...

Concelho: ...

Artigo Matricial: 890 da freguesia ...

Alvará de Licença de Utilização: ...6 emitida em 27 de janeiro de 1970 pela Câmara Municipal ...;

Prazo da Escritura: a celebrar até 15 de maio de 2015;

Preço Global da Compra e Venda: € 785.000,00 (setecentos e oitenta e cinco mil euros);

Valor do Sinal: € 50.000,00 (cinquenta mil euros);

Valor do Reforço do Sinal: € 50.000,00 (cinquenta mi euros);

Remanescente do Preço: € 685.000,00 (seiscentos e oitenta e cinco mil euros).”

6) Na cláusula segunda do contrato em questão foi declarado que:

“O Promitente Vendedor é dono e legítimo proprietário do imóvel.”

7) Na cláusula terceira do contrato em questão foi declarado que:

“1. Pelo presente Contrato, o Promitente Vendedor promete vender ao Promitente Comprador, e este promete comprar-lhe o imóvel, livre de quaisquer ónus, responsabilidades ou encargos registados, bem como de pessoas e bens.

As partes assumem que o Imóvel é vendido no estado e condições em que atualmente se encontra, que é do perfeito conhecimento do Promitente Comprador e pelo mesmo aceite, não podendo, por este facto, vir a invocar vícios ou a falta de qualidade no Imóvel e exigir a reparação ou substituição do mesmo, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 913.º e seguintes do Código Civil.”

8) Na cláusula quarta do contrato em questão foi declarado que:

“Para a prometida compra e venda é estipulado o Preço Global da Compra e Venda.”

9) Na cláusula quinta do contrato em questão foi declarado que:

“1. O preço melhor acordado nos termos da Cláusula Quarta será pago da seguinte forma:

i) Com a assinatura do presente Contrato, o valor do Sinal;

ii) Em 28 de fevereiro de 2015 o valor do Reforço do Sinal;

iii) O remanescente do Preço, no ato da escritura pública de compra e venda.

2) O presente Contrato servirá de documento de quitação do montante referido em 1 e 2, após a sua boa e efetiva cobrança.”

10) Na cláusula sétima do contrato em questão foi declarado que:

“1. Salvo o previsto no número seguintes, a escritura pública de compra e venda deverá ser celebrada no Prazo da Escritura, a contar da data da assinatura do presente Contrato, em data, hora e Cartório Notarial que o Promitente Vendedor designar, devendo, para o efeito notificar o Promitente Comprador através de carta registada com aviso de receção ou de escrito protocolado, no qual indique todos aqueles elementos, a enviar com a antecedência mínima de 10 (dez) dias em relação à data designada.

2. O Prazo da Escritura poderá ser prorrogado unilateralmente pela Promitente Vendedora – que deverá comunicar este facto ao Promitente Comprador – se até ao termo do mesmo esta ainda não tiver conseguido:

i. Reunir toda a documentação necessária para a outorga da escritura publica de compra e venda;

ii. Não tiver sido ultrapassado o prazo para as pessoas/entidades referidas na cláusula antecedente exercerem o direito de preferência.

3. Uma vez notificado para a escritura nos termos referidos no número 1 da presente Cláusula, o Promitente Comprador fica obrigado a entregar ao Promitente Vendedor ou no Cartório Notarial por este indicado, até 5 (cinco) dias antes da data designada para o ato, todos os documentos que lhe respeitem e que sejam necessários para a preparação e outorga da escritura, incluindo o documento comprovativo do pagamento do IMT (Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis), se ao mesmo houver lugar, e do Imposto de Selo.

4. Se, por causa não imputável ao Promitente Vendedor, a escritura de compra e venda prometida não for outorgada até à data referida no número 1, nem for até essa data efetuado o pagamento do montante do Remanescente do Preço, ficará o Promitente Vendedor com a faculdade de optar (i) pela imediata resolução do presente Contrato, com todas as consequências legais, designadamente, fazendo sua a quantia recebida a título de Sinal, ou (ii) pela prorrogação do referido prazo, vencendo-se, neste caso, juros sobre o Remanescente do Preço, contabilizados à taxa Euribor, acrescida de 3%, contados a partir da data que tiver sido designada para a outorga da escritura pública, inclusive, até à data do efetivo e integral pagamento.”

11) Na cláusula nona do contrato em questão foi estipulado que:

“1. Em caso de incumprimento do presente Contrato por causa imputável ao Promitente Vendedor, poderá o Promitente Comprador optar entre o exercício dos seguintes direitos, nos termos dos artigos 442.º e 830.º do Código Civil:

1.1. Resolução do presente Contrato e recebimento em singelo da quantia entregue a título de Sinal;

1.2. Execução Específica do presente Contrato.

2.Em caso de incumprimento do presente Contrato por causa imputável ao Promitente Comprador, poderá o Promitente Vendedor, sem prejuízo do disposto no número 4 da Cláusula Sétima, optar entre o exercício dos seguintes direitos, nos termos dos artigos 442.º e 830.º do Código Civil:

2.1. Resolução do presente Contrato, fazendo sua a quantia entregue a título de Sinal;

2.2. Execução Específica do presente Contrato.”

12) Por conta do referido contrato contrato-promessa, a autora pagou o valor de 50.000,00€ a título de sinal, através do cheque n.º ...02, do Banco BIC Português, S.A., emitido em 16/01/2015 e pago a 19/01/2015.

13) Por conta do referido contrato promessa, a título de reforço do sinal, a autora emitiu e entregou, em 02/03/2015, à requerida, o cheque n.º ...50, do Banco BIC Português, S.A., no valor de 50.000,00€, o qual foi pago em 04/03/2015.

