ARROLAMENTO
BENS COMUNS DOS CÔNJUGES
CONTAS BANCÁRIAS
FIEL DEPOSITÁRIO
Sumário


Atentas as características e funções próprias do arrolamento, preliminar da acção de divórcio, deve o cônjuge ou cônjuges titulares das contas bancárias ser nomeados como depositários desses saldos, a fim de não inviabilizar a sua utilização normal e evitar que um dos cônjuges administre os mesmos de forma a comprometer definitivamente os interesses patrimoniais do outro, em conformidade com o que se determina nos termos do art. 408.º, n.º 2, do C. P. Civil.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:

S. M. veio requerer contra V. J., como preliminar da ação de divórcio, o arrolamento de bem comuns do casal, alegando, em síntese, que são casados desde - de setembro de 1993, sob o regime de comunhão de adquiridos e que o requerido se ausentou da casa de morada de família no dia 10 de outubro de 2020 e estabeleceu residência no Brasil, suspeitando que o mesmo está a manter uma relação extraconjugal, pretendendo instaurar ação de divórcio.

Foi proferida decisão decidindo-se julgar parcialmente procedente o procedimento cautelar tendo-se ordenado, em consequência, o arrolamento dos saldos das contas bancárias identificadas pela requerente e, bem assim, daquelas que se vieram a apurar ser tituladas pelo requerido, indeferindo-se o pedido de indisponibilidade de tais verbas para o mesmo.
Foi nomeada a Requerente/Recorrente fiel depositária do saldo da conta conjunta (entidade bancária Banco ..., IBAN PT ..................33) e o Requerido/Recorrido fiel depositário de todas as restantes contas tituladas pelo mesmo, a serem indicadas pelo Banco de Portugal.

Inconformada com a decisão veio requerente S. M. recorrer da mesma apresentando as seguintes conclusões:

I. Julgou o Venerando Tribunal a quo que as verbas indicadas como objeto do arrolamento em causa, nomeadamente, os saldos da conta bancária comum do casal e os saldos bancários de outras contas tituladas pelo Requerido/Recorrido, “presumem-se comuns”, tendo decretado o arrolamento dos referidos bens,
II. Com a condicionante da nomeação da Requerente/Recorrente enquanto fiel depositária apenas do saldo da conta conjunta (entidade bancária Banco ..., IBAN PT ..................33),
III. Ficando o Requerido/Recorrido como fiel depositário de todas as restantes contas tituladas pelo mesmo, a serem indicadas pelo Banco de Portugal.
IV. Na sua análise crítica, a Meritíssima Juiz não anui e não se pronuncia quanto ao pedido da Requerente/Recorrente, no sentido de afastamento do Recorrido/Requerido do papel de fiel depositário das contas bancárias tituladas por este.
V. Ora, salvo melhor entendimento, a Requerente/Recorrente não pretende afastar o titular das contas bancárias de exercer o seu direito de propriedade sobre os bens arrolados (saldos das contas bancárias por si/ele tituladas), pretendendo apenas proteger e salvaguardar o património comum.
VI. Conforme indicado no requerimento do procedimento cautelar de arrolamento, proposto pela Requerente/Recorrente, esta deslocou-se ao Banco …, nos dias seguintes à ida do Recorrido para o Brasil, para aí consultar o saldo bancário da conta titulada por ambos, com o IBAN PT..............48,
VII. Tendo, apenas nesse momento, tomado conhecimento que o Requerido/Recorrido havia transferido a quantia de EUR 268.000,00 (duzentos e sessenta e oito mil euros) para uma outra conta, titulada por ambos, na instituição bancária ..., S.A., com o n.º da conta ...............31,
VIII. Refira-se, que tal montante resulta da venda da sua anterior casa de morada de família, um prédio urbano sito em …, freguesia de …, Vila Real, ocorrida no transato dia 13 de agosto deste ano.
IX. Posteriormente, a Requerente/Recorrente apercebe-se que essa quantia foi novamente alvo de transferência, executada pelo Requerido/Recorrido, em três tranches [duas no valor de EUR 99.500,00 (noventa e nove mil e quinhentos euros), e uma outra no valor de EUR 69.000,00 (sessenta e nove mil euros)], para uma conta própria do Requerido/Recorrido, na instituição bancária ..., S.A.
X. A Requerente/Recorrente não sabe, nem tem como conhecer, se essa quantia já foi novamente transferida, dissipada, ou, por qualquer outro meio, ocultada.
XI. Sendo notório, com o devido respeito por opinião diversa, que se trata de uma clara tentativa do Requerido/Recorrido dissipar o património comum, retirando à aqui Requerente/Recorrente a possibilidade de dispor dessa quantia, que também é sua.
XII. Dissipação de património comum que também ocorre noutras contas bancárias, designadamente uma outra conta bancária na instituição Banco ..., com o IBAN PT ..................33, que, apenas há pouco tempo atrás, a Requerente/Recorrente teve conhecimento,
XIII. Na qual, figuram os dois cônjuges como titulares, mas não dispondo a Requerente/Recorrente de meio de disposição da mesma, nomeadamente não possuindo qualquer cartão ou caderneta que possa utilizar.
XIV. Por consulta, junto ao balcão da referida instituição bancária, teve a Requerente/Recorrente conhecimento que o saldo bancário atual disponível seria unicamente de EUR 219,07 (duzentos e dezanove euros e sete cêntimos), quando no transato dia 02 de agosto de 2020, o saldo ascendia à quantia de EUR 24.038,08 (vinte e quatro mil e trinta e oito euros e oito cêntimos).
XV. O que significa que, no espaço breve de 2 meses, o Requerido/Recorrido liquidou o montante de EUR 23.818,93 (vinte e três mil, oitocentos e dezoito euros e noventa e três cêntimos), a seu belo prazer, em vestuário e outras despesas,
