LITISPENDÊNCIA
CITAÇÃO
ARGUIÇÃO
Sumário

I - A verificação da exceção de litispendência pressupõe que o R. já foi citado em ambas as ações, devendo a exceção ser deduzida na ação onde o R. foi citado posteriormente.
II - A consulta eletrónica de outros autos após seguimento para o efeito solicitado, não substitui o dever de fundamentação das decisões exigido pelo artigo 154º do CPC, consagrado na constituição (vide artigo 205º nº 1 do CRP) e causa de nulidade da decisão [sentenças ou despachos] tal como decorre dos artigos 615º nº 1 al. b) e 613º nº 3 do CPC.

Texto Integral

Processo nº. 78/22.6T8PNF.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta - Juíza Desembargadora Eugénia Cunha
Adjunta - Juíza Desembargador Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Jz. Central Cível de Penafiel
Apelante/ AA
Apelados/ “S..., S.A.” e outros

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
AA instaurou a 07/01/2022 ação declarativa sob a forma de processo comum contra:
A) “S..., S.A.”;
B) BB, casado segundo o regime de comunhão de adquiridos com CC;
C) DD, divorciado;
D) EE, solteira;
E) FF, casado segundo o regime de comunhão de adquiridos com, GG;
F) HH, casado segundo o regime de comunhão de adquiridos, com II;
G) JJ, casado segundo o regime de comunhão de adquiridos, com, KK;
peticionando pela procedência da ação que seja proferida decisão a:
«A) CONDENAREM-SE todos OS CINCO CO-RÉUS, ACIONISTAS/FUNDADORES, DA ORA SOCIEDADE PRIMEIRA RÉ, A VEREM, JUDICIALMENTE, DECLARADA, nula e de nenhum efeito, a escritura pública constitutiva da sociedade e ora primeira ré, COM A FIRMA “P..., S.A.”, ATUALMENTE COM A DENOMINAÇÃO “S... S.A.”, CELEBRADA EM 7(sete) DE OUTUBRO DE 2002 E LAVRADA A FOLHAS, 90 E SEGUINTES DO LIVRO ... DO ENTÃO CARTÓRIO NOTARIAL DE PAÇOS DE FERREIRA, MATRICULADA NA CONSERVATÓRIA DO REGISTO COMERCIAL DO CONCELHO DE PAÇOS DE FERREIRA, SOB O N.º ..., PESSOA COLETIVA N.º ........., PORQUE simulada, DADO TER HAVIDO divergência intencional ENTRE A VONTADE formalmente declarada PELOS OUTORGANTES E A sua vontade real, COM A INTENÇÃO DE DEFRAUDAR A LEI E ENGANAR E OU PREJUDICAR TERCEIROS DE BOA-FÉ, ENTRE OS QUAIS O AUTOR E SEU FALECIDO IRMÃO, O QUE CONSEGUIRAM.
B) ORDENAR-SE O cancelamento DA RESPETIVA MATRÍCULA, N.º .../..., JUNTO DA CONSERVATÓRIA DO REGISTO COMERCIAL DE PAÇOS DE FERREIRA.
C) CONDENAREM-SE, TODOS OS RÉUS, solidariamente, DADA A SUA MÁ-FÉ E CONDUTA DOLOSA, EM conjugação de esforços E EM fraude à lei E EM prejuízo de terceiros de boa-fé, ENTRE OS QUAIS O AUTOR E SEU FALECIDO IRMÃO, A PAGAREM AO AUTOR, A QUANTIA DE € 211.385,96, ACRESCIDA DOS JUROS DE MORA JÁ VENCIDOS E CALCULADOS ATÉ À DATA DA PROPOSITURA DESTA AÇÃO, NO MONTANTE DE € 50.000,00 E vincendos À MESMA TAXA DE 4% AO ANO, ATÉ EFETIVO E INTEGRAL PAGAMENTO.
D) declararem-se nulas e de nenhum efeito, TODAS as deliberações sociais, tomadas, em sede de ASSEMBLEIAS GERAIS, realizadas pela primeira Ré e constantes do respetivo livro de atas, porque SIMULADAS e em prejuízo de terceiros, já que realizadas, por sócios/acionistas, meramente, FORMAIS e testas de ferro do ora RÉU, DD, a quem obedeciam e que era o seu ÚNICO e VERDADEIRO DONO, em termos SUBSTANCIAIS.
E) Condenarem-se, TODOS os RÉUS, a verem, JUDICIALMENTE, declarado, que o RÉU, DD, é o único, dono e legítimo possuidor, dos dois prédios rústicos, supra indicados no artigo 7 (SETE), embora, formalmente, estejam em nome da primeira Ré, apenas por conveniência, deste Réu, com o conluio dos demais Réus.
F) Ordenar-se o CANCELAMENTO da inscrição de AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE, a que se refere a apresentação n... de 8 de julho de 2003, que incide sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira, sob a ficha n.../....