14) Por escrito particular de 13 de maio de 2015, autora e 3.ª ré celebraram um «Primeiro Aditamento ao Contrato de Promessa de Compra e Venda Celebrado em 28 de julho de 2014».

15) Neste ato os intervenientes foram representados pelas mesmas pessoas que haviam já intervindo no contrato promessa inicial.

16) Estipularam as partes nos considerandos do indicado aditamento que:

“A. Em 16 de Janeiro de 2015 as Partes celebraram um Contrato de Promessa de Compra e Venda adiante designado por (“Contrato”) tendo por objeto a fração autónoma identificada pela ... correspondente ao ... andar do prédio sito na Av. ..., ... em ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...19 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...90 da respetiva freguesia (adiante designado por “Imóvel”);

B. Pelo presente primeiro aditamento acordam as Partes em alterar o Valor do Reforço do Sinal e correspondentemente o Remanescente do Preço e prorrogar o Prazo da Escritura;

C. É do interesse das Partes efetuar os ajustamentos ao Contrato de modo a que o mesmo reflita as alterações convencionadas.”

17) Na cláusula segunda do aditamento em questão foi estipulado que:

“Pelo presente Primeiro Aditamento, as Partes acordam Valor do Reforço do Sinal e correspondentemente o Remanescente do Preço e prorrogar o Prazo da Escritura.”

18) Na cláusula segunda do aditamento em questão foi estipulado que:

“1. Pelo presente Primeiro Aditamento, as Partes pretendem alterar a Cláusula Primeira passando a mesma a ter a seguinte redação:

“CLÁUSULA PRIMEIRA

(Definições e Interpretação)

1. Neste contrato, sempre que expressos ou iniciados por maiúsculas e salvo se do contexto claramente resultar sentido diferente, os termos abaixo indicados terão o significado que a seguir lhes é apontado:  

Prazo da Escritura: a celebrar até 15 de setembro de 2015;

Valor do Reforço do Sinal: 100.000,00 (cem mil euros);

Remanescente do Preço: €585.000,00 (quinhentos e oitenta e cinco mil euros);

2. (Inalterado).

3. (Inalterado).

CLÁUSULA QUINTA

(Pagamento e Preço)

1. O preço melhor acordado nos termos da Cláusula Quarta será pago da seguinte forma:

a) (inalterada);

b) A título de Valor do Reforço de Sinal no montante global de €100.000,00 (cem mil euros) o qual deverá ser pago faseadamente nos seguintes termos:

i. €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) até 15 de maio de 2015;

ii. €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) até 15 de junho de 2015;

iii. €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) até 15 de julho de 2015;

iv. €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) até 15 de agosto de 2015;

c) (inalterada).

2. (Inalterado).”

19) Na cláusula terceira do aditamento em questão foi estipulado que:

“1. Quanto ao mais, e em tudo o que não tenha sido especialmente alterado pelo presente Primeiro Aditamento mantém-se integralmente em vigor o disposto no Contrato.

2. Este Primeiro Aditamento prevalece, em tudo o que for contraditório, sobre aquilo que foi acordado pelas Partes no Contrato.”

20) Na cláusula quarta do aditamento em questão foi estipulado que:

“1. O presente Primeiro Aditamento produzirá a plenitude dos seus efeitos legais em 13 de maio de 2015.”

21) Por conta do referido aditamento, e a título de reforço do sinal, a autora entregou à 3.ª ré:

a. a quantia de 25.000,00€, pelo cheque n.º ...58, do Banco BIC Português, S.A., emitido em 20/05/2015, e pago em 22/05/2015, conforme cheque e extrato bancário que se juntam sob os documentos n.ºs ... e ...;

b. a quantia de 25.000,00€, pelo cheque n.º ...60, do Banco BIC Português, S.A., emitido em 15/06/2015, e pago em 18/06/2015, conforme cheque e extrato bancário que se juntam sob os documentos n.ºs ... e ...;

c. a quantia de 25.000,00€, pelo cheque n.º ...64, do Banco BIC Português, S.A., emitido em 2015, e pago a 31/07/2015, conforme cheque e extrato bancário que se juntam sob os documentos n.ºs ... e ...0;

d. a quantia de 25.000,00€, pelo cheque n.º ...66, do Banco BIC Português, S.A., emitido em 18/08/2015, e pago a 04/09/2015, conforme cheque e extrato bancário que se juntam sob os documentos n.ºs ... e ...1.

22) Em 27-08-2015, no âmbito do processo n.º 22500/15...., Processo Especial de Revitalização (CIRE), conforme anúncio publicado no Citius em 28-08-2015, foi proferido despacho em que foi nomeado administrador judicial provisório da requerida o Dr. BB.

23) Por despacho de 31-05-2016, foi proferida sentença de encerramento sem aprovação do plano de recuperação apresentado no âmbito do referido Plano Especial de Revitalização.

24) Tendo sido iniciados os autos principais de insolvência aos quais estes são apensos, em 19-08-2016 foi proferida sentença que declarou a insolvência da aqui 3.ª ré e nomeou como administrador de insolvência o mesmo Dr. BB.

25) Por e-mail de 15/10/2015, enviado pelas 15h27m, a mandatária da autora dava conta ao então Sr. Administrador Judicial Provisório (AJP), do seguinte:

“De: CC [mailto:...]

Enviada: quinta-feira, 15 de Outubro de 2015 15:27 Para: ...

Assunto: PER Fundo Lusíadas - eventuais vendas de imóveis [...]

Caro Senhor Dr. BB,

Na sequência do acordado, venho, no âmbito do PER do Fundo Lusíadas, trazer ao seu conhecimento a possibilidade de o Fundo vir a efectuar duas alienações de imóveis que fazem parte do seu activo, a saber:

(...)

