ABUSO DE DIREITO
QUESTÕES NOVAS
CONCEITOS JURÍDICOS
DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
NULIDADES DE SENTENÇA
Sumário

I - O não oferecimento da contestação no momento processual adequado precludiu o direito dos RR. a, posteriormente, apresentarem a sua defesa invocando factualidade nova ou suscitando novas questões, nomeadamente em sede de recurso – vide artigo 573º do CPC.
II - Os recursos visam, por via da modificação de decisão antes proferida reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, pelo que está vedado ao tribunal de recurso apreciar ou considerar factos ou questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo, nos termos do artigo 608º nº 2 do CPC, salvo se de conhecimento oficioso.
III - De entre os comportamentos típicos abusivos que justificam nos termos legais um juízo de censura a uma atuação que de outro modo seria considerada legítima, temos o venire contra factum proprium.
Em causa a tutela de confiança, apoiada na boa-fé.
Àquele que invoca a atuação abusiva incumbe provar a factualidade integradora da mesma.
IV - É de excluir da decisão de facto conceitos jurídicos ainda que de uso generalizado e conhecimento comum que constituam ou integrem o próprio objeto de disputa entre as partes, ie, constituam a sua “verificação, sentido, conteúdo ou limites”.
Bem como expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de suporte factual e suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio.
V - As causas de nulidade da sentença - aplicável ex vi 613º nº 3 do CPC aos despachos - previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC, respeitam a vícios formais decorrentes “de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”, pelo que nas mesmas não se inclui quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito.
VI - A nulidade prevista no artigo 615º nº 1 al. e) sanciona a condenação em quantidade superior ao pedido formulado.
VII - Apenas a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito, e já não a deficiência em que assenta a decisão, são causa de nulidade da sentença ou despacho.
VIII - A exceção de prescrição não é de conhecimento oficioso – vide artigo 303º do CC que expressamente declara não poder a mesma ser suprida ex oficio pelo tribunal.
A sua arguição apenas em sede de recurso não pode ser apreciada pelo tribunal ad quem, a quem está vedado o conhecimento de questões novas antes não submetidas à apreciação do tribunal a quo.

Texto Integral

Processo nº. 2823/19.8T8MTS.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunto - Juíza Desembargadora Eugénia Cunha
Adjunto - Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz. Local Cível de Matosinhos
Apelante/ AA
Apelada/ “N..., SA.”

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
………………………………
………………………………
………………………………

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
“N..., SA.” instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra AA e BB, formulando pedido condenatório nos seguintes moldes:
“Deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência, serem os RR. condenados a:
a) reconhecer o direito de propriedade da A. sobre o prédio identificado no art.º 1º desta peça processual;
b) reconhecer o direito de propriedade da A. sobre a habitação identificada com o n.º ... C/V (cave), que integra o prédio identificado no art.º 1º desta peça processual;
c) reconhecer a caducidade do contrato de arrendamento identificado, à data da morte da CC;
d) proceder à desocupação da habitação identificada com o n.º ... C/V (cave) que integra o prédio urbano mencionado no art.º 1º, devendo a mesma ser entregue à A., livre de pessoas e bens, no prazo de 30 dias, após o trânsito em julgado da sentença que condene os RR;
e) indemnizar a A. quanto ao prejuízo que a ocupação abusiva da moradia lhe causa, prejuízo esse que é do mesmo montante daquele em que os RR. são beneficiados pela ocupação;”

Para tanto alegou em suma:
- Ser proprietária do prédio identificado em 1º da p.i. composto por 5 habitações autónomas e independentes;
- Ter dado de arrendamento há mais de 40 anos e por escrito particular ao pai da R. mulher a habitação com o nº ... C/V que integra o mencionado prédio, num contexto de relação laboral que aquele mantinha com a A. e que se manteria enquanto tal relação laboral fosse vigente;
- Tendo acabado por se manter na habitação em causa para além da vigência do seu contrato de trabalho por vicissitudes várias que a A. descreveu e até ao seu falecimento, em data que a A. não sabe precisar, mas há mais de 20 anos;
- À A. nunca foi comunicado o óbito do mencionado arrendatário e trabalhador, após o qual continuou a viver no arrendado a sua esposa CC, até ao seu falecimento em .../.../2014;
- Após o óbito desta tendo os RR. continuado a ocupar a referida habitação, pagando a renda que o inicial inquilino pagava;
- Por carta de 30/09/2014 a R. mulher comunica o óbito de sua mãe à A. e reclama a transmissão do arrendamento por morte.
A que a A. respondeu em 12/10/2014 comunicando a caducidade do contrato de arrendamento e solicitando a entrega do imóvel.
- Considerando a data da morte da arrendatária CC, é aplicável o previsto no artigo 57º do NRAU nos termos do qual a transmissão para a R. não é possível.
Motivo por que ocorreu a caducidade do contrato em causa.
Ocupando os RR. de forma abusiva a casa, pelo que deve a A. ser indemnizada pelos prejuízos que de tal ocupação para si derivam.
Termos em que concluiu nos termos assinalados.

Devidamente citados os RR., não apresentaram contestação, pelo que o tribunal a quo julgou confessados os factos nos termos do artigo 567º nº 1 do CPC.
Observado o disposto no artigo 567º nº 2 do CPC apresentou a A. alegações, concluindo como na p.i..