G) Ordenar-se o CANCELAMENTO da inscrição de AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE, a que se refere a apresentação n. um de 18 de janeiro de 2006, que incide sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira, sob a ficha n.../....
H) Condenarem-se, TODOS os RÉUS, SOLIDARIAMENTE, a pagarem ao Autor, os danos NÃO PATRIMONIAIS, já sofridos e a sofrer, até trânsito em julgado da douta sentença a proferir e a LIQUIDAR.
I) SUBSIDIARIAMENTE E PARA A HIPÓTESE DE ASSIM SE não ENTENDER;
DADA A MÁ-FÉ, ABUSO DE DIREITO E fraude à lei, CONSISTENTE EM, SOBREPOSIÇÃO DE ESFERAS JURÍDICAS, CONFUSÃO DE PATRIMÓNIOS E DOMÍNIO POR UMA única pessoa física, OU SEJA O CO-RÉU, DD, SUPRA REVELADOS, DE FORMA reiterada, COM INTUITO DE PREJUDICAR TERCEIROS, ENTRE OS QUAIS, O AUTOR E SEU FALECIDO IRMÃO, deve DESCONSIDERAR-SE A ATRIBUIÇÃO, POR LEI, DA PERSONALIDADE JURÍDICA COLETIVA, DE QUE GOZA A SOCIEDADE, CO-RÉ, “S..., S.A.”, FACE À CONDUTA ILÍCITA SUPRA DESCRITA E EM CONSEQUÊNCIA CONDENAR-SE, ESTA, SOLIDARIAMENTE, com TODOS os RÉUS, A PAGAREM, AO AUTOR, A REFERIDA QUANTIA DE € 211.385,96, ACRESCIDA DOS JUROS JÁ VENCIDOS ATÉ À DATA DA PROPOSITURA DESTA AÇÃO, CALCULADOS À TAXA LEGAL DE 4% AO ANO, NO MONTANTE DE € 50.OO0,00 E vincendos á MESMA TAXA, ATÉ EFETIVO E INTEGRAL PAGAMENTO, TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, POIS, só, ASSIM, SERÁ, EFETUADA, A COSTUMADA, JUSTIÇA.”
Para tanto e em suma alegou o A.:
- O A. e seu falecido irmão de que o A. é único herdeiro, instauraram ação de prestação de contas contra o co-Réu DD, no âmbito do qual foi este R. condenado a pagar, ao ora autor, o saldo credor das contas apurado, no montante de € 211.385,96, acrescido dos juros moratórios à taxa legal de 4% ao ano, contados desde 18 de junho de 2013 e até efetivo e integral pagamento, por douta sentença, já transitada em julgado;
- Este R. não pagou o valor supra referido, motivo por que o ora A. deu à execução, a sentença proferida no processo supra referido (processo n. 739/21.7T8LOU, que corre pelo Juízo de Execução de Lousada-Juiz 2, da comarca de Porto Este), tendo indicado à penhora, dois prédios rústicos, que segundo informações por si colhidas, pertencem ao domínio e posse daquele, ambos sitos na freguesia ..., concelho de PAÇOS DE FERREIRA:
A) Prédio sito em ..., com a área de 3.800 m2, inscrito na matriz no artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira, sob a ficha n. .../...;
B) Prédio sito no lugar de ..., com a área de 15.900 m2, inscrito na matriz no artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira, sob a ficha n. .../...;
- Ordenada a penhora, foi a mesma REGISTADA, na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira, em 24 de setembro de 2021, pela, AP. n. ..., PROVISORIAMENTE, POR NATUREZA, dado subsistir registo de AQUISIÇÃO, a favor da aqui 1ª R. “S...”, a qual uma vez citada, veio declarar ser a legítima, DONA e POSSUIDORA, dos dois prédios nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 119 n. 4 do Código de Registo Predial.
Pelo que as partes foram remetidas para os meios processuais comuns, causa desta ação.
- A 1ª R. foi constituída por contrato celebrado por escritura pública de 07/10/2002, inicialmente sob a firma “P..., S.A.”, tendo posteriormente sido alterada a sua denominação para a atual “S..., S.A.”;
- Os cinco sócios fundadores e ora co-réus, outorgantes na escritura publica, não quiseram, do ponto de vista substancial, constituir a sociedade comercial, supra referida, maxime, correr os riscos decorrentes do exercício efetivo da atividade lucrativa, dividindo os lucros e suportando as perdas, conforme o seu objeto social, mas sim e apenas, o fizeram e quiseram, formalmente, ao dar o seu consentimento de fachada, sem o qual não era possível constitui-la, não tendo tido qualquer intenção lucrativa, maxime, a distribuição dos dividendos, pelos sócios/acionistas, segundo o seu capital social, investido, tendo servido, apenas, de testas de ferro, do único titular efetivo e real de todas as ações emitidas, ou seja o co-réu, DD.
