INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
CASO JULGADO FORMAL
Sumário


I - Tendo sido decidido que a petição inicial não era inepta por falta de causa de pedir, não pode o tribunal, após convite ao aperfeiçoamento, decidir novamente que a petição inicial padece de tal vicio.
II - A decisão transitada tem força obrigatória, não podendo a questão decidida vir a ser decidida em termos diferentes.
III - O caso julgado formal tem eficácia estritamente intraprocessual, obstando a que o juiz possa, na mesma ação, alterar a decisão proferida, mas não impede que, noutra ação, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal, ou por outro, entretanto, chamado a apreciar a causa (artigo 620º, n.º 1, do CPC).
IV - Ao caso julgado formal subjazem apenas razões ou fundamentos de ordem e disciplina processual ou procedimental, bastando através do fenómeno da preclusão alcançar a ordem e a disciplina do processo para ver assegurada a segurança jurídica.
V - Embora se reconheça, por vezes, dificuldades na linha de separação, não há que confundir a ineptidão da petição, vício formal, e a inviabilidade ou improcedência, questão de mérito ou substancial.
VI - Apenas a falta dos factos essenciais determina a inviabilidade da ação por ineptidão da petição inicial, já os factos complementares são indispensáveis à sua procedência, não contendendo a sua falta com aquele vício, mas com a questão de mérito a dilucidar a final.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO
L. F. instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra (1º) C. A., (2º) A. E., (3ºs) J. F. e mulher C. B. e (4º) M. R., pedindo:

- a condenação dos Réus C. A. e A. E. no pagamento da quantia de € 90.000,00, acrescidos de juros vencidos e vincendo até efetivo e integral pagamento;
- Ou se condenem os Réus J. F. e esposa C. B. ao pagamento da quantia de € 90.000,00, acrescidos de juros vencidos e vincendo até efetivo e integral pagamento;
- Ou se condene os Réus J. F. e esposa C. B. no pagamento da quantia de € 90.000,00, acrescidos de juros vencidos e vincendo até efetivo e integral pagamento;
- Ou se condene Réu M. R. no pagamento da quantia de € 90.000,00 ao Autor, acrescidos de juros vencidos e vincendo até efetivo e integral pagamento.
- Ou, ainda em alternativa, se condenem todos os Réus solidariamente ao pagamento da quantia de € 90.000,00 ao Autor, acrescidos de juros vencidos e vincendo até efetivo e integral pagamento.

