MILITAR DA GNR
CRIME ESTRITAMENTE MILITAR
CRIME DE ABANDONO DE POSTO
REQUISITOS
CRIME DE INSUBORDINAÇÃO POR DESOBEDIÊNCIA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Sumário

I – O que caracteriza o crime estritamente militar é a exclusividade ou prevalência do bem militar em causa, que se apura com referência às funções atribuídas às forças armadas pela Constituição.
II - Os crimes estritamente militares definem-se, dessa forma, por se mostrarem em estreita conexão com os valores da instituição militar constitucionalmente afirmados, e porque se recortam na estrutura e funcionalidade dessa instituição em ordem àqueles valores.
III - Os crimes de abandono de posto, previsto e punido pelo artigo 66º, do CJM, e de insubordinação por desobediência, previsto e punido pelo artigo 87º, do CJM, são tipificados como crimes estritamente militares (artigo 1º, do CJM), porque perpetrados por militares da GNR e violadores dos interesses militares da defesa nacional, respectivamente da segurança das forças armadas, e da autoridade.
IV - No crime de abandono de posto não se exige a alegação e prova de que o seu autor sabia que o seu comportamento colocaria em causa a prontidão da instituição ou a afectação do cumprimento da sua missão, uma vez que estamos perante um crime de perigo abstracto que se basta com a descrição de um comportamento, uma conduta, sem apontar um resultado específico como elemento expresso do injusto, e consuma-se com a simples criação do perigo para o bem jurídico protegido, sem produzir dano efectivo.
V - No crime de insubordinação por desobediência, previsto e punido pelo artigo 87º, do CJM, o interesse que directamente se visa tutelar é o da disciplina e do respeito pelo princípio da hierarquia, não sendo exigida a advertência expressa da prática do crime, na senda da pretendida equivalência ao crime de desobediência.
VI - A nomeação em escala de serviço e guia de patrulha do Subdestacamento de Controlo Costeiro de Caminha, para desempenhar o serviço de quarto a bordo na Lancha de Vigilância e Interseção Mindelo, a fim de render o seu antecessor, configura ordem legítima, emanada do superior hierárquico, no uso de atribuições legítima, à qual é devida obediência, de acordo com o artigo n. 11º, nº 3, do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei nº 30/2017, de 22 de março.

Texto Integral

Processo nº 73/20.0NJPRT.P1

Relatora: Amélia Catarino

Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
No Processo Comum (Tribunal Colectivo) nº 73/20.0NJPRT.P1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto, juiz 1, foi proferido Acórdão que decidiu julgar a acusação procedente, por provada e, em consequência:
a) condenar o arguido AA pela autoria de um crime de abandono de posto, previsto e punido pelo artigo 66º, nº 1, al. e), do Código de Justiça Militar, na pena de um mês e quinze dias de prisão, a qual se substitui por 45 (quarenta e cinco) dias de multa à taxa diária de €8 (oito euros), o que perfaz a quantia de €360.
b) condenar o arguido BB pela autoria de um crime de insubordinação por desobediência, previsto e punido pelo artigo 87º, nº 1, da alínea g), do Código de Justiça Militar, na pena de quatro meses de prisão, a qual se substitui por 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €8 (oito euros), o que perfaz a quantia de €960,00 (novecentos e sessenta euros).

Inconformados os arguidos vieram interpor recurso, pugnando pelo seu provimento com os fundamentos que constam da motivação e formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1. O crime de natureza militar exige que que se alegue e prove que o arguido sabia que o seu comportamento colocaria em causa a prontidão da instituição ou a afectação do cumprimento da sua missão.
2. O bem jurídico tutelado “autoridade militar” no caso em que está em causa um militar da GNR haverá de ser enquadrado no âmbito do particular interesse da tutela dos interesses militares da defesa nacional, abrangendo esta no actual momento o interesse da segurança interna, devendo contudo resultar claramente da acusação e da sentença, que o cometimento dos crimes de abandono de posto e de insubordinação por desobediência por parte de militar a exercer funções na Guarda Nacional Republicana, e por causa dessas funções, violou um dos bens jurídicos protegidos pelo CJM, e que estão muito para além do que qualquer uma das missões típicas da GNR, a saber, os decorrentes do artigo 3.º da Lei n.º 63/2007 de 6 de Novembro.
3. A omissão na acusação e no acórdão condenatório de uma tal formulação típica subjectiva do crime estritamente militar imputado aos arguidos nos moldes necessários para se revelar preenchida a violação da norma não é susceptível de ser suprida por configurar inexistência de crime, sob pena de violação da estrutura acusatória e do artigo 18º nº 2 da Constituição portuguesa.
4. Da matéria dada como provada no acórdão impugnado fica por esclarecer em que medida o concreto comportamento dos arguidos afectou um dos bens jurídicos protegidos pelo CJM, sendo eles militares a exercer funções na GNR, pois nada nos autos nos diz a missão em concreto que, no caso do arguido BB se recusou a desempenhar, ou em que medida a sua conduta e a do arguido AA colocou em causa a prontidão da instituição para o desempenho das suas atribuições, nomeadamente no âmbito da defesa nacional, de molde a que se apure a sua relevância criminal em sede de justiça militar, e não meramente disciplinar, como sucede, em casos similares, com os agentes de outras forças de segurança.
5. Da matéria de facto que foi dada como provada pelo coletivo resulta que “a partir de 07 de junho de 2021, na sequência da aprovação da proposta n.º ...-UCC, de 01.06.21, deixou de existir a necessidade de permanência física nas LVI, nomeadamente a LVI ..., passando-se a prever a sua reativação sempre que existam condições meteorológicas e de mar adversas que exijam o permanente cuidado com as embarcações ou sempre que os meios de fecho das embarcações não permitam o seu encerramento, e a sua manutenção sempre que os locais de atracação não garantam condições mínimas de segurança, a avaliar pelos respetivos Comandantes e Patrões”.
6. Atenta a redacção dos artigos 66.º e 87.º do Código de Justiça Militar (CJM), que tipificam os crimes de “Abandono de posto” e “Insubordinação por desobediência”, a necessidade de permanência física nas LVI, nomeadamente a LVI ..., é um dos elementos da comissão dos crimes de “Abandono de posto” e “Insubordinação por desobediência”, ou seja, uma condição objetiva de punibilidade, deste crime.
7. Excluiu-se da tutela penal as condutas referentes a situações em que a obrigação de permanência não ocorra, assim disciplinando o regime punitivo em termos exclusivos e, por conseguinte, de forma excludente de outras previsões típicas que respeitem a condutas diversas, o que torna os factos imputados aos arguidos como não puníveis criminalmente.
8. Acresce, ainda, que no caso em apreço, da materialidade fáctica apurada e fixada não se apurou pela positiva que tivesse concretamente existido qualquer prejuízo para a segurança ou prontidão operacional.
9. Sendo o crime de abandono de posto um crime doloso, os factos indiciados não preenchem, nem objetiva nem subjetivamente esse tipo legal de crime, pois que, além do mais, as exigências de serviço determinaram a alteração do regime da guarnição de serviço à embarcação Lancha de Vigilância e Interceção.
10. No que se reporta ao crime de insubordinação, p. e p., pelo art. 87º, nº 1 al. g) do Código de Justiça Militar são válidas e aplicáveis relativamente àquele todas as considerações doutrinais e jurisprudenciais tecidas a propósito deste ilícito, previsto e punido pelo art. 348º do CP.
11. No caso dos autos, não existindo norma que preveja expressamente que o militar que não compareça ao serviço comete um crime de desobediência (ou melhor, insubordinação), o arguido BB apenas cometeria tal crime se expressamente advertido pelo graduado de serviço no sentido de que, caso não comparecesse ao serviço, incorreria no crime de insubordinação – o que não aconteceu.
12. Trata-se de uma situação de desobediência atípica ou inominada, que exige e pressupõe que a autoridade ou o funcionário (ou o superior hierárquico) fizeram a correspondente cominação (cfr. art. 348º, nº 1 al. b) do CP); não existindo tal cominação, falta a necessária voluntariedade para se poder afirmar o dolo.
13. O douto acórdão impugnado violou o disposto nos artigo 1º, n.º 2, artigo 66.º, n.º 1, al. e}, e o artigo 87.º, n.º 1, da alínea g), do Código de Justiça, art.ºs 18º, nº , 211º, 213º e 219º nº 1 da Constituição da RP, artigo 3.º da Lei n.º 63/2007 de 6 de Novembro e art. 348º do Código Penal.”