XVI. Indiciando um padrão de gastos supérfluos e dissipação de património comum,
XVII. Que se prevê que continue, agora que reside num outro continente e se encontra em vias de dissolução matrimonial.
XVIII. Considera-se a verificação de um justo receio, atento à iminência da dissolução do vínculo conjugal, como presumida,
XIX. Pelo que, deverá o juiz ordenar as providências necessárias para responder a situações de perigo de extravio, ocultação e dissipação dos bens comuns,
XX. Se tal não suceder, sempre lhe ficam arredadas as interpretações normativas que possam fazer frustrar tal fim.
XXI. Parece ser patente que o Requerido/Recorrido não reúne as condições necessárias para ser fiel depositário das quantias referentes aos bens arrolados,
XXII. Existindo manifesto inconveniente e comprovado receio de dissipação do património comum, em que estes saldos bancários, entretanto a arrolar, continuem na disponibilidade do Requerido/Recorrido, cfr. n.º 1 do art. 408º do C.P.C.
XXIII. Tendo por assente que, e como já referido, o Requerido/Recorrido transferiu o montante de EUR 268.000,00 (duzentos e sessenta e oito mil euros) de uma conta bancária, titulada por ambos, para uma conta titulada por este, na instituição bancária ..., S.A., com o IBAN PT...............38, demonstrando uma clara e efetiva tentativa de ocultação do património comum,
XXIV. E, como muito bem sabe, resulta do produto da venda da anterior casa de morada de família, bem comum do casal.
XXV. Pelo que, se pretende com o presente recurso e à semelhança do inicialmente requerido, salvaguardar e proteger tal património, através da nomeação como fiel depositária da Requerente/Recorrente, no que a esta quantia diz respeito.
XXVI. Sem prejuízo de, tendo esta quantia sido movimentada para outra conta bancária, se considerar a mesma abrangida pelo presente arrolamento, “sob pena de subtrair o saldo arrolado ao controlo do arrolamento decretado, frustrando o caráter conservatório do arrolamento (…) é, por isso, indiferente que aquela quantia de dinheiro que se quer ver preservada até à definição da respetiva titularidade seja objeto de depósito no Banco A ou B” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/07/2015, no Processo n.º 4899/14.5T2SNT.L2-2).
XXVII. Na senda da preservação das contas bancárias, tituladas pelo Requerido/Recorrido, comprovado o manifesto inconveniente na sua nomeação enquanto fiel depositário, o mesmo deverá suceder em todas as contas que vierem a ser indicadas pelo Banco de Portugal,
XXVIII. Ficando este papel de fiel depositária a cargo da instituição bancária respetiva.
XXIX. A decisão deveria ter sido diametralmente oposta à ora prolatada, dando razão à Requerente/Recorrente, no que concerne à titularidade do papel de fiel depositária das referidas contas bancárias tituladas pelo Requerido/Recorrido e, já abarcadas pelo arrolamento,
XXX. E, bem assim, da quantia de EUR 268.000,00 (duzentos e sessenta e oito mil euros) transferida pelo Requerido/Recorrido para a sua conta bancária com o IBAN PT...............38, no Banco …, S.A.
XXXI. Com o devido respeito e salvo melhor opinião, entende-se que foi feita errada e deficitária interpretação do disposto no n.º 1 do art. 408.º do Código de Processo Civil, o qual, devia ter sido interpretado no sentido de permitir o afastamento do Requerido/Recorrido da qualidade de fiel depositário, por provado o manifesto inconveniente, nomeando-se para tal a Requerente/Recorrente e/ou a instituição bancária respetiva onde se encontrem alocados os saldos bancários das contas tituladas pelo Requerido/Recorrido.

