ARRENDAMENTO
RENDAS
FALTA DE PAGAMENTO
INCIDENTE DE DESPEJO IMEDIATO
AUTONOMIA
Sumário

Por força do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20º, nºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção não é automático, sendo livremente apreciado pelo juiz nos casos em que na acção persista controvérsia quanto, nomeadamente, à existência do contrato de arrendamento.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I - RELATÓRIO
1.A) - A intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra 14 Réus, sendo o 6º Réu identificado na Petição Inicial, B , ora apelante.
1.B) – Peticionou na parte final da petição inicial:
“1. Que a ação seja julgada procedente, por provada, e em consequência:
1.1 Se condenem todos os RR a reconhecer a propriedade e posse da autora, do imóvel identificado no artigo 4.º, ordenando-se a sua restituição à A., desocupado de pessoas e bens;
1.2 Que os RR sejam condenados no pagamento à autora dos seguintes valores:
(…)
vi) O Réu B, no pagamento da quantia de 10.800,00€, referente aos valores quantificados no artigo 19.º;
(…)
1.3 Que seja decretada a resolução do contrato celebrado com o 6º, Réu, relativamente ao 1º, andar esquerdo e direito, traseiro, do prédio identificado no artigo 4º, com as legais consequências que, no caso deste Réu será no pagamento das rendas vencidas e vincendas quantificadas no artigo 19º, até efetivo despejo.
1.4
viii) Os demais réus:
(…) devem ser condenados na restituição dos espaços do imóvel que ilegalmente ocupam e bem assim no pagamento da quantia individual de 300,00€, por cada mês ou fração, desde Abril de 2019 até efetiva restituição do imóvel, sendo os valores vencidos até esta data no valor de 2.100,00€, por cada um dos Réus.
Subsidiariamente quanto ao 1.º 2º, 3º, 4º,5º, e 7.º RR:
2. Que, os contratos de arrendamento celebrados relativamente às frações, identificadas nos artigos 6.º, sejam declarados resolvidos por falta de pagamento de rendas desde janeiro de 2018, condenando-se os RR no despejo dos espaços arrendados; no pagamento das rendas vencidas e quantificadas no artigo 19 e vincendas até efetivo despejo com as legais consequências.”.
1.C) - Para o efeito, alegou os factos descritos na petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, sendo os relevantes no que concerne ao Réu B, os seguintes:
“3.º
A autora é viúva de Alberto ….., falecido que foi em 29.11.2018 (…).
4.º
O falecido marido da autora era proprietário do prédio urbano situado na Rua da …, n.º 7, inscrito na matriz urbana da freguesia Agualva e Mira Sintra, sob o artigo 162 (…).
5.º
Em vida do falecido marido da A., era o mesmo quem procedia à administração do imóvel nos termos e condições que entendia.
6.º
Nessa sequencia, o falecido Alberto …., veio a celebrar os seguintes contratos de arrendamento:
(…)
VI) Contrato n.º 6
a) No dia 1 de janeiro de 2017, o proprietário celebrou com o 6.º Réu, dois contratos de arrendamento a termo certo de um ano, renovável sendo um para o 1º, andar direito traseiro e o outro para o 1º, andar esquerdo traseiro (doc. 15 e 16), do prédio identificado em 4º.
b) A renda mensal acordada para cada um dos locais foi fixado em 150,00€ mensais;
c) Através da notificação de 30.8.2018, o proprietário notificou o Réu para liquidar as rendas em divida. (Cf.doc.16).
d) À semelhança dos anteriores contratos, também este Réu não liquidou as rendas em divida desde Junho de 2017 inclusive até esta data como não entregou o andar devoluto .
(…)
9.º
Dispõe o art.º 1083.º do CC que o Senhorio pode resolver o contrato de arrendamento se o inquilino/arrendatário não pagar a renda no tempo e lugar próprio, sendo inadmissível a manutenção do contrato de arrendamento quando o arrendatário esteja em mora por período temporal superior a três meses, como é, no caso, a situação dos primeiros sete RR.
(…)
11.º
Nos termos do disposto no artigo 1081.º do CC, a cessação do contrato de arredamento com é o caso dos primeiros 6 Réus cujo contrato cessou por oposição do Senhorio, torna imediatamente exigível, a desocupação e entrega do local sem prejuízo do pagamento da indemnização devida, seja ela relativa a valores de rendas vencidas e não pagas quer derivada de indemnização por ocupação/abusiva posterior à data da notificação e que responsabiliza os Réus em face do disposto no artigo 1045.º do CC.
12.º
Nos termos do disposto no art.º 1311.º do CC, o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa, o seu reconhecimento do direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence – como é o caso dos autos, para além de reclamar os danos que cada um dos RR lhe causou.
(…)
15.º
A que acresce o facto relativamente aos primeiros sete réus, de que os mesmos já se encontravam todos em mora no pagamento das rendas desde de junho de 2017 no caso do 6º, Réu e os demais desde Janeiro de 2018, até esta data.
(…)
18.º
Na data em que o então Senhorio deduziu oposição à renovação dos contatos, os RR estavam em mora no pagamento das rendas desde o mês de janeiro de 2018 e o 6º. Réu desde o mês de Junho de 2017 que não liquida a renda devida.
19.º
Assim, os valores devidos pelos réus no âmbito do contrato de arrendamento são os seguintes:
(…)
f) 6.º Réu B
- Deve as rendas de junho de 2017 a dezembro de 2018
300,00€ x 18 meses = 5.400,00€
- De janeiro de 2019 a setembro de 2019, o valor da indemnização correspondente, em face do disposto no artigo 1045, ao valor do dobro da renda, ou seja:
600,00€ x 9 = 5.400,00€
- Daí que, o valor devido pela 6.º Réu B à Autora arte – sic - esta data é de:
Rendas Jun 2017/Dez 2018 = 5.400,00€
Indemnização pela ocupação Jan/Set 2019 = 5.400,00€
Total = 10.800,00€
(…).”
2 - Em 08/10/2019, foi enviada carta registada com A/R de citação do Réu B, que veio devolvida em 22/10/2019 com a menção “Objecto não reclamado” (cfr. Referências Citius do processo principal nºs 121551062 e 15643174, respectivamente).
3 - Em 23/10/2019, foi expedido mandado para citação pessoal do Réu B (cfr. Referência Citius do processo principal nº 121851915).
4 - Nesta sequência, foi junta aos autos a “Certidão de Citação”, datada de 26/11/2019 (cfr. Referência Citius do processo principal nº 122502303), de onde consta – com interesse para a presente decisão:
“Certifico que, nos termos do disposto no art.º 231º, nº 1 do Código de Processo Civil, citei o/a Réu:
B para no prazo de 30 dias, contestar(em), querendo, a ação acima identificada, com a advertência de que a falta de contestação importa a confissão dos factos articulados pelo(s) autor(es).
Com a contestação, deverá o citando, apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova, de acordo com o artº 572º do Código de Processo Civil .
O prazo é contínuo suspendendo-se, no entanto, nas férias judiciais.
Terminando o prazo em dia que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte.
Fica ainda advertido de que é obrigatória a constituição de mandatário judicial, e que os duplicados da petição inicial e as cópias dos documentos que se encontram nos autos, encontram-se à disposição na secretaria deste Tribunal.
O Citando,
Recusou-se a assinar e a receber os duplicados
O Oficial de Justiça,
Nuno Ferreira”;
5 - O Réu B não apresentou contestação.
6 - As 1ª, 2ª e 3ª Rés (Teresa …, Joana ….. e Elma ….., respectivamente) apresentaram contestação, que foi objecto do despacho proferido em 29/09/2021, que decidiu, por falta de junção de procuração forense e ratificação do processado: “Consequentemente, determina-se que fica sem efeito tudo o que foi praticado pelo Ilustre advogado que apresentou contestação em nome das Rés Teresa, Joana e Elma (…)” - cfr. Referências Citius do processo principal nºs 16170165, 16350637 e 132926621, respectivamente.