- Foi, sempre o réu, desde o início da constituição da sociedade e até à data da propositura desta ação, DD, quem, substancialmente, de modo exclusivo e no seu único interesse e de facto e com intenção de o fazer, dirigiu os destinos da sociedade ora ré, como seu único dono e possuidor, maxime, de todas as ações emitidas, designadamente, comprando, vendendo, hipotecando, permutando, confessando dividas, contratando e ou despedindo pessoal, nomeando e destituindo os administradores, como e quando quis, tudo de modo exclusivo, embora com o consentimento formal dos demais sócios/acionistas, de fachada (…) em sede de assembleias gerais, fantoches e posteriores titulares formais, das ações.
- Assim o contrato de sociedade, constitutivo da ora primeira ré, foi do ponto de vista, substancial, simulado e celebrado de má-fé, bem como, dolosamente, com intuito de refúgio de ativos e fraude à lei e prejudicar terceiros, máxime, por parte do sócio fundador e ora co-réu, DD, in casu o autor e seu falecido irmão, devendo ser declarado nulo, sendo o ora co-réu, DD, seu único e verdadeiro dono, porque titular efetivo e real de todas as ações emitidas, pela sociedade, bem como de todo o seu património, este, abusando, com fim ilícito, da personalidade jurídica coletiva, atribuída por lei, à sociedade, para prosseguir fins pessoais, pelo que este contrato de sociedade não pode subsistir, devendo, ser declarado nulo e de nenhum efeito e caso, assim, se não entenda, pelo menos, ser desconsiderada a sua personalidade jurídica, coletiva, como peticionado.
- Houve um acordo oculto, consubstanciado numa divergência intencional, entre a vontade declarada no ato constitutivo e a realmente querida e realizada, por parte dos sócios/acionistas, fundadores e ora co-réus, todos conluiados entre si, em fraude à lei, com intenção de beneficiar, de modo ilegal e ilegitimamente, o ora co-réu, DD, COM PREJUÍZO DE terceiros, entre os quais, o ora autor e seu falecido irmão.
- Os prejuízos causados ao autor, com o comportamento, suprarreferido, ilícito, reiterado e doloso, dos ora réus, quer sócios/acionistas, fundadores, quer administradores, da sociedade ora ré, “S....” quer dos acionistas posteriores, ao longo de mais de vinte anos, todos conluiados entre si e com o mesmo objetivo fraudulento (proteger o co-réu, DD) e com intuito de prejudicar os credores, impedindo estes de cobrar os seus créditos pessoais, maxime, o autor e seu falecido irmão, montam a € 211.385,96, a que acrescem os juros já vencidos a contar de 13 de junho de 2013 e até à data da propositura desta ação, no montante de € 50.000,00 e vincendos à mesma taxa de 4% ao ano, até efetivo e integral pagamento, prejuízo esse correspondente ao crédito já reconhecido por douta sentença, transitada em julgado e suprarreferida e que não foi possível executar por total ausência de património do co-réu, DD, em nome pessoal.
- O Autor, dado o comportamento, ilícito dos réus, em fraude à lei, não conseguiu cobrar o seu crédito, reconhecido por sentença, por facto imputável a estes, pelo que são responsáveis, SOLIDARIAMENTE, pelos prejuízos causados e suprarreferidos.
- O co-réu, DD, é o único dono e legítimo possuidor de TODO o património da primeira RÉ, máxime, dos dois prédios rústicos, referidos no artigo 7 (SETE) da petição, embora, formalmente, estejam registados em nome desta, a qual não passa de uma TESTA DE FERRO, por interposição fictícia de pessoa jurídica coletiva.
Termos em que concluiu o A. formulando o pedido acima assinalado.

