CONTRATO DE ARRENDAMENTO
PAGAMENTO DE RENDAS
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
REDUÇÃO DA RENDA
Sumário

1 -O art. 1040º do C.C. constitui uma manifestação da exceção de não cumprimento no âmbito da locação.
2 - Se, não obstante o arrendado deixar de ter condições dignas de habitabilidade, o arrendatário continua a morar no arrendado, não há privação do gozo, mas apenas diminuição, e, portanto, não pode o arrendatário recusar-se a pagar a renda, mas apenas exigir a redução do valor da renda na proporção da diminuição do gozo do arrendado.
3 - Da simples entrega das chaves não se pode deduzir que a R. queria resolver o contrato, opor-se à sua renovação automática ou denunciá-lo.
4 - Os arrendatários com rendas vencidas não pagas confiam que a restituição do arrendado vai ao encontro da vontade do senhorio e só essa confiança explica a restituição do arrendado pela R. sem comunicação escrita, sem apresentação de justificação e sem pré--aviso.
5 - Se o senhorio não tem direito a exigir a indemnização pela mora quando resolve o contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas, também não poderá exigir a indemnização pela mora quando, antes de comunicar a resolução do contrato ou de propor ação de despejo, obtém a restituição do arrendado em contexto de falta de pagamento de rendas.

Texto Integral

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

Na presente ação declarativa que M… move contra V…, a R. interpôs recurso da sentença, pela qual foi julgada a ação procedente e, em consequência, foi a R. condenada a pagar à A. a quantia de € 10.496,00, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação.
 Na alegação de recurso, a recorrente pediu que seja revogada a sentença recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:
«A) A Recorrida teve conhecimento da necessidade de obras no locado.
B) A Recorrida desvalorizou o estado de degradação da casa de banho do locado;
C) A Recorrida recusou-se a fazer obras no locado.
D) A Recorrida não se opôs a que a Recorrente se mantivesse no locado.
E) A Recorrente tentou minimizar a degradação da casa de banho.
F) A Recorrente, mãe solteira, vivia no locado com a sua filha menor.
G) A filha da menor da Recorrente deixou de usar a casa de banho, indo fazer as necessidades na casa da vizinha.
H) A filha da menor tinha medo de ir à casa de banho
I) A Recorrida deixou de atender as chamadas telefónicas da Recorrente.
J) A Recorrida cortou relações com a Recorrente.
K) A Recorrente não conseguiu informar a Recorrida que iria desocupar o locado e por isso deixou as chaves respectivas com uma vizinha.
L) A Recorrente fazia do locado o centro da sua vida familiar.
M) A Recorrente não tinha capacidade financeira para alterar de forma abrupta a sua vida doméstica, para além do que uma mudança abrupta iria retirar a estabilidade, habitualidade, continuidade de rotinas a que a filha menor estava habituada.
N) A sentença proferida em primeira instância não teve em consideração a situação sócio económica da Recorrente.
O) A Sentença recorrida não observou os preceitos legais sobre a resolução de contratos.
P) A Sentença recorrida não faz qualquer menção à necessidade da existência de obras.
Q) A sentença recorrida não teve em consideração o esforço que a Recorrente fez para poder fazer a sua higiene e a da sua filha menor, de forma digna e segura.
R) Não deve ser admitido o depoimento da testemunha M… irmã da Autora/ Recorrida por contraditório, incoerente, inconsistente
S) Não deve ser admitido o depoimento da testemunha M… irmã da Autora/ Recorrida por esta ser também Senhoria (por herança) e como tal Autora.
T) Não devem ser admitidos os documentos nº 5 e 6º juntos com a PI por não se saber qual a relação da entidade emissora com as partes em litígio e pela sua falta de assinatura.
U) Deve ser admitido o doc. nº 1 aqui oferecido porque fundamental para apuramento das rendas efectivamente pagas e pela impossibilidade de junção em momento anterior.»
A recorrida respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela manutenção da sentença recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:
«I. - De acordo com as normas conjugadas dos artigos 635º, n.ºs 3 a 5, e 639º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, são as conclusões que delimitam o objeto do recurso.
