IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONVICÇÃO DO JULGADOR
Sumário

I - O objetivo do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é (nem pode ser) pura e simples repetição das audiências perante o Tribunal da Relação mas a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, sem prejuízo de aquando da apreciação dos meios probatórios colocados à sua disposição formar uma convicção autónoma sobre a materialidade impugnada.
II - Como assim, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
III - Na formação da sua convicção o julgador é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente.

Texto Integral

Processo nº 843/20.9T8MCN.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Marco de Canaveses, Juízo Local Cível - Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha

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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

AA instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra X..., Sucursal em Portugal, alegando, em síntese, que no dia 5 de julho de 2020, pelas 18 horas e 35 minutos, ocorreu um acidente de viação, na EN ..., na freguesia ..., concelho de ..., em que foram intervenientes o veículo automóvel de matrícula ..-ZS-.. – propriedade do autor e conduzido pelo seu filho, BB – e o veículo automóvel de matrícula ..-..-XZ, conduzido por CC, que havia transferido para a ré a responsabilidade civil por danos causados por essa viatura.
Acrescenta que a culpa na produção desse acidente é exclusivamente imputável ao condutor do veículo de matrícula ..-..-XZ, por circular desatento e por ter guinado repentinamente à esquerda em momento em que o condutor do veículo de matrícula ..-ZS-.. já se encontrava a seu lado em plena ultrapassagem.
Adianta que em resultado desse evento o seu veículo teve danos cuja reparação se cifra em €10.323,21, sofrendo, ainda assim, uma desvalorização no montante de €1.600,00, tendo, outrossim, ficado privado de utilizar o veículo desde o acidente até 26 de outubro de 2020, o que lhe ocasionou um prejuízo que computa em €3.955,00.
Conclui pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de 15.878,21€, acrescida de juros, calculados à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento.
A Ré apresentou contestação, descrevendo uma outra dinâmica do evento estradal atribuindo a responsabilidade exclusiva na produção do acidente ao condutor do veículo do autor.
Foi proferido despacho saneador em termos tabelares, fixou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas de prova.
Realizou-se audiência final, vindo a ser proferida sentença que julgou a ação improcedente.
Não se conformando com o assim decidido, o autor interpôs recurso, admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
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A ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas;
. da culpa na produção do ajuizado acidente de trânsito.
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2. Recurso da matéria de facto
2.1. Factualidade considerada provada na sentença

O tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1) No dia 05.07.2020, pelas 18h35m., um pouco acima do entroncamento da rua ... com a Av. ..., ..., na freguesia ..., concelho de Marco de Canaveses, circulava o veículo de matrícula ..-ZS-.., marca BMW (doravante apenas designado por “veículo ZS”), propriedade do Autor e conduzido pelo seu filho BB, e o veículo de matrícula ..-..-XZ (doravante apenas designado por “veículo XZ”), conduzido por CC.
2) No referido local, a via – considerando o sentido de marcha ... - ... – é constituída por uma semirreta com mais de 250 metros de comprimento.
3) Nesse local e nas suas imediações muito próximas, considerando o sentido do veículo ZS, existe um sinal de aproximação de entroncamento com a rua ..., um sinal de fim de proibição de ultrapassar e linha descontínua do lado direito da linha descontínua do lado direito da linha contínua.
4) A interseção dos dois caminhos, sitos à direita e à esquerda, que permitem o acesso a habitações sitas do lado direito e a algumas outras sitas do lado esquerdo, não se encontram sinalizados.
5) O veículo XZ e o veículo ZS seguiam no sentido de marcha ... - .... 6) O veículo XZ seguia a velocidade não superior a 50 km/h.
7) O condutor do veículo XZ pretendia virar à esquerda para aceder a um entroncamento de estrada aí existente.
8) O veículo XZ acionou o respetivo sinal de mudança de direção à esquerda, abrandou a sua marcha e aproximou-se do respetivo eixo da via.
9) A dada altura, o condutor do veículo ZS aproximou-se do eixo da via e deu início à ultrapassagem, embatendo no veículo XZ, entre a esquina da frente esquerda deste veículo XZ e lateral direita do veículo ZS, junto à frente.
10) O que ocorreu quando o veículo XZ já se encontra a concluir a referida manobra e já se encontrava a efetuar a perpendicular, já se encontrando com a sua frente apontada ao referido cruzamento e já circulando na hemifaixa esquerda (atento o sentido ... - ...).
11) Devido a esse embate, o condutor do veículo ZS perdeu o seu controlo e foi, por isso, desgovernado, embater no muro sito em frente, acabando, a final, imobilizado na hemi-faixa esquerda, ao lado do veículo XZ.
12) Em consequência direta e necessária do acabado de descrever, o veículo ZS sofreu danos por toda a frente e partes laterais da frente esquerda e direita, especialmente no capot, para-choques e grelhas frontais, amortecedores, faróis, airbags, para-brisas, suporte do motor e vários outros componentes elétricos, mecânicos, chapa e pintura, cuja reparação implica o pagamento da quantia de 10.323,21€.
13) Em consequência do referido, o Autor ficou privado de utilizar o veículo ZS até ao mês de outubro de 2020.
14) A situação supra descrita causou ao Autor desgosto e transtorno, uma vez que o impossibilitou de efetuar viagens de lazer e necessárias à gestão do seu dia-a-dia familiar até ao mês de outubro de 2020.
15) A responsabilidade por acidentes de viação causados pelo veículo XZ estava à data referida em 1) transferida para a Ré.
16) A Companhia de Seguros “Y...”, seguradora do veículo do Autor, o veículo ZS, através da apólice n.º ..., assumiu integralmente a responsabilidade do veículo do Autor na produção do acidente.
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2.2. Factualidade considerada não provada na sentença