II. Imóvel da Av.ª ..., ...

O Fundo, em 16.01.2015, celebrou um contrato promessa de compra e venda da fracção identificada pela ...” ... do prédio sito na Av...., em .... O preço global da venda é de €785.000,00, sendo que o promitente comprador (Silverlevel, S.A.) já procedeu ao pagamento da quantia global de €200.000,00. A escritura definitiva estava prevista para 15.09.2015, tendo sido acordada a prorrogação deste prazo até à data limite de 31.12.2015, com possibilidade de reforço de sinal no montante de €25.000 em Outubro/2015 e €25.000 em Novembro/2015 caso se   confirme a realização da escritura em Dezembro/2015. Este imóvel está actualmente arrendado e ocupado pela I... SGPS, S.A., participante do Fundo Lusíadas. Neste contexto, na presente data estamos a diligenciar pela formalização, com a promitente compradora, da prorrogação do prazo para celebração da escritura definitiva, bem como pela celebração de um acordo com a arrendatária com vista à desocupação e entrega do imóvel em causa e pagamento das rendas devidas. Os imóveis acima identificados estão hipotecados e, nesta medida, a sua alienação pressupõe o consentimento do credor hipotecário pelo qual estamos, igualmente, a diligenciar. Manifestamos a nossa total disponibilidade para qualquer esclarecimento adicional que repute de necessário. Sem prejuízo de tal, iremos mantendo-o a par de quaisquer desenvolvimentos que surjam a respeito destes temas.

Com os nossos cumprimentos, CC”

26) O Sr. AI da 3.ª ré, então AJP, tomou conhecimento dos indicados negócios, conforme comunicou por e-mail de 15 de outubro de 2015, do seguinte teor:

“From: BB - Gmail [mailto:...]

Sent: quinta-feira, 15 de Outubro de 2015 20:29

To: CC

Subject: RE: PER Fundo Lusíadas - eventuais vendas de imóveis

[...]

Exma. Senhora

Tomei conhecimento dos dois negócios cujos contornos V. Exa. fez o favor de me explicar. Assim, solicito a V. Exa. que, quando os termos do eventual contrato promessa de compra e venda se encontrarem acordados (no Caso I) e quando a data da outorga da escritura estiver marcada (no Caso II), me alerte, a fim de me pronunciar definitivamente sobre os mesmos.

Sinceros cumprimentos, do

BB”

27) No cumprimento do acordado com a requerida, a autora efetuou, a título de reforço do sinal, o pagamento da quantia de 25.000,00€, pelo cheque n.º ...67, do Banco BIC Português, S.A., emitido em 15/10/2015, e pago a 28/10/2015.

28) O Sr. AI, na altura AJP, enviou então à administração da 3.ª ré o e-mail de 30 de outubro de 2015, nos seguintes termos que aqui se reproduzem:

“From: BB - Gmail [mailto:...]

Sent: sexta-feira, 30 de Outubro de 2015 20:58 To: CC

Subject: RE: PER Fundo Lusíadas - eventuais vendas de imóveis -URGENTE

[...] [IWOV-.FID529401] Exma. Senhora

Dra. CC

Na sequência do que transmiti a V. Exa., no passado dia 15 e por correio electrónico, informo que, na qualidade de Administrador Judicial Provisório, nada tenho a opor à venda dos dois imóveis identificados no V. “e-mail” do dia 15 de Outubro de 2015, o que equivale à autorização a que faz menção o artigo 17º-E, nº 2, do C.I.R.E.. No que concerne ao pagamento ao “BANIF, SA.”, considero que o mesmo deve ser realizado nos termos habituais, ou seja, pelo valor equivalente ao inerente cancelamento da hipoteca. Quanto à declaração a que V. Exa. alude, o credor hipotecário, caso dela necessite, terá que enviar a correspondente minuta ao signatário, a fim deste se pronunciar sobre o respectivo teor.

Apresenta os melhores cumprimentos, BB”

29) A autora efetuou, a título de reforço do sinal, o pagamento da quantia de 12.500,00€, pelo cheque n.º ...69, do Banco BIC Português, S.A., cobrado a 21/12/2015.

30) A autora efetuou, a título de reforço do sinal, o pagamento da quantia de 12.500,00€, pelo cheque n.º ...71, do Banco BIC Português, S.A., cobrado a 22/03/2016.

31) Entretanto a requerente acordou com a 3.ª ré, novamente através da sua entidade gestora, a marcação da escritura pública de compra e venda, que seria realizada no dia 08/04/2016, pelas 11h00.

32) A 3.ª ré remeteu ao Sr. AJP, em 07/04/2016, o e-mail que se transcreve:

“From: CC [mailto:...]

Sent: quinta-feira, 7 de Abril de 2016 10:15 To: ...

Cc: ...; '...[2]

Subject: Fundo Lusíadas - escritura compra e venda dia 08.04.2016, 11h [...]

Importance: High

Exmo. Senhor Dr. BB,

Tentei contactá-lo telefonicamente e deixei mensagem no seu escritório. A razão do meu contacto prende-se com a realização da escritura de compra e venda do imóvel no Contrato Promessa de Compra e Venda em anexo, a qual está agendada para amanhã, dia 08.04.2016, às 11h.

Recordo que a venda deste imóvel já tinha sido submetida à apreciação do Sr. Dr., conforme emails em anexo. Acontece que, na tentativa de emissão das guias de IMT e IS necessárias para a realização da escritura, o Serviço de Finanças informou que face à pendência do PER é necessário que seja o Sr. Dr., enquanto Administrador Judicial Provisório, a solicitar as referidas guias, das quais deve constar a menção que se trata de um imóvel para revenda. Assim, envio em anexo a certidão permanente e caderneta predial do imóvel em causa, bem como a cópia do CPCV onde consta a identificação das partes e o valor da venda, muito agradecendo que solicite e nos envie as referidas guias de liquidação de IMT e IS de modo a assegurar a realização da escritura agendada.