Apresentadas contra alegações pelo Recorrido foram as seguintes as suas conclusões:

a) A Recorrente, em sede de recurso, vem discordar da decisão proferida em 1.ª instância, porquanto, no seu entender, em sede de requerimento inicial alegou factos que afastariam a aplicação do regime regra do artigo 426.º n.º 2 do CPC, concretamente, da manifesta inconveniência da nomeação do Requerido como fiel depositário dos saldos dessas contas.
b) A Recorrente não cumpriu cabalmente com esse ónus que se lhe impunha, nem tal resulta da prova documental que juntou.
c) A pretensão da Requerente de afastar o Requerido do cargo de fiel depositário
tem como único fundamento os movimentos da conta bancária do Banco ... com o NIB ……………..33, plasmados no Doc. a que se refere como n.º 5, mas que foi junto como Doc. n.º 4.
d) Da leitura e análise desse documento, constata-se que, dos € 23.818,93 que a Requerente alega que o Requerido esbanjou por ser pessoa leviana, consumista e compulsiva, € 20.000,00 foram transferidos para duas contas de que ele também é titular, € 3.500,00 foram transferidos para os filhos do casal para prover pelo seu sustento, e €407,73, correspondem a um débito direto para pagamento de uma responsabilidade do casal para com a C…., tudo, no total de € 23.907,73.
e) A argumentação apresentada pela Requerente não tem qualquer sustento, e, sem mais, deve o recurso improceder, mantendo-se a sentença recorrida.
f) Acresce que, pese embora a Requerente não o tenha feito para sustentar a pretensão de afastar o Requerido da nomeação como fiel depositário, alegou nos artigos 10.º a 13.º e 19.º do requerimento inicial que, do preço da venda do prédio urbano do casal, o Requerido, no dia 06.10.2020, transferiu a quantia de € 268.000,00 (duzentos e sessenta e cinco mil euros) de uma conta do casal do Banco … para uma conta própria.
g) O Requerido efetivamente transferiu essa quantia por recear, fundamentadamente, que, na sua ausência por três meses no Brasil, a Requerente dissiparia o dinheiro da conta conjunta do casal sem assumir o pagamento das obrigações contraídas e estabeleceria residência na Suíça, junto a uma pessoa com quem, segundo o Requerido veio a saber, mantinha uma relação afetiva.
h) Após ter sido citado nesse país da decisão proferida no procedimento cautelar de arrolamento, o Requerido entendeu que já não havia receio para que o dinheiro permanecesse depositado numa conta bancária titulada apenas só por si,
i) e decidiu transferir o saldo arrolado da conta no Banco ... com o n.º ……..24, do qual é o único titular, para a conta do Banco …, com o número ……….-001, titulada pelo Requerido, pela Requerente e pelo filho de ambos, V. D., conta cujo saldo também se encontrava arrolado e o Requerido constituído fiel depositário.
j) O Requerido movimentou os valores através de diversas transferências, mediante a disponibilidade da plataforma de “......”, entre os dias 23.11.2020 e
28.12.2020.
k) No dia 28 de Dezembro de 2020, a Requerente, de forma absolutamente inesperada, abusiva e sem menor respeito pela ordem judicial, ordenou a transferência da quantia total de € 133.000,00 para contas bancárias da qual ela e a filha do casal, S., são as únicas titulares e não se encontravam arroladas.
l) Foi intenção da Requerente subtrair tão elevado montante à guarda do fiel depositário e, dessa forma, à partilha do casal.
m) O Requerido conseguiu a restituição judicial do valor transferido, por decisão de 10.02.2021, mas apenas foi possível parcialmente, concretamente, o valor de € 116.192,22, que já se encontrava na conta da filha Requerente no Banco ....