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Os Réus contestaram arguindo a exceção de ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir.
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O Tribunal julgou procedente a exceção dilatória de ineptidão, por falta de causa de pedir, declarando nulo todo o processo e absolvendo os Réus da instância – cfr. artigos 186º nºs 1 e 2 alínea a), 200º nº 2, 577º al. b), 576º nº 2, 578º, 595º nº 1 a) do CPC.
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O Autor interpôs recurso desse despacho.
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Foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães que decidiu: “… no tocante aos 3ºs e 4º RR., entende-se que a petição inicial é parcialmente inepta por falta de causa de pedir, pelo que é de manter a sua absolvição da instância. Mas quanto ao 1º e 2º R. não se verifica esse vício, devendo a ação prosseguir os seus termos para a sua apreciação”. Disse ainda este Tribunal que devia “… ser dirigido convite ao autor para, no que concerne aos factos imputados ao 1º e 2º R., sanar as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, ao abrigo do disposto no art. 590.º, n.ºs 2, al. b) e 4 do CPC, incluindo a delimitação do período temporal dos reclamados juros de mora e indicação da taxa aplicável, bem como suprir a deficiência do articulado da petição no tocante à enunciação das razões de direito que servem de fundamento à ação”.
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O Tribunal dirigiu convite ao Autor para sanar as insuficiências e imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, tendo o Autor apresentado articulado aperfeiçoado a fls. 237 ss.
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Os Réus continuaram a defender-se por exceção, suscitando novamente a ineptidão da petição inicial.
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O tribunal proferiu decisão em que considerou que apesar do convite que foi dirigido ao Autor, o mesmo não explica minimamente o destino concreto do dinheiro que reclama, ou seja, a concreta deslocação patrimonial ocorrida e decidiu julgar procedente a exceção dilatória de ineptidão suscitada, por falta de causa de pedir, declarando nulo todo o processo e absolvendo da instância os Réus – cfr. artigos 186º nºs 1 e 2 alínea a), 200º nº 2, 577º al. b), 576º nº 2, 578º, 595º nº 1 a) do CPC.”
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Inconformado com a decisão dela recorre novamente o Autor, finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. - O Recorrente intentou a presente ação contra os Réus C. A. e A. E., pedindo que fossem condenados ao pagamento da quantia de € 90.000,00 ao Autor, acrescidos de juros vencidos e vincendo até efetivo e integral pagamento.
II. - Subsidiariamente o Recorrente pediu que fossem condenados os Réus J. F. e esposa C. B. ao pagamento da quantia de € 90.000,00 ao Autor, acrescidos de juros vencidos e vincendo até efetivo e integral pagamento;
III. - ou condenar o Réu M. R. ao pagamento da quantia de € 90.000,00 ao Autor, acrescidos de juros vencidos e vincendo até efetivo e integral pagamento;
IV. - ou condenar todos os Réus solidariamente ao pagamento da quantia de € 90.000,00 ao Autor, acrescidos de juros vencidos e vincendo até efetivo e integral.
