ACÇÃO DE DESPEJO
FALTA DE PAGAMENTO DE RENDAS
MEIOS DE DEFESA
Sumário


I - Se é certo que, no incidente de despejo imediato, o arrendatário não está impedido de invocar qualquer meio de defesa com vista a demonstrar a inexigibilidade das rendas vencidas na pendência da acção, a existência de humidades/infiltrações no locado não dispensa o mesmo do seu pagamento, posto que a obrigação correspectiva do senhorio é a de proporcionar o gozo do locado, sendo acessória a de remover as humidades que, a existirem, poderão dar apenas lugar à redução da renda, ao abrigo do estatuído no artº 1040º do Código Civil.

Texto Integral


Acordão no Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

Na presente acção comum que A. P. e M. P. intentaram contra A. R., todos com os sinais dos autos, vieram os AA pedir a resolução do contrato de arrendamento de habitação e o despejo imediato do locado, correspondente à fração autónoma designada pela letra “S”, relativa à habitação no terceiro andar direito frente, tendo na cave um lugar para aparcamento de uma viatura ligeira designado pelo número …, do prédio urbano sito na Rua ..., nºs … e …, da União das Freguesias de … (...), por falta de pagamento de rendas, condenando-se ainda a Ré no pagamento das rendas vencidas que, até ao momento, atingiam o montante de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros), bem como as que se vencerem na pendência da presente ação e em indemnização mensal de valor igual ao da renda até à entrega efetiva do arrendado, caso se verifique atraso na restituição do mesmo.
Alegam, em síntese, que, celebraram a 1 de dezembro de 2020, um contrato de cedência do referido prédio para habitação pela renda mensal de € 500 (quinhentos euros), e que, a Ré não pagou as rendas vencidas desde o mês seguinte de janeiro de 2021 até à presente data (março de 2021), mostrando-se impossível o contacto com a Ré.

A Ré apresentou contestação, admitindo os factos relativos à celebração do contrato, mas invocando que os senhorios incumpriram a sua obrigação, por o locado não ter condições - o que sabiam e ocultaram da Ré – provocando enormes infiltrações e inundações no locado.

Deduziu reconvenção, concluindo pela sua procedência e consequentemente:

a) ser declarado o incumprimento do contrato de arrendamento em apreço por culpa exclusiva dos AA. (senhorios), em virtude dos invocados vícios da coisa locada;
b) ser declarada a conversão da caução prestada (2.500,00 € - dois mil e quinhentos euros) em rendas, através da justa e adequada compensação;
c) serem os AA. condenados, a título de responsabilidade contratual, em virtude dos vícios da coisa locada:
c.1) no ressarcimento (indemnização) pelos danos patrimoniais causados à R. em virtude dos vícios da coisa locada alegados supra, designadamente em perdas, estragos materiais e deteriorações de bens móveis desta, no valor de 6.000,00 € (seis mil euros); e, cumulativamente,
c.2) serem os AA. serem condenados no ressarcimento (indemnização) pelos danos não patrimoniais da R., decorrentes da alteração do seu estado de saúde física e psicológica (ou emocional), no valor de 6.000,00 € (seis mil euros);
d) se assim não for entendido, e subsidiariamente, serem os AA. condenados nas mesmas quantias a título de responsabilidade civil extracontratual, por factos ilícitos.

Houve réplica e dedução do INCIDENTE DE DESPEJO IMEDIATO, alegando que a Ré, depois de intentada a ação, continua sem proceder ao pagamento das rendas, nomeadamente das vencidas desde abril a outubro de 2021.

A Ré, sem comprovar qualquer pagamento, nesta sede, veio alegar que este incidente admite outra defesa, havendo previamente que decidir sobre a existência ou exigibilidade do dever de pagar renda.