II. - Analisadas as conclusões do recurso de apelação, verifica-se que nelas a Apelante omite por completo a temática relativa à impugnação da matéria de facto, pois não indicou os concretos pontos de facto que entendia terem sido incorretamente julgados, como também não fez referência à prova gravada, nem à decisão a proferir sobre aqueles concretos pontos de facto.
III. - Há, assim, uma completa omissão, nas conclusões, relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
IV. - Mais, logo no início das suas alegações de recurso, insere a Apelante um título ou sub-título, onde se lê “Incorrecta interpretação e aplicação do Direito”.
V. - Todavia, salvo o devido respeito por opinião em contrário, a Apelante, ao longo das suas alegações e, sobretudo, conclusões, não se extrai que tenha sido dado cumprimento ao disposto no art.º 639.º, n.º 2 do CPC.
VI. - Ora, sendo as conclusões que delimitam o objeto do recurso, só podendo, o Tribunal ad quem, conhecer das questões que delas constem e não estando essa questão nas respetivas conclusões, não faz parte do objeto do recurso de apelação.
VII. - Salvo o devido respeito, por opinião em contrário, as alegações e conclusões de recurso da Apelante mostram-se insuficientes.
VIII. - Com efeito, as alegações e conclusões do recurso interposto não cumprem os ónus a que dizem respeito os arts. 639.º e 640.º do CPC, pelo que deverá a Apelação ser improcedente. Todavia, por mera cautela de patrocínio, dir-se-á o seguinte:
IX. - Atento o princípio da pontualidade no cumprimento dos contratos, ínsito no art.º 406.º CC, estabelece o art.º 798.º do referido diploma legal, que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação, torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.
X. - Sem prescindir, o art.º 799.º, n.º 1 CC determina que incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua.
XI. - A exceptio non adimpleti contractus a que se refere o art.º 428.º CC, pode ter lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma motivo determinante da outra. Ou seja,
XII. - A exceção de não cumprimento consiste na recusa de efetuar a prestação por parte de um dos contraentes quando o outro a reclama, sem que este, por sua vez, efetue a respetiva contraprestação.
XIII. - Significa isto que, se o contraente que tiver de cumprir primeiro oferecer uma prestação parcial ou defeituosa, a contraparte pode opor-se e recusar a sua prestação até que aquela seja oferecida por inteiro ou até que sejam eliminados os defeitos ou substituída a prestação.
XIV. - In casu, acordaram as partes no seguinte: (i) que a Recorrida dava de arrendamento à Recorrente o locado identificado nos autos, no estado em que o mesmo se encontrava; (ii) mediante o pagamento mensal da renda de 320,00€; (iii) o que a Recorrida aceitou.
XV. - O contrato foi outorgado em 11/08/2016 e teve início em 01/09/2016, cfr. doc. 3/2 e 3/8 junto à PI; sendo que,
XVI. - Ficou demonstrado que a Apelante deixou de liquidar as rendas a partir do mês de Julho de 2017 (com excepção de três rendas pagas em 2018) alegando, em sua defesa, a excepção de não cumprimento do contrato face à existência de infiltrações na casa de banho que, segundo a própria alega terão surgido em dezembro de 2017; ou seja,
XVII. - Depois da própria ter dado início ao incumprimento do contrato, cfr. resulta das próprias declarações de parte da Recorrente (veja-se declarações de parte da Recorrente em sede de audiência de julgamento - 00:02:34). Ora,
XVIII. - O contraente excipiente apenas pode recusar legitimamente a sua prestação após a outra parte não ter executado; ou seja,
XIX. - Não pode o excepiens recusar a sua prestação, invocando a exceptio, o contraente que foi o primeiro a cair numa situação de incumprimento, como é o caso dos Autos;
XX. - Primeiro a Recorrente deixou de pagar a renda devida pelo locado, corria o mês de Julho do ano de 2017;
XXI. - Depois, no final do ano de 2017, em mês que não sabe precisar, mas depois de Setembro/ Outubro de 2017, verificou a situação das infiltrações.