 7 - A 8ª Ré e os 12º e 13º Réus (Maria ……, Manuel …..e Bradlei ……., respectivamente) apresentaram contestação, cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos (cfr. Referências Citius do processo principal nºs 16171136, 16199833 e 16931903, respectivamente).
8 - A Autora apresentou Réplica (cfr. Referência Citius do processo principal nº 18259402).
9 - Em 30/10/2021, a Autora veio deduzir incidente de despejo imediato do Réu B, alegando, em síntese útil que: o Réu, embora citado, não contestou a acção, sendo a revelia operante, encontra-se incontestada a seguinte factualidade: a existência de contratos de arrendamentos habitacionais celebrados em 01/01/2017, referente ao 1º andar Dto traseiro e 1º andar Esq. traseiro, com a fixação da renda mensal de cada locado em € 150,00, mensais; e, desde a data de instauração da acção de despejo a Outubro de 2021, o Réu não liquidou qualquer renda na pendência da acção, embora continue a utilizar os locados arrendados sem nenhuma limitação, bem como a consumir agua e luz à custa da Autora (cfr. Referência Citius do processo principal nº 19787656).
10 - Relativamente ao requerimento aludido em 9., em 24/11/2021, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Incidente de 30-10-2021: Notifique-se o Réu para, em dez dias, proceder ao pagamento ou depósito das rendas em dívida, nos termos gerais; e da importância da indemnização devida, do que deve juntar a respetiva prova aos autos; sob pena de, ocorrendo esse incumprimento, ser requerido e decretado o despejo imediato do locado (artigo 14º, n.º s 4 e 5 do NRAU)” - cfr. Referência Citius do processo principal nº 134107505.
11 - Nesta sequência, em 21/01/2022, foi expedida carta registada (sob o Registo “RE359230608PT”) para o Réu B, para a morada “Rua da … Nº 7- 1º Esqº - Agualva-Cacém 2735-027 Agualva-Cacém”, com o seguinte teor (na parte que para aqui releva):
Assunto: INCIDENTE DE DESPEJO - NOTIFICAÇÃO
Fica deste modo V. Exª notificada, na qualidade de Réu, relativamente ao processo supra identificado, para no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento ou depósito das rendas em dívida, nos termos gerais: e da importância da indemnização devida, do que deve juntar a respectiva prova aos autos; sob pena de ocorrendo esse incumprimento, ser requerido e decretado o despejo imediato do locado (artº 14º nºs 4 e 5 do NRAU-(NOVO REGIME DE ARRENDAMENTO URBANO)” - cfr. Referência Citius do processo principal nº 135161999.
12 - A carta aludida em 11. não foi devolvida.
13 - O Réu B nada disse ou juntou aos autos no prazo de 10 dias mencionado na carta aludida em 11..
14 - Em 09/02/2022, foi proferida decisão (cfr. Referência Citius do processo principal nº 135429615) quanto ao incidente aludido em 9. com o seguinte teor:
“Do incidente de despejo imediato de 30-10-2021:
Por via deste requerimento, veio a Autora, A, requerer o despejo imediato do Réu B.
Invoca, para tanto, em suma, que:
. conforme alegado na presente ação, seu falecido marido celebrou dois contratos de arrendamento com este Réu, pela renda mensal de 150, 00 euros, por cada um dos dois andares arrendados;
. na ação pede, ademais, quanto a este Réu, a resolução dos contratos de arrendamento por falta de pagamento de rendas desde janeiro de 2018;
. o Réu, citado nesta ação, em 26-11-2019, não a contestou e, na sua pendência, não procedeu ao pagamento de qualquer renda.
Verificando-se efetivamente e à face dos autos o invocado circunstancialismo e perante o requerido despejo imediato, foi o Réu notificado para, em 10 dias, proceder ao pagamento ou depósito das rendas em dívida, nos termos gerais; e da importância da indemnização devida, do que devia juntar a respectiva prova aos autos.
Decorrido o prazo de 10 (dez) dias, o Réu não veio proceder a tal pagamento e nada respondeu.
Dispõe o art. 14º, nºs 3, 4 e 5 da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro:
“3 – Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais. 4 - Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final. 5 - Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 7 do artigo 15.º e nos artigos 15.º-J, 15.º-K e 15.º-M a 15.º-O.”
Assim, conforme a previsão do citado art. 14º da Lei 6/2006, é a própria lei que atribui um efeito cominatório imediato em face da omissão do pagamento ou depósito das rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses.
São então pressupostos do despejo imediato em apreço: 1) a pendência de uma ação de despejo e 2) o arrendatário não pagar ou depositar as rendas e, sendo o caso, encargos e despesas, que já estejam vencidas há dois ou mais meses.
Importará, ainda, anotar que, conforme ensina António Pais de Sousa in “Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U), 3ª ed. Actualiz., Rei dos Livros, p. 154, “Face ao disposto no art. 1048º, do C. Civil (…) nas acções cujo fundamento seja o da falta de pagamento de rendas, as rendas vencidas na pendência da acção, serão apenas as que se vencerem após o termo do prazo da contestação.”.
Igualmente refere Rui Pinto “A lei não distingue, mas a jurisprudência constante tem declarado que “as rendas vencidas na pendência da acção de despejo (…) são as que se vencerem após a sua propositura com a entrega da petição inicial, quando a causa de pedir não seja a falta de pagamento de rendas, e as que se vencerem após o termo do prazo da contestação, quando a causa de pedir seja aquela”, em respeito ao direito de expurgo da mora pelo inquilino, ao abrigo do artº 1048º nº 1 do C.C.” (O Novo Regime Processual do Despejo”, Coimbra Editora, p. 59)
De todo o modo, mesmo considerando o prazo de 30 (trinta) dias para a contestação da ação (cfr. art. 569º, nº 1, do Código de Processo Civil); e verificando-se que o Réu foi citado para esta ação em 26-11-2019, constata-se que este requisito da falta de pagamento ou depósito das rendas que já estejam vencidas há dois ou mais meses, se mostra plenamente verificado.
Observando o supra disposto pelo art. 14º, do NRAU, verificamos que estão comprovados os factos constitutivos da pretensão deduzida pela Autora no presente incidente, considerando: 1) o pedido e a respetiva causa de pedir da ação e a falta de contestação da ação, pelo Réu; e 2) que até ao momento e apesar de notificado para o efeito, o Réu não veio, no prazo fixado, demonstrar ter procedido ao pagamento das rendas vencidas na pendência da presente ação.
Nestes termos, julga-se procedente o presente incidente e, ao abrigo do nº 5 do art. 14º, da supra citada Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, determina-se o despejo imediato do Réu B.
Custas do incidente pelo Réu, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) UC.
Notifique.”.
15 - Por carta expedida em 11/02/2022, o Réu B foi notificado da decisão aludida em 14., para a morada “Rua da … Nº 7- 1º Esqº - Agualva-Cacém 2735-027 Agualva-Cacém” (cfr. Referência Citius do processo principal nº 135613509).
16 - Por requerimento de 23/02/2022, foi junta aos autos procuração forense pela qual o Réu B atribui poderes forenses a Ilustre Mandatário (cfr. Referência Citius do processo principal nº 20520464).
17 - Em 02/03/2022, o Réu B recorre da decisão aludida em 14., terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“III - CONCLUSÕES
A. O presente recurso vem interposto da Decisão do Tribunal “a quo”, a qual julgou procedente o incidente de despejo imediato, re-querido pela Autora A contra o ora Recorrente.