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Distribuída a ação, foram os autos conclusos ao Mmo. Juiz com a informação de que “existe uma ação com o nº 1360/20.2T8PNF - Juiz 1 desta Instância Cível com os mesmos intervenientes, o mesmo valor, a mesma procuração datada de 17.06.2015 e sumariamente o mesmo pedido, pelo que faço os autos conclusos.”

Face ao assim informado foi pedido pelo tribunal a quo o acompanhamento do processo identificado na informação após o que foi proferida a seguinte decisão:
“A litispendência constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso cuja verificação obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância – arts. 576.º, n.º 2, 577.º, al. i), e 578.º, do CPC, ou ao indeferimento liminar da petição inicial, caso os réus ainda não estejam citados.
A exceção de litispendência pressupõe a repetição de uma causa, quando a anterior ainda está em curso, tendo por fim, assim como na exceção dilatória do caso julgado, evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior – art. 580.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Com a consagração do efeito da litispendência obsta-se à inutilidade da repetição da decisão judicial, em processos diferentes, para a mesma ação, e salvaguarda-se, também, o prestígio da administração da justiça contra o risco de grave dano que podia resultar do tribunal contradizer ou reproduzir outra decisão judicial (ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, pág. 301).
De harmonia com o disposto no art. 581.º, n.º 1, do CPC, repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir; há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (n.º 2); há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (n.º 3); há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo efeito jurídico (n.º 4).
A litispendência, pressupondo a repetição da mesma ação em dois processos, depende, pois, da verificação cumulativa da identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir, de modo a evitar contradizer ou reproduzir decisão anterior.
Ora, a presente ação é uma repetição do processo declarativo de condenação n.º 1360/20.2T8PNF, que corre os seus termos no Juízo 1 deste Juízo Central Cível conforme resulta, evidente e notório, da consulta eletrónica daquela ação (que é possível seguir após a concessão da respetiva autorização).
Na verdade, os sujeitos, a causa de pedir e os pedidos são os mesmos, tendo aquela ação sido intentada em primeiro lugar e estando as duas pendentes no neste Juízo Central Cível.
A evidência desta situação implica a manifesta desnecessidade de cumprir o contraditório.
Pelo exposto, julgando-se oficiosamente verificada a exceção de litispendência, decide-se indeferir liminarmente a petição inicial, obstando-se, assim, à realização de citações inúteis. ”
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Inconformado com o assim decidido, apelou o A. tendo apresentado motivação em que formulou as seguintes
CONCLUSÕES:
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Citados os RR. para os termos da ação e do recurso, contra-alegou o R. DD, tendo em suma pugnado pela improcedência do recurso, face ao bem decidido pelo tribunal a quo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelo apelante serem questões a apreciar se a decisão recorrida padece de nulidade e ainda se está verificada a exceção de litispendência, tal como o tribunal a quo o decidiu.
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III- Fundamentação
As vicissitudes processuais relevantes para o conhecimento do objeto do recurso são as acima enunciadas.
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Do direito.
Nos termos do disposto no artigo 580º do CPC:
“1 - As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.
2 - Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.”
Do disposto no nº 2 resulta claro o fito da exceção em análise: evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
Mas para que tal exceção de litispendência se verifique tem de ocorrer cumulativamente a identidade dos sujeitos, pedido e causa de pedir.
Pois só assim se dá a repetição da causa – vide artigos 580º nº 1 e 581º nº 1 do CPC.
A identidade dos sujeitos ocorre quando as partes são os mesmos sob o ponto de vista da qualidade jurídica – nº 2 do citado artigo 581º.
A identidade do pedido verifica-se quando numa e outra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico – vide nº 3 do citado artigo 581º. O mesmo é dizer quando a pretensão jurídica formulada é a mesma.
E a identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido – vide nº 4 do mesmo artigo 581º.
Acresce que a exceção de litispendência deve ser deduzida na ação proposta em segundo lugar, considerando-se proposta em segundo lugar a ação para a qual o réu foi citado posteriormente – vide artigo 582º.
O mesmo é dizer que a verificação da exceção de litispendência pressupõe que o R. já foi citado em ambas as ações, devendo a exceção ser deduzida na ação onde o R. foi citado posteriormente.