V.- Com a exceção do Réu C. A., os Réus suscitaram a ineptidão da Petição Inicial.
VI.- Porém, todos os Réus contestaram a presente ação por impugnação, requerendo a absolvição, revelando ter entendido quais os pedidos formulados pelo Autor.
VII. - O Tribunal “a quo” julgou procedente a exceção dilatória de ineptidão suscitada pelos RR., por falta de causa de pedir, declarando nulo todo o processo e absolvendo da instância os Réus.
VIII. – O Autor recorreu da sentença para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães.
IX. – O Venerando Tribunal da Relação de Guimarães julgou a apelação parcialmente procedente, e revogou a decisão recorrida na parte em que julgou procedente a exceção de ineptidão da petição inicial relativamente aos Réus C. A. e A. E., que os absolveu da instância, determinou o prosseguimento dos trâmites da ação, quanto aos Réus supra mencionados, e que deveria ser dirigido convite ao Autor para suprir as deficiências, manteve o restante estipulado na douta sentença.
X. - O Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, entendeu que, “relativamente ao 1º e 2º R. e aplicando-lhe os princípios enunciados, dir-se-á que não há ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.”
XI. – A ação prosseguiu com o Réus C. A. e A. E..
XII. – O Tribunal “a quo” convidou o Autor a suprir as deficiências.
XIII. – O Autor aperfeiçoou a sua petição inicial, suprimindo as deficiências requeridas.
XIV. – Os Réus alegaram a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.
XV. – O Réu C. A. na fase inicial na sua primeira contestação não tinha invocado a ineptidão da petição inicial, apenas o veio fazer agora.
XVI. – Os Réus contestaram a petição inicial e o seu aperfeiçoamento, por impugnação, negaram os factos elencados na petição inicial e no seu aperfeiçoamento, requereram a absolvição dos factos elencados, inclusive o Réu A. E. acrescentou novos factos, na sua defesa.
XVII. – Entende o Recorrente que os Réus interpretaram convenientemente a petição inicial e o seu aperfeiçoamento.
XVIII. - Ora, entende o Recorrente que foi violado o art.º 186º n.º 3 do Código Processo Civil.
XIX. - Nos termos do art.º 186º n.º 3, se o Réu contestar, apesar de arguir a ineptidão, a mesma não é julgada procedente, quando se verificar que o Réu interpretou convenientemente a Petição Inicial.
XX. -Resulta das contestações apresentados pelos Réus, que estes interpretaram convenientemente a Petição Inicial, assim como o pedido e a causa de pedir.
XXI. – Vejamos que o Réu C. A. nem tinha suscitado a exceção de ineptidão da petição na sua primeira contestação, o que interpretou logo no iniciou o articulado.
XXII. - Foram concretamente alegados, demonstrados e suportados documentalmente todos os elementos essenciais que permitem individualizar a pretensão material deduzida pelo Autor.
XXIII. - Pelo exposto entende-se e salvo melhor opinião que o foi violado o art.º 186º n.º 3 do Código Processo Civil.
Pugna o Recorrente pela revogação da decisão e em substituição serem submetidos a discussão e julgamento todos os pedidos formulados pelo Autor, prosseguido a ação os termos normais com vista à sua apreciação.
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Os Recorridos contra alegaram pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