B. Não pode o ora Recorrente deixar de discordar do entendimento perfilhado pelo douto Tribunal “a quo”, porquanto a real factualidade não consubstancia fundamento legal para que fosse determinado o despejo imediato do Apelante.
C. O Recorrente não recebeu a carta com a citação, não assinou a citação nem sequer recebeu o duplicado da ação, sendo que a se-cretaria do Tribunal “a quo”, não cumpriu com a notificação do Re-corrente, enviando-lhe uma carta registada com a indicação de que o duplicado nela se encontra à sua disposição – n.º 5 do artigo 231 do CPC.
D. Sendo que, consagra o artigo 191º, nº 1, do CPC que é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei.
E. Ademais, o Recorrente não recebeu a notificação para pagar as rendas no prazo de 10 dias, na sequência do pedido de despejo imediato formulado pela Autora.
F. O Recorrente não se encontrava representado nos presentes autos, nem por Ministério Público, nem por advogado, sendo que nos termos conjugados do artigo 41º, 47 e a alínea a) do n.º 3 do  artigo 629 do CPC, no caso em apreço, é obrigatória a constituição de advogado.
G. Pelo que, o Recorrente encontrava-se numa situação de revelia absoluta, inoperante.
H. Só após a notificação da Decisão e mediante a junção de procu-ração aos autos o Recorrente logrou obter conhecimento do efetivo pedido, causa de pedir e demais fatos alegados pela Autora.
I. Assim, como expressamente constitui o corpo do artigo 567º do CPC não funciona a revelia, não devendo considerar-se confessa-dos os factos invocados pela Autora.
J. A revelia inoperante impõe que a Autora demonstre os factos constitutivos do direito a que se arroga não vigorando o feito comi-natório da não apresentação de contestação.
K. Perante os fatos descritos pela Autora e atenta a prova por si junta aos autos, não pode o Tribunal “a quo” dar como provado que o Réu deve qualquer renda, mas tão só que existe um (dois) contra-tos de arrendamento, sem que tenha logrado demonstrar a sua efectiva validade.
L. A Autora demandou conjuntamente vários Réus, formulando di-ferentes pedidos, com causas de pedir diversas, inexistindo qualquer relação de prejudicialidade ou dependência dos pedidos.
M. As pretensões da Autora não envolvem a apreciação do mesmo núcleo factual essencial, já que relativamente a alguns Réus implica a verificação da existência e validade dos contratos de arrendamento, em outros há a reivindicação da propriedade, em outros a resolução contratual e, ainda a existência de rendas e indemnizações em divida, consubstanciando assim uma coligação ilegal, porque desrespeita o plasmado no artigo 36.º do C.P.C., o que determina a absolvição da instância.
N. O alegado pelos demais Réus também deve aproveitar o Recorrente, e todos eles alegaram nada dever à Autora, alegando que esta atua de má-fé.
O. Na verdade, o Recorrente nada deve à Autora já que habitava as suas casas por acordo com o seu falecido marido e sócio do Apelante que lhe devia dinheiro, sendo que as rendas não eram pagas e o respetivo valor serviria apenas para abater a uma divida de 21.000,00, sendo que a Autora era conhecedora deste acordo, pelo que atua com má fé.
P. Aliás, má-fé evidente já que disse ao Recorrente que não se preocupasse com o processo, pois sabia dos acordos firmados en-tre o seu falecido marido e o Recorrente e o que pretendia era re-solver os contratos com os demais arrendatários.
Q. Até pelo conteúdo da própria petição inicial, o Tribunal “a quo” não deveria ter proferido Decisão de despejo imediato atentas as evidentes contradições nela plasmadas, pois na petição inicial a Autora, alega que o contrato cessou por oposição do senhorio e de-pois pede a resolução do contrato, alega que lhe são devidas rendas e indemnizações e pede as rendas vencidas e vincendas
R. Sendo que, ou o Senhorio resolve o contrato e tem direito ao pagamento das rendas em singelo; ou recebe a indemnização e tal não lhe dá lugar à possibilidade de acionar a sanção para o incumprimento que consiste na possibilidade de resolver o contrato.
S. Nos termos do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 327/2018 (Proc. n.º 850/14 – Relator: Cláudio Monteiro) o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático.
T. O Tribunal “a quo” não deveria ter proferido a Decisão de despejo imediato, apenas com a justificação do não pagamento das rendas alegadamente em dívida, até porque, como supra ficou dito, o Réu não foi devidamente citado, não se encontrava representado por mandatário, não recebeu a notificação para pagar as rendas em 10 dias, estamos perante uma revelia inoperante no que concerne ao processo instaurado pela Autora e a Autora não juntou aos autos o comprovativo da efetiva validade dos contratos de arrendamento.
U. O Tribunal “a quo” deveria ter apreciado a validade do contrato, quanto mais não fosse pelo facto da evidente revelia do Réu, pois o pedido de despejo imediato, pressupõe a existência de um contrato válido de arrendamento, conforme acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/052001 (agravo n.º 849/01) e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/6/2015 (Proc. n.º 496/13.0TBSTS – Relator: Pedro Martins).
V. No caso em apreço, ao interpretar o artigo 14º da Lei 6/2006, no sentido de que o não pagamento das rendas alegadamente em divida é suficiente e bastante para decidir favoravelmente o pedido de despejo imediato, o Tribunal “a quo” fez interpretação errada da referida norma e interpretou e decidiu de forma inconstitucional.
W. O Tribunal “a quo” deveria ter logrado realizar a efetivar citação da petição inicial, a secretaria deveria ter notificado o Recorrente nos termos do n.º 5 do artigo 231 do CPC, bem como notificar devidamente o Recorrente para pagar as rendas em 10 dias, a coligação de Réus é ilegal, os pedidos formulados são contraditórios com as alegações e causa de pedir, não foi demonstrada a validade dos contratos de arrendamento, há revelia inoperante, pelo que por tudo o alegado, não deveria o Tribunal “a quo” decidido o despejo imedi-ato.”.
18 - A Autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
19 - O Réu B, em 03/03/2022, apresentou requerimento no processo principal (Referência Citius nº 20575716) com o seguinte teor – para o que aqui interessa:
“Após constituição de mandatário, junção de procuração aos autos e consulta dos mesmos, foi possível constatar o seguinte:
a) A carta de citação, com registo RE408105515PT, não foi recebida pelo Réu, sendo esta devolvida ao remetente;
b) O Réu não assinou a citação e não recebeu os duplicados da petição inicial;
c) A secretaria do Tribunal não notificou o Réu, enviando-lhe uma carta regista-da com a indicação de que o duplicado nela se encontra à sua disposição – n.º 5 do artigo 231 do CPC, pelo que a citação é nula por não terem sido ob-servadas todas as formalidades legais.
d) O Réu não recebeu a notificação para efetuar o pagamento das rendas em 10 dias.
e) Durante todo o processo o Réu encontrou-se em revelia absoluta.
2. Tendo em conta os fatos acima expostos, requer-se a V. Exa. se digne a de-terminar que a secretaria notifique o Réu nos termos plasmados no n.º 5 do artigo 231 e lhe conceda prazo para apresentar a sua contestação.”.
20 - Em 30/03/2022, foi proferida decisão (cfr. Referência Citius do processo principal nº 136585308) quanto ao requerimento aludido em 19. com o seguinte teor:
“Do requerimento do Réu B de 3-3-2022: Requer, este Réu, que a secretaria o notifique nos termos do art. 231º, nº 5, do Código de Processo Civil e lhe conceda prazo para apresentar a sua contestação; invocando, para tanto, a nulidade da sua citação por a secretaria não lhe ter enviado carta registada nos termos daquele preceito legal; e na sequência de o Réu não ter assinado a citação e não ter recebido os duplicados da petição inicial.
A Autora exerceu o contraditório opondo-se ao deferimento do requerido.