n) Em pouco mais de um mês, a Requerente fez desaparecer a quantia de € 16.807,78, que nunca foi recuperada.
o) A transferência, pelo Recorrido, da quantia de € 268.000,00 de uma conta bancária titulada por ambos, para uma conta bancária titulada por este, não constituiu uma clara e efetiva tentativa de ocultação do património comum, mas, muito pelo contrário, a única forma do Requerido acautelar que o valor não seria dissipado pela Requerente, como se veio a verificar posteriormente.
p) O Requerido, após o decretamento do arrolamento, transferiu essa quantia para
uma conta comum do casal.
q) O que foi fazendo à medida do que lhe era permitido pelo sistema de ......, e até a Requerente ter transferido a totalidade do valor entretanto disponível para as contas bancárias que bem entendeu.
r) O Requerido fez uma gestão criteriosa e responsável do dinheiro do casal, pagando os mútuos que o casal contraiu e de que era devedor ao irmão da Requerente e aos pais do Requerido, e honrando pontualmente as obrigações do casal junto de entidades bancárias e outras.
s) Estando pronto, como sempre esteve, a prestar contas.
t) Não se verifica um inconveniente manifesto de que o Requerido se mantenha fiel depositário dos saldos das contas bancárias de que é o único titular, pelo contrário, a nomeação da instituição bancária e o bloqueio dos saldos será muito prejudicial, pois, impedirá o Requerido de continuar a honrar as obrigações do casal, como sempre fez, com as consequências daí inerentes.
u) Sem prescindir, se assim não se entender, o que apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona, o Requerido, notificado da douta decisão proferida em primeira instância, não recorreu nem deduziu oposição, porquanto, como referido, foi decidida sem prova dos factos que justificavam o justo receio e sem tomada de posição sobre os pontos da matéria de facto que a Requerente alegou no requerimento inicial, nos quais sustenta a pretensa inconveniência da nomeação do Requerido como fiel depositário, enquanto possuidor ou detentor dos bens arrolados.
v) Ora, tivesse o Tribunal “a quo” respondido a esses factos alegados pela Requerente no sentido de os considerar como provados e sustentado a sua decisão nessa matéria, o Requerido teria apresentado oposição e oferecido meios de prova no sentido de reverter a resposta positiva quanto aos mesmos e pugnar pela alteração da decisão.
w) Esse direito ao contraditório não pode ser cerceado ao Requerido.
x) Nessa conformidade, ainda que este Venerando Tribunal entenda decidir pela procedência do recurso, o que, como vimos, não se aceita e apenas por mera hipótese académica se admite, sempre deverá remeter o processo para a 1.ª Instância para a produção de prova dos factos alegados pela Requerente e elaboração de nova decisão.
y) Só procedendo dessa forma será assegurado o cumprimento do princípio do contraditório, nomeadamente, a garantia do Requerido de participar efetivamente em todos os actos no processo, de forma a que possa ser ouvido, de impugnar os meios de prova de prova oferecidos e a respetiva força probatória, numa palavra, de influenciar a decisão judicial que vai ser tomada.
Nestes termos e nos melhores de direito que V/Exa. doutamente suprirá, deve o
recurso improceder, por não provado, mantendo-se a decisão recorrida.
Se assim não se entender, ainda que este Venerando Tribunal entenda decidir pela procedência do recurso, o que, como vimos, não se aceita e apenas por mera hipótese académica se admite, sempre deverá remeter o processo para a 1.ª Instância para a produção de prova sobre os factos alegados pela Requerente e elaboração de nova decisão.
Decidindo desta forma, farão V/Exas. a acostumada JUSTIÇA