O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
a) O referido em 9) ocorreu após o condutor do veículo ZS concluir a curva e passar para além do concreto local onde existe sinal a indicar fim de proibição de ultrapassar, aproximando-se do eixo da via e dando sinal de pisca.
b) Quando se encontrava com a frente do veículo ZS paralela à lateral esquerda do veículo XZ, este guinou inopinada e repentinamente para a esquerda.
c) O condutor do veículo XZ circulava desatento e, devido a essa desatenção, guinou à esquerda em momento em que o condutor do veículo ZS já se encontrava a seu lado em plena ultrapassagem.
d) A circulação do veículo do veículo ZS era perfeitamente visível para o condutor do veículo XZ.
e) O Autor teve indicação da gerência da empresa proprietária da oficina que se encontra a reparar o veículo ZS de que só o entregaria ao Autor a partir do próximo dia 05/11/2020.
f) O Autor procurou uma viatura semelhante para alugar, mas optou por não o fazer uma vez que o seu valor era e é superior a 35,00€/dia.
g) O veículo ZS era uma viatura adquirida em 07/01/2020, em perfeito estado de conservação e a valer quantia superior a 17.500,00€.
h) Não obstante a cuidada e boa reparação que lhe está a ser efetuada - uma atenta verificação designadamente da pintura e da chapa, na zona do embate, permitirá perceber que sofreu acidente e que, por isso, ficou mais sujeito a enferrujar e menos consistente.
i) O simples facto de se saber - porque em caso de venda o Autor está obrigado a informar de tal o potencial comprador - que a sua viatura foi “vítima” de sinistro, é bastante para que o mercado o valore em quantia inferior àquela que ele teria se não tivesse intervindo em sinistro.
j) O veículo ZS circulava animado de velocidade superior a 70 km/h.
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2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto

Nas conclusões recursivas veio o autor requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados não provados, com fundamento em erro na apreciação da prova.
Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “[…] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil.
Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4].
Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão ao apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele defendidos.
Como emerge das respetivas conclusões recursivas, o recorrente advoga que: (i) devem ser dados não provados os pontos nºs 7 a 10 dos factos provados; (ii) devem transitar para o elenco dos factos provados as afirmações de facto vertidas nas alíneas a) a d) dos factos não provados.
Nos pontos nºs 7 a 10 deu-se como provado que:
. “O condutor do veículo XZ pretendia virar à esquerda para aceder a um entroncamento de estrada aí existente” (ponto nº 7);
. “O veículo XZ acionou o respetivo sinal de mudança de direção à esquerda, abrandou a sua marcha e aproximou-se do respetivo eixo da via” (ponto nº 8);
. “A dada altura, o condutor do veículo ZS aproximou-se do eixo da via e deu início à ultrapassagem, embatendo no veículo XZ, entre a esquina da frente esquerda deste veículo XZ e lateral direita do veículo ZS, junto à frente” (ponto nº 9);
. “O que ocorreu quando o veículo XZ já se encontra a concluir a referida manobra e já se encontrava a efetuar a perpendicular, já se encontrando com a sua frente apontada ao referido cruzamento e já circulando na hemifaixa esquerda (atento o sentido ... - ...)” (ponto nº 10).
Por seu turno, nas alíneas a) a d) considerou-se como não provado que:
. “O referido em 9) ocorreu após o condutor do veículo ZS concluir a curva e passar para além do concreto local onde existe sinal a indicar fim de proibição de ultrapassar, aproximando-se do eixo da via e dando sinal de pisca” (alínea a));
. “Quando se encontrava com a frente do veículo ZS paralela à lateral esquerda do veículo XZ, este guinou inopinada e repentinamente para a esquerda” (alínea b));
. “O condutor do veículo XZ circulava desatento e, devido a essa desatenção, guinou à esquerda em momento em que o condutor do veículo ZS já se encontrava a seu lado em plena ultrapassagem” (alínea c));
. “A circulação do veículo do veículo ZS era perfeitamente visível para o condutor do veículo XZ” (alínea d)).
A propósito do sentido decisório que trilhou em relação a tais enunciados fácticos – que, na sua essência, dizem respeito ao modo como ocorreu o ajuizado acidente de trânsito -, na respetiva motivação de facto, o juiz a quo discreteou nos seguintes termos: «[A] testemunha CC manteve a versão apresentada a folhas 21 e 21-verso (“Declaração Amigável de Acidente de Viação”), explicando que estando a mudar de direção para a esquerda de modo cauteloso, a cerca de 20 ou 30 km/h., sinalizando-a com “o pisca” e “verificando que ninguém o estava a ultrapassar”, acabou por ser surpreendido pelo embate do outro veículo automóvel, in casu, o veículo ZS, não sabendo a que velocidade este último seguiria.
Esta testemunha (CC) acrescentou que o veículo ZS acabou por embater depois no muro, aspeto concreto que não se mostrou controvertido na audiência de discussão e julgamento.
A posição final dos veículos, percetível na fotografia de folhas 9 e 11, permite concluir que, tal como afirmou esta testemunha, o seu veículo já tinha feito a perpendicular e estava todo atravessado na faixa contrária, para a esquerda, o que resulta na demonstração do ponto 10).
A circunstância de se ter sinalizado devidamente a mudança de direção à esquerda através de luz indicadora, descrita pela testemunha CC é, no entanto, diametralmente oposta da versão apresentada pelo condutor do veículo ZS, BB, filho do Autor, e testemunha que o acompanhava dentro desse veículo, DD, namorada deste.
Com efeito, as testemunhas BB e DD indicaram que essa indicação foi feita para a direita.
A testemunha BB disse-o, contudo, do seguinte modo: “existe um pisca da direita”; expressão que apareceu desconectada no seu discurso relativamente à narração que fazia do evento e, nesse sentido, afigurou-se pouco espontânea.
Acresce, no que respeita ao depoimento da testemunha BB, que este, na audiência final, indicou inicialmente ter iniciado a ultrapassagem mesmo junto ao veículo XZ (indicou-o, aliás, utilizando uma esferográfica, na fotografia de folhas 9; referindo depois que iniciou a ultrapassagem quando estava a aproximadamente 10 metros desse veículo XZ, distância que mantinha do veículo da frente; para depois – isto é, já durante a inspeção judicial ao local, a folhas 35-verso – indicar um outro local, mais longínquo, mesmo após a curva existente.
De acordo com a posição processual defendida do Autor, haveria alcance visual entre os dois veículos numa distância aproximada de 71 metros, conforme medição feita no local, a solicitação do ilustre mandatário do Autor e acompanhada das fotografias n.ºs 2 e 3 (cf. folhas 34-verso e 35). Isto significa que, a ser assim, circulando a testemunha BB a 20 ou 30 km/h. conforme afirmou, não se compreende, de acordo com os juízos de lógica e de normalidade dos acontecimentos, como não conseguiu prever a concretização da manobra por parte do condutor do veículo XZ ao percorrer essa distância de cerca de 70 metros e, circulando a uma velocidade tão reduzida, como não conseguiu parar e evitar aquele embate.