O tribunal a quo, como acima já se deixou enunciado, apreciou em sede liminar [portanto sem prévia citação dos RR.] e julgou verificada a exceção de litispendência e com fundamento nesta indeferiu liminarmente a petição inicial.
Após elencar os requisitos jurídicos de que depende a verificação de tal exceção, limitou-se o tribunal a afirmar o preenchimento destes – identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir - por assim o ter verificado por “consulta eletrónica” “do processo declarativo de condenação n.º 1360/20.2T8PNF, que corre os seus termos no Juízo 1 (…) Central Cível conforme resulta, evidente e notório, da daquela ação (que é possível seguir após a concessão da respetiva autorização).”

A mencionada “consulta eletrónica” após seguimento que o tribunal a quo solicitou, não se mostra acessível nem às partes demandadas nem a este tribunal de recurso [o que se realça, independentemente da possibilidade de ser possível pedir esse mesmo acesso].
Tão pouco dos autos consta qualquer documento processual a tal processo atinente que demonstre a pendência de tal ação e a verificação dos requisitos que caraterizam a exceção de litispendência.
E não substitui, a consulta eletrónica de outros autos após seguimento para o efeito solicitado, o dever de fundamentação das decisões exigido pelo artigo 154º do CPC, consagrado na constituição (vide artigo 205º nº 1 do CRP) e causa de nulidade da decisão [sentenças ou despachos] tal como decorre dos artigos 615º nº 1 al. b) e 613º nº 3 do CPC.

As decisões proferidas pelo tribunal têm de ser por si suficientes no sentido de poderem ser entendidas e analisadas pelos seus destinatários, o que nada mais é do que uma emanação da exigência da fundamentação das decisões.
Subjacente à aplicação das normas jurídicas convocadas pelo tribunal a quo esteve uma realidade factual que conforme já mencionado o tribunal a quo não elencou/descriminou, tal como o impõe o artigo 607º nº 3 do CPC.
A decisão que acima deixámos reproduzida é totalmente destituída de fundamentação de facto.
Impunha-se que na mesma tivessem sido descriminados os factos a extrair dos elementos processuais aportados aos autos que permitissem a conclusão da verificada e declarada litispendência– ou seja, a identificação dos sujeitos processuais, pedido e causa de pedir delineados/formulados em tal ação.
Ainda e atento o disposto no artigo 582º nº 2 do CPC a referência à citação dos demandados nesses mesmos autos.
Embora e com vozes divergentes[1] se venha defendendo que a nulidade da sentença (cujas regras se aplicam também aos despachos ex vi artigo 613º nº 3) por falta de fundamentação prevista no artigo 615º não é de conhecimento oficioso, mesmo para quem o assim o defende, está reconhecido à Relação o poder de oficiosamente anular a decisão e ordenar que o tribunal a quo fundamente a decisão nos termos do artigo 662º nº 2 al. d) do CPC quando esta seja omissa quanto a facto essencial ao julgamento da causa.
Por outro lado, a regra da substituição do tribunal recorrido consagrada no artigo 665º - quando seja declarada nula a decisão que põe termo ao processo - pressupõe que o tribunal ad quem tenha acesso a todos os elementos necessários à prolação de decisão que conheça do objeto do recurso [como o recorrente pugnou].

Feito este prévio enquadramento jurídico e reconhecido o dever de anulação da decisão para efeitos do artigo 662º ou de remessa dos autos à primeira instância quando seja declarada nula a decisão nos termos e enquadramento do artigo 665º, regressemos agora à análise da decisão recorrida.
A decisão recorrida é totalmente omissa quanto à fundamentação de facto em que baseia a aplicação do direito.
Não identifica qual o pedido e causa de pedir ou sujeitos processuais da ação que justificou a sua decisão e que repete-se tão pouco constam de qualquer elemento documental.
Tão pouco elenca/identifica a citação dos RR. em tal ação à data da instauração desta ação – pressuposto essencial para o preenchimento do previsto no já citado artigo 582º.
Certo sendo que nos autos a citação dos aqui RR. não ocorreu como ato prévio à prolação da decisão recorrida.