Admitido o recurso, o Ministério Público veio responder pugnando pelo seu não provimento, alegando que In casu, e tendo em conta que o serviço que fora designado aos recorrentes se mostra intimamente ligado às missões de defesa nacional ou de segurança interna, dúvidas não podem restar de que as condutas por estes assumidas e que constituem o objecto dos presentes autos não podem senão ser tipificadas como crimes de natureza estritamente militar e que o Acórdão colocado em crise não merece qualquer das críticas ou censuras que lhe são dirigidas pelos recorrentes, não se verificando a violação de qualquer norma legal, nomeadamente as que lhe foram por aqueles apontadas.

Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso manifestando inteira adesão à argumentação da resposta do Ministério Público no tribunal recorrido.
No âmbito do artigo 417º, nº2, do CPP, nada veio a ser requerido.

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

In casu, o recurso, delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, tem por objecto:
- Apreciar e decidir se, os comportamentos dados como assentes traduzem ou não condutas tipificadas como crimes de natureza militar; se os factos provados, preenchem objectiva, e subjectivamente, os tipos legais de crime em causa; se está verificada a condição objectiva de punibilidade.

II.1. A decisão recorrida
Importa apreciar tais questões tendo presente o teor da decisão recorrida e os factos que dela constam, e que se transcreve:
“II. Fundamentação:
A. Da audiência de julgamento resultaram PROVADOS OS seguintes factos com interesse para a decisão a proferir:
1. O Cabo (Guarda-Principal à altura dos factos) AA e o Guarda- Principal BB são militares do SDCC.
2. No dia 26 de dezembro de 2020, o arguido AA encontrava-se escalado para o serviço de quarto à LVI ..., atracada no cais ..., das 09H00 até às 21H00 desse mesmo dia.
3. Contudo, quando eram apenas 20H04 desse dia, o arguido AA, e sem qualquer autorização superior ou rendição antecipada por outro militar, abandonou o local de serviço e saiu do Novo Porto Comercial de ..., local onde se encontrava atracada a embarcação.
4. O arguido BB encontrava-se escalado para o serviço de quarto à embarcação LVI ..., atracada no cais ..., das 21H00 de dia 26 de dezembro de 2020 até às 09H00 de 27 de dezembro de 2020.
5. Contudo, o arguido BB não se apresentou para o referido serviço na data e hora superiormente determinada, tendo-o apenas feito depois das 08H40, hora a que entrou no Novo Porto Comercial de ....
6. Haviam sido nomeados para fazer serviço de patrulha na LVI ..., em 27 de dezembro de 2020, militares do Subdestacamento de Controlo Costeiro de Matosinhos, designadamente o Sargento-Ajudante CC e o Cabo DD, devido ao facto de no SDCC não haver efetivo suficiente.
7. No dia 27 de dezembro de 2020, pelas 08H30, aquando a chegada junto à LVI ..., o Sargento-Ajudante CC e o Cabo DD constataram que a mesma se encontrava fechada e desguarnecida.
8. O "serviço de quarto a bordo", conforme definido por normativo interno da GNR, "tem como expressão máxima das suas funções, a responsabilidade da segurança e dos serviços a bordo aquando em porto e na ausência do Cmdt/Patrão", sendo este militar nomeado em sistema de escala.
9. Este posto de serviço garante a resposta a ameaças internas e externas, desde relacionadas com a segurança física, quer com questões ambientais.
10. A nomeação para este serviço é efetuada através de escalas de serviço, que conjuntamente com as guias de patrulha não são mais do que ordens expressas pelo Comandante do Subdestacamento de Controlo Costeiro de Caminha, sendo que para as guias de patrulha, essa mesma questão está prevista nos termos do 169.2 do despacho n.2 10393/2010 de 22 de junho de 2010 - Regulamento do Serviço Geral da Guarda.
11. O arguido AA, no dia 26 de dezembro de 2020, estando escalado das 09H00 às 21H00 desse dia, saiu do Novo Porto Comercial de ..., local onde se encontrava atracada a embarcação, pelas 20H04, abandonando o seu posto de serviço antes que fosse rendido pelo militar que o viria a substituir, o Guarda-Principal BB, deixando a LVI ... desguarnecida.
12. O arguido BB não cumpriu a ordem legítima emanada pela sua cadeia hierárquica para se apresentar às 21H00 horas de dia 26 de dezembro de 2020 no Novo Porto Comercial de ..., conforme nomeação em escala de serviço e guia de patrulha do Subdestacamento de Controlo Costeiro de Caminha, para desempenhar o serviço de quarto a bordo na Lancha de Vigilância e Interseção Mindelo, a fim de render o seu antecessor, mantendo o seu posto de serviço desguarnecido por cerca de 11 horas e 40 minutos.
13. A embarcação, por força da conduta dos arguidos, ficou toda a noite desguarnecida e, concomitantemente, sem qualquer segurança, tendo em vista a sua integridade, atentas a eventuais intrusões ou danos emergentes de situações provocadas, quer por indivíduos ou por condições climatéricas.
14. Atuaram os arguidos de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram previstas e puníveis por lei criminal militar.
Mais se provou que:
15. O arguido AA foi incorporado a 17.09.2001 e, à data dos factos, encontrava-se na 2J classe de comportamento. Foi agraciado com três condecorações, uma de assiduidade (05.04.2012) e duas de comportamento exemplar, grau cobre (30.05.2007) e grau prata (18.11.2015). Da sua folha de matrícula não consta qualquer registo disciplinar.
16. O arguido BB foi incorporado a 17.09.2001 e, à data dos factos, encontrava-se na 2.- classe de comportamento. Foi agraciado com três condecorações, uma de assiduidade (05.04.2012) e duas de comportamento exemplar, grau cobre (26.11.2007) e grau prata (17.08.2016). Da sua folha de matrícula não consta qualquer registo disciplinar.
17. O arguido AA é visto e tido pelos seus amigos e camaradas como uma pessoa honesta, cumpridora e bem integrada na comunidade e como um militar cumpridor, responsável e prestável.
18. O arguido BB é visto e tido pelos seus amigos e camaradas como uma pessoa honesta, cumpridora e bem integrada na comunidade e como um militar cumpridor, diligente, prestável.
19. Nada consta do certificado do registo criminal dos arguidos.
20. A partir de 07 de junho de 2021, na sequência da aprovação da proposta n.s ...-UCC, de 01.06.21, deixou de existir a necessidade de permanência física nas LVI, nomeadamente a LVI ..., passando-se a prever a sua reativação sempre que existam condições meteorológicas e de mar adversas que exijam o permanente cuidado com as embarcações ou sempre que os meios de fecho das embarcações não permitam o seu encerramento, e a sua manutenção sempre que os locais de atracação não garantam condições mínimas de segurança, a avaliar pelos respetivos Comandantes e Patrões.
21. Decorre do relatório social do arguido AA que:
AA é natural da ..., ..., e o seu processo de desenvolvimento decorreu junto dos pais e 4 irmãos, sendo o mais novo, e vivenciou um clima familiar afetivo e de suporte. Os pais trabalhavam ambos na agricultura e o contexto socioeconómico era suficiente para suprir as necessidades de todos os elementos do agregado.
O arguido habilitou-se com o 12º ano de escolaridade, num percurso escolar descrito sem constrangimentos relevantes.
Desde cedo começou a trabalhar na agricultura, junto dos pais, profissão que manteve até ao ano de 2000, quando integrou o exército português como militar.
Em 2001 ingressou no Curso de Formação de Guardas da Guarda Nacional Republicana (GNR) e, após a sua conclusão e respetiva aprovação em estágio, passou a integrar o corpo de Guardas da GNR. Exerceu funções em várias localidades do país e, em 2008, integrou a Unidade de Controlo Costeiro, unidade especializada responsável pelo cumprimento da missão da GNR em toda a extensão da costa e mar territorial.