De todo o modo, o que assim se deixa exposto não nos permite acreditar na versão das testemunhas BB e DD, cuja relação com o Autor também implica admitir a sua falta de isenção e imparcialidade, em detrimento da versão apresentada pela testemunha CC, sendo que a versão trazida por esta última se revestiu de maior clareza, consistência e lógica.
De resto, após a testemunha DD ter afiançado que o seu namorado havia ultrapassado em linha descontínua, cumprindo todas as regras estradais, não foi sequer capaz de identificar nas fotografias constantes dos autos o local onde se iniciou essa ultrapassagem, nem a velocidade a que este seguia».
Colocado perante a transcrita motivação da decisão de facto, pretende o apelante, como se referiu, que se julgue provada a materialidade vertida nas alíneas a) a d) dos factos não provados e bem assim como não provadas as afirmações de facto constantes dos pontos nºs 7 a 10 dos factos provados, por entender que os depoimentos prestados pelas testemunhas BB (filho do autor e condutor do veículo com a matrícula ..-ZS-..) e DD (namorada da testemunha BB e que na ocasião do acidente seguia do banco dianteiro direito do ZS) – que, na sua perspetiva, o tribunal recorrido não relevou devidamente – confirmam, na leitura que deles faz, que o condutor do veículo seguro na ré sinalizou que iria virar à direita e que no momento em que o ZS se encontrava do seu lado esquerdo em plena manobra de ultrapassagem guinou repentinamente para esse lado, embatendo com a esquina da frente esquerda do seu veículo na lateral direito do ZS, cujo condutor perdeu o controlo, indo embater num muro em frente.
Acrescenta ainda que essa dinâmica do acidente, contrariamente à versão que desse evento foi apresentada pela testemunha CC (condutor do veículo seguro) – a quem o juiz a quo atribuiu um especial relevo – se mostra corroborada pelos registos fotográficos que foram juntos aos autos.
Começando pelos depoimentos que o apelante convoca em sustentação do seu posicionamento, após a audição do respetivo registo fonográfico, constata-se que a primeira declarou que, nas circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreu o acidente, seguia, tal como o condutor do veículo seguro, no sentido ... – ... e que após ter circulado durante algum tempo atrás desse veículo, constatando que havia terminado a proibição de ultrapassar, decidiu então ultrapassar o veículo seguro, cujo condutor tinha dado o sinal de pisca para mudar de direção para a direita para uma rua aí existente. Aproximou-se, então, do eixo da via e iniciou a ultrapassagem do XZ, sinalizando essa manobra com o pisca da esquerda, tendo, nesse momento, sido surpreendido pela manobra do condutor do XZ que, “sem qualquer motivo”, decidiu guinar para a sua esquerda, embatendo com o veículo do autor num momento em que este já se encontrava a meio da manobra de ultrapassagem, o que fez com que tivesse perdido o controlo da viatura, vindo a embater contra um morro existente no local.
De igual modo, a testemunha DD referiu que seguia no banco da frente do lado direito do veículo pertencente ao autor (conduzido pelo seu namorado), adiantando que o condutor do XZ – que seguia à frente daquele veículo - sinalizou com o pisca que iria virar à direita para uma rua aí existente. No entanto, de forma repentina, o condutor do veículo seguro virou antes à esquerda num momento em que o seu namorado já havia iniciado a manobra de ultrapassagem ao XZ, ocorrendo o embate entre os dois veículos, tendo o seu namorado perdido o controlo da viatura indo embater num muro.
Para além dessas testemunhas, foi igualmente ouvido na audiência final CC (condutor do ZX) que, sobre a matéria atinente ao ajuizado acidente de viação, afiançou que circulava no sentido .../... a uma velocidade reduzida (não superior a 30 Km/hora) e pretendendo ingressar numa rua situada à esquerda, aproximou-se do eixo da via e sinalizou com o pisca da esquerda essa intenção, após o que iniciou essa manobra. Acrescentou que quando se encontrava já na hemifaixa esquerda da estrada foi surpreendido pelo veículo do autor que nele chocou na parte dianteira esquerda, após o que esse veículo foi embater num muro.
Já no concernente aos registos fotográficos juntos aos autos, da sua análise resulta que qualquer pessoa que circule, na avenida ..., no sentido .../..., ao aproximar-se do local onde ocorreu o ajuizado acidente de trânsito, se apercebe, vários metros antes de aí chegar, da existência de um cruzamento dessa via com duas outras artérias que nela entroncam, constatação essa reforçada pelo facto de à hora do acidente ainda ser dia (o evento ocorreu pelas 18 horas e 35 minutos do dia 5 de julho) e de o condutor do ZS conhecer o local, porquanto, conforme referiu aquando da sua inquirição na audiência final, já aí tinha passado “cinco ou seis vezes”.