Com os melhores cumprimentos, CC”

33) Como não se logrou obter qualquer resposta do agora Sr. AI, autora e 3.ª ré combinaram alterar a data da mesma para o dia 11/04/2016.

34) Esta situação foi comunicada ao agora Sr. AI, por e-mail de 11/04/2016, do seguinte teor:

“De: CC [mailto:...]

Enviada: 11 de abril de 2016 07:58 Para: ...'

Cc: ...'; '...[3]' Assunto: URGENTE Fundo Lusíadas - escritura compra e venda dia 08.04.2016, 11h [...]

Importância: Alta

Exmo. Senhor Dr. BB,

A escritura de compra e venda mencionada no meu email abaixo não se realizou devido à não emissão das guias de IMT e Imposto do Selo. Foi possível convencer o promitente comprador a alterar a data da mesma para hoje, 2.ª feira (dia 11.04.2016).

Assim, agradeço o seu contacto urgente sobre este tema. CC”

35) Desde esta altura que, não obstante as várias insistências, o Sr. AI não promoveu a emissão das guias para pagamento dos impostos IMT e IS.

36) Tendo a autora ficado convencida que o negócio era para concretizar, pagou, a título de sinal e reforços de sinal, o montante total de 250.000,00€, apenas permanecendo em dívida a quantia de 535.000,00€, para perfazer o montante global do preço previsto pelas partes do contrato-promessa de compra e venda.

37) À data da propositura da presente ação, a escritura pública a que se refere o contrato-promessa objeto dos autos ainda não foi celebrada.

38) O prédio em causa nos autos tinha, à data da recusa, um valor de mercado de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), o que fundamentou tal opção do Sr. Administrador de Insolvência.

39) Durante a vigência do PER, a gestão da devedora Lusíadas – Fundo de Investimentos Imobiliário Fechado continuou a ser exercida pela Administração da sociedade gestora do “Fundo” com a vigilância do administrador judicial provisório.

40) Em 22 de setembro de 2005, o Ministério das Finanças emitiu uma nota de imprensa da qual consta que:

“1) os Serviços de Finanças não podem impedir o pagamento do IMT pelos compradores dos imóveis, em virtude de o vendedor estar em situação de incumprimento perante o Fisco, uma vez que não têm instruções nesse sentido; 2) o Sistema informático da Administração Fiscal está concebido para lançar um conjunto de alertas internos, designadamente quando existam dívidas fiscais do devedor, o que impede a liquidação e pagamento do IMT por via eletrónica e indica ao comprador que se dirija a uma Repartição de Finanças;

3) Quando o comprador vai efetuar o pagamento do IMT numa Repartição de Finanças, e a situação referida no ponto 2 se verificar, pode ser alertado de que corre o risco de adquirir um prédio com ónus. Cabe sempre ao comprador a decisão sobre se prossegue a operação.”

41) De acordo com a certidão predial permanente, referente ao prédio prometido vender, emitida em 7.10.2016, da mesma não consta qualquer penhora a favor da Fazenda Nacional, mas tão só ónus (hipotecas e penhoras) registadas pelo credor hipotecário.

42) Perante a posição do Banco Santander Totta, S.A. em não aprovar o PER, conforme comunicação de 21.1.2016, cujo sentido de voto foi dado a conhecer ao Tribunal em 22.3.2016 pelo Sr. AJP, através do requerimento com a referência nº ...02, o Plano Especial de Revitalização requerido pelo “Fundo Lusíadas” ficou condenado ao insucesso, o que passou a exigir especial prudência ao AJP no exercício da sua função, em respeito pelo interesse dos credores e perante a iminência da insolvência do devedor, requerente do PER.

43) Por todos estes factos e por entender que não lhe competia a si a emissão das guias para pagamento do IMT e do IS, o Sr. AJP não respondeu ao referido email de 7.4.2016.

44) Em 25.5.2016, em face da votação do PER, o Tribunal declarou encerrado o processo negocial sem aprovação do plano de recuperação e, consequentemente, o encerramento do processo de revitalização, tendo o Sr. AJP sido notificado para juntar o parecer respeitante à situação de insolvência ou não do devedor, o que este fez em 15.6.2016.

45) Perante o parecer do Sr. AJP, o Tribunal, em 14.7.2016, ordenou a remessa dos autos de PER para serem distribuídos como processo de insolvência de pessoa coletiva.

46) Em 19.8.2016 o devedor, Lusíadas – Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, foi declarado insolvente, tendo o Sr. Dr. BB sido nomeado Administrador de Insolvência.

47) No caso em apreço, o Sr. AI promoveu a apreensão dos bens da devedora a favor da massa insolvente, elaborou o relatório do artigo 155.º, do C.I.R.E e elaborou a lista provisória de credores.

48) No relatório do artigo 155.º do C.I.R.E, remetido ao Tribunal em 10.10.2016, o Sr. AI propôs o encerramento definitivo e a liquidação do ativo da insolvente Lusíadas – Fundo de Investimento Imobiliário Fechado.

49) O referido relatório foi dado a conhecer aos credores e submetido a votação na assembleia de credores de 18.10.2016.

50) Por deliberação dos credores presentes na assembleia de credores de 18.10.2016 a liquidação do ativo da insolvente foi suspensa por 45 dias, por forma a que fosse apresentado um plano de insolvência, conforme consta da ata junta aos autos principais.

51) Por despacho judicial de 2.5.2017, notificado via citius, em 4.5.2017, o Sr. AI foi notificado para esclarecer se já tinha iniciado a liquidação dos bens apreendidos nos autos, atento ao decurso do prazo para apresentação do plano de insolvência que levou à suspensão da liquidação.