*
A convite do tribunal, “para quantificar qual o valor que atribui ao pedido formulado sob a al. e) da sua p.i” veio a A. informar “que o valor do prejuízo que a ocupação abusiva da moradia lhe causa, ascende nesta data, ao quantitativo de 6000€, considerando a diferença entre o valor efetivamente recebido por parte dos RR e o valor que seria expectável receber após a cessação do arrendamento, considerando as características e localização da habitação, estado de conservação e coeficiente de atualização anual de renda publicado pelo INE ao longo dos últimos anos.”
*
Após foi proferida sentença, a final se decidindo:
“Face ao exposto julgo a presente ação integralmente procedente, por provada, e, em consequência, condeno os Réus:
a) a reconhecerem que a Autora é proprietária do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, sob o nº ..., da freguesia ..., sito na rua ..., ... e inscrito na matriz predial urbana de Matosinhos sob o art. ..., (antigo art. ...) e da habitação identificada com o nº ... C/V (cave), que integra esse prédio;
b) a reconhecerem que o contrato de arrendamento desse imóvel inicialmente celebrado com o pai da Ré, DD, caducou à data da morte do cônjuge do mesmo, CC, ocorrida em .../.../2014;
c) a desocuparem a habitação identificada com o nº ... C/V (cave) referida em a), entregando-a à Autora, livre de pessoas e bens, no prazo de 30 das, após o trânsito em julgado da presente sentença;
d) a, solidariamente, pagarem aos Réus a quantia de €283,00 por mês, desde 22/01/2015, até efetiva entrega do imóvel.”[2]
*
Do decidido apelou a R., oferecendo alegações e formulando as seguintes
“Conclusões:
………………………………
………………………………
………………………………

Não se mostram apresentadas contra-alegações.
*
O tribunal a quo determinou oficiosamente a seguinte retificação da decisão recorrida:
«ao abrigo do disposto no art. 614º, nº 1, do C.P.Civil, determino a retificação da sentença nessa parte, fazendo constar no dispositivo:
V – DECISÃO”, onde se lê “IV – DECISÃO” e na alínea d), a expressão “a pagar à Autora”, onde se escreveu a expressão “a pagar aos Réus”»