Vistos os autos, constata-se que este Réu foi citado em 26 de novembro de 2019, por oficial de justiça, designadamente, para, no prazo de 30 dias, contestar, querendo, a ação e que “se recusou a assinar e a receber os duplicados”.
Invoca, este Réu, que, nessa sequência, a secretaria do Tribunal não lhe enviou carta registada nos termos do art. 231º, nº 5, do Código de Processo Civil.
Ora, essa falta constituirá efetivamente omissão de formalidade legal atinente à citação; o que, como o Réu alega, constituirá, por sua vez, nulidade da citação, conforme art. 191º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Ocorre, contudo, que, o prazo para arguição dessa nulidade, pelo Réu, foi aquele prazo que, expressamente, lhe foi indicado para a contestação, no ato da citação; prazo, dentro do qual, manifestamente, o Réu não veio arguir qualquer nulidade.
Ou seja, os termos em que o réu deve arguir a nulidade da citação são os seguintes: se lhe foi assinalado prazo para contestar, dispõe desse prazo para suscitar a nulidade; não lhe tendo sido indicado qualquer prazo ou tratando-se de citação edital, o réu pode arguir a nulidade no momento em que intervier pela primeira vez no processo – art. 191º, nº 2, do C.P.Civil
E se o réu intervier no processo sem arguir logo a falta, considera-se sanada a nulidade (artigo 189º, do C.P.Civil).
No caso, foi assinalado prazo para o Réu contestar, pelo que este dispunha desse prazo para suscitar a nulidade; e não o fez; sempre se dizendo que sequer o fez quando ocorreu a sua primeira intervenção no processo, em 23-2-2022, quando constituiu, Ilustre mandatário nos autos.
Nestes termos, por ser manifestamente intempestiva a arguição da nulidade (cfr. ainda art. 139º, nº 3, do C.P.Civil, revelador da extinção da correspondente faculdade processual) vai indeferido o requerido.”.
21 - A decisão aludida em 20. foi notificada ao Réu por carta expedida em 30/03/2022 - cfr. Referência Citius do processo principal nº 136651419.
22 - A decisão aludida em 20. transitou em julgado.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR
De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambas do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do Recorrente que se delimita o objecto e o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão do Recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que colocam. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º, nº 3 do Cód. Proc. Civil). De igual modo, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas de todas as questões suscitadas que se apresentem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (cfr. art. 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, ex vi do art. 663º, n.º 2 do mesmo diploma). Acresce que, não pode também este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas, porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas - cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 114-116.
Nestes termos, no caso em análise, as questões a decidir, ordenadas por forma lógica, são as seguintes:
- nulidade da citação do Réu/ora apelante para a acção;
- falta de recepção pelo Réu/ora apelante da notificação para pagar as rendas no prazo de 10 dias, na sequência do pedido de despejo imediato formulado pela Autora/ora apelada;
- falta de constituição de advogado do Réu/ora apelante na acção;
- coligação passiva ilegal na acção;
- revelia absoluta inoperante do Réu/ora apelante na acção;
- “das demais contestações e da verdade dos factos”;
- “da inconstitucionalidade”.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados com interesse para a decisão do recurso são os que constam da parte I-Relatório desta decisão, resultantes das peças processuais constantes deste recurso e da acção principal (que consultámos via Citius), que se dão aqui por integralmente reproduzidos.
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Cumpre apreciar as questões a decidir neste recurso pela sua ordem de análise e precedência lógica, começando pela atinente à arguição da nulidade da citação do Réu para os termos da acção – cfr., máxime, arts. 10) a 13) e 25) a 34) das motivações e als. C. e D. das conclusões de recurso.
Em sede deste recurso é arguida a nulidade processual por falta de citação do Réu para os termos da acção; invocando o apelante, para o efeito, no essencial, que: após ter sido devolvida a carta registada com A/R para citação do Réu, foi dado cumprimento, em 26/11/2019, ao mandado de citação do Réu nos termos do art. 231º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, não tendo o Réu assinado a citação, nem recebido o duplicado da acção (arts. 9) a 13) das motivações do recurso); nesta sequência, a secretaria do tribunal não notificou o Réu citando após 26/11/2019, enviando-lhe carta registada com a indicação de que o duplicado nela se encontra à sua disposição, como prescrito no nº 5 do mencionado art. 231º do Cód. Proc. Civil, pelo que se verifica a omissão desta formalidade prescrita na lei, conducente à nulidade da citação, de acordo com o art. 191º daquele diploma legal, consubstanciando aquela omissão um prejuízo efectivo para a defesa do Réu (arts. 25) a 34) das motivações e als. C. e D. das conclusões do recurso).
Entende a apelada não ocorrer qualquer nulidade do acto de citação do Réu.
Apreciemos.
A citação é o acto ou peça processual através do qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele uma determinada acção e se chama ao processo para se defender; é utilizada para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada – cfr. art. 219º, nº 1 do Cód. Proc. Civil.
A citação pode padecer de irregularidades a comprometer a sua função, distinguindo a lei de processo as que originam falta de citação das que acarretam nulidade de citação.
Na verdade, como é consabido, a nulidade (em sentido lato) da citação comporta duas modalidades: a falta de citação, prevista no art. 188º do Cód. Proc. Civil, e a nulidade da citação stricto sensu, regulada no art. 191º do Cód. Proc. Civil. São, como se escreve no Acórdão do STJ de 02/10/2003, Santos Bernardino, acessível em www.dgsi.pt, “realidades processuais distintas, constituindo diferentes vícios da citação, a falta e a nulidade desta, sendo também diferente o regime de uma e outra.”.
Assim, haverá falta de citação, nos termos do art. 188º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, quando: o acto tenha sido completamente omitido (al. a); tenha havido erro de identidade do citado (al. b); se tenha empregado indevidamente a citação edital (al. c); se mostre que foi efectuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste tratando-se de pessoa colectiva ou sociedade (al. d); ou quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável (al. e). Na falta de citação, há que aplicar os art. 187º, 189º, 196º, 198º, nº 2 e 200º, nº 1, todos do Cód. Proc. Civil.
Por sua vez, a mera nulidade (stricto sensu) da citação ocorre quando na sua realização não hajam sido observadas as formalidades prescritas na lei, de acordo com o disposto no nº 1 do art. 191º do Cód. Proc. Civil.
Volvendo ao caso dos autos, vemos que o apelante arguí, em sede deste recurso, a nulidade – strito sensu - da sua citação, convocando, inclusive, para o efeito, o mencionado art. 191º, nº 1 do Cód. Proc. Civil.
Ora, quanto à nulidade – strito sensu - de citação (ao contrário do que sucede na falta de citação prevista no art. 188º do Cód. Proc. Civil), mantém-se a actualidade e pertinência do brocardo segundo o qual “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se. Conforme explicava a este propósito Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, p. 507: “a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do acto ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.”. Cfr., ainda, sobre esta matéria, Luís Mendonça e Henrique Antunes, in “Dos Recursos”, Quid Juris, p. 52: “A reclamação por nulidade e o recurso articulam-se, portanto, de harmonia com o princípio da subsidiariedade: a admissibilidade do recurso está na dependência da dedução prévia da reclamação. Assim, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade – e não a nulidade ela mesma. A perda do direito à impugnação por via da reclamação – caducidade, renúncia, etc. – importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário.”.
Assim, no caso, a arguição da alegada nulidade – strito sensu - de citação só poderia ser objecto de reclamação para o tribunal a quo. Aliás, compulsados os autos, constata-se que, após a interposição deste recurso (em 02/03/2022), o Réu, em requerimento de 03/03/2022, apresentou requerimento no processo principal onde suscitou materialmente a nulidade da sua citação, arguição esta, que foi indeferida por despacho proferido em 30/03/2022, já transitado em julgado (cfr. Factos mencionados nos nºs 19. a 22. da parte I-Relatório desta decisão).