XXII. - Face ao exposto e salvo o devido respeito, não se verificam os pressupostos exigíveis para que a excepção possa ser julgada procedente, pelo que andou bem o Tribunal a quo ao condenar a Recorrente no pagamento das rendas em dívida e acréscimos legais, devendo, consequentemente, ser a alegação improcedente.
XXIII. - Acresce que, vem agora a Recorrente, fazendo uso da instância recursiva, alegar a inabilidade da testemunha M… para depor, visto ser irmã da Recorrida.
XXIV. - Esta é, pois, questão nova apenas suscitada em sede de recurso, porque nunca anteriormente suscitada pela Recorrente. Ora,
XXV. - É sabido que como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo, cfr. dispõem os arts. 627.º, n.º 1, 631, n.º 1 e 639.º, todos do CPC e cfr. Ac. STJ de 07/07/2016, Proc. n.º 156/12.0TTCSC.L1.S1.
XXVI. - Nesta medida, por se tratar de ius novarum, deverá, quanto a esta matéria, improceder o recurso.
XXVII. - Todavia, sempre se dirá que, não sendo a situação em apreço um caso de inabilidade para depor como testemunha, o depoimento em causa, tendo sido admitido e não impugnado, foi objecto de particular ponderação por parte do juiz julgador;
XXVIII. - Sendo, pois, uma questão de valoração de prova e não de admissibilidade de depoimento; sendo que,
XXIX. - Nesta matéria, não podemos deixar de aplicar os princípios gerais da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, sendo certo que a Mma. Juiz a quo, perante a qual a prova foi produzida, está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação, e, designadamente, surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.
XXX. - Finalmente, entende a Recorrente que “Não é feita qualquer referência na Sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância à (in)admissibilidade dos docs n.º 5 e n.º 6 juntos pela Autora/Recorrida na sua petição inicial.”
XXXI. - Tal alegação apenas poderá resultar de uma leitura pouco atenta da Sentença recorrida, a qual não só se reporta a tais documentos, como o faz a favor da própria Recorrente. Ora,
XXXII. - Nesta medida, o Tribunal a quo, formou a sua convicção com base na livre apreciação de toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e junta aos autos, analisada de forma crítica e conjugada à luz das regras da experiência e critérios de normalidade e razoabilidade nos termos em expôs na Sentença recorrida.
XXXIII. - Assim, e para além dos factos que estão assentes por documento e confissão [pontos 1 e 2 (contrato de arrendamento, certidões do registo predial e matricial, de fls. 11 a 14 e 9 e 10, respectivamente) e 3 do elenco dos factos provados], nos termos do art.º 574º, nº 2, do NCPC, teve ainda o Tribunal a quo, em consideração a demais prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente, as declarações de parte da Autora/ Recorrida e Ré/ Recorrente, e os depoimentos das testemunhas prestados em audiência de julgamento, devidamente concatenados com a prova documental oferecida nos presentes autos.
XXXIV. - Também aqui, salvo o devido respeito, por opinião em contrário, falece a alegação de recurso da Apelante.»
Resulta do disposto nos arts. 635º nº 4, 637º nº 2 e 639º nºs 1 e 2 do C.P.C. que são as conclusões das alegações que delimitam o objeto do recurso.
Apesar de, nas alegações, a recorrente ter afirmado que “impera que no caso em apreço seja feita uma reapreciação da matéria de facto no que tange à degradação da casa de banho”, não há, nas conclusões, qualquer alusão a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Mais do que falta de especificação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, há completa omissão, nas conclusões, da questão da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pelo que tal questão não faz parte do objeto do recurso (cf. www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 6 de junho de 2018, processo 4691/16.2T8LSB.L1.S1).
Nas conclusões, a recorrente afirmou que não deve ser admitido o depoimento da testemunha M… e que não devem ser admitidos os documentos nºs 5 e 6 juntos com a petição inicial.
“… como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ ou revogação” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 7 de julho de 2016, processo 156/12.0TTCSC.L1.S1).
A questão da admissibilidade do depoimento da testemunha M… é questão suscitada pela primeira vez pela recorrente nas alegações, pelo que é questão nova.