Na 1ª instância foi considerado provado o seguinte:
1. Por contrato escrito, celebrado em 1 de dezembro de 2020, os AA. deram de arrendamento à Ré, para sua habitação, a fração “S” e lugar para aparcamento de viatura, correspondente à habitação no … andar …, na Rua ..., n.º …, em Braga, com cozinha equipada com forno, fogão, frigorífico, exaustor e máquina de lavar a roupa, com renda mensal acordada de 500€ (quinhentos euros), pagável no IBAN dos senhorios até ao dia 8 do mês respetivo.
2. O contrato foi celebrado pelo prazo de 1 ano e teve início a 1 de dezembro de 2020.
3. A Ré procedeu ao pagamento do mês de dezembro e pagou a caução de €2.500 nos termos do contrato junto.

Para fundamentar a decisão que decretou o despejo imediato, o tribunal a quo fez constar que:
«Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais.
Não sendo feito, encontra-se previsto o incidente de despejo imediato, nos termos do artigo 14.º, n.º 4 do NRAU, que dispõe: 4 - Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.
A Ré alega que não procedeu ao pagamento das indicadas rendas, e que na ação se discute se as mesmas são exigíveis.
Como já se decidiu supra, não tendo sido alegada privação ou limitação do gozo/uso do locado, pois que continua ali a habitar, não se verifica o nexo de correspetividade, sendo exigível a renda acordada (ver, Ac. RG de 21/10/2021, p. 8357/17.8T8VNF, www.dgsi.pt).
A Ré, à cautela, deveria, pelo menos ter depositado a quantia a favor dos autos. Esta exigência não é desproporcional, nem inconstitucional, sendo que a própria Ré pediu a conversão da caução em pagamento de rendas, tendo decorrido mais de um ano, sem o pagamento de qualquer quantia aos senhorios.
Assim, independentemente do fundamento desta ação, o incumprimento desta obrigação principal do arrendatário no seu curso, constitui como um novo fundamento resolutivo.
Não sendo cumprida esta obrigação, e não se verificando a alegada inexibilidade, deverá ser procedente o incidente e decretado o despejo imediato».

Proferiu, então, decisão decretando a resolução do contrato, por falta de pagamento de rendas e julgou procedente o incidente de despejo imediato do locado, entretanto deduzido, com o mesmo fundamento.
Ordenou o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido reconvencional deduzido pela ora recorrente.

Com ela não se conformando, veio a ré interpor o presente recurso, onde conclui nos seguintes termos:

1. Vem o presente recuso interposto do despacho saneador proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no qual se concluiu pela procedência da ação, e em consequência, decretado a resolução do contrato de arrendamento para habitação, condenando a ora Recorrente a entregar o locado aos Recorridos e a pagar as rendas vencidas no montante de € 1 500,00 (mil e quinhentos euros), bem como as que se vencerem na pendência da ação e em indemnização mensal de valor igual ao da renda até entrega efetiva do arrendado, caso se verifique atraso na restituição do mesmo.
2. A decisão sobre a qual recai o presente ocorreu sem que tivesse sido dado cumprimento ao princípio do contraditório e à revelia dos mais elementares princípios do Estado de Direito, (cfr. artigo 20º da CRP).
3. Em 29.03.2021 os Autores intentaram uma ação de despejo (declarativa comum de condenação) e, por seu turno, em 03.09.2021 a Ré, ora Recorrente, juntou aos autos o seu articulado, denominado por contestação/reconvenção.
4. A 03.11.2021, vieram os Recorridos apresentar a Réplica.
5. Naquela mesma data, os Recorridos, ao abrigo do disposto nas normas ínsitas no artigo 14º, nsº 3 e 4 do NRAU, requereram a notificação da Ré do valor em dívida por conta das rendas vencidas e não pagas na pendência da ação de despejo, no sentido de proceder ao pagamento daquelas importâncias no prazo de dez dias.
6. Em sede de audiência prévia, realizada a 2.03.2022, a Mmª Juiz do Tribunal a quo proferiu despacho no sentido de a aqui Recorrente ser notificada para no prazo de 10 dias proceder à junção do comprovativo do pagamento das rendas vencidas na pendência da ação ou proceder ao seu depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sob pena de despejo imediato.
7. A Recorrente, por requerimento ao processo datado de 22.03.2022, explanou as razões pelas quais não é de admitir no nosso ordenamento jurídico o entendimento segundo o qual o incidente de despejo imediato não admite outra posição que não seja a prova do pagamento ou o depósito das rendas e indeminização devidas, assim como as graves deficiências de que o locado padece.
8. Por requerimento datado de 29.03.2022 vieram os Recorridos deduzir o incidente de despejo imediato da Recorrente nos termos do disposto no nº 5 do artigo 14º do NRAU.
9. Antes de decorrido o prazo de que dispunha a Recorrente para se pronunciar quanto aquele incidente, a Mmª Juiz do tribunal a quo, em 07.04.2022, julgou a ação procedente.
10. A Recorrente viu o seu direito ao contraditório restringido, ficando irremediavelmente privada de invocar e provar as causas que, a final, poderiam obstar ao seu imediato despejo.
11. Não obstante, a Recorrente deduziu oposição em 20.04.2022.
12. Muito antes de decorrido o prazo de que dispunha a Recorrente para se pronunciar quanto ao incidente deduzido, a Mmª Juiz do Tribunal a quo, pôs termo ao processo, sufragando o entendimento de que não resulta provado que a Recorrente tenha ficado privada, total ou parcialmente, do gozo do locado, e, ainda, que “A Ré, à cautela, deveria, pelo menos ter depositado a quantia a favor dos autos.”.
13. A Recorrente viu o seu direito ao contraditório restringido, ficando irremediavelmente privada de invocar outras causas que, a final, poderiam obstar ao seu imediato despejo.
14. O despejo imediato com fundamento na falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da presente ação não pode operar automaticamente.
15. Ao abrigo da Constituição, impera que haja lugar ao contraditório, como corolário da proibição da indefesa, extraível do direito fundamental de acesso à justiça, nomeadamente da garantia de um processo justo e equitativo.
16. É de admitir, sob pena de violação do princípio da proibição da indefesa, outros meios de defesa que não seja o pagamento ou o depósito dos montantes em falta.
17. Quanto à matéria que aqui se pleita, pronunciou-se o Tribunal Constitucional, por diversas vezes, concluindo pela inconstitucionalidade da norma contida no nº 4 do artigo 14º do NRAU na interpretação segundo a qual o único meio de defesa do arrendatário é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida.
18. Sob pena de violação dos princípios do Estado de Direito Democrático, nomeadamente da igualdade (artigo 13º da C.R.P.), da força jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, liberdades e garantias (artigo 18º da C.R.P.) e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (artigo 20º da C.R.P.).
19. Há, pois, que dar relevância a tudo o quanto foi alegado pela Recorrente na sua contestação/reconvenção, bem como ser admitida e valorada a oposição por si deduzida contra o incidente.
20. Por aquela foi invocada a exceção de não cumprimento, pois que o locado padece de várias infiltrações e humidades, pelo que não detém condições de habitabilidade, ficando desta forma comprometido o uso e fruição do imóvel.
21. A situação em apreço tem necessariamente de ser provada, seja através de prova testemunhal seja através da realização de inspeção – que foi requerida pela Recorrente na sua oposição ao incidente de despejo imediato.
22. Não deveria ter sido deferido o incidente naqueles termos sem que antes tivesse sido dada a oportunidade de a aqui Recorrente fazer prova de tudo o quanto alegou.
23. Dos autos não resultam todos os elementos indispensáveis para que a solução encontrada não possa ser posta em causa por uma outra solução que se mostre também plausível e admissível.
24. Existem outros elementos nos autos que devem merecer reflexão e que tornam, em nosso ver, com o devido respeito por opinião em contrário, prematura a decisão proferida.
25. Não foi promovida a produção da prova sobre toda a factualidade alegada que se revela pertinente à luz das várias soluções plausíveis para as questões de direito colocadas nestes autos.
26. Impunha-se a produção de prova e só depois, de então reunir os elementos necessários, decidir a causa em consonância com o direito e com a factualidade dada como provada.
27. Pelas razões aqui aduzidas, deve revogar-se do decidido e proceder-se à admissão da Oposição e proceder-se à apreciação de tudo o quanto foi alegado pela Recorrente, nos articulados por si apresentados nos presentes autos.

Conclui pelo provimento do presente recurso, com revogação da decisão recorrida.
Não foram apresentadas contra-alegações pela autora.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A factualidade a ter em conta a que conta do relatório supra, que aqui se dá por reproduzida e integrada.

Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.
Há que ter presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do C. P. Civil).
Nos recursos apreciam-se questões e não razões.

A questão jurídica a que se reporta a presente apelação consubstancia-se em saber se, intentada a acção de despejo por falta de pagamento de rendas e, na sua pendência, deduzido o incidente de despejo imediato, com fundamento na ausência de comprovação do pagamento de rendas entretanto vencidas, podem ser invocados e devem ser apreciados outros meios de defesa que não seja o pagamento ou o depósito dos montantes em falta.

Não se suscitam dúvidas de que estamos na presença de um contrato de locação, na modalidade de arrendamento para habitação.
O contrato de locação consiste, nos termos legais, no vínculo jurídico pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário da coisa, mediante retribuição – cfr. art. 1022º do Cód. Civil.
Pela sua própria definição, este contrato gera para o locador a obrigação de entrega da coisa locada ao locatário e constitui-o, ainda, na obrigação de lhe assegurar o gozo da mesma para os fins a que a coisa se destina; ao locatário incumbe, desde logo, o pagamento da respectiva contrapartida, ou seja, a renda.
Deparamo-nos com um contrato bilateral, oneroso e sinalagmático, em que a obrigação do senhorio de proporcionar ao locatário o gozo da coisa tem, como correspectivo, a obrigação deste último de pagar a renda ou aluguer.