A única questão a decidir é a de saber se tendo o tribunal superior decidido que a petição inicial não era inepta por falta de causa de pedir, pode o tribunal de primeira instância decidir, após convite ao aperfeiçoamento, que a petição inicial se mantem inepta por falta de causa de pedir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

As incidências fático-processual relevante é a que consta do relatório que antecede.
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O objeto do presente recurso cinge-se à questão de saber se tendo sido decidido que a petição inicial não era inepta por falta de causa de pedir, pode o tribunal, após convite ao aperfeiçoamento, decidir novamente que a petição inicial é inepta por falta de causa de pedir.

Para melhor compreensão da questão em apreciação, recuperemos nesta sede o que o anterior acórdão deste Tribunal da Relação expressou a propósito deste caso:

«Todavia, relativamente ao 1º e ao 2º R. e aplicando-lhe os princípios enunciados, dir-se-á que não há ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.
Como se enunciou, relativamente aos apontados co-réus, o Autor/recorrente alegou sucintamente factos que fundamentam a sua pretensão, isto é, os factos de que afirma derivar o seu direito de crédito resultante do incumprimento do contrato de mandato, por parte do mandatário [em relação ao 1º réu (arts. 17º, 18º, 19º, 20º, 23º, 24º e 25º (parte) da p.i.)] e/ou do enriquecimento sem causa ou o direito à restituição [em relação ao 1º e ao 2ª réu (arts. 1º a 17º, 20º, 21º, 23º, 24º e 25º (parte) da p.i.)].
Reconhece-se que a petição inicial contendo um quadro factual mínimo integrador da causa de pedir que serve de fundamento às pretensões deduzidas contra o 1º e 2º RR., se revele, contudo, insuficiente, deficiente ou imprecisa em termos dessa alegação fáctica, nela sendo feitas variadas afirmações de pendor conclusivo, carecendo, por isso, de ser completada ou concretizada, contanto que respeite o estabelecido no art. 590º, n.º 6, do CPC.
E embora se reconheça que o art. 552º, n.º 1, al. d) do CPC exige que o autor, enquanto parte integrante da causa de pedir, exponha as razões de direito que servem de fundamento à ação – devendo, no mínimo, comportar os preceitos legais ou os princípios gerais em que se fundamenta –, a verdade é que se entende que a falta ou deficiência da exposição das razões de direito não deve ser sancionada com ineptidão da petição inicial, antes deve ser facultada a possibilidade à parte da sanação de tal irregularidade, mediante despacho convite de aperfeiçoamento dirigido para o efeito pelo juiz..
Relativamente ao facto de o autor reclamar juros de mora, mas não indicar concretamente o período temporal em causa, nem a taxa aplicável, tais omissões de modo algum poderão corporizar a ineptidão da petição. Também aqui impunha-se a prolação de despacho convite de modo a suprir a indicação do período temporal em causa e a indicação da taxa aplicável (se bem que a sua determinação poderá ser feita com base na taxa legal dos juros de mora civis).
Por conseguinte, entende-se que a petição inicial é parcialmente inepta, por falta de causa de pedir relativamente aos 3ºs e 4º RR., pelo que se impõe, quanto a eles, a confirmação da sua absolvição da instância. Mas já não quanto ao 1º e ao 2º Réu, por não se verificar esse vício, devendo a ação prosseguir para a sua apreciação.»
E remata o aresto afirmando que «concluindo-se que, relativamente ao 1º e 2º R., a petição inicial enferma de deficiência, e não de ineptidão, o despacho de aperfeiçoamento proferido perante articulado deficiente é um despacho vinculado, que, como tal, o juiz tem o dever de proferir. (…) Daí que deva ser dirigido convite ao autor para, no que concerne aos factos imputados ao 1º e 2º R., sanar as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, ao abrigo do disposto no art. 590.º, n.ºs 2, al. b) e 4 do CPC, incluindo a delimitação do período temporal dos reclamados juros de mora e indicação da taxa aplicável, bem como suprir a deficiência do articulado da petição no tocante à enunciação das razões de direito que servem de fundamento à ação.».
O Autor aperfeiçoou o seu articulado, tendo mencionado a delimitação temporal dos juros, indicado a taxa aplicável, alegou alguns factos concretizadores e outros com vista a aferir a existência do mandato e enunciou as razões de direito.
O tribunal a quo, voltou a considerar que foi omitida a alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir e julgou procedente a exceção de ineptidão, por falta de causa de pedir, declarando nulo todo o processo e absolvendo da instância os Réus.
Ressalvado o devido respeito, a decisão proferida viola claramente o caso julgado formal.
O efeito mais importante a que a sentença pode conduzir é o caso julgado.
Diz-se que a decisão – despacho, sentença ou acórdão – forma caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável ou imutável por força do seu trânsito em julgado. A imodificabilidade da sentença é, assim, o núcleo essencial do caso julgado.
A decisão transitada tem força de caso julgado, ou seja, tem força obrigatória, não podendo a questão decidida vir a ser decidida em termos diferentes.
Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa «o caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja, o conteúdo da decisão deste órgão» (1).
Tanto podem transitar em julgado as sentenças ou despachos recorríveis, relativos a questões de carácter processual, como a decisão referente ao mérito da causa, isto é, respeitante à concreta relação material controvertida.
No primeiro caso, forma-se o caso julgado formal (processual, externo ou de simples preclusão); no segundo caso, forma-se o caso julgado material (substancial ou interno).
O caso julgado formal, restringe-se às decisões que apreciem unicamente matéria de direito adjetivo ou processual (por exemplo as que se pronunciem sobre exceções dilatórias), não provendo sobre os bens ou direitos litigados. E, nesse medida, o despacho que recai unicamente sobre a relação processual não é apenas o que se pronuncia sobre os elementos subjetivos e objetivos da instância e a regularidade da sua constituição, mas também todo aquele que, em qualquer momento do processo, decide uma questão que não é de mérito (2).