Mais, pronunciou-se sobre a nulidade arguida pela recorrente tendo decidido julgar parcialmente procedente a mesma, nestes termos determinando a seguinte retificação da decisão:
- Aditando o seguinte parágrafo na parte final da alínea C), do ponto IV - FUNDAMENTAÇÃO da sentença com a seguinte redação:
“Uma vez que a Autora quantificou o dano sofrido pela ocupação abusiva do imóvel até janeiro de 2020 em € 6.000,00, e a condenação não pode exceder o montante peticionado, o valor da indemnização desde 22 de janeiro de 2015 a janeiro de 2020, limitar-se-á a € 6.000,00, sendo de € 283,00 por mês, desde fevereiro de 2020, até à efetiva entrega do imóvel.”
- Corrigindo a redação da alínea d), do ponto V – DECISÃO, substituindo a redação dessa alínea que consta da sentença pela expressão:
“d) a solidariamente, pagarem à Autora, a quantia de € 6.000,00, acrescida da quantia de € 283,00 por mês, desde 01/02/2020, até efetiva entrega do imóvel.”
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.
Foram colhidos os vistos legais.
*
II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pela apelante serem as seguintes as questões colocadas à apreciação do tribunal [a título principal e subsidiário]:
I- Erro de julgamento quanto às als. b), c) e d) da decisão, por erro de julgamento na matéria de facto e integração da conduta da A. num abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
Paralisando este instituto do abuso de direito quer o direito à caducidade do contrato de arrendamento que deverá ser julgado validamente transmitido para a recorrente, quer o pedido indemnizatório atenta a confiança criada pela recorrente de que o valor da renda por esta pago era o devido [vide conclusões I a XI];
II- Subsidiariamente,
nulidade da decisão por condenação para além do pedido [vide conclusões XII a XVI];
III- Subsidiariamente,
erro na decisão de facto – em causa os pontos 40 e 41 dos factos provados, os quais a recorrente defende deverem ser eliminados por conterem juízos de valor e não factos [vide conclusões XVII a XXI];
IV- E como consequência da procedência da alteração pugnada e indicada em III, ocorrendo erro na aplicação do direito quanto à condenação constante da al. d) referente ao pedido indemnizatório que deverá ser julgado totalmente improcedente [vide conclusões XXI e XXII];
V- Subsidiariamente,
nulidade da decisão por falta de fundamentação por referência à subsunção dos factos apurados ao instituto da responsabilidade extracontratual para efeitos do pedido indemnizatório [vide conclusões XXIII a XXV];
VI- Subsidiariamente
erro na decisão de direito: em causa a prescrição do pedido indemnizatório que a recorrente invoca e requer seja declarada, com a sua consequente absolvição deste pedido [vide conclusões XXVI a XXVIII].
***
III- Fundamentação
O tribunal a quo julgou provada (por confissão) a seguinte matéria de facto:
“1 – Encontra-se registado em nome de Y..., SA, anterior denominação da Autora, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, sob o nº ..., da freguesia ..., sito na rua ..., ... e inscrito na matriz predial urbana de Matosinhos sob o art. ..., (antigo art. ...).
2 – Esse prédio é composto de casa de três pavimentos e quintal, terraço e dependências tendo no primeiro pavimento, seis divisões, no segundo pavimento quatro divisões e seis vãos e no terceiro pavimento quatro divisões e sete vãos – cfr. docs. juntos a fls. 8 verso e 9, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
3 - O citado prédio urbano é composto por 5 habitações, autónomas e independentes entre si (morada de casas sobradas, com quintal, poço e mais pertenças – reprodução por extratação da descrição), identificadas com os nºs ... - C/V (cave), nº ... - R/C, n.º ... - R/C Frente, n.º ... – 1º Frente e n.º ... – 1º Traz.
4 – O prédio não se encontra constituído em regime de propriedade horizontal.
5 - Através de escritos particulares, outorgados há mais de 40 anos, a Autora, à data designada de “A..., Lda.”, acordou com o DD, pai da Ré, ceder-lhe o gozo e fruição da habitação identificada com o n.º ... C/V da Rua ..., que integra o prédio urbano identificado em 1, para sua residência, mediante o pagamento por este de uma contrapartida de valor abaixo do praticado no mercado.
6 - Essa cedência seria mediante contrapartida em dinheiro de 40.898,28 Escudos (quarenta mil oitocentos e noventa e oitos escudos e vinte e oito cêntimos) na forma de renda anual e a pagar em duodécimos de 3.408.19 Escudos (três mil quatrocentos e oito escudos e dezanove cêntimos) no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito.
7 - O valor da renda, manteve-se inalterada até ao presente e corresponde atualmente, à contrapartida em dinheiro de €204 (duzentos e quatro euros) na forma de renda anual e a pagar em duodécimos de €17 (dezassete euros) mensais.
8 - A F... (...), atualmente N..., SA, foi fundada em 1922 por EE como uma empresa singular (em nome individual), sendo a 1.ª fábrica em Portugal a produzir tubos de aço: uma das inovações do processo fabril foi a introdução de um sistema de produção baseado na estandardização de tubos de aço, em medidas e moldes fixos.
9 - Em 1946, o seu fundador deu sociedade aos seus filhos FF e GG, passando a empresa a ser uma sociedade por quotas com a firma ‘A..., Lda.’, iniciando-se um processo de internacionalização para lançar a F... como a maior fábrica de tubos da Europa.
10 - Já desde os anos 60 do séc. XX, a fábrica laborava continuamente com 3 turnos (0:00 - 06:00, 6:00 - 15:00 e 15:00 - 24.00).
11 - Tinha a seu cargo centenas de trabalhadores, entre os quais, o dito DD, pai da Ré mulher.
12 - Em termos laborais, a sociedade concedia aos seus trabalhadores, para além da remuneração mensal fixa, retribuições em espécie que integravam o pacote retributivo global dos colaboradores, compreendendo designadamente a concessão de serviço de cantina, uso de viatura para fins pessoais, pagamento de despesas com deslocação, bolsas de estudo para os filhos, seguros de saúde e seguros vida, cedência de habitação (a título gratuito ou mediante arrendamento por valor abaixo do praticado no mercado).