Importa salientar que, nos termos do art. 514º do C.P.C., “a parte contra a qual for produzida a testemunha pode impugnar a sua admissão com os mesmos fundamentos por que o juiz deve obstar ao depoimento”, mas a impugnação deve, por força do art. 515º do C.P.C., ser “deduzida quando terminar o interrogatório preliminar”.
No que toca aos documentos nºs 5 e 6 juntos com a petição inicial, a R. impugnou a respetiva admissão na contestação.
Na verdade, nos artigos 64 e 65 da contestação, a R. afirmou que «os documentos 5 e 6 juntos pela Autora não devem ser aceites porquanto não estão assinados, e foram emitidos por uma entidade apelidada de “4D” que a Ré desconhece, tão pouco tais documentos identificam a Autora”.
No despacho proferido a 6 de dezembro de 2021, pode ler-se:
“Admite-se toda a prova documental apresentada, atenta a sua tempestividade e por se destinarem a fazer prova dos fundamentos e da defesa da acção, nos termos do artigo 423º, nº 1 do Código de Processo Civil.”
Este despacho não é objeto do presente recurso.
Assim, são apenas as seguintes as questões a decidir:
- do documento superveniente;
- da exceção de não cumprimento; e
- da cessação do contrato de arrendamento.
*
Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
«1. Por contrato de arrendamento, datado de 11 de agosto de 2016, a Autora deu de arrendamento à Ré, para sua habitação, o segundo andar esquerdo do prédio sito na R…, Lisboa.
2. O contrato teve o seu início em 01 de setembro de 2016, pelo prazo de um ano, pela renda mensal de €320, a pagar por meio de transferência bancária.
3. Durante a vigência do contrato, a Ré apenas pagou as rendas até junho de 2017 e três rendas do ano de 2018.
4. A Autora instou a Ré para que procedesse ao pagamento das rendas em falta.
5. Em 12.09.2019, a Ré entregou as chaves do locado, sem qualquer aviso ou justificação.
6. No final do ano de 2017, a Ré começou a verificar a existência de infiltrações na única casa de banho do locado provenientes da sanita do andar de cima.
7. Contactada a Autora, esta desvalorizou a situação.
8. O teto da casa de banho do locado foi ficando mais degradado com o passar do tempo ao ponto de ficar exposto um buraco donde escorriam resíduos da sanita do vizinho de cima, além de bichos, exalando mau cheiro.
9. A Ré tentou tapar o buraco com massa, mas o problema persistiu.
10. A Autora residia na fração com uma filha com sete anos de idade.»
*
Na sentença recorrida, foi dado como não provado o seguinte facto:
«1 - A Ré e o seu agregado familiar ficaram impedidas de utilizar a única casa de banho existente no locado, designadamente para a sua higiene pessoal.»
*
Nos termos do art. 662º nº 1 do C.P.C., “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Com o requerimento de interposição do recurso, a recorrente juntou consulta de movimentos na conta da A. datada de 4 de março de 2022.
Desse documento constam movimentos a débito no valor de € 320,00, cada, nos dias 19 de junho, 10 de julho, 6 de novembro e 4 de dezembro de 2017 e 8 de janeiro, 6 de fevereiro e 12 de março de 2018 e movimento a débito no valor de € 480,00 no dia 4 de setembro de 2017.
Tal documento contraria o ponto 3 da matéria de facto provada, do qual resulta que, “durante a vigência do contrato, a Ré apenas pagou as rendas até junho de 2017 e três rendas do ano de 2018”.
Na fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, pode ler-se:
«Relativamente ao facto dado como provado em 3, ficou provado por confissão. Com efeito, a Ré na sua contestação aceitou a falta de pagamento das rendas invocadas pela Autora na sua petição inicial.
Sem embargo, atendeu-se à redução do pedido da Autora no decurso da audiência de julgamento por, ao ser confrontada com os documentos que fazem fls. 16v e 17, ter confirmado que as rendas foram liquidadas até ao mês de junho de 2017. Estes documentos tratam-se de duas cartas alegadamente enviadas pela Autora à Ré por correio, que a Ré negou ter recebido, não tendo a Autora junto qualquer comprovativo de registo dos correios, pelo que não se pode concluir que chegaram ao conhecimento da Ré.