Em 2016 integrou posto no Subdestacamento de Controlo Costeiro de Caminha, onde passou a exercer funções no Novo Porto Comercial de ....
À data dos factos do presente processo, e tal como atualmente, AA residia com o pai de 78 anos de idade, em moradia própria, sita na freguesia ..., em ....
Exercia funções no corpo de Guardas da GNR, como Guarda Principal, no Subdestacamento de Controlo Costeiro de Caminha, tendo sido promovido, durante o ano de 2021, a Cabo. Realiza patrulha costeira em mar e terra, em turnos rotativos de 24 horas.
A situação económica é razoável e o agregado subsiste do vencimento mensal do arguido, no montante de 1.171,20€.
AA tem uma integração familiar e social positiva, com fortes vínculos afetivos e de suporte. Mantém boa relação com o pai, com quem reside, e com todos os irmãos e família alargada. É conhecido no meio de residência como sendo uma pessoa de trato afável, pacato, com sentido de comunidade e disponível para ajudar o próximo.
No exercício da sua profissão mantém relações positivas com os demais trabalhadores e é descrito como um indivíduo que se identifica com a missão e os valores da força de segurança que integra.
A nível social o arguido encontra-se ligado a grupos de pares estruturados, junto dos quais ocupa o seu tempo a realizar trails, corridas, BTT e ciclismo. Ocupa-se ainda da prática de agricultura, para consumo próprio, e apicultura, utilizando terrenos que pertencem à família.
O arguido não sinaliza alterações significativas no seu enquadramento familiar, laboral ou social como decorrentes dos presentes autos. Manifesta apenas algum nível de ansiedade decorrente da incerteza quanto ao desfecho dos autos.
Perante a problemática criminal em causa, ainda que em abstrato, manifesta capacidade para reconhecer a ilicitude e os potenciais danos.
Na eventualidade de condenação, o arguido mostra-se disponível para colaborar com as estruturas judiciais e, se for o caso, para o cumprimento de uma medida de execução na comunidade.
22. Decorre do relatório social do arguido BB que:
BB é o mais velho de dois irmãos. Nascido em ..., o arguido cresceu inserido no núcleo familiar constituído pelos progenitores e irmão, convivendo com um modelo educativo convencional. Detinham dinâmica familiar coesa e solidária.
Viviam com dificuldades económicas, em economia assente nos proventos da atividade profissional dos progenitores, sendo que o pai desempenhava funções como continuo de uma escola, enquanto que a mãe era artesã em fábrica de louças regionais.
O arguido enfatiza o forte relacionamento com o progenitor, que caracteriza como tendo sido o seu melhor amigo, fazendo menção ao impacto negativo que teve a morte deste ocorrida há cerca de dez anos atrás.
O arguido frequentou o sistema de ensino, tendo concluído o nono ano de escolaridade, verificando-se segundo o mesmo, a ocorrência de duas retenções no segundo e quarto anos, respetivamente.
Integrou o mercado de trabalho aos 16 anos de idade, desempenhando a atividade de chapeiro numa oficina local de reparação automóvel.
Aos 18 anos de idade integrou o Exército Português, cumprindo o serviço militar obrigatório num período de 6 meses, que caraterizou como tendo sido uma experiência gratificante e enriquecedora.
No retorno à vida civil regressou à atividade de chapeiro. Mais tarde, com 21 anos de idade, passou a desempenhar a atividade de empregado de escritório e vendedor em loja, na empresa "B... Lda.", sediada em ....
No ano de 2001 integrou os quadros da Guarda Nacional Republicana, tendo realizado o curso de formação de Guarda na cidade de Aveiro.
A sua primeira colocação ocorreu no Posto Territorial de .... Posteriormente, candidatou-se à vertente da Brigada Fiscal, onde após a realização de curso de formação ministrado em Lisboa, foi colocado em ... e posteriormente transferido para Lagos onde permaneceu cerca de 3 anos.
Há cerca de doze anos integrou a Unidade de Controlo Costeiro da Guarda Nacional Republicana, obtendo colocação em ..., local onde desempenha serviço até o presente.
Segundo o arguido, manteve relação análoga à de conjugue durante um período de cerca de dez anos, da qual resultou o nascimento de uma filha, atualmente com catorze anos de idade.
BB é ainda pai de uma outra menor atualmente com doze anos, que segundo o mesmo resultou de um relacionamento por si mantido enquanto se encontrava colocado na localidade de Lagos.
Do que temos conhecimento, este é o primeiro contacto do arguido com o sistema de justiça penal.
Tendo por referência o período a que se reportam os factos, EE integrava o agregado familiar constituído por si e pela sua progenitora.
Residiam em imóvel próprio, com condições de habitabilidade, inserido em freguesia rural do concelho ....
Mantém contactos frequentes com as suas descendentes, caracterizando o relacionamento familiar como coeso e solidário.
À data dos factos, tal como sucede atualmente, mantém rendimento mensal baseado no seu salário como Guarda-Principal da Guarda Nacional Republicana, do qual resulta um valor mensal líquido de aproximadamente 1100 euros. Descreve despesas mensais de 400 euros para pensão de alimentos das filhas menores e cerca de 500 euros para despesas gerais e familiares.
O arguido descreve que manteve ao longo da sua vida a prática de atividades desportivas como remo, canoagem, atletismo e kickboxing, sendo que indica que a prática destas modalidades ocorreu em contextos recreativos e nunca na vertente competitiva. Atualmente, indica frequentar diariamente o ginásio, praticando atividades de manutenção física.
Descreve uma vida social preenchida, baseada na prestação de apoio à progenitora e momentos de convívio com amigos.
No meio residencial o arguido é tido como um cidadão sociável e de fácil trato. A sua condição processual não é conhecida, pelo que não se verificam sentimentos de rejeição na comunidade em que está inserido.
Para BB o presente contacto com o sistema de justiça está a ser vivido com apreensão, revelando ter conhecimento do papel do sistema legal e de administração da justiça e respeitar a sua intervenção.
Em abstrato, avalia negativamente atos de natureza idêntica aos do presente processo, identificando as potenciais vítimas e dano causado.
No que concerne ao processo não perspetiva o seu desfecho, revelando dificuldades em se rever nos factos de que vem acusado, considerando injusta a presente acusação e posicionando-se, antes, como vítima, nomeadamente da ação da cadeia hierárquica.
Em caso de condenação, mostrou dificuldades em equacionar a sua motivação para o cumprimento de uma medida de execução na comunidade por apenas perspetivar a sua absolvição, preterindo uma tomada de posição nesse sentido.
Em termos sociais, segundo o arguido, não foram notórios impactos face à sua imagem de pessoa trabalhadora, educada e íntegra.
Em termos pessoais foram notórias atitudes de alguma revolta, desilusão e tristeza, acompanhados do sentimento de injustiça.
B. Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente outros factos que estejam em contradição ou em desconformidade com os supra descritos.
Não se provou, designadamente, que:
a) O arguido AA só deixou a LVI ... depois de ser previamente rendido pelo arguido BB.
b) O arguido BB apresentou-se ao serviço de quarto à embarcação LVI ..., no dia 26 de dezembro de 2020, entre as 19hl5 e as 19h30, altura em que rendeu o arguido AA.
b) O arguido BB pernoitou no interior da LVI ..., só se tendo ausentado da embarcação cerca das 07h30/08h00 do dia 27 de dezembro de 2020, altura em que foi buscar o seu veículo à marina de ..., onde o havia deixado no dia anterior, antes de ir pescar com um grupo de amigos.
c) Depois de ir buscar o seu veículo, o arguido BB regressou à LVI, já após as 08h40, a fim de fazer a rendição do serviço.
C. Motivação da matéria de facto:
O tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, a qual analisou à luz dos critérios previstos no artº 127º do CPP.
Assim, para além das declarações prestadas pelos arguidos e dos depoimentos prestados pelas testemunhas, atendeu-se ao teor dos seguintes documentos:
- Auto de apreensão de fls. 12 a 16;
- Registo de matrículas de viatura do T-Menu, referente ao arguido BB de fls. 27 a 29;
- Registo de matrículas de viatura do T-Menu, referente ao arguido AA de fls. 31 a 33;
- Auto de visualização de imagens de videovigilância de fls. 41 a 47;
- Relatório fotográfico do Laboratório de Polícia Técnico-Científica de fls. 60 a 67;
- Lista do efetivo do SDCC de fls. 71;
- Determinação n.2 23/01 do Serviço Marítimo da Brigada Fiscal de 010UT2011 de fls. 77 a 79;
- Diário de Bordo da LVI … de fls. 85 a 92;
- Escalas de serviço do SDCC de fls. 93 a 95;
- Guias de patrulha do SDCC de fls. 96 a 111;
- Folha de matrícula do Cabo AA de fls. 142 a 147;
- Folha de matrícula do Guarda-Principal BB de fls. 149 a 153;
- CRC dos arguidos;
- Relatório social dos arguidos;
- Informação n......, junto em audiência de julgamento.
O arguido AA confirmou que estava escalado para o serviço de quarto referido na acusação e que saiu do local onde se encontrava a embarcação do porto de ... às 20h04. Porém, esclareceu que só se ausentou àquela hora por ter sido antecipadamente rendido pelo arguido BB, o qual se disponibilizou a entrar mais cedo ao serviço, tendo-o feito às sete e tal da noite, altura em que foi ter consigo à LVI, num barco branco, que atracou ao lado da lancha militar. Mais esclareceu que, aquando daquela passagem de serviço, entregou ao camarada a arma de serviço, tendo-se depois dirigido ao ponto de apoio, onde tomou banho e trocou de roupa e onde deixou a caixa de transporte da arma (dentro do seu cacifo, que fica aberto).
O arguido BB também confirmou que estava escalado para o serviço de quarto referido na acusação e afirmou que se apresentou ao serviço mais cedo, por volta das 19hl5-19h30, a pedido do seu colega, que durante o dia lhe ligou a perguntar se o podia render mais cedo, no que acedeu. Declarou que se dirigiu para a LVI no barco onde havia passado o dia a pescar na companhia de três amigos, barco esse que atracaram à LVI.
Esclareceu que após render o colega, permaneceu na companhia dos amigos até às 23h00, altura em que aqueles se foram embora, ficando o dono do barco, FF, de o ir buscar no dia seguinte de manhã, igualmente de barco, a fim de o levar à marina, onde havia deixado o seu carro. Assim, o FF foi buscá-lo às 7h30-8h00 do dia 27.12.2020, momento em que saiu da embarcação, que fechou, já desfardado, fazendo-se acompanhar da arma de serviço, que colocou no saco. Foi então buscar o carro, regressou ao porto comercial de ..., dirigiu-se ao ponto de apoio a fim de ir buscar a caixa da arma e regressou à LVI fazer a rendição do serviço.
Ora, esta versão dos factos apresentada pelos arguidos, muito embora tenha sido, no essencial, corroborada pelas testemunhas indicadas pelo arguido BB, mais precisamente por GG (segurança na APDL, em ..., que afirmou ter estado de serviço no dia 26.12.2020 e de visto, ao fazer a ronda ao perímetro, cerca das 21h45-22h00, o arguido BB na LVI, altura em que viu uma lancha de braço dado à mesma com três pessoas lá dentro), HH (amigo do arguido há 20 anos, que afirmou ter ido passear com ele de barco no dia 26.12.2020), FF (dono do barco contratado para o serviço de convívio e de pesca desportiva do dia 26.12.2020) e II (amigo do arguido há 15 anos, que afirmou ter ido passear com ele de barco no dia 26.12.2020), não nos mereceu credibilidade, ficando-se com a firme convicção que as referidas testemunhas faltaram à verdade por si conhecida perante este tribunal.
Os arguidos, por forma a eximirem-se à sua responsabilidade criminal, tentaram convencer este tribunal que o arguido BB se havia dirigido ao seu posto de serviço de barco, única forma de ultrapassar o controlo de entrada e saída de veículos efetuado através do sistema de videovigilância do porto de ..., através do qual foram captadas as imagens dos veículos por eles conduzidos, assim se apurando a que horas saíram e entraram ao serviço.
Acontece que tal versão se afigura deveras incongruente e inverosímil, por contrária às regras da experiência comum e da normalidade dos acontecimentos.
Desde logo, não se mostra verosímil que um grupo de amigos, alguns dos quais sem experiência de pesca, como é o caso, pelos vistos, do HH, que segundo disse nada pescou, se disponha a ir pescar no dia 26 de dezembro entre as 7h00 da manha e as 7h00 da tarde, sendo que, nessa altura, já é noite escura às 17h30, faz bastante frio e o convívio já devia ser nenhum.
Os convívios de pesca, principalmente no Inverno, costumam ser de manhã cedo e durar poucas horas.
Não se mostra verosímil que, não prevendo o arguido BB a possibilidade de render o colega mais cedo, vá para o mar com a farda de serviço num saco a fim de a poder envergar aquando da passagem de serviço, sendo certo que este arguido afirmou que só durante o dia o arguido AA lhe telefonou a pedir para o render mais cedo, o que foi confirmado pelo amigo de pescaria, II.
Não faz sentido que, tendo o grupo de amigos passado o dia no mar (necessariamente cansados e com frio) e tendo o arguido BB que ir trabalhar, aqueles fiquem atracados à LVI, prolongando o convívio durante mais umas horas. 
Muito menos sentido faz que, sendo o convívio de pescaria devidamente pago e faturado (teria ficado por 400 euros), o dono do barco, FF, para além de se dispor a levar o arguido à LVI, ainda se tivesse disposto a ir busca-lo à mesma às sete horas da manhã do dia seguinte, levando-o então à marina a fim de ir buscar o carro, serviço que naturalmente leva tempo e custa dinheiro.
Mas mais inverosímil se mostra que o arguido BB, a ser verdade tal versão dos factos, tivesse tido o cuidado de limpar e arejar cuidadosamente a embarcação antes de ir buscar o carro - note-se que os militares que entraram de serviço às 9h00 do dia 27, CC, DD e JJ, afirmaram que não havia qualquer sinal que alguém ali tivesse pernoitado, designadamente, desarrumação, condensação, lixo - e tivesse tirado a farda, quando tinha que regressar à embarcação para fazer a rendição do serviço.
Outrossim, fica por explicar o motivo pelo qual o arguido AA guardou a caixa da arma de serviço no seu armário/cacifo do ponto de apoio quando é certo que afirmou que entregou a arma, em mão, ao arguido BB, quando este último o foi render.
Se lhe entregou a arma, porque levaria a caixa para o ponto de apoio? E porque motivo o arguido BB a iria buscar antes de regressar à embarcação, pelas 08h42, quando entrou a correr no ponto de apoio e saiu com a caixa na mão, conforme se vê perfeitamente nas imagens captadas pela camara 5?
Ora, só há uma explicação para tal e essa explicação é a de que o arguido AA deixou a caixa com a arma no ponto de apoio quando saiu do serviço às 20h04 do dia 26.12.2020, pelo que o arguido BB teve que a ir buscar às 08h40 do dia 27.12.2020 a fim de fazer a passagem de serviço ao turno seguinte, com entrega da arma, conforme era sua obrigação.
Acresce que, se fosse verdade o que arguido BB afirmou, mal se compreende que tivesse dito ao Sargento CC que tinha ido tomar um café, quando podia ter dito, pura e simplesmente, que tinha ido buscar o seu carro à marina.
Daí que se tenha ficado com a firme convicção que os arguidos cometeram os factos que lhes vêm imputados, tendo faltado à verdade quando afirmaram que o arguido BB chegou à LVI de barco e que rendeu o arguido AA cerca das 19h30 do dia 26.12.2020.
Quanto ao caráter dos arguidos e seu comportamento social e militar, atendeu- se ao depoimento das demais testemunhas inquiridas (KK, LL, MM, NN, OO e PP), que nos mereceu credibilidade.”