13 - No caso do dito DD, pai da Ré mulher, para além da remuneração mensal fixa, foi-lhe ainda cedido o gozo e fruição da habitação identificada, mediante arrendamento por valor abaixo do praticado no mercado.
14 - O arrendamento vigoraria durante o período de vigência do contrato de trabalho celebrado e cessaria os seus termos no preciso momento em que o vínculo laboral estabelecido entre as partes cessasse os seus efeitos, no limite, como foi o caso do dito DD, com a reforma do trabalhador.
15 - Ao longo da sua existência, a Autora atravessou por períodos conturbados ao nível da sua gestão e administração.
16 - O Conselho de Ministros, reunido em 21 de julho de 1974, resolveu determinar a intervenção do Estado, ao abrigo do Decreto-Lei 660/74, de 25 de novembro, na empresa F..., suspendendo a gerência da sociedade e nomeando uma comissão administrativa, sugerida pela comissão de trabalhadores, entretanto criada.
17 - Após 1974, o processo revolucionário em curso (PREC) e a criação na empresa duma Comissão de Trabalhadores alteraram as linhas orientadoras da sua gestão.
18 – Nos anos 80 do séc. XX, a empresa encerrou gradualmente as suas instalações, até ter sido adquirida em 1991 pela “X..., Lda.” sediada em ... no concelho de Oliveira de Azeméis.
19 - Já na década de 90 do séc. XX, a Autora passa por um processo de falência até que o seu principal credor, o Banco 1... (Banco 1...), tomou conta de todo o seu património e em 1991 criou a empresa N....
20 - Mais tarde, aquando da incorporação no Banco 2... (Banco 2...) com efetivação a 30 de junho de 2000, data a partir da qual se extinguiu oficialmente o Banco 1... e se concluiu a fusão de ambos, o Banco 2... tomou conta de todo o património da Autora.
21 - É precisamente neste contexto de instabilidade ao nível da sua gestão e administração que muitos dos ex-funcionários da Autora vão permanecendo nas habitações que lhe haviam sido cedidas (nuns casos a título gratuito, noutros mediante arrendamento por valor abaixo do praticado no mercado), mesmo depois de ter cessado o vínculo laboral estabelecido com a Autora.
22 - Beneficiaram do facto de os sucessivos Conselho Administração da Autora desconhecerem os termos contratualizados e mantiveram-se nas habitações para além do período de vigência dos seus contratos de trabalho, mesmo após as suas reformas, aí permanecendo, alguns até aos dias de hoje.
23 - Noutros casos, de ex-funcionários já falecidos, as habitações continuam a ser habitadas por familiares diretos, nomeadamente filhos e netos.
24 - O pai da Ré mulher, DD, manteve-se no gozo do imóvel para além do período de vigência do seu contrato de trabalho, até ao seu falecimento, sendo que atualmente são os Réus quem ocupam o locado.
25 - O pai da Ré, DD, faleceu há mais de 20 anos, no estado de casado com CC – cfr. doc. junto a fls. 11, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
26 - À Autora nunca foi comunicado o óbito do dito DD.
27 - Após o óbito de DD, o seu cônjuge, CC, continuou a ocupar a referida habitação e ali se manteve até à sua morte, pagando o valor da renda fixada para o DD e através do meio contratado.
28 - CC, mãe da R., faleceu em .../.../2014, no estado de viúva de DD.
29 - Após o óbito da mãe da Ré, os Réus continuaram a ocupar a referida habitação, aí tendo as suas roupas e demais pertences pessoais, aí pernoitando, tomando as suas refeições, recebendo a sua correspondência, onde recebem pessoas, onde são procurados por quem os pretende encontrar e onde se encontram recenseados - usufruindo de todas as comodidades proporcionadas pela habitação. 30 - Pagando o valor da renda fixada para o DD, pai da Ré mulher, através do meio contratado.
31 - Por intermédio de carta registada com aviso de receção, datada de 30 setembro de 2014, a Ré mulher comunicou à Autora o óbito de sua mãe e reclamou a transmissão por morte no arrendamento, nos termos dos artigos 1106º e 1107º do Código Civil, solicitando que os recibos de renda fossem, de futuro, emitidos em seu nome - cfr. doc. junto a fls. 13, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
32 - Em resposta, também através carta registada com aviso de receção, datada de 12 de outubro de 2014, a Autora comunica a caducidade do arrendamento pelo que a Ré deveria proceder à entrega do imóvel no prazo máximo de um mês após a receção da mencionada carta – cfr. doc. junto a fls. 13 verso e 14, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
33 - Por carta registada com aviso de receção, de 22 de setembro de 2014, a Ré mulher comunicou à Autora que pretendia a transmissão do arrendamento e informa que não iria deixar o locado continuando a pagar a renda devida - cfr. doc. junto a fls. 14 verso, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
34 - Em resposta, através de carta registada com aviso de receção, datada de 6 de outubro de 2014, a Autora reitera a sua posição assumida anteriormente e reivindica a entrega do imóvel no prazo já definido, reclamando ainda a entrega das chaves até essa mesma data – cfr. doc. junto a fls. 15, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
35 - Desde .../.../2014 até à presente data, a habitação tem estado a ser ocupada pelos Réus, que têm a posse efetiva das chaves e se recusam a entrega-las à Autora.
36 - Por cartas registadas, de 21/02/2019 e 19/03/2019, a Autora reiterou a pretensão já transmitida em 2014, implícita no texto das cartas datadas de 12 de outubro de 2014 e 6 de outubro de 2014 – cfr. docs juntos a fls. 16 a 18, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
37 - Em resposta, também através de carta registada com A/R, datada de 21/03/2019, a Ré comunica novamente à A. que não iria deixar o locado – cfr. docs. juntos a fls. 18 verso e 19, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
38 – Os Réus mantêm-se no imóvel contra a vontade da Autora.