De qualquer modo, a Autora explicou que o prédio onde se situa o locado foi recebido em herança estando em compropriedade com os seus três irmãos, sendo que o controlo da cobrança das rendas não lhe cabia a si, não tendo, porém, dúvidas em afirmar que se na carta apenas se faz referência à falta de pagamento de rendas a partir de julho de 2017, significa que as anteriores estavam pagas.
Assinale-se que a Ré, em sede de declarações de parte, afirmou que liquidou as rendas até ao início de 2018, tendo sido apenas após a inércia da Autora na resolução do problema da casa de banho do locado que deixou de pagar as restantes. A Autora, por seu turno, afirmou, de forma perentória, que a falta de pagamento de rendas foi anterior às queixas da Ré relativamente à casa de banho.
Ora, devendo as rendas ser liquidadas por meio de transferência bancária, competia à Ré invocar o respetivo pagamento e juntar os respetivos comprovativos, por se tratar de matéria de exceção que a si aproveita (cfr. artigo 342º, nº 2 do Código Civil), o que não fez.
Assim sendo, tendo a Ré aceite na sua contestação a falta de pagamento de rendas invocada pela Autora, sem prejuízo da redução que resultou da audiência de julgamento, o Tribunal não pôde deixar de dar tal factualidade como provada.»
Na petição inicial, a A. alegou que, “durante a vigência do contrato (que durou 36 meses), a R. apenas procedeu ao pagamento de três rendas referentes ao ano de 2018, no valor total de 960,00 €”.
Não é correto afirmar que “a Ré na sua contestação aceitou a falta de pagamento das rendas invocadas pela Autora na sua petição inicial”.
Na verdade, pode ler-se na contestação:
«2. A Ré dá como verdadeiro o Doc. nº 3, o qual se refere ao contrato de arrendamento urbano para fins habitacionais celebrado com L…
3. A Ré não impugna a legitimidade processual da Autora.
4. Porém, a Ré impugna todos os restantes factos aduzidos pela Autora, à qual não subjaz qualquer razão, conforme se clarifica a seguir.
….
7. … a Autora, de forma maliciosa, omitiu o real motivo pelo qual a Ré deixou de proceder ao pagamento pontual da renda, conforme se obrigou.
8. Desde já se deixa claro que a Ré é uma pessoa honesta e de bem, tendo… sempre cumprido com os seus deveres e responsabilidades.»
A R., em declarações de parte, afirmou que não fazia sentido que ela não pagasse rendas desde o início do contrato e, em 2018, resolvesse pagar três rendas e sugeriu que se pedisse à CGD os comprovativos das transferências.
A A., na audiência final, reconheceu que o controlo da cobrança das rendas não lhe cabia a si, acabando por admitir que algumas rendas que peticionou já estavam pagas.
O documento 6 junto com a petição inicial constitui uma carta datada de 4 de julho de 2018 e nela é referido que se “manteve o incumprimento desde Novembro de 2017, num total de € 2.880,00 (9 meses x 320 €)”, pelo que, se, nessa carta, apenas é feita referência à falta de pagamento de rendas a partir de novembro de 2017 - novembro de 2017 a julho de 2018 perfaz 9 meses -, não quererá isso significar que as anteriores estavam pagas?
Não terá, pois, o reconhecimento da A. na audiência final ficado aquém dos pagamentos efetivamente efetuados pela R.?
Nos termos do art. 411º do C.P.C., “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
O tribunal recorrido, em vez de escudar-se nas regras da repartição do ónus da prova, deveria ter ordenado diligências com vista ao apuramento da verdade, caso em que poderia ter obtido a informação que consta do documento junto pela R. com o requerimento de interposição do recurso.
Nessa medida, tal documento tem de ser considerado superveniente e o ponto 3 da matéria de facto provada tem de ser alterado em conformidade, tendo em atenção que, por força da redução do pedido requerida e admitida na audiência final, nesta ação estão apenas em questão as rendas “vencidas a partir de julho de 2017”.