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

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II – OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, impondo-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes, bem como as que sejam de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas, cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, sendo certo que o tribunal não se encontra vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e que visam sustentar os seus pontos de vista, isto atendendo à liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.
Assim considerando o teor das conclusões apresentadas pela Recorrente e já atrás supra transcritas, é objecto do recurso apreciar se deveria o Tribunal a quo afastar das funções de fiel depositário o Requerido/Recorrido por provado o manifesto inconveniente, nomeando-se para tal a Requerente/Recorrente e/ou a instituição bancária respetiva onde se encontrem alocados os saldos bancários das contas tituladas pelo Requerido/Recorrido.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

Com relevância para o presente recurso há a considerar a factualidade resultante do relatório supra.
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IV – DO DIREITO:

Aqui chegados importa aos autos aferir, como requereu a ora apelante, em sede de arrolamento, a sua nomeação como depositária de fiel depositária de todos os saldos das contas conjuntas e das contas tituladas pelo Requerido/Recorrido fiel depositário de todas, a serem indicadas pelo Banco de Portugal, por haver manifesto inconveniente em que os mesmos sejam entregues a este.

Vejamos.
O arrolamento, providência cautelar, regulada nos artºs 403º a 409º do Código de Processo Civil visa, por um lado, proteger um direito já constituído ou a ser judicialmente declarado e por outro, conseguir a conservação dos bens, evitando o seu extravio ou dissipação, consistindo na sua descrição, avaliação e depósito.
No caso sub judice, estamos perante um arrolamento especial, previsto no nº 1 do artº 409º do Código de Processo Civil, segundo o qual “Como preliminar ou incidente da acção de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro”.
Por seu lado, estabelece o nº 3 do citado preceito legal que ”Não é aplicável aos arrolamentos previstos nos números anteriores o disposto no nº 1 do art. 403º”, ou seja, porque nas situações previstas no nº 1 deste preceito se visa garantir a justa partilha dos bens em consequência de divórcio ou de separação judicial, dispensada fica a alegação e prova de uma situação que configure um justo receio de dissipação ou ocultação (Drs. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, vol II, 3ª edição, pág. 198).
Consistindo, conforme resulta do nº 1 do artº 406º do Código de Processo Civil, o arrolamento, na descrição, avaliação e depósito dos bens, necessário se torna a designação de um depositário para os mesmos.
Ora, quanto à designação de depositário, estabelece o nº 1 do artº 408º do Código de Processo Civil que “o depositário é o próprio possuidor ou detentor dos bens, salvo se houver manifesto inconveniente em que lhe sejam entregues”.
Da confrontação dos preceitos acima referidos resulta que, quanto à designação do depositário e porque não estamos num arrolamento incidental do processo de inventário mas de outros processos, as funções serão, em principio, desempenhadas pelo detentor ou possuidor dos bens.
Como afirmava o Prof Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 123, há aqui dois interesses em conflito: o do requerente, no sentido de se proceder à apreensão judicial dos bens; o do possuidor ou detentor, no sentido de se manter o status quo.
Por isso, e como refere o Acordão da Relação do Porto de 25 de novembro de 2004, relatado pelo Sr Desem Fernando Manuel Pinto de Almeida “com o arrolamento, não se pode pretender prejudicar o gozo e utilização normal que os bens possibilitam; daí que o depositário seja sempre o seu possuidor ou detentor. Só em casos excepcionais, havendo manifesto inconveniente, é que os bens são retirados da disponibilidade do seu possuidor”, podendo “(…) assim afirmar-se que, em regra, no arrolamento, os bens continuam a prestar ao seu detentor o gozo e utilidade que os caracteriza.
E continua aquele D. Aresto “Por outro lado, quem tem interesse em opor-se à providência é o possuidor ou detentor, uma vez que, com o arrolamento, deixará de possuir o bem arrolado em nome próprio, passando a detê-lo em nome alheio (tribunal) e com especiais deveres (cfr. art. 843º); ou seja, o depositário é, em regra, o possuidor ou detentor e, em princípio, o requerido da providência. É este o sentido que parece implícito nos termos utilizados no preceito – o depositário é o próprio possuidor ou detentor”.
Sendo esta a regra, conforme resulta da segunda parte do nº 1 do artº 408º do Código de Processo Civil, a mesma sofre uma exceção decorrente da existência de manifesto inconveniente em que os bens sejam entregues ao próprio possuídor, ou detentor, nomeadamente quando existam razões para recear pela efetiva dissipação dos bens na pendência da ação principal.
Ora, no arrolamento especial em causa só podem ser arrolados os bens comuns e os bens próprios que estejam sob a administração do outro cônjuge.
Como afirma Rodrigues Bastos em Notas ao CPC, Vol. II, 3ª ed., 206, o depositário deve, em regra, ser o outro cônjuge, não por lhe vir a pertencer o cabeçalato, visto que a providência é preliminar ou incidente da acção declarativa, e não do eventual inventário subsequente, mas sim em atenção à sua qualidade de administrador dos bens arrolados.
Também Abrantes Geraldes, em Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol., pág 265, conclui que, nestas situações, as funções de depositário devem ser exercidas, em regra, pelo cônjuge que estiver na posse dos bens.