Em suma, o meio processual escolhido para a arguição da alegada nulidade (neste recurso) não é o legalmente previsto para o efeito, sendo certo, ainda, que o tribunal a quo pronunciou-se noutra decisão – que não na ora recorrida – sobre a arguição da nulidade da citação do Réu/ora apelante para os termos da acção, indeferindo-a.
Por estas razões, improcede a pretensão do apelante suscitada a este propósito neste recurso. O que se decide.
*
Da falta de recepção pelo Réu/ora apelante da notificação para pagar as rendas no prazo de 10 dias, na sequência do pedido de despejo imediato formulado pela Autora/ora apelada - cfr., máxime, arts. 15), 16), 70) e 71) das motivações e al. E. das conclusões de recurso.
A notificação a que se refere o apelante é a aludida no ponto 11. da parte “I-Relatório” desta decisão. Tal notificação foi realizada, em 21/01/2022, pelo tribunal a quo (na sequência do despacho proferido em 24/11/2021 mencionado em 10. da parte “I-Relatório” desta decisão) mediante carta registada expedida (sob o Registo “RE359230608PT”) para o Réu/ora apelante, para a morada onde o mesmo tinha sido citado. Como aludido no ponto 12. da parte “I-Relatório” desta decisão, tal carta não foi devolvida ao tribunal a quo.
Em sede deste recurso, invoca meramente o apelante que: “o Tribunal “a quo” terá notificado o Réu” para proceder ao pagamento das rendas em dívida no prazo de 10 dias, mas o Réu não recebeu esta notificação.
Porém, não esclarece o apelante a sua pretensão com esta alegação, nem tal pretensão se apreende das motivações e das conclusões do recurso - v.g., se arguí a nulidade do acto da mencionada notificação.
O que é cristalino e resulta evidente dos autos é que é a primeira vez, em sede deste recurso, que o Réu/apelante suscita tal questão e invoca os mencionados factos.
Como é consabido, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso – cfr., por todos, na Doutrina, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª ed., p. 31, 119; e na jurisprudência (unânime sobre esta matéria) do Supremo Tribunal de Justiça: Acórdãos: de 25/03/2009, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza; de 29/01/2014, Abrantes Geraldes; de 17/12/2014, Orlando Afonso; de 17/12/2014, de Fonseca Ramos; de 07/07/2016, Gonçalves Rocha; e de 17/11/2016, Ana Luísa Geraldes, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Pelo exposto, não estando em causa matéria de conhecimento oficioso e não tendo a questão da não recepção pelo Réu da notificação em causa sido alegada em momento processual anterior à prolação da decisão sob recurso, forçoso é concluir que está vedado a este tribunal apreciar e pronunciar-se sobre tal questão.
Mais, se a pretensão do apelante com a mera alegação que fez – “o tribunal a quo terá notificado” o Réu, que “não recebeu” tal notificação – é arguir a nulidade do acto de notificação em referência, aqui reiteramos o que acima já se deixou dito sobre a actualidade e pertinência do brocardo segundo o qual “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”.
Assim, no caso, a arguição da nulidade do mencionado acto de notificação - nulidade secundária, inominada ou atípica - só poderia ser objecto de reclamação para o tribunal a quo, não sendo este recurso o meio processual próprio para o efeito; sendo certo, ainda, que, na data de interposição deste recurso (em 02/03/2022), já tinha decorrido o prazo geral de dez dias para a arguição da aludida nulidade junto do tribunal a quo (cfr. arts. 149º, nº 1, 196º, 2ª parte e 199º, todos do Cód. Proc. Civil).
Por todo o exposto, improcede a pretensão do apelante suscitada neste recurso a propósito da notificação a que vimos aludindo. O que se decide.
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Da “Falta de constituição de advogado” – cfr., máxime, arts. 46) a 48) das motivações e al. F. das conclusões de recurso.
Suscita o apelante a questão “da falta de constituição de advogado”, alegando, para o efeito, que: nos termos conjugados dos arts. 41º, 47º e 629º, nº 3, al. a), todos do Cód. Proc. Civil, é obrigatória, no caso, a constituição de advogado, sendo que, aquando da prolação da decisão recorrida, o Recorrente não se “encontrava representado pelo Ministério Público nem por advogado”, encontrando-se “violados os mais basilares direitos dos cidadãos”.
Apreciemos.
Citado o Réu de forma regular para a acção e notificado de forma regular para o incidente de despejo imediato (cfr. o que acima se deixou dito sobre estas questões), o mesmo não contestou, não apresentou qualquer requerimento, nem nada juntou aos autos.
Ora, esta situação, ao contrário do que parece ser o entendimento do apelante, não é subsumível à previsão do art. 41º do Cód. Proc. Civil (pese embora os autos sejam de constituição obrigatória de advogado, nos termos dos arts. 40º, nº 1, als. a) e b) e 629º, nº 3, al. a, todos do Cód. Proc. Civil), que tem o seu campo de aplicação apenas nos casos em que a própria parte pratica actos reservados a profissionais forenses (isto é, não incluídos na previsão do nº 2 do art. 40º daquele diploma), impondo a lei, nessas circunstâncias, a notificação, em conformidade com o disposto no mencionado art. 41º. Se o réu não praticou qualquer acto reservado a profissional forense (no mencionado sentido), não existe qualquer fundamento para que o juiz providencie pelo suprimento da falta de patrocínio judiciário, mesmo nos casos em que o réu não apresentou contestação - cfr. Acórdão do TRL de 26/02/2013, Proc. nº 648/11.8TBPTS.L1-7, Gouveia de Barros; e Acórdão do TRP de 28/10/2021, Proc. nº 2349/20.7T8GDM.P1, Pedro Damião e Cunha, ambos acessíveis em www.dgi.pt:
Como se escreve a este propósito no Acórdão do TRP de 06/10/2009, Proc. nº 306/09.3TBPFR.P1, Henrique Antunes, acessível em www.dgi.pt, a propósito do art. 33º do Cód. Proc. Civil, então vigente, que corresponde, no essencial, ao art. 41º do actual Cód. Proc. Civil:
“(…) o dever de prover pela sanação, no tocante ao réu, pela falta de constituição de advogado, a que a lei adstringe o juiz, só ocorre, como é bem de ver, nos casos em que o réu não se tenha constituído na situação de revelia absoluta. Dito doutro modo: o dever do juiz de prover, oficiosamente, pelo suprimento daquela falta, só existe nos casos em que o réu pratica qualquer acto no processo pendente, maxime, quando oferece o articulado em que deduz a defesa, subscrito por ele mesmo. Como a consequência da inactividade do réu é a ineficácia dos actos praticados na acção pendente, exige-se, logicamente, que ele o tenha praticado, e, portanto, que tenha desenvolvido naquela acção, uma qualquer actividade.
Se o réu se constituiu na situação de revelia absoluta, quer dizer, não praticou qualquer acto na acção pendente, não há qualquer fundamento para que o juiz providencie pelo suprimento da falta de patrocínio judiciário. A contestação constitui um ónus da parte, não existindo, assim, qualquer dever de contestar. A revelia não determina a aplicação ao réu de qualquer sanção, v.g., de índole pecuniária, mas apenas certas desvantagens quanto à decisão da acção – a diminuição, ou mesmo exclusão, da probabilidade de uma decisão que lhe seja favorável.”.
Por outras palavras: o art. 41º do Cód. Proc. Civil é meramente aplicável num processo em que, sendo obrigatória a constituição de advogado, a parte está por si em juízo, ou seja, a parte apresenta-se em juízo por si, praticando um acto processual, quando devia estar representada por advogado.