39 - A Autora tem vindo a emitir as declarações de recibos de renda, desde a morte de primitivo arrendatário, em nome do Viúva de DD – cfr. docs. juntos a fls. 20 a 21 verso, que aqui se são por integralmente reproduzidos.
40 - A moradia em causa, tem boa localização, próxima do centro da cidade; o prédio, apesar de antigo, é de notável construção.
41 - O rendimento possível da moradia em causa, colocada no mercado de arrendamento, é de pelo menos €300,00 mensais.”
***
Em função das questões colocadas à apreciação do tribunal e porquanto a recorrente arguiu os fundamentos de recurso e correspondente pretensão de forma subsidiária, em relação ao pedido principal formulado, nos termos que deixámos acima elencados, será respeitada a ordem pela recorrente indicada, salvo se o conhecimento de algum dos pedidos se apresentar preclusivo em relação aos demais.
Note-se que nos termos do artigo 554º do CPC o pedido subsidiário apresentado ao tribunal apenas será apreciado caso o pedido anterior não seja julgado procedente.
O mesmo é dizer que na situação em que sejam formulados pela parte vários pedidos subsidiários, a procedência de um afasta em absoluto a possibilidade de procedência dos demais subsequentemente formulados nessa relação de subsidiariedade[2].
Assim não ocorrendo, contudo, quando tenham sido suscitadas ou ocorram exceções de conhecimento oficioso que e se apreciadas previamente, se apresentem preclusivas em relação às demais questões/pedidos submetidos à apreciação do tribunal, na medida em que e de outro modo resultaria a atividade do tribunal numa inutilidade processual [3].
O que aliás é conforme ao previsto no artigo 608º do CPC.
*
Tendo presentes estes considerandos e as questões submetidas à nossa apreciação, será em primeiro lugar apreciada pretensão principal da recorrente – elencada em I - na perspetiva em que se procedente implicaria a total absolvição dos RR. do pedido contra os mesmos formulado, por via do instituto do abuso do direito. Provocando a inutilidade da apreciação dos demais pedidos subsidiários formulados.
Abuso de direito que apenas em sede de recurso foi invocado, mas de que se apreciará na medida em que se trata de exceção perentória imprópria de conhecimento oficioso.
Não obstante o nosso tribunal superior já ter defendido que tal conhecimento oficioso apenas deve ocorrer quando o mesmo “se afigure manifesto, ou seja, quando as circunstâncias do caso apontem claramente no sentido da sua verificação”[4], a justificação de que assim não é, face ao alegado pela recorrente, justifica o conhecimento desta exceção.
Tal como resulta das conclusões de recurso I a XI, fundamenta a recorrente a sua pretensão e consequente enquadramento do abuso de direito numa série de factos novos que só agora, em sede de recurso vem invocar, veja-se a alegação de que entre 2014 e 2019 a recorrida autora deixou de se manifestar contra a vivência da recorrente no imóvel, aceitando o pagamento das rendas e emitindo os respetivos recibos de renda; só em 2019 voltando a manifestar tal discordância; ainda a aceitação da recorrente, por parte da recorrida, como sua arrendatária a quem foi transmitida a posição contratual ou como nova arrendatária, sem quaisquer pontos de litigiosidade [vide conclusões II a VI].
Recorda-se que os RR. devidamente citados não ofereceram contestação aos autos, motivo por que os factos alegados foram julgados confessados.
Os novos factos ora alegados constituiriam hipoteticamente a defesa da(dos) R(R.) se oportunamente tivesse(m) contestado.
O não oferecimento da contestação no momento processual adequado precludiu o direito dos RR. a, posteriormente, apresentarem a sua defesa invocando factualidade nova ou suscitando novas questões, nomeadamente em sede de recurso – vide artigo 573º do CPC.
Os recursos visam, por via da modificação de decisão antes proferida reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, pelo que está vedado ao tribunal de recurso apreciar ou considerar factos ou questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo, nos termos do artigo 608º nº 2 do CPC, salvo se de conhecimento oficioso[5].
Assim a única factualidade apurada e da qual a recorrente deriva para as demais afirmações que careciam de demonstração factual respeita às comunicações trocadas entre A. e R. entre 30/09/2014 e outubro de 2014 – altura em que a R. mulher comunica o falecimento de sua mãe e reclama a transmissão do arrendamento nos termos dos artigos 1106º e 1107º do CC. Ao que a A. responde comunicando a caducidade do contrato de arrendamento e solicita a entrega do imóvel no prazo de um mês; o que motiva a resposta da R. subsequente a comunicar que pretende a transmissão do arrendamento e que não irá deixar o locado continuando a pagar a renda devida. Tendo ainda merecido a resposta da A. em 6/10/2014 na qual reitera a sua posição assumida e reivindica a entrega do imóvel no prazo já definido [vide fp’s 31 a 34].
Ora, subsequentemente está provado que os RR. desde .../.../2014 até à presente data continuam a ocupar a habitação, têm a posse efetiva da chave e recusam a entrega à autora – vide fp 35. O que contraria a alegada aceitação e inexistente litigiosidade entre as partes.
Em 2019 A. e R. trocam novas missivas reiterando as pretensão e posição já antes assumidas – vide fp’s 36 e 37.
Mantendo-se os RR. no imóvel contra a vontade da autora – vide fp 38.
Mais estando provado que a A. continua a emitir os recibos em nome da viúva de DD – vide fp 39 – e não em nome da R. ou dos RR., o que de igualmente afasta a alegada pacificação/aceitação.
Extrai-se do assim afirmado que a pretensão da recorrente fundada no abuso de direito por venire contra factum proprium carecia de demonstração factual – aquela que a recorrente alega no recurso e que contraria o que está apurado e acima elencado. Demonstração factual que claramente não pode ser obtida por via de recurso porquanto e conforme já referido, se trata de factos novos antes não considerados.