Está provado nos autos e não mereceu impugnação em sede recursiva, que:
1. Por contrato escrito, celebrado em 1 de dezembro de 2020, os AA. deram de arrendamento à Ré, para sua habitação, a fração “S” e lugar para aparcamento de viatura, correspondente à habitação no … andar …, na Rua ..., n.º …, em Braga, com cozinha equipada com forno, fogão, frigorífico, exaustor e máquina de lavar a roupa, com renda mensal acordada de 500€ (quinhentos euros), pagável no IBAN dos senhorios até ao dia 8 do mês respetivo.
2. O contrato foi celebrado pelo prazo de 1 ano e teve início a 1 de dezembro de 2020.
3. A Ré procedeu ao pagamento do mês de dezembro e pagou a caução de €2.500 nos termos do contrato junto.
O fundamento da acção foi, justamente, o da falta de pagamento de rendas por parte da ré recorrente.
Ora, conforme consta já da sentença recorrida, nos termos do artigo 1083.º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, vigente à data da propositura da ação, o senhorio pode resolver o contrato com base em incumprimento grave da outra parte, que torne a inexigível a manutenção do arrendamento, estatuindo o nº5 do preceito que é inexigível para o senhorio a manutenção do arrendamento no caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda.
Sendo o pagamento um facto extintivo da obrigação, sobre a ré, enquanto locatária, recaía o ónus de demonstrar o cumprimento da sua obrigação (artº 342º do CC), o que não fez.
Assim, tendo os AA alegado a falta de pagamento a partir de Dezembro de 2020 e não se mostrando provado o pagamento, haverá lugar à resolução do contrato pelo senhorio, na decorrência do citado artº 1083.
Todavia, a ré veio arguir a faculdade de recusar a sua prestação com fundamento na não utilização na plenitude do arrendado, que, na sua versão, sofria de graves infiltrações, que eram do conhecimento dos autores e que as omitiram.
Ao mesmo tempo, afirma que só por dificuldades económicas ainda não abandonou o locado.
E, por essa exacta excepção de não cumprimento, entendeu e continua a invocar que não poderia ter sido decretada a resolução do contrato nem o despejo imediato, o mesmo é dizer, nesta linha de pensamento, que o arrendatário pode invocar qualquer meio de defesa susceptível de demonstrar a inexigibilidade das rendas vencidas na pendência da acção.
Trata-se de questão recorrente, que tem sido objecto de pronúncia por parte da doutrina e da jurisprudência, até mesmo provinda do Tribunal Constitucional, aliás, invocada nos autos.
Antes mesmo de enunciarmos a nossa posição, importa abordar a invocada ausência de contraditório no que à matéria concerne, como se recolhe das alegações apresentadas.
Reza o artº 3º, nº3, do CPC que o «juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
A consagração do princípio do contraditório, que aqui se encontra, tem ínsito o pensamento de que só por esta via se obtém a justa composição do litígio.
Todavia, este princípio basilar não é de aplicação cega, cuidando de saber-se se, em cada caso concreto, a parte acabou por expor as suas razões no que a cada matéria respeita, ou se tal faculdade foi postergada.
Daí que se admita que não se encontre violação desse princípio quando a questão já tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, pág. 20).
Volvendo ao caso dos autos, após a contestação, vieram os AA apresentar requerimento no sentido da notificação da Ré para fazer prova do pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, atento o disposto no artº 14º do NRAU e como preliminar do incidente de despejo imediato.
Colhe-se, depois, da acta de audiência prévia que o tribunal ordenou essa notificação, com a cominação expressa de despejo imediato.
A este requerimento e notificação efectuada, respondeu a ré dizendo, justamente, que o despejo não poderia operar automaticamente, sendo de admitir outros meios de defesa, para além do pagamento, sob pena de violação do princípio da proibição da indefesa.
Nesta linha, acrescentava o que já havia dito em sede de contestação/reconvenção, isto é, a existência de humidades e infiltrações que tornavam insalubre o interior da habitação.
Não demonstrou o pagamento das rendas entretanto vencidas.
Após essa ausência de prova do pagamento, vieram os AA deduzir o incidente de despejo imediato.
Foi, depois, proferida a decisão ora recorrida.
Aqui chegados, verifica-se que a Ré havia já sido advertida da cominação do despejo imediato em sede de audiência preliminar e os fundamentos que se colhem da resposta ao incidente mais não são do que a repetição do que havia já alegado em sede de contestação e do requerimento preliminar atinente ao incidente.
Não se pode, por isso, dizer que se mostrou prejudicada a sua defesa, porque, em essência, nada de novo arguiu.
E também não se pode dizer que o tribunal não os atendeu por tal motivo, posto que estava já na posse deles e considerou-os, classificando-os como improcedentes para efeitos de obstar à resolução e ao despejo imediato.
De resto, cumpre ressaltar que, quando a ré apresentou a sua resposta ao incidente de despejo, a 20.04.2022, foi objecto de despacho datado de 12.05.2022 do seguinte teor:
«O incidente de despejo imediato foi deduzido por requerimento de 3 de novembro de 2021 e respondido pela Ré a 22 de março de 2022 e decidido a 6 de abril, pelo que o novo requerimento apresentado (ref.ª 12826672) e resposta (ref.ª12915095), mostram-se inúteis, pelo que nada mais há a determinar».
Este despacho transitou em julgado.
Assim, o princípio do contraditório mostra-se observado cabalmente, não ocorrendo comprometimento, em qualquer grau, no exercício de defesa da ré, improcedendo a arguição.