Resulta do documento nº 3 junto com a petição inicial que as partes estipularam que a renda deveria ser paga no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que dissesse respeito.
Sendo facto plenamente provado com relevância para o apuramento das rendas pagas, deve ser aditado ao ponto 2 da matéria de facto provada.
Resultando da matéria de facto provada que as infiltrações provinham da sanita do andar de cima, importa, atentas as várias soluções plausíveis do direito, aditar à matéria de facto provada o que consta da certidão permanente junta com a petição inicial quanto à propriedade do prédio.
Assim, a matéria de facto provada passa a ter a seguinte redação:

2. O contrato teve o seu início a 1 de setembro de 2016, pelo prazo de um ano, pela renda mensal de €320, a pagar por meio de transferência bancária, no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que disser respeito.
3. A R. pagou a quantia de € 320,00 no dia 19 de junho de 2017; a quantia de € 320,00 no dia 10 de julho de 2017; a quantia de € 480,00 no dia 4 de setembro de 2017; a quantia de € 320,00 no dia 6 de novembro de 2017; a quantia de € 320,00 no dia 4 de dezembro de 2017; a quantia de € 320,00 no dia 8 de janeiro de 2018; a quantia de € 320,00 no dia 6 de fevereiro de 2018; e a quantia de € 320,00 no dia 12 de março de 2018.

11. O prédio sito na R…, Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, encontra-se registado a favor de L…, de M…, da A., e de S…
*
Conforme decorre do art. 1038º al. a) do C.C., é obrigação do locatário pagar a renda.
Resulta do disposto no art. 1031º al. b) do C.C. que é obrigação do locador assegurar ao locatário o gozo da coisa locada para os fins a que ela se destina.
Nos termos do art. 428º nº 1 do C.C., “se, nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
“Mesmo estando o cumprimento das prestações sujeito a prazos diferentes, a exceptio poderá sempre ser invocada pelo contraente cuja prestação deva ser efetuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro”.
A excepção de não cumprimento “vale tanto para o caso de falta integral do cumprimento, como para o de cumprimento parcial ou defeituoso” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, anotação ao art. 428º).
«É entendimento comum, desde logo, que em matéria de locação a excepção do não cumprimento do contrato tem um limitado campo de aplicação, talvez porque, como salienta Aragão Seia (Arrendamento Urbano, 7ª edição, pág. 412), “uma vez entregue ao locatário a coisa locada, o sinalagma em grande medida se desfaz. Certo, o locador continua obrigado a proporcionar o gozo da coisa ao locatário; mas esta é uma obrigação sem prazo ou dia certo para o seu cumprimento, ao passo que é a termo a do pagamento da renda”.
De qualquer modo, tem-se admitido o funcionamento do instituto mesmo no caso de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso, mas fazendo intervir então, sempre que as circunstâncias concretas o imponham, o princípio da boa fé e a “válvula de segurança” do abuso do direito (artºs 762º, nº 2, e 334º do CC)» (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 9 de dezembro de 2008, processo 08A3302).
Nos termos do art. 1040º nºs 1 e 2 do C.C., “se, por motivo não atinente à sua pessoa ou à dos seus familiares, o locatário sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa locada, haverá lugar a uma redução da renda ou aluguer proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta”; “mas, se a privação ou diminuição não for imputável ao locador nem aos seus familiares, a redução só terá lugar no caso de uma ou outra exceder um sexto da duração do contrato”.
O art. 1040º do C.C. constitui uma manifestação da exceção de não cumprimento no âmbito da locação.
Resulta da matéria de facto provada que a A., além de senhoria da R., é comproprietária do prédio; que, “no final do ano de 2017, a Ré começou a verificar a existência de infiltrações na única casa de banho do locado provenientes da sanita do andar de cima”; que, “contactada a Autora, esta desvalorizou a situação”; e que “o teto da casa de banho do locado foi ficando mais degradado com o passar do tempo ao ponto de ficar exposto um buraco donde escorriam resíduos da sanita do vizinho de cima, além de bichos, exalando mau cheiro.”