Nos termos do art. 334º do Cód. Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Entende-se assim que atua em abuso de direito aquele que exercita um direito de que é titular de forma manifestamente excessiva para lá dos limites impostos pela boa-fé, bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Atentando-se, para determinar os limites impostos pela boa-fé ou bons costumes, de modo especial as conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade.
E para consideração do fim social ou económico do direito, convocando-se de preferência juízos de valor positivamente consagrados na própria lei. Sem excluir os fatores subjetivos ou intenção na atuação do titular, na medida em que estes relevarão para apreciação quer da boa-fé bons costumes quer ao próprio fim do direito[6].
De entre os comportamentos típicos abusivos[7] que justificam nos termos legais um juízo de censura a uma atuação que de outro modo seria considerada legítima temos o venire contra factum proprium.
Em causa a tutela de confiança, apoiada na boa-fé e que ocorre perante quatro proposições, não cumulativas desde que a intensidade assumida pelas restantes seja tão impressiva que compense a falha[8]:
“- 1º uma situação de confiança, conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore lesar posições alheias;
- 2º uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocarem essa crença plausível;
- 3º um investimento de confiança, consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
4º a imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante; tal pessoa por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu.”

Neste tipo de atuação a censura recai, portanto, sobre uma conduta do sujeito titular de um direito que é contrária a uma sua anterior atuação, a qual especialmente quando reiterada e prolongada no tempo, viola a confiança, entretanto sedimentada na contraparte de que não viria a ser atingida pela proteção que a lei confere àquele que por ação ou omissão deu lugar ao estabelecer de tal confiança.
É esta confiança que a recorrente invoca estar a ser violada pela recorrida com a sua atuação porquanto e conforme alegou, a ocupação que tem vindo a fazer do locado tem-no sido feita de modo pacífico, sem oposição da recorrida que após a inicial oposição se conformou com a posição dos RR. que invocaram e pugnaram pela transmissão do arrendamento, em suma reconhecendo-os como inquilinos já que aceita receber a renda durante mais de 4 anos, emitindo os respetivos recibos.
Ocorre que e conforme já tivemos oportunidade de mencionar a invocada aceitação carecia de demonstração e a factualidade apurada indicia precisamente o contrário – já que está provado que os RR. recusam a entrega das chaves desde 2014, continuando a ocupar a habitação, contra a vontade da autora.
Em suma, cabia à recorrente ter demonstrado a factualidade que lhe permitiria defender a sua posição quer quanto à aceitação da sua qualidade de arrendatária quer quanto à aceitação do valor da renda e à inalteração da mesma.
Tanto é quanto baste para se concluir que a imputada à A. atuação em abuso de direito não resulta demonstrada perante a factualidade apurada.
A implicar a improcedência da arguida atuação em abuso de direito.
*
Assim julgado improcedente o pedido principal, cumpre apreciar os pedidos subsidiários formulados pela ordem elencada, salvo se o conhecimento de um outro precludir o conhecimento dos antecedentes.
Analisemos então as pretensões da recorrente.
Uma vez que a eliminação da factualidade provada dos pontos 40 e 41 – se procedente – implicaria com o conhecimento dos pedidos relativos ao pedido indemnizatório formulado e apreciado, será apreciado em segundo lugar este pedido subsidiário, elencado supra sob o ponto III.
A recorrente fundamenta a pretendida eliminação de tais pontos da matéria de facto com o argumento de que em causa estão juízos de valor e são conclusivos na medida em que concluem hipoteticamente pelo rendimento mensal do imóvel no mercado de arrendamento.
Resulta do artigo 607º nº 4 que na sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que não julga provados.
A contrario se extraindo que da decisão de facto não devem constar nem juízos conclusivos nem conceitos normativo-jurídicos, enquanto segmentos integrantes da sentença.
Não obstante e no que respeita aos conceitos normativo-jurídicos vem a ser entendido jurisprudencialmente ser admissível incluir na factualidade provada conceitos que podem ser tidos como de direito quando simultaneamente os mesmos “forem factualizados e usualmente utilizados na linguagem comum, possuindo um sentido apreensível” [vide nesse sentido Ac. STJ de 28/05/2015, Relator Granja da Fonseca in http://www.dgsi.pt/jstj].
Fora deste circunstancialismo, devendo a decisão da matéria de facto ser expurgada de conceitos de direito, bem como de asserções de natureza conclusiva, na medida em que estas devem resultar do raciocínio lógico dedutivo baseado nos concretos pontos de facto dados como provados, [cfr. Ac. STJ de 14/05/2014, Relator Melo Lima in http://www.dgsi.pt/jstj].
Num mais recente aresto do STJ de 01/10/2019, nº de processo 109/17.1T8ACB.C1.S1 in www.dgsi.pt foi de novo abordada a distinção entre questão de facto e de direito ou conclusão jurídica[9], realçando a necessidade de na análise de tais conceitos se levar em consideração o objeto do processo, porquanto nunca será de admitir no elenco dos factos provados conceitos jurídicos ainda que de uso generalizado e conhecimento comum que constituam ou integrem o próprio objeto de disputa entre as partes, ie, constituam a sua “verificação, sentido, conteúdo ou limites”.
Assim, é afirmado em tal aresto:
(…) embora só acontecimentos ou factos concretos possam integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão (“o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, por que tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste” […]), são ainda de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes.
Deste modo, “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes” […]. O que num caso pode ser facto ou juízo de facto, noutro pode ser juízo de direito[…].
De forma idêntica, adotando o mesmo critério, tem decidido a jurisprudência, entendendo que são de afastar expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, que invadam o domínio de uma questão de direito essencial[…].
Assim, a natureza conclusiva do facto pode ter um sentido normativo quando contém em si a resposta a uma questão de direito ou pode consistir num juízo de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrência da vida real. No primeiro caso, o facto conclusivo deve ser havido como não escrito. “No segundo, a solução depende de um raciocínio de analogia entre o juízo ou conclusão de facto e a questão de direito, devendo ser eliminado o juízo de facto quando traduz uma resposta antecipada à questão de direito” […]»
Do exposto resulta ser de excluir da decisão de facto conceitos jurídicos ainda que de uso generalizado e conhecimento comum que constituam ou integrem o próprio objeto de disputa entre as partes, ie, constituam a sua “verificação, sentido, conteúdo ou limites”.
Bem como expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de suporte factual e suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio.
Tendo presentes estes considerandos e analisando agora o teor dos pontos 40 e 41 dos factos provados entendemos que os mesmos não merecem a censura que a recorrente lhes aponta.
Assim e quanto à menção a uma boa localização constante do ponto 40 dos fp’s é efetivamente uma conclusão ou valoração que, contudo, está sustentada e se reporta à localização próxima do centro da cidade.
O mesmo é dizer que tem suporte factual, alegado e não impugnado, e nele se integra.
Tão pouco o ponto 41 dos fp’s merece censura.
Em causa está o valor locativo da moradia, este um facto concreto alegado e não oportunamente impugnado, indicado por referência a um mínimo de € 300,00 mensais. E a menção ao possível rendimento – o dos € 300,00 – está justificada pela menção ao valor mínimo de rendimento.
Ou seja, tão pouco merece censura a redação deste ponto factual.
Termos em que se julga improcedente este pedido subsidiário deduzido.
Mantendo-se na integra a redação destes pontos factuais.
Consequentemente, adianta-se desde já, improcede também a pretensão formulada pela recorrente relativa ao pedido indemnizatório e que diretamente dependia, por exclusivamente nele sustentado, da eliminação destes mesmos pontos factuais – vide questão elencada sob o ponto IV.