52) Em resposta ao referido despacho, o Sr. AI, em 5.5.2017, informou o Tribunal que iria dar impulso à liquidação e que durante os últimos seis meses promoveu, sob condição, a venda dos imóveis apreendidos, tendo registado propostas para a sua aquisição.

53) No período de tempo compreendido entre a deliberação da suspensão da liquidação e a apresentação do requerimento referido, ou seja, entre 18.10.2016 e 5.5.2017, o Sr. AI nunca foi contactado pela Autora para cumprir o contrato promessa de compra e venda da fração ..., correspondente ao ... andar ... do prédio sito na Av. ..., nº..., ... e ..., em ....

54) Após 5.5.2017, o Sr. AI intensificou a promoção da venda dos ativos da Ré, tendo encarregue a leiloeira “...” dos atos preparatórios para a respetiva alienação, através da modalidade de leilão público, por considerar ser a mais adequada à venda do acervo de imóveis apreendidos.

55) No que diz respeito à Verba 17, constituída pela fração B, ... do prédio sito na Av. ..., ... e ..., em ..., foi solicitado pelo AI ao Sr. DD, administrador da sociedade I... SGPS, S.A., o acesso ao interior do imóvel para visitas dos interessados na sua aquisição, ao que este acedeu.

56) Sucede que, antes da publicação do anúncio do leilão dos ativos da Ré, o Sr. AI, BB, recebeu, em 8 de novembro de 2017, o correio eletrónico com o seguinte teor:

“De: Silverlevel ... (mailto:...) Enviada em: quarta feira, 8 de novembro de 2017 17:08

Para: ... CC: EE

Assunto: Proc.18172/16.... – Insolvência Fundo Lusíadas – A. Eng. ..., ... e ..., ...

Com os melhores cumprimentos.

No âmbito do processo número 18172/16...., enviamos em anexo cópia da comunicação enviada à sociedade gestora do Fundo Lusíadas, com a qual a S..., S.A. celebrou contrato promessa de compra e venda tendo pago sinal e reforço de sinal, o qual segue igualmente em anexo. Aguardamos até á presente data que a promitente vendedora nos convoque para a escritura conforme decorre daquele contrato, sendo que temos reunidas todas as condições para dar cumprimento ao mesmo. Fomos confrontados com a insolvência da proprietária do imóvel, pelo que nos servimos do presente email para comunicar a existência do referido contrato e pagamentos e de sinal, bem como, da comunicação enviada á sociedade gestora do Fundo Lusíadas á qual não tivemos qualquer resposta. Reiteramos que estamos prontos a celebrar a escritura de formalização da promessa de compra e venda pelo que solicitamos a preciosa intervenção do Sr. Administrador de Insolvência.

Estou ao total dispor para o que julgar conveniente. Atentamente”

57) A comunicação supra recebeu a seguinte resposta do Sr. AI, por email:

De: BB – Gmail (...)

Enviado em: quinta-feira, 23 de novembro de 2017 21.17 Para: “Silverlevel ...

CC: AA

Assunto: REs: Proc. 18172/16....- Insolvência Fundo Lusíadas - Av. ...- ... e ..., ...

Exmo. Senhora AA

Tomei nota dos documentos que V.exa. me fez chegar, os quais mereceram a minha melhor atenção. Comunico a V.exa., de harmonia com disposto no artigo 102º, nº 1, do Código da Insolvência e da recuperação de Empresas, que o signatário, na qualidade de Administrador de Insolvência do processo mencionado em epígrafe, recusa o cumprimento do contrato promessa de compra e venda que lhe foi enviado, no pretérito dia 8 de novembro, sendo certo que ao mesmo não foi dada eficácia real.

Com os melhores cumprimentos. De V.exa.

Atentamente,

O Administrador Judicial, BB”

58) O e-mail referido em 57) foi recebido na caixa de correio eletrónico da autora.

59) O Sr. AI, na defesa dos interesses dos credores da massa insolvente, perante os dados recolhidos no mercado imobiliário de ..., de que a venda da Verba 17 se podia realizar por um valor superior a € 1.000.000,00, tomou a decisão da venda judicial da fração autónoma em causa, em detrimento do cumprimento do contrato promessa, sem eficácia real, invocado pela Autora, cujo preço (€785.000,00) era muito inferior às ofertas conhecidas.

60) O correio eletrónico remetido pelo AI, em 23.11.2013, foi elaborado e remetido em resposta ao que lhe foi remetido pela a Autora em 8.11.2017, com o conhecimento de AA.

61) O AI da Ré não recebeu qualquer comunicação da Gmail com a indicação de não recebido, nomeadamente com expressão de “failure notice/mail delivery failed”, ou outra.

62) O Sr. AJP não autorizou a Autora a reforçar o sinal na quantia de € 12.500,00, em 21.12.2015.

63) O Sr. AJP não autorizou a Autora a reforçar o sinal na quantia de €12.500,00, em 22.3.2016.

64) O Sr. AI da Ré não aceitou cumprir o contrato promessa de compra e venda supra referido, nem garantiu à Autora que o iria cumprir em sede de processo de insolvência, e não autorizou a venda do imóvel prometido vender à Autora.

De direito

Tal como a Recorrente objetiva o seu recurso, está em causa unicamente a questão de “saber se é lícito ao Administrador da Insolvência recusar o cumprimento de contrato promessa ao abrigo do disposto no art. 102.º, n.º 1 do CIRE, quando desempenhou anteriormente, em contexto de Processo Especial de Revitalização, funções de Administrador Judicial Provisório, e, nessa sede, autorizou a celebração desse mesmo negócio nos termos do art. 17.º-E, n.º 2 do CIRE, e ocorreram adiantamentos por conta do sinal na sequência desta autorização” (conclusão 2ª).