II.2 Do recurso
Decidindo.
Alega o recorrente que os autos não revelam, e tal também não constava da acusação, que o comportamento dos arguidos – para além da sua responsabilidade disciplinar – constitui crime estritamente militar lesando os interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado pela lei, tal qual é exigido pelo CJM.
Refere que em momento algum é dito que sabiam os arguidos/recorrentes que o seu comportamento colocaria em causa a prontidão da instituição, ou a afectação do cumprimento da sua missão, o que é diferente de dizer que sabiam os arguidos que cometiam um crime de natureza militar, pois este só o será se ofender os bens jurídicos subjacentes à sua autonomização.
Assim e não constando da acusação uma formulação da tipificação subjectiva do crime imputado aos ora recorrentes nos moldes necessários para se revelar preenchida a violação da norma, omissão essa que se regista novamente no acórdão, não é a mesma agora susceptível de ser suprida.
Pugnam pela absolvição.
Dizem os recorrentes nas motivações de recurso que aderem à posição que resulta do acórdão do TRP de 07.12.2018, diremos nós que não só aderem, como o transcrevem, pretendendo transpô-lo para o caso em apreço, mas sem razão.
De acordo com o artigo 1º, do CJM “1 - O presente Código aplica-se aos crimes de natureza estritamente militar.
2 - Constitui crime estritamente militar o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado pela lei.”
O Direito Penal Militar é direito penal especial, porquanto restringe a sua tutela aos bens jurídicos militares, “enquanto conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam às funções militares específicas: a defesa da Pátria e as outras missões cometidas pela Constituição às Forças Armadas, deixando de fora outros valores próprios da instituição militar, mas que não se ligam a essas funções.” (Canas, Pinto, & Leitão, 2004, p. 35)
Já dizia Figueiredo Dias que «o direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão». É assim também que a jurisprudência constitucional mais recente afirma que «entre o direito penal geral e o direito penal cujo objecto está associado à actividade militar há, seguramente, uma relação de especialidade, no sentido de este último se referir à tutela de bens jurídicos especiais, inerentes às funções públicas ao serviço do Estado de direito democrático cometidas às forças armadas» (Acórdão TC n.º 432/99, de 3 de Dezembro de 1999).
O que caracteriza o crime estritamente militar é a exclusividade ou prevalência do bem militar em causa, que se apura com referência às funções atribuídas às forças armadas pela Constituição. Os crimes estritamente militares definem-se, dessa forma, por se mostrarem em estreita conexão com os valores da instituição militar constitucionalmente afirmados, e porque se recortam na estrutura e funcionalidade dessa instituição em ordem àqueles valores.
São, segundo a melhor doutrina, os que se destinam a proteger os bens jurídicos estritamente militares, ou seja, os que pretendem evitar, através da ameaça penal, as ofensas graves aos valores que tutelam e são os pilares da própria existência das Forças Armadas. Essa existência é, nos termos da Constituição, garante da independência nacional, da integridade do território e da liberdade e segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas.
Na estrutura da instituição militar sobrelevam as características essenciais da hierarquia e disciplina, são elas que vão justificar – sempre em conjugação com a sua relevância constitucional directa – uma maior intensidade, em geral, da punição, com relação ao direito penal comum, conforme resulta da Exposição de motivos do projecto de lei n.º 97/IX, que aprova um novo Código de Justiça Militar e revoga a legislação existente sobre a matéria, in internet: http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=19169.
Citando o senhor Coronel Vítor Manuel Gil Prata, Revista Militar nº 2589, outubro de 2017, A Justiça Militar – Organização Judiciaria Militar, diremos que “hoje, a justiça militar tutela interesses militares da defesa nacional, isto é, bens jurídicos relacionados com os objetivos constitucionalmente consagrados da defesa nacional e com valores fundamentais das Forças Armadas, para que estas consigam prosseguir a sua função de defesa militar da Pátria. Já não estamos perante um direito penal “dos militares”, mas sim “da função militar”, pelo que o crime estritamente militar só poderá violar bens jurídicos militares da defesa nacional, deixando de ser a tutela do dever militar.”
Avança este autor dizendo que “Os interesses militares da defesa nacional consagrados no CJM são: a independência e a integridade nacionais (de que são exemplo: a traição à Pátria; violação de segredo; espionagem; infidelidade no serviço militar); os direitos das pessoas (crimes de guerra; crimes em aboletamento); a missão das forças armadas (são exemplo: os atos de cobardia e abandono de comando); a segurança das forças armadas (de que são exemplo: o abandono de posto; ofensas a sentinela; entrada ou permanência ilegítimas em instalações militares); a capacidade militar (são exemplo: os crimes de deserção; dano, comércio ilícito; extravio, furto e roubo de material de guerra); a autoridade (são exemplo: os crimes de insubordinação e de abuso de autoridade); e o dever militar e o dever marítimo (são exemplo: o ultraje à Bandeira Nacional, perda ou abandono de navio).” E que “A organização e a atividade das forças armadas baseiam-se nos valores fundamentais da missão, da hierarquia, da coesão, da disciplina e da segurança, nos termos do artigo 1.º do Regulamento de Disciplina Militar.”
As normas incriminadoras da parte especial do Código de Justiça Militar tipificam os crimes estritamente militares, onde se incluem os crimes em apreciação nestes autos.
É relevante referir que, nos termos do artigo 4º, n.º 1, al. a), do CJM, este se aplica também aos militares da Guarda Nacional Republicana, enquanto força de segurança de natureza militar, constituída por militares organizados num corpo especial de tropas.
Assim, o bem jurídico tutelado neste caso onde estão em causa militares da GNR não exige, ao contrário do pretendido pelos recorrentes que “o cometimento dos crimes de abandono de posto e de insubordinação por desobediência por parte de militar a exercer funções na Guarda Nacional Republicana, e por causa dessas funções, violou um dos bens jurídicos protegidos pelo CJM, e que estão muito para além do que qualquer uma das missões típicas da GNR, a saber, os decorrentes do artigo 3.º da Lei n.º 63/2007 de 6 de Novembro.”, porquanto, a GNR é uma força de segurança constituída por militares organizados em corpo especial de tropas, que pode ser chamada, a todo o tempo, a colaborar em missões das Forças Armadas e que, em tempo de guerra ou situação de crise, pode ser colocada sob o comando operacional do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas. A par da sua missão de segurança, que não pode abranger assuntos de natureza exclusivamente civil, a GNR desempenha missões militares sendo, para isso, composta por militares e estruturada como corpo especial de tropas. Os artigos 32.º e 69.º, n.º 1, da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA) determinam a aplicação do Código de Justiça Militar à GNR, sem distinguir entre tempo de paz e estado de guerra.