Portanto, pressuposto da providência requerida nestes autos é o de que parte dos bens, comuns, estão sob a administração do Requerido, a saber, saldos de contas por este tituladas, que os possui e detém e, por esse motivo foi nomeado depositário dos mesmos.
Ora, em sede de requerimento de arrolamento veio a Requerente suscitar a questão da sua nomeação como depositária das contas bancárias arroladas porquanto o interesse da Requerente pode correr sério risco, caso o depositário seja o Requerido, tendo a mesma alegado que, entre 2 de agosto de 2020 e 7 de outubro de 2020 (em apenas 2 meses!), o Requerido, enquanto único consorte administrador de conta bancária, movimentou a seu bel prazer, dissipando indiscriminadamente o saldo aí existente, num valor que ascende a EUR 23.818,93 (vinte e três mil, oitocentos e dezoito euros e noventa e três cêntimos), sendo que quando consultados, pela Requerente, os movimentos da referida conta, surpreendentemente esta apenas apresentava um saldo disponível de EUR 219,07.
Ou seja, incumbia ao Tribunal a quo e assim também a este Tribunal apreciar a questão de saber se, requerido o arrolamento de bens por um cônjuge contra o outro e decretado o mesmo, poderia o requerido ser nomeado depositário dos saldos das contas que eram por si titulados e isto porque, conforme o alegado, a assim ser poderia o mesmo movimentar aqueles saldos bancários e assim dissipar os mesmos.
Releva para o efeito que, conforme resulta do a artº 1189º do Código Civil, 2o depositário este não tem o direito de usar, sem mais, a coisa depositada, nem a dar em depósito a outrem, se o depositante o não tiver autorizado”.
Por outro lado, e de acordo com o nº 5 do artº 406º do Código de Processo Civil, são aplicáveis ao arrolamento, subsidiariamente, as regras relativas à penhora.
Ora, como refere o Acordão da Relação de Guimarães, de 19 de junho de 2014, proc. 1281/12.2TBEPS-B.G1. “Todos estes considerandos servem para alicerçar aquilo que julgamos verdadeiramente importante na aplicação do direito ao caso concreto: a interpretação teleológica da norma e o fim último dos institutos jurídicos não podem deixar de nortear o juiz na tomada das suas decisões, arredando aquelas que, não obstante assentes em construções jurídicas defensáveis, acabam por se traduzir em claro prejuízo para as partes e tornar iníquo o direito.
Sendo notória a facilidade com que se extravia, oculta ou dissipa uma quantia em dinheiro e não resultando apuradas quaisquer garantias de que, em caso de incumprimento, a Requerente tenha outros meios de vir a receber a sua meação, a decisão que permite ao Requerido movimentar o dinheiro depositado equivale a retirar eficácia a diligência judicial antes ordenada e a colocar a recorrente numa situação desprovida de real tutela jurídica.
Ora, tendo sido decidido o arrolamento dos saldos das contas bancárias identificadas pela requerente e, bem assim, daquelas que se vieram a apurar ser tituladas pelo requerido, indeferindo-se o pedido de indisponibilidade de tais verbas para o mesmo, tendo a Requerente alegado que é, juntamente com o Requerido, titular de vários depósitos bancários constituídos em diversas instituições, saldos esses de que este último se tem vindo a apropriar, pedindo a sua nomeação como depositária, deve ter-se em consideração que as partes são casadas em regime de comunhão de adquiridos e ainda que, os cônjuges, na gestão da sua vida privada, podem ver-se confrontados com a necessidade de utilizar parte das quantias aforradas, o que não é totalmente incompatível com o fim da providência.
Ora, como resulta do Acordão da Relação de Guimarães de 26 de novembro de 2020, in processo 1475/19.0T8BCL-A.G1, “em função das características e funções próprias do arrolamento como preliminar da acção de divórcio acima enunciadas, serão responsáveis os titulares das contas arroladas, neste caso, o cônjuge ou cônjuges titulares constantes dessas contas, prestando contas da sua função de depositário, na medida em que as contas bancárias tanto podem estar na titularidade de um só dos cônjuges ou dos dois em conjunto, devendo responder ambos ou cada um nos termos enunciados nos citados artigos 1187.º do CC e 760.º n.º 1 do CPC”.
Sendo que “Nos casos dos contratos de depósito bancário, o titular ou co-titular do depósito possui um direito de crédito sobre as instituições bancárias onde se encontrem constituídos esses depósitos, presumindo a lei, nas situações das chamadas “contas conjuntas” ou “contas colectivas” que titulam depósitos bancários efectuados em nome de duas ou mais pessoas, que, enquanto não se fizer prova em contrário, cada um dos depositantes comparticipa no crédito em igual montante – art. 516.º do C. Civil”.
Assim sendo, entendemos que, tratando-se de saldos bancários das contas cujo arrolamento foi ordenado, devem nomear-se como depositários dos mesmos Requerente e o Requerido, cada um na proporção de metade do respectivo valor, “a fim de não inviabilizar a sua utilização normal e evitar que um dos cônjuges administre os mesmos de forma a comprometer definitivamente os interesses patrimoniais do outro, em conformidade com o que se determina nos termos do art. 408.º, n.º 2, do C. P. Civil” (conforme o último dos Acordãos acima citados e ainda Acordão Acordão da Relação de Guimarães de 26 de novembro de 2020, in processo 1475/19.0T8BCL-A.G1, Relação de Évora de 12 de outubro de 2006, processo 368 itij e Relação de Guimarães, de 12 de janeiro de 2012, Procº419/08.0TCGMR.G1, itij).
Nestes termos, procede, em parte, o recurso.
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V- DECISÃO:

Considerando quanto vem exposto acordam os Juízes desta Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente a apelação e nomear depositário dos saldos bancários a Requerente e o Requerido, cada um na proporção de metade do respectivo valor.

Custas pela Requerente/Recorrida.
Guimarães, 13 de julho de 2022

Relatora: Margarida Pinto Gomes
Adjuntas: Maria da Conceição Bucho
Raquel Rego