A partir do momento em que passou a escorrer resíduos da sanita do vizinho de cima para a única casa de banho do arrendado, este deixa, sem dúvida alguma, de ter condições dignas de habitabilidade.
Importa salientar que não resulta da matéria de facto provada o momento a partir do qual passou a escorrer resíduos da sanita do vizinho de cima para a única casa de banho do arrendado, pelo que não é possível estabelecer relação de causalidade entre tal degradação da casa de banho e o não pagamento de rendas, sendo de salientar que resulta da matéria de facto provada que a renda relativa ao mês de setembro de 2017, vencida a 1 de agosto de 2017, apenas foi paga a 4 de setembro de 2017, com acréscimo de 50%, e que, quando a R. deixou de pagar rendas - o último pagamento referido na matéria de facto provada data de 12 de março de 2018 -, já tinha duas rendas em atraso.
Importa salientar ainda que a R. não logrou provar que ela e a filha de sete anos de idade “ficaram impedidas de utilizar a única casa de banho existente no locado, designadamente para a sua higiene pessoal.”
Pessoas com dificuldades económicas sujeitam-se muitas vezes a morar em espaços sem condições de habitabilidade.
Se, não obstante o arrendado deixar de ter condições dignas de habitabilidade, o arrendatário continua a habitar no arrendado, não há privação do gozo, mas apenas diminuição, e, portanto, não pode o arrendatário recusar-se a pagar a renda, mas apenas exigir a redução do valor da renda na proporção da diminuição do gozo do arrendado.
Resulta da matéria de facto provada que “a Ré tentou tapar o buraco com massa, mas o problema persistiu”.
Não resulta da matéria de facto provada se essa solução de remedeio impediu por algum tempo o escorrer de resíduos da sanita do vizinho de cima para a casa de banho do arrendado.
Desconhece-se, pois, durante quanto tempo o arrendado não teve condições dignas de habitabilidade.
O certo é que, a 12 de setembro de 2019, a R. entregou as chaves do arrendado.
Nos termos do art. 1083º nº 5 do C.C., “é fundamento de resolução pelo arrendatário, designadamente, a não realização pelo senhorio de obras que a este caibam, quando tal omissão comprometa a habitabilidade do locado e, em geral, a aptidão deste para o uso previsto no contrato”.
Por força do art. 1084º nº 2 do C.C., a resolução pelo arrendatário opera “por comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida”.
O art. 1098º do C.C. dispõe o seguinte:
“1 - O arrendatário pode impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação ao senhorio com a antecedência mínima seguinte:

b) 90 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos;

2 - A antecedência a que se refere o número anterior reporta-se ao termo do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação.
3 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, decorrido um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, o arrendatário pode denunciá-lo a todo o tempo, mediante comunicação ao senhorio com a antecedência mínima seguinte:
a) 120 dias do termo pretendido do contrato, se o prazo deste for igual ou superior a um ano;

5 - A denúncia do contrato, nos termos dos nºs 3 e 4, produz efeitos no final de um mês do calendário gregoriano, a contar da comunicação.
6 - A inobservância da antecedência prevista nos números anteriores não obsta à cessação do contrato, mas obriga ao pagamento das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta, exceto se resultar de desemprego involuntário, incapacidade permanente para o trabalho ou morte do arrendatário ou de pessoa que com este viva em economia comum há mais de um ano.”
O contrato em questão nos presentes autos foi celebrado pelo prazo de um ano, com início a 1 de setembro de 2016, e foi-se renovando anualmente, nos termos do art. 1096º nº 1 do C.C. - na redação dada pela L 31/2012, de 14 de agosto, e, a 1 de setembro de 2019, renovou-se pelo prazo de três anos, por força do art. 1096º nº 1 do C.C. - na redação dada pela L 13/2019, de 12 de fevereiro.
Resulta da matéria de facto provada que, a 12 de setembro de 2019, ou seja, doze dias após a renovação do contrato, a R. entregou as chaves do arrendado, “sem qualquer aviso ou justificação”.
Nos termos do art. 217º do C.C., “a declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”, sendo que “o carácter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz”.