As instâncias responderam afirmativamente a esta questão.

E, quanto a nós, trata-se da resposta juridicamente cabida.

Vejamos:

É verdade que a mesma pessoa (Dr. BB), primeiro na veste de administrador judicial provisório (doravante AJP), mais tarde na veste de administrador da insolvência (doravante AI), encarou de modo diverso a possibilidade de realização da prometida venda. Na veste inicial de AJP autorizou, no quadro dos art.s 17.º-E, n.º 2 e 161.º do CIRE, a venda; posteriormente, e no quadro do n.º 1 do art. 102.º do CIRE, optou por recusar o cumprimento do inerente contrato.

É também verdade (art. 334º do CCivil) que é abusivo o exercício do direito que exceda manifestamente (irrefutavelmente, gritantemente aos olhos da sensibilidade comum) os limites impostos pela boa-fé. Inclui-se neste domínio a proibição do chamado venire contra factum proprium, isto é, a proibição de comportamentos contraditórios. Verifica-se uma tal hipótese quando uma pessoa age de modo a criar noutra a legítima convicção de que irá adotar um certo comportamento (positivo ou negativo), e depois procede de forma contraditória à expetativa assim criada.

Parece ser ainda aceitável a ideia - e pese embora o CIRE apenas se reportar ao exercício abusivo no contexto estrito do art. 102.º, n.º 4 - de que o exercício do direito de opção está submetido à cláusula geral da boa-fé[4], razão pela qual deverá poder ser neutralizado se atentar contra tal cláusula.

Mas sendo tudo isto assim, não vemos que exista no caso sujeito qualquer comportamento contraditório e frustrador de confiança criada, e muito menos contradição juridicamente relevante, isto é, contradição que represente um exercício manifestamente abusivo do direito.

Efetivamente, os domínios jurídicos (rectius, a densificação ou substanciação desses domínios) de atuação do AJP (nomeadamente em sede de PER) e do AI (em sede em sede de processo insolvencial destinado à liquidação da massa) não coincidem necessariamente, sendo por isso perfeitamente congruente (e não contraditório) que num domínio e noutro sejam usados critérios de decisão (comportamentos) diferentes. Pois que num caso visa-se a revitalização do devedor (ainda que lhe esteja sempre subjacente o interesse sucedâneo dos credores), com a inerente sujeição do AJP a contribuir para a realização, da forma mais vantajosa para a recuperação do devedor, dessa finalidade[5]; no outro visa-se liquidar o património do devedor e dar pagamento aos credores, se necessário (em caso de insuficiência da massa e sem prejuízo para as causas legítimas de preferência) de maneira proporcional ao montante dos créditos, com a inerente sujeição do AI à realização dessa finalidade da forma mais vantajosa para o coletivo de credores.

É o que resulta dos textos legais.

Efetivamente, de acordo com o que se pode ler do n.º 1 do art. 17.º-A do CIRE, o processo especial de revitalização, em cujo seio é nomeado o AJP de que estamos a falar (art. 17.º, n.º 3, al. a) do CIRE; art. 2.º do Estatuto do Administrador Judicial[6], aprovado pela Lei n.º 22/2013), destina-se a permitir ao devedor (empresa), que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, a promoção da sua revitalização mediante um acordo com os respetivos credores. O devedor (e como in casu sucedeu, conforme resulta do facto do ponto 39) mantém os seus poderes de administração e disposição dos bens[7], exceto no que respeita à prática de atos de especial relevo, pois que neste caso só o poderá fazer mediante autorização (e não mediante representação ou substituição) do AJP (art.s 17.º-E, n.º 2 e 161.º do CIRE).

Nesta última situação, o n.º 2 do art. 161.º do CIRE, adaptado ao caso do PER (onde não há que levar em linha de conta, pelo menos em primeira linha, as “perspetivas de satisfação dos credores da insolvência”, na medida em que o PER visa precisamente evitar a insolvência e seus efeitos), indica-nos indiretamente quais os vetores próprios ou específicos que, segundo a respetiva avaliação, devem orientar a decisão do AJP, e estes são: os riscos inerentes ao ato a praticar (e as suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo) e a vantagem que desse ato resulta para a recuperação do devedor.

Já no caso do processo de insolvência em que esteja em questão unicamente (como no caso vertente sucede) a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art.s 1.º, n.º 1 e 156.º e seguintes do CIRE), o vetor próprio ou específico que orienta a opção de cumprir ou não cumprir o contrato no contexto do art. 102.º do CIRE (contrato bilateral ainda não totalmente cumprido à data da declaração da insolvência) é outro, e sem relação com o art. 161.º do CIRE[8]: o interesse da massa insolvente, ou seja, basicamente os interesses dos credores. Aqui o AI atua como representante da massa insolvente (e não como mero autorizante da prática de certos atos que não implicam risco nem colidem com a recuperação do devedor) e defensor dos seus interesses, gozando do direito potestativo (com a consequente sujeição da contraparte) a cumprir ou não o contrato (com as legais consequências). Claro que não se trata de um direito de exercício livre (no sentido de arbitrário, destituído de critério), pelo contrário a opção do AI tem de ter em conta esse pressuposto do interesse dos credores, e daqui que terá de escolher a solução que melhor servir as finalidades do processo de insolvência (enfim, optar pela solução que mais maximize o valor da massa insolvente[9]).