Assim, o caso dos autos consubstancia, sem qualquer dúvida, os crimes de abandono de posto, previsto e punido pelo artigo 66º, do CJM, e de insubordinação por desobediência, previsto e punido pelo artigo 87º, do CJM tipificados como crimes estritamente militares (artigo 1º, do CJM), e expressamente previstos nos Titulo II, capitulo III, Crimes contra a segurança das Forças Armadas, e CAPÍTULO VI, Crimes contra a autoridade, SECÇÃO I, Insubordinação, perpetrados por militares da GNR, e violadores dos interesses militares da defesa nacional, respectivamente da segurança das forças armadas, e da autoridade.
Os crimes pelos quais os arguidos foram condenados são crimes específicos próprios, porquanto a sua tipificação depende completamente da qualidade do agente, o respetivo agente tem que ter uma determinada categoria, qualidade de que os arguidos são detentores.
O Cabo AA era, à data dos factos, Guarda-Principal, e o Guarda- Principal BB, são militares do SDCC, de acordo com a definição do artigo 4º do CJM.
Volvendo ao caso em apreço, recordamos que o recorrente/arguido AA, foi condenado pela autoria de um crime de abandono de posto, previsto e punido pelo artigo 66º, nº 1, e), do CJM, nos termos do qual “1 - O militar que, em local de serviço, no exercício de funções de segurança ou necessárias à prontidão operacional de força ou instalação militares, sem motivo legítimo, abandonar, temporária ou definitivamente, o posto, local ou área determinados para o correcto e cabal exercício das suas funções é punido:
(…)
e) Com pena de prisão de 1 mês a 1 ano, em tempo de paz.”
E, de acordo com o artigo 6.º do CJM, “1 - Considera-se 'local de serviço' qualquer instalação militar, plataforma de força militar, área ocupada por força militar ou onde decorram exercícios, manobras ou operações militares ou cuja defesa, protecção ou guarda esteja atribuída a militares ou forças militares.
2 - Por 'força militar' entende-se qualquer conjunto de militares organizado em unidade ou grupo de unidades, incluindo a respectiva plataforma ou plataformas de combate ou de apoio, tais como navios, veículos terrestres, aeronaves ou outras, pronto ou em preparação para o cumprimento de missões de natureza operacional.
3 - Por 'instalação militar' entende-se o quartel-general, quartel, base, posto, órgão, estabelecimento, centro, depósito, parque, perímetro defensivo, ponto sensível ou qualquer outra área ou infra-estrutura que se destine, temporária ou permanentemente, a qualquer tipo de serviço ou função militar.
4 - Os navios, veículos terrestres ou aeronaves apresados ou, a qualquer título, incorporados nas Forças Armadas ou noutras forças militares são considerados como plataformas militares enquanto estiverem ao seu serviço ou guarda.”
De acordo com o que supra se expôs, o crime de abandono de posto visa tutelar o bem jurídico militar da defesa nacional da segurança das forças armadas, tendo por objectivo a protecção do estabelecimento ou serviços militares, não podendo o posto ou o serviço ser abandonado pelo militar e ficar descoberto, expondo a perigo a unidade ou o serviço militar, e é cometido pelo militar que, em local de serviço, abandona o posto ou local que lhe foi determinado para o exercício das funções especificas.
Os factos integradores deste ilícito mostram-se descritos na acusação e constam do Acórdão nos pontos 1 a 14, dos factos provados, quer na vertente objectiva, quer subjectiva.
Na verdade, a acção típica deste crime é o abandono do posto (local ou área determinados para o correcto e cabal exercício das suas funções), por parte de militar que aí se encontre em serviço, no exercício de funções de segurança ou necessárias à prontidão operacional de força ou instalação militares.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.09.2013, proferido no processo 1/11.3GILSB.L1-3 (disponível em www.dgsi.pt), o crime de abandono de posto é considerado crime próprio, doloso, estando arredadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes, sendo no entanto bastante o dolo eventual, nos termos prescritos nos artigos 13.º e 14.º do Código Penal, de mera actividade e instantâneo, consumando-se como tal com a prática da conduta, independentemente de qualquer resultado lesivo.
Ou seja, a conduta ilícita traduz-se em o militar abandonar sem prévia autorização o posto ou lugar de serviço designado ou o serviço que lhe cumpria, sendo que para a configuração do delito, haverá que ter em conta que o posto, ou os serviços designados devem estar intimamente ligados à actividade militar, consubstanciando um crime de perigo abstracto, que não exige a lesão do bem jurídico, ou a colocação deste bem em risco real e concreto, basta a criação do perigo. Como crime de perigo abstracto que é, a actuação típica consiste em agir de modo a criar perigo de lesão de determinados bens jurídicos, não dependendo o preenchimento do tipo da efectiva ocorrência de lesão.
Trata-se da possibilidade de produção de um resultado danoso, sendo os bens jurídicos aqui protegidos por antecipação, através da procura da salvaguarda das condições de segurança com a presença física e constante de militares.
Assim, e contrariamente ao que referem os recorrentes este crime não exige a alegação e prova “que o arguido sabia que o seu comportamento colocaria em causa a prontidão da instituição ou a afectação do cumprimento da sua missão”, uma vez que estamos perante um crime de perigo abstracto que se basta com a descrição de um comportamento, uma conduta, sem apontar um resultado específico como elemento expresso do injusto, e consuma-se com a simples criação do perigo para o bem jurídico protegido, sem produzir dano efectivo.
Conduta essa que vem descrita e que consta dos factos provados e que consistiu em “No dia 26 de dezembro de 2020, o arguido AA encontrava-se escalado para o serviço de quarto à LVI ..., atracada no cais ..., das 09H00 até às 21H00 desse mesmo dia.
E, “quando eram apenas 20H04 desse dia, o arguido AA, e sem qualquer autorização superior ou rendição antecipada por outro militar, abandonou o local de serviço e saiu do Novo Porto Comercial de ..., local onde se encontrava atracada a embarcação.
8. O "serviço de quarto a bordo", conforme definido por normativo interno da GNR, "tem como expressão máxima das suas funções, a responsabilidade da segurança e dos serviços a bordo aquando em porto e na ausência do Cmdt/Patrão", sendo este militar nomeado em sistema de escala.