Nada disto se verifica nos autos, em que, como já se deixou dito: (i) o Réu, citado de forma regular, não contestou; (ii) o Réu, notificado para o incidente de despejo imediato, não apresentou qualquer requerimento; (iii) o Réu nada juntou aos autos até à prolação da decisão sob recurso. Donde, o tribunal a quo não estava vinculado ao dever de providenciar pela falta, pelo Réu, de constituição de advogado, nos termos do art. 41º do Cód. Proc. Civil, ao contrário do entendimento do apelante.
Em suma, como o Réu/ora apelante não contestou, nem nada, sequer, requereu ou juntou aos autos, não se vislumbra qualquer violação dos preceitos invocados pelo apelante [como já se deixou dito, o art. 41º do CPC não tem aplicação ao caso dos autos; o art. 47º do CPC regula apenas situações de revogação e renuncia de mandato judicial, quando, como é evidente, o mesmo foi constituído num processo, circunstancialismo que não se verifica no caso dos autos; e, o art. 629º, nº 3, al. a) do CPC apenas consagra a admissibilidade de recuso nas situações no mesmo tipificadas], nem dos “mais basilares direitos dos cidadãos”.
Por outro lado, a invocação de que o Réu não se encontra “representado pelo Ministério Público” a propósito da questão de falta de constituição de advogado, é manifestamente improcedente no caso dos autos, porquanto ao Ministério Público incumbe a assunção da defesa dos ausentes ou dos incapazes nos termos consagrados no art. 21º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, extensiva aos casos de incapacidade de facto (cfr. art. 234º, nº 4 do mesmo diploma), não ocorrendo no caso vertente, de forma manifesta, nenhuma das descritas situações.
Donde, resta concluir pela improcedência desta argumentação do apelante. O que se decide.
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Da coligação passiva ilegal na acção principal - cfr., máxime, arts. 18) a 24) das motivações e als. L. e M. das conclusões de recurso.
Invoca o apelante, em sede deste recurso, a excepção de coligação passiva ilegal na acção principal, por violação do art. 36.º do Cód. Proc. Civil, “o que determina a absolvição da instância”.
Apreciemos, desde logo, se tal questão pode ser objecto de conhecimento em sede deste recurso.
A decisão objecto deste recurso foi proferida no âmbito de incidente de despejo imediato.
O incidente de despejo imediato está actualmente regulado no art. 14º, nºs 3 a 5 do Novo Regime do Arrendamento Urbano (diploma aprovado pela Lei 6/2006, de 27/02, alterada pelas Leis nº 31/2012, de 14/08, e nº 79/2014, de 19/12 - doravante NRAU), nos seguintes termos:
“3 - Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais.
4 - Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.
5 - Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 7 do artigo 15.º e nos artigos 15.º-J, 15.º-K e 15.º-M a 15.º-O.”
Tal incidente traduz-se num incidente autónomo, com cariz de acção nova, autónoma e independente da acção principal, pese embora na mesma enxertada, com causa de pedir e pedido próprios. O requerente – que é o senhorio - terá de alegar que, na pendência da acção, se venceram rendas, que não foram pagas, pedindo que o requerido – que é o arrendatário - seja imediatamente despejado.
Como se escreve no Ac. do STJ de 15/12/2005, Proc. nº 05B3974, Salvador da Costa, acessível em ww.dgsi.pt, a propósito deste incidente (na altura regulado, em termos similares aos actuais, no art. 58º, nº 2 do Regime do Arrendamento Urbano: Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15/10): “Trata-se de um incidente enxertado na acção principal com causa de pedir diversa daquela em que a acção se funda, consubstanciada na omissão de pagamento das rendas durante a pendência da causa. / Visa compelir o arrendatário a pagar as rendas que se vão vencendo no decurso da acção e proteger o senhorio da ocupação do locado sem a remuneração correspondente durante o tempo durante aquela pendência.”.
Reveste, assim, o presente despejo imediato a natureza de acção nova, autónoma e independente da acção principal, na qual: (i) é Requerente a senhoria, Autora na acção principal; (ii) é Requerido unicamente o Réu/ora apelante, na qualidade de arrendatário de dois contratos de arrendamento; (iii) a causa de pedir é única, consubstanciando-se na existência daqueles contratos de arrendamento e na falta de pagamento das respectivas rendas vencidas na pendência da acção principal; (iv) o pedido é único e formulado apenas contra o Requerido/Réu/ora apelante: o despejo imediato dos locados referentes àqueles dois contratos de arrendamento.
Atendendo à autonomia e independência que este incidente reveste relativamente à acção principal, bem como à configuração com que o mesmo se encontra delineado no caso dos autos (onde apenas assume a qualidade de Requerido o ora apelante, como vimos), é cristalino que o conhecimento da excepção de coligação passiva ilegal (para o que aqui interessa) relativamente àquela acção principal só pode ter lugar naquela acção.
Donde, a improcedência da argumentação do apelante ora em referência. O que se decide.
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Da revelia absoluta inoperante do Réu/ora apelante e “da inconstitucionalidade” - cfr. arts. 35) a 46) das motivações e als. G. a K. das conclusões de recurso; e arts. 70) a 83) das motivações e als. S. a V. das conclusões de recurso, respectivamente.
Invoca o apelante que se verifica nos autos uma situação de revelia absoluta inoperante, ao contrário do entendido na decisão recorrida, pelo que, nos termos dos arts. 567º e 568º do Cód. Proc. Civil, não deverão ser considerados confessados os factos alegados pela Autora - cfr., máxime, arts. 35) a 46) das motivações e als. G. a K. das conclusões de recurso.
Defende, ainda, o apelante, nos arts. 70) a 83) das motivações, sob a epígrafe “Da inconstitucionalidade”, e nas als. S. a V. das conclusões de recurso, no essencial, que o “Tribunal a quo não deveria ter proferido a Decisão de despejo imediato, apenas com a justificação do não pagamento das rendas alegadamente em dívida”, uma vez que, ao interpretar o art. 14º do NRAU “no sentido de que o não pagamento das rendas alegadamente em divida é suficiente e bastante para decidir favoravelmente o pedido de despejo imediato, o Tribunal “a quo” fez interpretação errada e decidiu de forma inconstitucional”, pois o pedido de despejo imediato pressupõe a existência de um contrato válido de arrendamento, convocando, para tanto, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 327/2018, Proc. nº 850/14, Cláudio Monteiro.
Apreciemos.
O Réu/ora apelante, uma vez citado de forma regular (cfr. o que acima se deixou dito sobre esta questão), não apresentou contestação, não constituiu mandatário, nem interveio de qualquer forma no processo até – para o que aqui interessa - à prolação da decisão recorrida. Donde, passou a estar em situação de revelia absoluta, nos termos do art. 566º do Cód. Proc. Civil.
De acordo com o disposto no art. 567º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor quando o réu se encontre em tal situação de revelia (isto é, para o que aqui interessa: réu citado regularmente, que não contesta). Ou seja, “Por princípio, a revelia é operante, isto é, a falta de contestação do réu leva a que se considerem confessados os factos articulados pelo autor, sendo que este regime tem lugar quando o réu, apesar de não contestar, tenha sido ou deva considerar-se citado regularmente na própria pessoa, mesmo que não tenha intervenção no processo, permanecendo em revelia absoluta. (…) O efeito deste comportamento omissivo do réu é a chamada confissão tácita ou ficta, a qual se distingue da confissão judicial expressa, traduzida numa declaração de ciência, em que o confitente reconhece a realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (arts. 355º e ss. do CC). Já a confissão a que conduz a revelia operante não depende de qualquer declaração nesse sentido, bastando a própria inércia do demandado.” - António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado Parte Geral e Processo de Declaração”, Vol. I, Almedina, 2019, Reimpressão, p. 629-630.