Analisemos agora a invocada nulidade da decisão por condenação além do pedido – questão elencada sob o ponto II.
Em causa está a al. d) da decisão final por referência ao pedido indemnizatório formulado sob a al. e) da p.i..
As causas de nulidade da sentença, previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC[10], respeitam a vícios formais decorrentes “de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”[11], pelo que nas mesmas não se inclui quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito[12].

Tal como resulta do relatório supra, a A. formulou nesta sede um pedido indemnizatório correspondente ao prejuízo decorrente da ocupação abusiva, por não terem os RR. título legítimo para a ocupação que da casa fizeram, consequentemente impedindo a A. de fruir dos rendimentos que tal moradia fizeram.
Estando assente a caducidade do contrato – que os RR. não questionaram a não ser por via do abuso de direito que já foi apreciado e julgado improcedente – apreciou o tribunal a quo o já identificado pedido indemnizatório.
Tal pedido, inicialmente não quantificado, viria na sequência de convite que à A. foi endereçado pelo tribunal a sê-lo por requerimento de 02/01/2020. Tendo então a A. quantificado o valor do seu prejuízo até a tal data, em € 6.000,00, justificado nos seguintes termos pela A.:
“o valor do prejuízo que a ocupação abusiva da moradia lhe causa, ascende nesta data, ao quantitativo de 6000€, considerando a diferença entre o valor efetivamente recebido por parte dos RR e o valor que seria expectável receber após a cessação do arrendamento, considerando as características e localização da habitação, estado de conservação e coeficiente de atualização anual de renda publicado pelo INE ao longo dos últimos anos.”
Com base precisamente nesta quantificação veio a recorrente arguir a nulidade da decisão nos termos do artigo 615º nº 1 al. e) do CPC, ao condenar os RR. a pagar à A. a quantia de € 283,00 mês desde 01/02/2015 até efetiva entrega do imóvel.
Decisão que se fundou no valor locativo apurado de pelo menos € 300,00, deduzido do valor que mensalmente ia sendo entregue à A. de € 17,00 (vide fp’s 7, 30 e 39).
Na sequência da arguida nulidade, apreciando a mesma e julgando-a parcialmente procedente, decidiu o tribunal a quo corrigir a condenação, fixando em € 6.000,00 o valor indemnizatório devido desde janeiro de 2015 e até janeiro de 2020. Após condenando os RR. a pagar o já mencionado valor de € 283,00 mês.
No que respeita ao período em menção – até janeiro de 2020 - claramente corrigiu o tribunal a quo a condenação para além do pedido em que incorrera e que a recorrente suscitou, satisfazendo a pretensão da recorrente.
Sanando assim a arguida nulidade na correspondente medida.
A recorrente alegara ainda que para o período posterior a janeiro de 2020 igualmente a condenação no valor mencionado se mantinha em montante superior ao pedido.O que cumpre apreciar.
Não assiste nesta parte razão à recorrente.
Relembra-se que na p.i. – tendo o processo sido instaurado em 23/05/2019 - a A. alegou que o rendimento possível da moradia em causa era de pelo menos € 300,00 mensais (vide 46º da p.i.).
Acumulando a A. tal prejuízo mensal desde .../.../2014 e até que recupere a posse e uso da casa, beneficiando e enriquecendo os RR. nesse mesmo montante (vide 47º da p.i.).
Finalmente alegou que a ocupação abusiva da moradia lhe confere “o direito a ser indemnizada, pelos RR. quanto ao prejuízo que essa ocupação lhe causa, prejuízo esse que é do mesmo montante daquele em que os RR. são beneficiados pela ocupação – artºs 473º e seguintes do CC.”
A final tendo concluído pela condenação dos RR. a
e) indemnizar a A. quanto ao prejuízo que a ocupação abusiva da moradia lhe causa, prejuízo esse que é do mesmo montante daquele em que os RR. são beneficiados pela ocupação;”
Conforme já referido, o tribunal a quo convidou a A. a quantificar o seu pedido formulado na al. e) por não ter alegado “qualquer impossibilidade na sua quantificação” (despacho de 23/12/2019).
Ao que a A. respondeu nos termos acima já transcritos, restringindo a quantificação por si efetuada à data do requerimento (janeiro de 2020) considerando conforme deu nota, entre o mais, os valores de “coeficiente de atualização anual de renda publicado pelo INE ao longo dos últimos anos.”
Temos assim que a A. considerou e nessa medida reduziu o valor do pedido indemnizatório ao período pela mesma indicado e nos termos em que o justificou.
Já o não fez para o futuro – após janeiro de 2020.
E por tal o tribunal a quo considerou e avaliou os danos de acordo com o que foi alegado na p.i. e apurado, nos termos que acima já analisámos.
A nulidade prevista no artigo 615º nº 1 al. e) sanciona a condenação em quantidade superior ao pedido formulado.
A condenação decidida pelo tribunal a quo após janeiro de 2020 respeita o pedido formulado inicialmente de acordo com os prejuízos que então foram alegados, apurados e que a final quantificou.
Nestes termos e após a correção que o tribunal a quo introduziu na decisão – da mesma passando a fazer parte integrante (vide artigo 617º nº 2 do CPC), conclui-se não padecer a decisão recorrida da nulidade por condenação em montante superior ao peticionado.
Pelo que se julga improcedente a arguida nulidade por condenação para além do pedido – atenta a correção que o tribunal a quo introduziu na decisão recorrida e acima mencionada.

Subsidiariamente e para o caso de ser julgada improcedente esta arguida nulidade, invocou ainda a recorrente a nulidade da decisão por falta de fundamentação por referência à subsunção dos factos apurados ao instituto da responsabilidade extracontratual para efeitos do pedido indemnizatório [vide conclusões XXIII a XXV].
No que ao vício da falta ou insuficiência da fundamentação previsto na al. b) do nº 1 do artigo 615º do CPC concerne, é entendimento uniforme na jurisprudência e com apoio na doutrina que a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito, e apenas esta e já não a sua deficiência, em que assenta a decisão, são causa de nulidade da mesma[13].
Na fundamentação da decisão recorrida consta a seguinte apreciação, com relevo para a apreciação do pedido indemnizatório:
“Face ao exposto, e por força da caducidade do contrato de arrendamento deveriam os Réus ter abandonado o locado no prazo de seis meses após o óbito de sua mãe art. 1053º do C.Civil.
Todavia os Réus não o fizeram, continuando a ocupar abusivamente o imóvel, violando o direito de propriedade da Autora.
Esta sua conduta subsume-se na previsão do art. 483º, nº 1, do C.Civil, fazendo-os incorrer em responsabilidade civil, pelo que, assiste à Autora direito a exigir solidariamente dos Réus por força do art. 497º, nº 1, do C.Civil - indemnização pelos danos que aquele seu comportamento lhe causou.
O valor dessa indemnização, conforme previsto nos arts. 562º, 563º, 564º e 566º do C.Civil, corresponde ao valor locativo do imóvel, que, conforme se mostra provado, é de pelo menos € 300,00.
Tendo em conta que desde a morte de sua mãe, a Ré continuou a proceder ao pagamento à Autora do valor acordado a título de renda no contrato celebrado com o seu pai – € 17,00 - o valor da indemnização a que tem direito a Autora corresponde a € 283,00 por cada mês de ocupação abusiva (…)”.
Do extrato da decisão que acima deixámos reproduzida resulta que o tribunal a quo fundamentou o decidido. De forma simplificada, é certo, mas por remissão para as disposições legais.
Pelo que se não pode falar em nulidade por falta de fundamentação, atentos os termos em que esta mesma nulidade deve ser aferida.
Termos em que se julga improcedente, sem mais, a arguida nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação.
*
Finalmente e ainda subsidiariamente, arguiu a recorrente o erro na decisão de direito: em causa a prescrição do pedido indemnizatório que a recorrente invoca e requer seja declarada, com a sua consequente absolvição deste pedido [vide conclusões XXVI a XXVIII].
Tal como já tivemos oportunidade de referir supra, os recursos visam, por via da modificação de decisão antes proferida reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, pelo que está vedado ao tribunal de recurso apreciar ou considerar factos ou questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo, nos termos do artigo 608º nº 2 do CPC, salvo se de conhecimento oficioso[14].
A exceção de prescrição não é de conhecimento oficioso – vide artigo 303º do CC que expressamente declara não poder a mesma ser suprida ex oficio pelo tribunal.
A sua arguição apenas em sede de recurso não pode ser apreciada pelo tribunal ad quem, a quem está vedado o conhecimento de questões novas antes não submetidas à apreciação do tribunal a quo.
Ora a exceção que ora a recorrente invoca, foi apenas nesta sede arguida pela recorrente.
Consequentemente não pode esta exceção só agora apresentada perante o tribunal em momento em que já não é admissível, ser conhecida por este tribunal de recurso.
Termos em que se decide não conhecer desta exceção, por vedado tal conhecimento a este tribunal, atenta a sua novidade perante os autos.