Por outro lado, esses registos fotográficos igualmente evidenciam que o veículo seguro, aquando do embate, já se encontrava, obliquado, totalmente na hemifaixa esquerda atento o sentido de marcha de ambos os veículos.
Isto posto, a questão que naturalmente se coloca é a de saber se na presença dos mencionados subsídios probatórios se justifica a impetrada alteração do sentido decisório referente à facticidade objeto de impugnação, sendo que, como deflui do respetivo corpo alegatório, o que o apelante pretende com essa impugnação é que este tribunal ad quem valore de forma diversa do decisor de 1ª instância os depoimentos que adrede foram prestados na audiência final.
Ora, com o controlo efetuado pelo Tribunal da Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal de 1ª instância não se visa o julgamento ex novo dessa matéria, mas antes reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.
Como se viu, em relação às proposições factuais alvo de impugnação foram produzidos depoimentos de sinal contrário, sendo que na respetiva apreciação o decisor de 1ª instância desconsiderou, precisamente, os depoimentos que o ora apelante convoca para justificar a alteração do sentido decisório sufragado na sentença recorrida, por entender que os mesmos evidenciaram uma grande parcialidade em favor do autor, para além das inconsistências que lhes apontou na motivação da decisão de facto.
Portanto, o que ressuma do cotejo entre a motivação da decisão sub iudicio e a motivação do recurso sub specie, é uma divergente valoração da prova produzida: tribunal recorrido e recorrente não divergem na leitura das provas, divergem na respetiva valoração.
Porém, como se anteriormente se referiu, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente (em termos de convicção autónoma) para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância e já não naqueles (como é o caso) em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, assumindo uma opção que justificou de forma que reputamos consonante com a prova produzida no âmbito do presente processo.
Daí que, sob este enfoque, não se verifique razão bastante para divergir do sentido decisório que foi acolhido na sentença recorrida, já que a argumentação expendida pelo recorrente não teve, quanto a nós, o condão de desconstruir a motivação adrede tecida nesse ato decisório, afigurando-se-nos que a prova produzida não impõe (como é suposto pelo nº 1 do art. 662º) decisão diversa quanto à materialidade objeto de impugnação.
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3. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como se deu nota, o autor/apelante faz ancorar a concreta pretensão de tutela jurisdicional que formula nestes autos, primordialmente, no facto de o ajuizado acidente de viação, de que resultaram os danos cuja reparação impetra, ter sido motivado pela atuação culposa do condutor do veículo automóvel com a matrícula ..-..-XZ, cuja proprietário havia transferido para a ré a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros e emergentes de acidente de viação ocorridos na circulação do referido veículo, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ....
Perante a factualidade que julgou provada e não provada (que não foi alvo de alteração nesta sede recursória), o decisor de 1ª instância considerou que o condutor do XZ não infringiu qualquer regra ou omitiu qualquer cautela disciplinadora da circulação rodoviária, entendendo antes que a responsabilidade na eclosão do sinistro é do condutor do veículo (com a matrícula ..-ZS-..) pertencente ao autor que, censuravelmente, violou o disposto no art. 41º, nº 1 al. c) do Código da Estrada, porquanto iniciou manobra de ultrapassagem num entroncamento/cruzamento, num momento em que o condutor do XZ, após ter sinalizado a intenção de virar para uma rua situada à sua esquerda, já circulava na hemifaixa esquerda, atento o sentido de marcha de ambos os veículos, sendo aí embatido pelo ZS.
O apelante rebela-se contra esse sentido decisório no pressuposto da alteração do substrato factual considerado na sentença recorrida, o que, todavia, não logrou.
Porque assim, tal como afirmado nesse ato decisório, igualmente entendemos que a culpa na produção do acidente se ficou a dever exclusivamente ao comportamento do condutor do veículo pertencente ao autor (posto que, no respetivo processo causal, não se vislumbra que o condutor do XZ tenha, em alguma medida, contribuído para esse evento súbito), o que, nos termos do art. 570º do Cód. Civil, afasta a responsabilidade da ré enquanto seguradora do proprietário do mesmo.
Improcedem, pois, todas as conclusões recursivas.
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III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas, em ambas as instâncias, a cargo do apelante.

Porto, 27.6.2022
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência.
[3] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[4] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1),ambos acessíveis em www.dgsi.pt.