O caso julgado formal tem eficácia estritamente intraprocessual, isto é, só tem força obrigatória dentro do próprio processo em que a decisão é proferida. Tal obsta a que o juiz possa, na mesma ação, alterar a decisão proferida, mas não impede que, noutra ação, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal, ou por outro, entretanto, chamado a apreciar a causa (artigo 620º, n.º 1, do CPC). Isto assim ocorre porque ao caso julgado formal subjazem apenas razões ou fundamentos de ordem e disciplina processual ou procedimental, bastando através do fenómeno da preclusão alcançar a ordem e a disciplina do processo para ver assegurada a segurança jurídica.
O caso julgado tem uma função negativa e uma função positiva.
A função negativa encontra-se na finalidade de impedir que a questão que foi objeto da decisão proferida e inimpugnável possa voltar a ser, ela própria, na sua essencial identidade, recolocada à apreciação de qualquer tribunal (mesmo aquele que proferiu a decisão); se tal ocorrer, por força da figura da exceção dilatória de caso julgado, que visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art. 580º, n.º 2, do CPC), deve o juiz abster-se de voltar a apreciar a matéria ou questão que se mostra já jurisdicionalmente decidida, em termos definitivos, como objeto de uma anterior ação (art. 576º, n.º 2 do CPC).
A função positiva, traduzindo essencialmente a autoridade do caso julgado, através da qual a solução nele compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais, corresponde à proibição de contradição mencionada no art. 580º, n.º 2 do CPC e na imposição da decisão tomada.
Considerando a função negativa do caso julgado, o legislador configura-a como exceção dilatória nominada, constante da al. i) do art. 577º do CPC, que pode ser suscitada pelo demandado e conhecida oficiosamente (art. 578º do CPC).
Feitos estes considerandos jurídicos, revertamos ao caso concreto.
Por acórdão deste Tribunal da Relação foi decidido revogar (em parte) a decisão da primeira instância e julgar não verificada a ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, reconhecendo-se, todavia, que deveria ser dirigido convite ao autor para, no que concerne aos factos imputados ao 1º e 2º R., sanar as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.ºs 2, al. b) e 4 do CPC.
Este acórdão transitou em julgado, pelo que, tendo força obrigatória dentro do processo, faz caso julgado formal nos autos (artigo 620º, n.º 1, do CPC).
Todavia, não obstante a fundamentação e conteúdo do comando ínsito na decisão do acórdão, considerou o tribunal a quo que a petição aperfeiçoada omite a alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir, que a alegação é insuficiente e imprecisa, que a imputação feita aos réus é genérica e conclusiva, e, portanto, que a petição é inepta por falta de causa de pedir.
Tal decisão não pode manter-se por violar o caso julgado formal formado pelo acórdão anterior.
Está definitivamente decidido que a petição inicial não é inepta.
Não sendo inepta, caso o tribunal considere que, mesmo após o convite ao aperfeiçoamento, não se mostram alegados os factos complementares ou concretizadores dos inicialmente alegados, não pode declarar nulo todo o processo e absolver os réus da instância, porquanto a questão contende com a procedência ou improcedência da ação, isto é, com o seu mérito.
Da conjugação entre o artigo 552º, nº1. al.d) e os artigos 5º, nº2, al.b) e 590º, nº4, do CPC, resulta que não há preclusão quanto a factos que sejam complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados. Tais factos, embora essenciais, por serem necessários à procedência da pretensão (e sujeitos, por isso, ao ónus de alegação), não têm uma função individualizadora do tipo legal, podendo por isso ser posteriormente adquiridos para os autos (3).
Embora se reconheça, por vezes, dificuldades na linha de separação, não há que confundir a ineptidão da petição, vício formal, e a inviabilidade ou improcedência, questão de mérito ou substancial.
Para o efeito, importa ter presente que os factos que enformam os articulados podem integrar-se em três espécies: factos essenciais ou estruturantes, aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceção; factos complementares, que concretizam a causa de pedir ou a exceção complexa e factos instrumentais, probatórios ou acessórios, que indiciam os factos essenciais e/ou complementares (4).
Apenas a falta na petição inicial dos factos essenciais determina a inviabilidade da ação por ineptidão daquela. Já os factos complementares são indispensáveis à sua procedência, não contendendo a sua falta com aquele vício, mas com a questão de mérito a dilucidar a final (5).
Nas palavras sempre elucidativas de Alberto dos Reis “se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta. Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente…quando…sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstancias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga”. (6)
Por isso a decisão tem necessariamente de ser revogada, dada a vinculação do tribunal e das partes ao caso julgado da primeira decisão, havendo os autos que prosseguir os seus normais termos.
Em face disso, mostra-se prejudicado o conhecimento dos demais fundamentos do recurso.
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IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogar a decisão recorrida e ordenar o legal prosseguimento dos autos.
Custas pelos Recorridos.
Guimarães, 13 de Julho de 2022

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves
2º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes



1. Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre O Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 567.
2. Neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, pag. 753.
3. Neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, pag. 630.
4. Neste sentido, acórdão da Relação de Coimbra de 26.09.2016, disponível em www.dgsi.pt.
5. Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed pag. 70.
6. In Comentário, 2º, pag. 364.