Conclui-se perante o exposto pela improcedência dos argumentos e pedidos aduzidos pela recorrente, com a consequente total improcedência do recurso interposto.
***
IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, consequentemente mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Porto, 2022-07-13
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
______________
[1] A condenação constante da al. d) veio a ser alvo de retificação e correção [após a interposição do recurso pela R.] conforme infra se dá nota. Tendo passado a ter a seguinte redação:
“d) a, solidariamente, pagarem à Autora a quantia de € 6.000,00, acrescida da quantia de €283,00 por mês, desde 01/02/2020, até efetiva entrega do imóvel.”
[2] Apreciando esta questão cfr. Ac. TRC de 24-04-2012, nº de processo 267/11.9TBOFR.C1; Ac. STJ de 17/10/2019, nº de processo 17924/16.6T8LSB.L1.S1 in www.dgsi.pt .
[3] Cfr. neste sentido Ac. TRG de 04/06/2020, nº de processo 129/19.1T8FAF-C.G1; Ac. TRP de 29/09/2021, nº de processo 1585/19.3T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt .
[4] Cfr. Ac. STJ de 17/11/2020, nº de processo 306/15.4T8AVR-A.P1.S2 in www.dgsi.pt
[5] Cfr. neste sentido Ac. STJ de 15/09/2021, nº de processo 559/18.6T8VIS.C1.S1 e ainda Acs. do TRG de 12/07/2016, nº de processo 59/12.8TBPCR.G1 e de 11/07/2017 nº de processo 5527/16.0T8GMR.G1; Ac. TRP de 10/02/2020, nº de processo 22441/16.1T8PRT-A.P1, todos in www.dgsi.pt .
[6] Assim Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, ed. 6ª p. 515/516.
[7] Doutrinalmente identificados como: Venire contra factum proprium; Inalegabilidade; Suppressio; Tu quoque e Desequilíbrio – vide António Menezes Cordeiro in “Do abuso do direito: estado das questões e perspetivas” in ROA, ano 2005/ano65 – vol. II- set. 2005/artigos doutrinais – consultado in https://portal.oa.pt/comunicaçao/publicaçoes
[8] Menezes Cordeiro na mesma publicação.
[9] Neste mesmo Ac. foi citado um outro Ac. do STJ de 09/09/2014 proferido no processo nº 5146/10.4TBCSC.L1.S1, in www.dgsi.pt onde e com recurso a várias referências da doutrina, se delineou a distinção entre questão de facto e de direito com vista a clarificar o que é admissível constar da decisão de facto, nos termos que aqui em parte se deixam reproduzidos:
“Na formulação de Alberto dos Reis, «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei»[…].
Segundo Karl Larenz, a “questão de facto” reporta-se ao que efetivamente aconteceu, enquanto a “questão de direito” se identifica com a qualificação do ocorrido em conformidade com os critérios da ordem jurídica[…].
Existe, contudo, um continuum entre matéria de facto e matéria de direito e não uma oposição absoluta entre ambos os conceitos, pois na concreta aplicação do direito acaba por verificar-se uma correlatividade entre ambos os elementos[…].
Há que partir, portanto, da unidade do caso jurídico decidendo e dos problemas jurídicos por si colocados, devendo distinguir-se dois tipos de questões: uma que se refere aos dados pressupostos pelo problema concreto – questão de facto – e outra que tem a ver com o fundamento e o critério do juízo e com o próprio e concreto juízo decisório – questão de direito[…]. Na matéria de facto concorrem não apenas dados empíricos, mas todos os pressupostos objetivos do problema colocado, por exemplo, elementos socioculturais e até jurídicos[…].
(…)
«tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é atividade estranha e superior à simples atividade instrutória»[…].
(…)
Tem-se entendido, na jurisprudência e na doutrina, que as respostas do julgador de facto sobre matéria qualificada como de direito consideram-se não escritas e que se equiparam às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados[…].
Para Teixeira de Sousa, «A seleção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica (cfr. STJ – 13/12/1983, BMJ 332, 437) […].
Abrantes Geraldes defende que “devem ser erradicadas da condensação as alegações com conteúdo técnico-jurídico de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que, porventura, tenham simultaneamente uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem” […].
[10] Preceitua o artigo 615º nº 1 do CPC
“1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
[11] Cfr. Ac. STJ de 23/03/2017, nº de processo 7095/10.7TBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt
[12] Vide Ac. STJ de 30/05/2013, nº de processo 660/1999.P1.S1, in www.dgsi.pt sobre a distinção entre nulidade da sentença (no caso por oposição entre os fundamentos e decisão) versus erro de julgamento.
[13] Vide neste sentido Ac. TRP de 11/01/2018, Relator Filipe Caroço; Ac. TRL de 03/12/2015, Relator Olindo Geraldes; Ac. TRG de 21/05/2015, Relatora Ana Duarte in http://www.dgsi.pt.
[14] Cfr. neste sentido Ac. STJ de 15/09/2021, nº de processo 559/18.6T8VIS.C1.S1 e ainda Acs. do TRG de 12/07/2016, nº de processo 59/12.8TBPCR.G1 e de 11/07/2017 nº de processo 5527/16.0T8GMR.G1; Ac. TRP de 10/02/2020, nº de processo 22441/16.1T8PRT-A.P1, todos in www.dgsi.pt.