Ora, volvendo ao caso vertente, é certo que o AJP concedeu autorização para a venda do imóvel prometido vender pela Devedora (ora Insolvente), sendo para o caso desinteressante escrutinar (não é isso que está aqui em causa) se essa autorização foi ou não vantajosa para a Devedora. Basta saber que a autorização aconteceu e que tal foi levado a cabo nos termos e para os efeitos do PER, ou seja, no contexto da tentativa de recuperação da Devedora. E nisto se esgotou quer a intervenção do AJP quer a eficácia da autorização, sendo certo que facto algum está provado que signifique qualquer autovinculação ou compromisso do próprio AJP à concretização futura, nomeadamente em sede de uma eventual insolvência, do contrato prometido. Nem tal faria sentido visto que se tratava de uma mera autorização sobre negócio alheio, competindo à própria parte contratante (a Devedora), e não ao AJP, que dela não era representante ou substituto, a possibilidade de concretizar (ou não) o contrato prometido.

Tendo entretanto a Devedora sido declarada insolvente e havendo que liquidar os bens da massa respetiva, passou o AI a ter a obrigação de agir de modo a defender os interesses desta. E essa defesa podia passar pela recusa do cumprimento do contrato, como está expressamente previsto na lei (art. 102.º do CIRE).

E sabe-se que o fez de forma aparentemente irrepreensível, visto que (facto do ponto 59) “(…) na defesa dos interesses dos credores da massa insolvente, perante os dados recolhidos no mercado imobiliário de ..., de que a venda da Verba 17 se podia realizar por um valor superior a € 1.000.000,00, tomou a decisão da venda judicial da fração autónoma em causa, em detrimento do cumprimento do contrato promessa, sem eficácia real, invocado pela Autora, cujo preço (€785.000,00) era muito inferior às ofertas conhecidas.” No mesmo sentido depõe o facto do ponto 38 (“O prédio em causa nos autos tinha, à data da recusa, um valor de mercado de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), o que fundamentou tal opção do Sr. Administrador de Insolvência.”). O que tudo não deixa de dever ser aproximado do facto do ponto 42, que revela justamente o propósito de defesa dos interesses da massa: “Perante a posição do Banco Santander Totta, S.A. em não aprovar o PER, conforme comunicação de 21.1.2016, cujo sentido de voto foi dado a conhecer ao Tribunal em 22.3.2016 pelo Sr. AJP, através do requerimento com a referência nº ...02, o Plano Especial de Revitalização requerido pelo “Fundo Lusíadas” ficou condenado ao insucesso, o que passou a exigir especial prudência ao AJP no exercício da sua função, em respeito pelo interesse dos credores e perante a iminência da insolvência do devedor, requerente do PER”.

Sendo tudo isto assim, como é, a conclusão que se impõe é a de que, pese embora os cargos de AJP e AI terem recaído sobre a mesma pessoa, não estamos aqui perante qualquer comportamento subsequente contraditório dessa pessoa com o comportamento que adotou anteriormente. O AJP ao agir como agiu no domínio do PER nada fez de modo a criar na ora Recorrente a legítima convicção de que, num eventual cenário de insolvência, iria cumprir o contrato (nada está provado nesse sentido, muito pelo contrário, como resulta do facto do ponto 64)). Entretanto, convém não confundir legítima convicção, que se funda necessariamente numa objetividade suficientemente consistente, com subjetivismos fundados em meras possibilidades, constituindo estas expetativas um domínio da exclusiva conta e risco de quem as equaciona. Cremos que, pelas razões abaixo referidas a propósito dos reforços do sinal, é nesta última categoria que cai o convencimento da ora Recorrente e a que alude o ponto 36 dos factos provados.

Temos, assim, que o AJP e AI se limitou a enveredar pelas soluções que entendeu adequadas em atenção às finalidades próprias, autónomas e fundadas em circunstâncias factuais diferentes, dos dois procedimentos judiciais em que interveio. Aliás, e para sermos até mais exatos, o que seria ilícito, proibido e censurável era que o AI se comportasse doutro modo, privilegiando enormemente a ora Recorrente em detrimento de outros credores que lhe estão a par. Tudo precisamente ao contrário do que se afirma na conclusão 18ª.

Acresce dizer que o exercício do direito só pode ser visto como ilegítimo se exceder manifestamente os limites impostos (neste caso) pela boa-fé. Não basta que haja um certo excesso no exercício do direito, que o exercício deixe dúvidas sobre a sua compatibilidade com os ditames da boa-fé. O advérbio “manifestamente” não prima certamente pela objetividade[10], mas cremos que para os fins em causa significa, mais do que “óbvio” ou “evidente”, qualquer coisa como “clamorosamente”, “gritantemente” (aos olhos da sensibilidade comum). Como se apontou no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 8 de setembro de 2021 (processo n.º 2319/19.8T8VIS.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt[11]), e passa-se a citar:

«Como decorre de toda uma vasta produção jurisprudencial e doutrinária, o abuso de direito só existe em casos excecionais, em casos de todo em todo ofensivos do sentimento ético-jurídico dominante, em casos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais. Não basta que o titular do direito, ao exercê-lo, se exceda.

Como nos diz, por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 24 de janeiro de 2002 (Col Jur - Acórdãos do STJ, 2002, tomo I, pp. 53 e 54), o exercício de um direito só poderá ser havido como ilegítimo quando houver manifesto abuso, isto é, quando o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, traduzindo uma grosseira ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante. E acrescenta o mesmo acórdão que “a utilização do abuso do direito não deve constituir panaceia fácil de toda e qualquer situação de exercício excessivo de um direito, em que o respectivo excesso não seja manifesto ou que só aparentemente se apresente como manifestamente excessivo (…)”.