Porém, como é sabido, esta cominação fixada na lei para a revelia do réu conhece as excepções consagradas nas diversas alíneas do art. 568º do Cód. Proc. Civil. O que significa que, nas circunstâncias especificadas neste preceito, apesar de o réu não ter contestado, nem por isso se consideram confessados os factos articulados pelo autor. Trata-se da revelia inoperante. “Nesta situação, como não se consideram confessados os factos articulados na petição inicial, o autor só obterá ganho de causa se forem demonstrados os fundamentos fácticos da ação” – mesmos autores e ob. cit., p. 632.
A revelia não opera, para o que aqui interessa, “quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar” – cfr. al. a) do citado art. 568º do Cód. Proc. Civil. Basta que um dos réus conteste a acção para que os factos por ele impugnados não possam ser considerados confessados em relação aos réus revéis.
É o que o apelante entende verificar-se no caso.
Vejamos.
A propósito do art. 568º, al. a) do Cód. Proc. Civil, escreve-se no Acórdão do STJ de 24/01/2019, Proc. nº 1668/15.9T8PVZ.P1.S1, Tomé Gomes (por facilidade de exposição, as notas de rodapé no original serão transcritas, entre parêntesis, no próprio texto), acessível em www.dgsi.pt:
“(…) quando haja vários réus, quer se trate de litisconsórcio necessário ou voluntário, quer se trate de coligação, a contestação de qualquer deles aproveitará aos co-réus revéis, mas só relativamente aos factos impugnados pelo réu contestante. E mantém-se tal aproveitamento mesmo que, posteriormente, este réu contestante desista da instância ou do pedido, mas já não assim se a contestação for rejeitada por extemporaneidade ou por falta de requisitos externos, ou se, por exemplo, o contestante for julgado parte ilegítima
 [1 Neste sentido, vide Manuel Salvador, in Estudos de Direito, Lisboa, 1965, pp.. 193 a 213;Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. III, AAFDL, 1978/79, pa.. 128; Ac. STJ, de 12-3-1974, BMJ nº 235, p. 313].
(…)
Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora observam que:
[4 In Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 1985, pp. 348-349]
«Na base da solução adoptada encontra-se não só a intenção de afastar a solução chocante de os mesmos factos se encontrarem, na mesma acção, como provados em relação a um dos réus e não provados em relação a outros, mas ainda o propósito de facilitar aos réus a possibilidade de delegarem, expressa ou tacitamente, em algum ou alguns deles, o ónus de contestar no interesse de todos.»
Todavia, a revelia só é inoperante em relação à matéria que tiver sido impugnada pelo contestante, mais precisamente no domínio dos factos comuns, imputados a todos os réus, pois só em relação a estes factos se circunscreverá o interesse de todos eles.”.
António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in ob. cit., p. 632-633, fazem notar, a propósito da excepção consagrada no art. 568º, al. a) do Cód. Proc. Civil, que “este benefício concedido aos réus revéis se circunscreve à matéria impugnada pelo réu contestante. Por isso, os factos da petição inicial que não hajam sido efetivamente impugnados consideram-se confessados em relação a todos os réus (al. a) e art. 574º, nº 2). Por outro lado, exceções eventualmente deduzidas pelo réu contestante, sobremaneira as de carácter inoficioso, apenas a este aproveitam.”.
Convocam-se aqui, ainda, os ensinamentos de José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, p. 274, ao afirmarem a este propósito: “A alínea a) prevê todos os casos de pluralidades de réus, seja ela de litisconsórcio necessário (…), seja de litisconsórcio voluntário (…) ou coligação. (…) / O benefício concedido aos réus revéis circunscreve-se à matéria efectivamente impugnada pelo réu contestante. Por isso, os factos da petição inicial que não hajam sido impugnados são dados como assentes, em relação a todos os réus, pelo que a eficácia da norma excepcionante acaba por se limitar aos factos de interesse para o réu revel e para o réu contestante, dado não ser relevante, fora de uma relação formal de representação, a impugnação de factos que, por só respeitarem ao revel, o réu contestante não tem interesse em contradizer. É assim fortemente limitada a possibilidade de se aplicar nos casos de coligação (nunca, nomeadamente, quando nem a causa de pedir é única nem há factos essenciais comuns (…).”.
No caso dos autos, estamos no âmbito de uma acção intentada contra 14 Réus, na qual são formulados vários pedidos: uns, relativamente a todos os Réus (cfr. pedido identificado na parte final da petição inicial sob o ponto 1.1.); outros, relativamente a cada um dos Réu singularmente considerado (cfr. pedidos identificados na parte final da petição inicial sob os pontos 1.2. e 1.3.); e, outros, ainda, relativamente a um conjunto de Réus (cfr. pedidos identificados na parte final da petição inicial sob os pontos 1.4. e 2.).
Por outro lado, compulsadas as três contestações validamente apresentadas nos autos, vemos que:
- a Ré Maria ….., na Contestação que apresentou (junta sob a Referência Citius do processo principal nº 16171136):
. deduziu a excepção de coligação passiva ilegal: cfr. arts. 19º a 34º da Contestação;
. afirmou no art. 35º da Contestação:
“Da, aliás, douta P. I., sem prejuízo do que adiante melhor se esclarecerá:
a) aceita-se o que se lê nos arts. 3.º, 4.º e 5.º;
b) tudo o mais que não é conclusivo, é falso, pelo que se impugnam expressamente todos os restantes artigos da douta petição inicial, sem prejuízo da impugnação especificada.”.
- o Réu Manuel ….., afirmou no art. 1º da Contestação (junta sob a Referência Citius do processo principal nº 16931903): “O R. desconhece e não é obrigado a saber o constante nos artigos que não lhe dizem respeito, impugnando os demais.”
- o Réu Bradlei ….., afirmou no art. 10º da Contestação (junta sob a Referência Citius do processo principal nº 16199833): “Impugna todos os restantes factos descritos na mesma petição inicial.”.
Da consulta à acção principal a que hoje procedemos (via Citius), constata-se que não foi, em tal acção, apreciada até à presente data a excepção de coligação passiva ilegal ali suscitada por uma das Rés contestantes.
Como é evidente, face ao acima deixado dito e aos mencionados preceitos legais, a existência legalmente admissível – e admitida - na acção principal de uma pluralidade de réus é condição essencial para a aferição dos efeitos (operantes ou inoperantes) da revelia do Réu revel/ora apelante, com influência na decisão sobre o incidente de despejo imediato, como se verá de seguida.
Ora, essa estabilização da existência de uma pluralidade de réus (e que réus: contestantes?/não contestantes?/todos?) ainda não se verifica na acção principal, máxime, aquando da prolação da decisão recorrida.
Assim, não se compreende a asserção da decisão recorrida quando considera “a falta de contestação da ação, pelo Réu”, para concluir que estão comprovados os requisitos para o despejo imediato, ao escrever: “Observando o supra disposto pelo art. 14º, do NRAU, verificamos que estão comprovados os factos constitutivos da pretensão deduzida pela Autora no presente incidente, considerando: 1) o pedido e a respetiva causa de pedir da ação e a falta de contestação da ação, pelo Réu; e 2) que até ao momento e apesar de notificado para o efeito, o Réu não veio, no prazo fixado, demonstrar ter procedido ao pagamento das rendas vencidas na pendência da presente ação.” – sublinhados nossos.
Por outras palavras: face ao que se vem expondo, afigura-se-nos que não poderia o tribunal a quo ter considerado, na decisão recorrida, como operante a revelia do Réu/revel (ao considerar a “falta de contestação” do mesmo), julgando confessados os factos invocados no art. 6º VI) da petição inicial, máxime, a alegação referente à celebração, no dia 01/01/2017, com o Réu/apelante de dois contratos de arrendamento a termo certo de um ano, renovável, sendo um para o 1º Dto traseiro e o outro para o 1º Esq. traseiro, do prédio identificado nos autos, bem como que a renda mensal acordada para cada um dos locados foi fixada em € 150,00 mensais.