9. Este posto de serviço garante a resposta a ameaças internas e externas, desde relacionadas com a segurança física, quer com questões ambientais.
10. A nomeação para este serviço é efetuada através de escalas de serviço, que conjuntamente com as guias de patrulha não são mais do que ordens expressas pelo Comandante do Subdestacamento de Controlo Costeiro de Caminha, sendo que para as guias de patrulha, essa mesma questão está prevista nos termos do 169.2 do despacho n.2 10393/2010 de 22 de junho de 2010 - Regulamento do Serviço Geral da Guarda.
11. O arguido AA, no dia 26 de dezembro de 2020, estando escalado das 09H00 às 21H00 desse dia, saiu do Novo Porto Comercial de ..., local onde se encontrava atracada a embarcação, pelas 20H04, abandonando o seu posto de serviço antes que fosse rendido pelo militar que o viria a substituir, o Guarda-Principal BB, deixando a LVI ... desguarnecida.
13. A embarcação, por força da conduta dos arguidos, ficou toda a noite desguarnecida e, concomitantemente, sem qualquer segurança, tendo em vista a sua integridade, atentas a eventuais intrusões ou danos emergentes de situações provocadas, quer por indivíduos ou por condições climatéricas.
14. Atuaram os arguidos de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram previstas e puníveis por lei criminal militar.”
Daqui resulta que o arguido AA, que se encontrava escalado para o serviço de quarto à LVI ..., atracada no cais ..., das 09H00 até às 21H00 desse mesmo dia, saiu do Novo Porto Comercial de ..., local onde se encontrava atracada a embarcação, pelas 20H04, sem qualquer autorização superior ou rendição antecipada por outro militar, quando o seu turno terminaria apenas pelas 21.00 horas, abandonando o seu posto de serviço e deixando a LVI ... desguarnecida.
A conduta ilícita traduz-se em o militar abandonar sem prévia autorização o posto ou lugar de serviço designado ou o serviço que lhe cumpria, sendo que para a configuração do delito, ainda há a ter em conta que o serviço designado está intimamente ligado à actividade militar. Na verdade, o "serviço de quarto a bordo", conforme definido por normativo interno da GNR, "tem como expressão máxima das suas funções, a responsabilidade da segurança e dos serviços a bordo aquando em porto e na ausência do Cmdt/Patrão", garantindo este posto de serviço a resposta a ameaças internas e externas, relacionadas com a segurança física, ou com questões ambientais.
Provado ficou também que o arguido não aguardou a sua substituição pelo colega, aqui arguido, BB ausentando-se do serviço, antes do final do turno para o qual estava regularmente escalonado, e em plena execução do mesmo, sem autorização hierárquica (do seu comandante de posto) tendo o posto ficado abandonado. Ora, a norma penal tem por escopo a tutela do bem jurídico da segurança das Forças Armadas, e mais especificamente a protecção do estabelecimento ou serviços militares, pelo que o posto ou o serviço, abandonado pelo militar não pode ficar descoberto, expondo a perigo a unidade ou o serviço militar.
O posto onde o arguido exercia funções, na sua ausência não autorizada, ficou a descoberto, desamparado, desguarnecido, “ao descaso”, tendo sido posta em causa a segurança das instalações e equipamentos, nomeadamente a LVI ... que ficou desguarnecida, sem vigia e sem guarda, mostrando-se preenchido o tipo legal objectivo previsto no artigo 66º nº1, e) e nº 2, do CJM.
Vejamos agora quanto ao preenchimento do elemento subjectivo do tipo legal em apreço.
O crime de abandono de posto é considerado crime próprio, doloso, o que significa que não têm aplicação subjectiva as condutas negligentes, sendo, no entanto, bastante o dolo eventual, nos termos prescritos nos artigos 13º e 14º do Código Penal, aqui aplicável por força da remissão efectuada pelo disposto no art. 2º, nº 2, do Código de Justiça Militar.
O elemento cognoscitivo ou intelectual pode bastar-se com a mera representação dos elementos do tipo objectivo, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor.
O dolo nem sempre reveste a modalidade de dolo directo ou intencional (quando o agente quer o facto criminoso), mas também outras modalidades, como o dolo necessário (quando o agente não quer o facto como alvo a que se dirigisse, mas prevê-o como consequência necessária da sua conduta) e dolo eventual (quando o agente prevê o facto como possível, conformando-se com o resultado), todas estas modalidades sendo enunciadas no art. 13.º do CP.
No caso em apreço, o arguido ausentou-se voluntariamente do posto, antes do termo do seu turno, sem pedir autorização e sem se assegurar de que seria substituído, cometendo, dessa forma o crime de abandono de posto, no que actuou com dolo direto, conforme resulta dos factos provados.
Mostra-se, pois, verificado também o elemento subjectivo do tipo do crime de abandono de posto pelo qual o arguido AA foi condenado.
No caso do crime de insubordinação por desobediência, previsto e punido pelo artigo 87º, do CJM, e remetendo para tudo o que ficou dito supra sobre os crimes estritamente militares e o, indubitável enquadramento deste crime nessa categoria, e da sua inequívoca aplicação do CJM, diremos que o interesse que directamente se visa tutelar com esta incriminação é o da disciplina e do respeito pelo princípio da hierarquia.
Nas organizações militares, a disciplina, manifestada através da hierarquia e da cadeia de comando, é indispensável para o seu funcionamento, constituindo um dos seus princípios estruturantes. Todo o militar está, pois, subordinado ao princípio de comando que comporta um especial dever de obediência.
A Guarda Nacional Republicana – cuja origem histórica remonta a 10 de Dezembro de 1801 com a criação da Guarda Real da Polícia, e foi organizada com a actual denominação por Decreto de 03/05/1911 – é um Corpo Militar, tendo os seus elementos a condição de militares, com o inerente conjunto de deveres que tal acarreta, incluindo o fundamental da disciplina.
Do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei nº 30/2017, de 22 de março, em cujo artigo 11º, nº 3, se define o dever de obediência, refere que “O militar da Guarda tem o dever de obediência, estando subordinado à disciplina e à hierarquia, o qual se baseia no cumprimento completo e pronto de leis e regulamentos e no dever de cumprir com exatidão e oportunidade as determinações, ordens e instruções dos seus superiores hierárquicos, proferidas em matéria de serviço, desde que o respetivo cumprimento não conduza à prática de qualquer crime.”
Estreitamente ligado a este dever de obediência está o dever de disponibilidade permanente, estabelecido no art. 11º, nº 4 desse estatuto: “O militar da Guarda está permanentemente disponível para o serviço, ainda que com o sacrifício dos interesses pessoais”.