Dispõe o art. 9º nº 1 do NRAU que “as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento… são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção”.
Assim, da simples entrega das chaves não se pode deduzir que a R. queria resolver o contrato, opor-se à sua renovação automática ou denunciá-lo.
Apesar de a R. não ter apresentado qualquer justificação para a entrega das chaves, este tribunal não pode deixar de ter em conta os antecedentes dessa entrega: por um lado, a A. tinha desvalorizado a situação das infiltrações na casa de banho do arrendado e, devido à não realização de obras que pusessem fim às infiltrações, o estado da casa de banho tinha- -se degradado a ponto de o arrendado ter deixado de reunir condições dignas de habitabilidade e, por outro lado, a R. não pagava rendas há mais de um ano.
Não só, como atrás exposto, é inexigível ao arrendatário a permanência no arrendado que não tem condições de habitabilidade, como também, nos termos do art. 1083º nº 3 do C.C., “é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda”.
Resulta da matéria de facto provada que “a Autora instou a Ré para que procedesse ao pagamento das rendas em falta”.
Da matéria de facto provada não resulta nem as datas em que a A. solicitou à R. o pagamento nem os termos da solicitação.
Apesar de essas datas e termos não terem sido alegados na petição inicial, nesta pode ler-se “cfr. Docs. 5 e 6” e “vide docs. 5 e 6” e, no documento 6, consta o seguinte:
“caso não saia do imóvel de livre vontade até ao final do corrente mês, o nosso advogado dará entrada do processo com vista ao despejo ficando V. Exª sujeita não só ao pagamento da dívida e juros de mora bem como de todos os custos judiciais.
Saliento que, em não ocorrendo à desocupação voluntária dentro do prazo estabelecido, será ajuizada ação legal de acordo com a Lei 32/2012 de 12 de Novembro, visando a retomada coercitiva do imóvel e integração da posse”.
É certo que não resulta da matéria de facto provada que a A. solicitou à R. a restituição do imóvel ou que manifestou a intenção de propor ação de despejo, mas certo é também que é normal o senhorio desejar a restituição do arrendado quando há rendas em atraso.
Os arrendatários com rendas vencidas não pagas confiam que a restituição do arrendado vai ao encontro da vontade do senhorio e só essa confiança explica a restituição do arrendado pela R. sem comunicação escrita, sem apresentação de justificação e sem pré--aviso.
O art. 1082º do C.C. dispõe o seguinte:
“1 - As partes podem, a todo o tempo, revogar o contrato, mediante acordo a tanto dirigido.
2 - O acordo referido no número anterior é celebrado por escrito, quando não seja imediatamente executado ou quando contenha cláusulas compensatórias ou outras cláusulas acessórias.”
Importa, pois, considerar que o contrato de arrendamento celebrado entre A. e R. cessou por acordo tácito das partes.
Resulta do art. 1041º nº 1 do C.C. que, se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento, o locador não tem direito a exigir a indemnização pela mora.
Se o senhorio não tem direito a exigir a indemnização pela mora quando resolve o contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas, também não poderá exigir a indemnização pela mora quando, antes de comunicar a resolução do contrato ou de propor ação de despejo, obtém a restituição do arrendado em contexto de falta de pagamento de rendas. Defender posição contrária seria fragilizar ainda mais a posição do arrendatário.
Tem, pois, de improceder o pedido de indemnização pela mora.
O pré-aviso, um tempo de espera que possibilita ao outro contraente preparar-se para a extinção do contrato, foi fixado pelo legislador para a oposição à renovação do contrato e para a denúncia.
Tendo o contrato de arrendamento em questão nos presentes autos cessado por acordo das partes, tem de improceder também o pedido de indemnização pela falta de pré-   -aviso.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando a decisão recorrida nos seguintes termos: a quantia a que a R. foi condenada a pagar é reduzida de € 10.496,00 para € 6.080,00.
Custas da ação e da apelação pela A. e pela R. na proporção do respetivo decaimento.

Lisboa, 8 de setembro de 2022
Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães
Octávio Diogo