O recorrente invocou a nulidade da decisão por “excesso de pronúncia” ao conhecer da exceção da litispendência de modo intempestivo, por ao momento da sua prolação ainda se não verificarem os pressupostos factuais e jurídicos para a verificação da mencionada exceção – em causa a citação dos RR. que não chegou a ocorrer, atento o indeferimento liminar.
A nulidade invocada, nesta perspetiva, remete-nos para as nulidades do tipo dos “errores in procedendo” que respeitam aos vícios da decisão quanto à oportunidade da sua prolação no contexto da tramitação processual, por contraposição aos “errores in iudicando” que respeitam já ao conteúdo da decisão enquanto ato do processo[2].
Estes primeiros vícios seguem o regime geral das regras da nulidade de processo (artigos 195º a 202º do CPC).
Nulidades que e quando se encontrem cobertas por decisão judicial que as sancionou, devem ser arguidas não por via da reclamação (vide artigos 196º e 199º do CPC), mas do recurso da decisão proferida.
Neste seguimento, a arguida nulidade em sede de recurso respeita o meio processual adequado.
É facto assente que o tribunal a quo apreciou a exceção em causa sem previamente ter procedido à citação dos RR..
É igualmente certo que a litispendência se afere pela data de citação do R., considerando-se proposta em segundo lugar a ação para a qual o R. foi citado posteriormente.
E até que tal citação ocorra não se encontram preenchidos todos os requisitos de que depende a verificação da exceção de litispendência, nomeadamente o previsto no artigo 582º nº 2.
O não preenchimento dos invocados requisitos remete-nos, porém, para o erro de julgamento, ou seja, para a eventual censura que a decisão poderá merecer do ponto de vista da aplicação dos factos ao direito e não para o erro in procedendo.
O conhecimento da exceção de litispendência em sede de liminar não configura em si, em função do alegado, uma nulidade processual, mas antes um erro de julgamento, na medida em que a citação dos RR. nestes autos ainda não ocorrera à data da prolação da decisão.

Os RR. vieram, entretanto, a ser citados para os termos da ação e do recurso.
E nessa perspetiva o recorrente peticionou o conhecimento por este tribunal da mencionada exceção.
Ocorre que tal como acima já mencionado a decisão proferida é totalmente omissa quanto aos fundamentos de facto essenciais e que acima já deixámos elencados: não identifica qual o pedido e causa de pedir ou partes da ação que justificou a sua decisão. Nem tão pouco elenca/identifica a citação dos RR. em tal ação à data da instauração desta ação.
Inexistindo prova documental, indispensável, atinente a tais elementos processuais.
Omissão que impossibilita a este tribunal conhecer da invocada exceção de litispendência, em substituição do tribunal recorrido.
Implicando a revogação da decisão recorrida para que o tribunal a quo supra as omissões notadas e após profira em conformidade nova decisão.
Termos em que se conclui pela parcial procedência do recurso.
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IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto, consequentemente e revogando a decisão recorrida, determinando a remessa dos autos à primeira instância para que o tribunal a quo supra as deficiências apontadas, após proferindo decisão em conformidade com o que aos autos couber.
Custas por quem ficar vencido a final.

Porto, 2022-06-27.
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
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[1] Cfr. Ac. TRL de 20/12/2018, nº de processo 78/14.0TBVFX-C.L1-7 in www.dgsi.pt onde é analisada esta temática e citada jurisprudência, optando no caso por seguir a posição de que esta é uma nulidade de conhecimento oficioso, justificando-o do seguinte modo – é esta uma nulidade “um vício mais grave do que a anulabilidade decorrente da deficiência da decisão sobre matéria de facto, não faria sentido que a lei processual admitisse o conhecimento oficioso do vício menos grave, mas fizesse depender o conhecimento do vício mais grave de arguição da parte interessada – vd. acs. RL 27-10-2009 (Maria José Simões), p. 3084/08.0YXLSB-A.L1-1, e RC de 19-02-2013 (Virgílio Mateus), p. 618/12.9.
Havendo que tomar posição sobre esta questão, diremos que nos convencem os argumentos invocados pela tese do conhecimento oficioso da nulidade a que alude o art. 615º, nº 1, al. b) do CPC, pelos argumentos já expostos e também porque entendemos ser incongruente que uma mesma situação – falta absoluta de fundamentação de facto – seja suscetível de configurar o vício da nulidade da sentença quando seja invocada, e de anulabilidade da decisão sobre matéria de facto nela contida, quando seja objeto de apreciação oficiosa.”.
Castro Mendes e M. Teixeira de Sousa in “Manual de Processo Civil”, vol. I, edição 2022 de Editora AAFDL, p. 635, afirmando o não conhecimento oficioso das nulidades da sentença por referência ao disposto no artigo 615º nº 4 do CPC, reconhece como exceção a falta de fundamentação do julgamento da matéria de facto por remissão para o previsto no artigo 662º nº 2 al. d).
[2] Sobre esta situação, cfr. Manual de Processo Civil, ob. supra citada, p. 628.