No caso em apreço, “4. O arguido BB encontrava-se escalado para o serviço de quarto à embarcação LVI ..., atracada no cais ..., das 21H00 de dia 26 de dezembro de 2020 até às 09H00 de 27 de dezembro de 2020.
5. Contudo, o arguido BB não se apresentou para o referido serviço na data e hora superiormente determinada, tendo-o apenas feito depois das 08H40, hora a que entrou no Novo Porto Comercial de ....”
É, pois, de concluir, tal como o é no Acórdão recorrido, que “se mostram preenchidos os elementos objetivos do tipo de crime em análise, pois o arguido, sem qualquer motivo justificado, não cumpriu a ordem que lhe foi dada no sentido de se apresentar às 21h00 horas de dia 26.12.2020 na LVI ..., conforme nomeação em escala de serviço e guia de patrulha do Subdestacamento de Controlo Costeiro de Caminha, para desempenhar o serviço de quarto a bordo naquela embarcação, a fim de render o seu antecessor, mantendo o seu posto de serviço desguarnecido por cerca de 11 horas e 40 minutos.”
(…)
Mostra-se igualmente preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime em causa, o qual apenas exige o dolo genérico (v. neste sentido, o douto acórdão do TRP, de 23.06.2021, proferido no processo n.9 8548/20.4T9PRT.P1, relatado por William Themudo Gilman), não se acolhendo aqui, por não se concordar com o mesmo, o entendimento sufragado no acórdão do TRP, de 07.12.2018, proferido no processo n.9 4/17.4FAEPS.P1, relatado por Raul Esteves, pois não decorre do preceito legal em análise a exigência de um dolo específico, no sentido de o arguido ter atuado com conhecimento de que o seu comportamento colocaria em causa a prontidão da instituição ou a afetação do cumprimento da sua missão.”
Quanto à invocada necessidade de advertência expressa da prática do crime – na senda da pretendida equivalência ao crime de desobediência –, a mesma, face ao acabado de expor e às normas indicadas, não tem qualquer razão de ser.
Finalmente, alegam os recorrentes que “Da matéria de facto que foi dada como provada pelo coletivo resulta que “a partir de 07 de junho de 2021, na sequência da aprovação da proposta n.º ...- UCC, de 01.06.21, deixou de existir a necessidade de permanência física nas LVI, nomeadamente a LVI ..., passando-se a prever a sua reativação sempre que existam condições meteorológicas e de mar adversas que exijam o permanente cuidado com as embarcações ou sempre que os meios de fecho das embarcações não permitam o seu encerramento, e a sua manutenção sempre que os locais de atracação não garantam condições mínimas de segurança, a avaliar pelos respetivos Comandantes e Patrões”.
Prosseguem dizendo que não se verifica a condição objectiva de punibilidade dos crimes aqui em causa, devendo os arguidos ser absolvidos uma vez que os factos não são punidos criminalmente.
Para tal referem que “Atenta a redacção dos artigos 66.º e 87.º do Código de Justiça Militar (CJM), que tipificam os crimes de “Abandono de posto” e “Insubordinação por desobediência”, a necessidade de permanência física nas LVI, nomeadamente a LVI ..., é um dos elementos da comissão dos crimes de “Abandono de posto” e “Insubordinação por desobediência”, ou seja, uma condição objetiva de punibilidade, deste crime”.
E terminam concluindo que “Excluiu-se da tutela penal as condutas referentes a situações em que a obrigação de permanência não ocorra, assim disciplinando o regime punitivo em termos exclusivos e, por conseguinte, de forma excludente de outras previsões típicas que respeitem a condutas diversas, o que torna os factos imputados aos arguidos como não puníveis criminalmente.”
Ora, os recorrentes partem de errada premissa para concluir de forma que não merece acolhimento.
Na verdade, à data da prática dos factos imputados aos arguidos ainda não havia sido aprovada a proposta n.º ...-UCC, de 01.06.21, que só entrou em vigor em 07.06.2021, pelo que, à data dos factos, se verificava a necessidade de permanência física nas LVI, em concreto na de ..., pelo que é forçoso concluir pela completa verificação das condições de punibilidade destes crimes. A saber: no crime de abandono de posto, o abandono sem motivo legítimo, temporário ou definitivo, do posto, local ou área determinados para o correcto e cabal exercício das suas funções de segurança ou necessárias à prontidão operacional de força ou instalação militares. E, no crime de insubordinação por desobediência, previsto no artigo 87º, do CJM, a ordem para o arguido BB se apresentar às 21H00 horas de dia 26 de dezembro de 2020 no Novo Porto Comercial de ..., conforme nomeação em escala de serviço e guia de patrulha do Subdestacamento de Controlo Costeiro de Caminha, para desempenhar o serviço de quarto a bordo na Lancha de Vigilância e Interseção Mindelo, a fim de render o seu antecessor, ordem legítima e emanada do superior hierárquico, no uso de atribuições legítima, à qual era devida obediência.
Conforme ficou provado “10. A nomeação para este serviço é efetuada através de escalas de serviço, que conjuntamente com as guias de patrulha não são mais do que ordens expressas pelo Comandante do Subdestacamento de Controlo Costeiro de Caminha, sendo que para as guias de patrulha, essa mesma questão está prevista nos termos do 169.2 do despacho n.2 10393/2010 de 22 de junho de 2010 - Regulamento do Serviço Geral da Guarda.”
Assim, tendo ficado provado que o arguido tomou conhecimento da ordem de serviço que lhe foi dirigida, e que inerente ao seu estatuto de guarda da GNR está o especial dever de conhecimento das normas acima indicadas, e da extensão do seu dever de disciplina e obediência, podemos concluir que se mostram verificados os elementos objectivo e subjectivo do tipo e também a condição de punibilidade, correspondente à obrigação de permanência física no local ou área determinada para o correcto e cabal exercício das suas funções (artigo 66º, e 87º, do CJM)
A embarcação, por força da conduta dos arguidos, ficou toda a noite desguarnecida e, concomitantemente, sem qualquer segurança, tendo em vista a sua integridade, atentas a eventuais intrusões ou danos emergentes de situações provocadas, quer por indivíduos ou por condições climatéricas e que os arguidos actuaram de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram previstas e puníveis por lei criminal militar.
Desta forma, imperioso é concluir que, ao contrário do referido nas motivações de recurso e nas conclusões recursivas, o recurso não merece provimento e o acórdão recorrido mostra-se prolatado de acordo com as normas legais aplicáveis, não tendo sido violado o disposto nos artigos 1º, n.º 2, artigo 66.º, n.º 1, e), do CJM, e nem os artigos 18º, 211º, 213º ou 219º nº 1 da CRP.

III. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 1ª secção criminal, em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, em 3 (três) UC.

Porto, 25 de maio de 2022
Amélia Catarino
Maria Joana Grácio
Major General António Rosa
Francisco Marcolino

(Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94º, n.º 2, do CPP)