Note-se, ainda, o seguinte: o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 327/2018, Proc. nº 850/14, Cláudio Monteiro, a que alude o apelante, pronunciou-se sobre a questão, a que aquele Tribunal foi chamado a pronunciar-se, da limitação dos meios de defesa do arrendatário habitacional no incidente de despejo imediato deduzido na pendência da acção de despejo, face ao teor do art. 14º, nºs 4 e 5 do NRAU, com as alterações da Lei nº 31/2012, de 14/08, ou seja, a questão da constitucionalidade da impossibilidade de o arrendatário exercer outros meios de defesa que não a apresentação de prova de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em dívida. Em tal Acórdão foi sustentado que o incidente de despejo imediato, com os contornos legais ali estabelecidos, não seria inconstitucional, mas deveria ser sujeito aos limites de interpretação impostos pela valoração já anteriormente sustentada por esse mesmo Tribunal no Acórdão nº 673/2005 e, recorrendo ao disposto no art. 80º, nº 3 da Lei nº 28/82, de 15/11, conformou a norma em causa com a interpretação restritiva julgada conforme com a Constituição.
Decidiu-se, assim, no Acórdão em referência: “interpretar o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto à existência ou exigibilidade do próprio dever de pagamento de renda, o réu não deve ser impedido de exercer o contraditório mediante a utilização dos correspondentes meios de defesa.”.
O que significa que se impõe “considerar que no presente incidente ao Requerido se devem manter disponíveis outras opções de defesa para além do pagamento ou depósito dos montantes das rendas vencidas na pendência da causa, sem o que se incorreria em situação de violação do princípio da proibição de indefesa. / O incidente implica que a existência e validade do contrato de arrendamento e da obrigação de pagamento das rendas em causa pelo Requerido não sejam objecto de discussão na acção principal.” - Acórdão do TRL de 20/05/2021, Proc. nº 273/20.2.T8AMD.B.L1-6, Ana de Azeredo Coelho, acessível em www.dgsi.pt.
Resulta do disposto nos nºs 3 a 5 do art. 14º do NRAU que constituem requisitos da procedência deste incidente – cfr. citado Acórdão do TRL de 20/05/2021:
“1) não pagamento ou depósito das rendas na sequência da notificação a que alude o artigo 14.º, n.º 4, da Lei 6/2006.
2) pendência de acção de despejo.
3) não pagamento de rendas vencidas na pendência da acção.
4) inexistência de controvérsia, entre os intervenientes processuais na acção principal, quanto à existência e validade do arrendamento.
5) inexistência de controvérsia, entre os intervenientes processuais na acção principal, quanto à obrigação de pagamento das rendas e à mora do devedor.”.
A propósito do requisito mencionado sob o nº 4), cumpre notar que, desde sempre, foi entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que o incidente de despejo imediato tem como pressuposto legal a existência e validade do contrato de arrendamento.
Como se explicita a este propósito no Acórdão deste Tribunal e Secção, de 20/12/2018, Proc. nº 1830/17.0T8VFX.L1, Carlos Oliveira, acessível em www.dgsi.pt:
“… no âmbito da vigência do Art. 979.º do C.P.C. de 1961, constava do sumário do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/10/1969 (J.R., 15.º, pág. 855) que: «I- O fundamento de despejo imediato previsto no art. 979.º do C.P.C. (falta de pagamento de rendas na pendência da ação de despejo) só pode verificar-se quando a situação subjacente à ação de despejo é uma situação de arrendamento válido. II- Assim, proposta ação de despejo e levantada pelos Réu a exceção perentória da nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma, o julgador não pode apreciar a questão de saber se está ou não verificado o fundamento do art. 796.º do C.P.C. antes de decidir no sentido negativo a exceção perentória suscitada».
No quadro legal do Art. 58.º do R.A.U. mantinha-se a mesma interpretação, como decorre do acórdão do S.T.J. de 20/5/1997 (Proc. n.º 274/97 – 1.ª, Bol. Sum., www.stj.pt), com o seguinte sumário: «I- O pedido de despejo imediato previsto no Art. 58.º do R.A.U. pressupõe a existência de um contrato de arrendamento válido, atento o disposto no n.º 1 do Art. 55.º do R.A.U.. II- Sendo pedido na ação, na qual se deduziu o incidente do Art. 58.º do R.A.U., a validade do contrato de arrendamento, o pedido de despejo imediato não pode ser deferido, por reflexamente estar em discussão a obrigação de pagamento ou depósito de rendas».
No mesmo sentido o acórdão do S.T.J. de 8/5/2001 (Agravo n.º 849/01 – 1.ª, Bol. Sum., www.stj.pt), onde se pode ler: «III- O pedido de despejo imediato, formulado em ação de despejo, pressupõe a existência de um contrato válido de arrendamento».
Já no quadro da lei vigente, veja-se, por exemplo, o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/6/2015 (Proc. n.º 496/13.0TBSTS – Relator: Pedro Martins), onde se refere que: «Numa ação de despejo baseada na falta de pagamento de rendas, tendo sido excecionada, na contestação, a nulidade do contrato de arrendamento e a existência de um acordo de não pagamento de rendas, o pedido de despejo imediato não deve ser admitido, nem deferido».”.
Na doutrina, pronuncia-se neste sentido Aragão Seia, in “Arrendamento Urbano, Almedina, 7ª ed., p. 382: “Só se pode falar em rendas vencidas na pendência da ação se esta estiver subjacente um arrendamento válido, que não é posto de qualquer modo em questão pelo réu”.
No caso dos autos, face ao estado processual da acção principal no momento da prolação da decisão recorrida, no que concerne à inexistência de estabilização quanto à pluralidade de réus (perante a mencionada dedução da excepção dilatória de coligação passiva ilegal não apreciada pelo tribunal a quo), não podia o tribunal a quo, sem mais, considerar – como fez - que a inexistência de contestação do Réu/apelante gerava uma revelia absoluta operante (ao considerar confessados os factos alegados na petição inicial, máxime, quanto à celebração, existência e cláusulas dos dois contratos de arrendamento invocados pela Autora).
Donde, se não se pode dar como certa a questão da existência dos contratos de arrendamento invocados na petição inicial (por ainda não ser possível considerar a revelia do Réu/apelante como operante, ou inoperante, repete-se), está vedado à senhoria/Autora/ora apelada o recurso ao incidente de despejo imediato por falta de pagamento das rendas na pendência da acção, desde logo – repete-se e salienta-se - porque a própria fonte da obrigação de pagamento de rendas (a existência e celebração dos contratos de arrendamento nas condições alegadas na petição inicial) não é incontroversa.
Por esta razão, deve a apelação ser julgada procedente e a decisão recorrida revogada – consignando-se, ainda, que, face ao exposto, e nos termos do art. 608º, nº 2, 2ª parte do Cód. Proc. Civil, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma legal, fica prejudicada a apreciação das questões suscitadas pelo apelante neste recurso sob a epígrafe “Das demais contestações e da verdade dos factos” - cfr., máxime, arts. 49) a 69) das motivações e als. N. a R. das conclusões de recurso.
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As custas devidas pela presente apelação são da responsabilidade da apelada – cfr. art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 1º, nºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais.
V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente, e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, que julgou procedente o presente incidente e determinou o despejo imediato, que é substituída pela decisão de indeferir o incidente de despejo imediato deduzido pela Autora contra o Réu B.
Custas pela apelada.
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Lisboa, 14 de Julho de 2022
Cristina Silva Maximiano
Maria Amélia Ribeiro
Isabel Salgado