Ora, cremos que, perante o enquadramento legal das duas posições jurídicas em questão (PER que foi inicialmente aberto e insolvência para liquidação que veio depois a ocorrer) e perante as circunstâncias factuais totalmente diferentes dessas posições, o comportamento subsequente do AI, ainda que pudesse acaso ter alguma coisa de contraditório e atentatório da confiança alheia (e não tem), jamais poderá ser percebido aos olhos da sensibilidade comum como clamorosamente ou gritantemente excessivo. Muito pelo contrário, seria havido (no mínimo) como razoavelmente adequado ao caso e legítimo.

De outro lado, importa observar que os dois (os dois últimos) reforços do sinal a que se reporta a Recorrente, tendo embora ocorrido depois da autorização emitida pelo AJP, não foram por este determinados (facto do ponto 62: “O Sr. AJP não autorizou a Autora a reforçar o sinal na quantia de € 12.500,00, em 21.12.2015”; Facto do ponto 63:“O Sr. AJP não autorizou a Autora a reforçar o sinal na quantia de €12.500,00, em 22.3.2016”) mas sim realizados pela ora Recorrente por sua autodeterminação.

Embora não se duvide que esses pagamentos foram feitos na expetativa da realização do contrato prometido, o que é certo é que da autorização que o AJP deu não decorria a garantia dessa realização (tal realização, obtida que foi a autorização do AJP, constituía uma variável que apenas as parte outorgantes podiam controlar, e que só elas podiam materializar nos termos convencionados[12]) nem decorria a garantia de que o PER seria bem sucedido e que não ocorreria, a não realizar-se o contrato prometido no seu decurso, uma inversão da situação no seio de uma insolvência consequente ao PER.

Portanto, e em conclusão, o comportamento do AJP é completamente anódino no confronto do que se veio a passar posteriormente na insolvência, nada acrescentando ou retirando à possibilidade de, no âmbito desta e no legítimo exercícios das inerentes funções, o AI equacionar o cumprimento ou não cumprimento do contrato. Tudo dependeria do interesse dos credores e disto não podemos sair.

Improcede pois o recurso, não sendo de subscrever tudo aquilo (abuso do direito na modalidade do venire contra factum proprium) que, em contrário do que vem de ser dito, consta da respetiva alegação e das conclusões.

O que significa que, não havendo fundamento para neutralizar a recusa do AI à luz do abuso do direito, não pode haver lugar a qualquer execução específica do contrato-promessa.

O que significa também que o acórdão recorrido não é passível de qualquer censura na parte objeto do recurso, devendo por isso ser confirmado.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido na parte em que vem impugnado.

Regime de custas

A Recorrente é condenada nas custas do presente recurso.

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Lisboa, 6 de setembro de 2022

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

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Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).

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[1] Certamente por lapso a Autora escreveu no seu petitório €210.000,00.
[2] Sic
[3] Sic
[4] Neste sentido, Nuno Pinto Oliveira, Efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso: em busca dos princípios perdidos? I Congresso de Direito da Insolvência, pp. 209 e 210.
[5] O processo especial de revitalização foi introduzido no CIRE pela Lei n.º 16/2012. Como nos dizem Ana Prata et alii (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, p. 53) “O objetivo desta lei foi alterar o espírito do regime, colocando a recuperação do devedor no centro das finalidades do processo, em detrimento da liquidação imediata do seu património, para satisfação dos credores”.
[6] Que estabelece que: “1 – O administrador judicial é a pessoa incumbida da fiscalização e da orientação dos atos integrantes do processo especial de revitalização e do processo especial para acordo de pagamento, bem como da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, sendo competente para a realização de todos os atos que lhe são cometidos pelo presente estatuto e pela lei. 2 – O administrador judicial designa-se administrador judicial provisório, administrador da insolvência ou fiduciário, dependendo das funções que exerce no processo, nos termos da lei.”
[7] Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, p. 356: “(…) no que toca à administração dos bens da empresa, os poderes do administrador judicial provisório não são, compreensivelmente, tão amplos como os do administrador da insolvência. O PER é, tendencialmente, um processo do tipo DIP (debtor-in-possession), ou seja, em que a empresa (os administradores da empresa) mantém os poderes de administração e disposição dos bens (…).”
[8] Por isso não se logra inteligir qual o interessa para o caso da transcrição a que a Recorrente procede na p. 24 da sua alegação da anotação que Carvalho Fernandes e João Labareda fazem ao art. 17.º-E do CIRE.
[9] Cfr. Catarina Serra, ob. cit., p. 227, que expende que deve o administrador “optar, em cada caso, pela solução que melhor servir as finalidades do processo de insolvência – o que equivale a dizer: a solução que maximizar o valor da massa insolvente e, dessa forma, as probabilidades de satisfação dos credores. Trata-se, em última análise, de mais uma manifestação do princípio par conditio creditorum, no sentido de que o processo de insolvência deve perseguir, não uma satisfação individual ou selectiva, mas uma satisfação coletiva e paritária – a satisfação mais completa possível do maior número possível de credores”.
[10] V. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo 5, 2005, p. 241: «(…) “manifestamente” deixa-nos um apelo a uma realidade de nível superior, mas que a Ciência do Direito terá de localizar, em termos objetivos».
[11] Acórdão produzido por dois dos juízes que produzem o presente acórdão.
[12] Embora irrelevante para a decisão do recurso, pois que não faz parte do seu objeto, é de referir que se o negócio autorizado não foi concretizado tal parece ter ficado a dever-se exclusivamente a razões inerentes ao não pagamento do IMT e do IS (factos dos pontos 32, 34 e 35), assunto que era das incumbências das partes contratantes (cfr. também facto do ponto 40)) e não do AI. Claro que não teria ficado mal ao AI (por uma questão de simples cortesia, não por ter obrigação jurídica de o fazer) ter agido de modo diverso àquele que está provado sob os pontos 33) e 43), mas isso carece de essencialidade para o caso.