Quanto ao mérito:
Sabemos que, na pendência da acção de despejo, as rendas vencidas devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais, como impõe o artº 14º, nº3, do NRAU.
Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final – nº4.
Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no nº7 do art. 15º e nos artigos15º-J, 15ºK e 15ºM a 15ºO – nº5.
Fazendo uso das palavras constantes do acórdão da RP de 19.05.2014 (procº 1423/11.5TBPRD-A.P1), «o incidente de despejo imediato previsto no nº5 do artº 14º, da Lei 6/2006, visa evitar situações em que o arrendatário …poderia continuar a gozar a coisa arrendada sem pagar a renda estipulada, podendo tal situação arrastar-se por vários anos, desde a instauração da acção até à execução da sentença transitada em julgado, após um ou mais recursos».
Conclui, por isso, este aresto, na senda de outros e de avisada doutrina, que o incidente não admite outra oposição que não seja a prova do pagamento ou depósito das rendas e indemnização devidas.
Acontece que este entendimento não pode ser apelidado de unânime e disso fez já eco a recorrente.
Na verdade, outros há que consideram que não pode ocorrer limitação dos meios oponíveis ao despejo imediato, matéria a que foi chamado a pronunciar-se o Tribunal Constitucional em dois arestos recorrentemente citados.
No primeiro, datado de 2005 (673/2005) e, portanto, ainda na vigência do RAU e o segundo do ano de 2018 (327/2018), já com o NRAU a vigorar.
Conclui-se no primeiro «julgar inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do RAU, na interpretação segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida».
No segundo, decide-se «Interpretar o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, em conformidade com o princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.os 1 e 4, da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto à existência ou exigibilidade do próprio dever de pagamento de renda, o réu não deve ser impedido de exercer o contraditório mediante a utilização dos correspondentes meios de defesa».
Aderindo de modo que julgamos generalizado, esta Relação de Guimarães, tem feito eco do entendimento contido nos dois citados arestos, como se recolhe, exemplificadamente, nos recentes acórdãos de 21.10.21 (procº8357/17.8T8VNF-A.G1) e de 13.01.2022 (procº 474/20.3T8PRG.G1), em ambos se tendo decidido que o incidente de despejo imediato admite a dedução pelo arrendatário de qualquer meio defesa susceptível de demonstrar o pagamento ou a inexigibilidade das rendas vencidas na pendência da ação.
A letra do preceito vertido no artº 14º, nº5, «aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento» leva, igualmente, autores como Olinda Garcia a defender uma interpretação nos termos da qual a falta de prova do pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da acção não implica a procedência automática do incidente de despejo imediato (Arrendamento Urbano Anotado, 3ª ed., Coimbra Editora, 2014, pag. 194).
Também no Supremo Tribunal de Justiça esta interpretação encontra guarida, como se constata no acórdão de 13.07.2017, proferido no procº 783/16.6T8ALM-A.L1.S1.
Assim, em adesão à interpretação dada pelo TC que, não sendo vinculativa, não deve deixar de ser sopesada de modo especialmente relevante, também nós nos colocamos na posição de admitir, no incidente de despejo imediato, a dedução pelo arrendatário de qualquer meio defesa susceptível de demonstrar o pagamento ou a inexigibilidade das rendas vencidas na pendência da ação.
Esta solução, no entanto, reconduz-nos a saber se o arrendatário pode, legitimamente, deixar de proceder ao pagamento das rendas quando, como no presente se alega, o locado apresenta deficiências como humidade e infiltrações, ou seja, trata-se de apurar se vinga, no caso, a excepção de não cumprimento.
De acordo com o que dispõe o arº 428º, nº1, do Código Civil, «Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo».
«A exceptio é, como se sabe, a faculdade que nos contratos bilaterais cada uma das partes tem de recusar a sua prestação enquanto a outra não realizar, ou não oferecer a realização simultânea da contraprestação, sendo que o alcance da excepção de não cumprimento do contrato deve ser feito em conformidade com o princípio da boa fé, aferindo-se da legitimidade da suspensão da prestação por contraprestação, atendendo à proporcionalidade que a situação concreta mereça» – acórdão da RLx de 27.04.2021 (procº 90941/18.0YPRT.L1-7), citando José João Abrantes in Excepção De Não Cumprimento Do Contrato: Conceito E Fundamento,2ªed, Coimbra, Almedina, 2012, pág.107.
Deve, porém, ter-se presente que, para que a exceptio se assuma como legítima, terá de verificar-se uma proporcionalidade entre a recusa e a inexecução da contraparte que reclama o cumprimento.
Como, acertadamente, refere a decisão em crise, «reconhece-se ao contrato de arrendamento, como contrato bilateral, a aplicação do instituto da exceção de não cumprimento, prevendo-se no próprio artigo 1040.º, n.º 1 do Código Civil, «uma manifestação especial da aplicação da exceptio no âmbito do contrato de arrendamento» (A. MENEZES CORDEIRO, “Leis do Arrendamento Urbano Anotadas ”, Almedina, 2014, pág. 72), ao ali prever que «se, por motivo não atinente à sua pessoa ou à dos seus familiares, o locatário sofrer privação ou diminuição da coisa locada, haverá lugar a uma redução da renda ou aluguer proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta...».
Ora, é sabido que o pagamento da renda e a obrigação de ceder o gozo da coisa, são as duas prestações essenciais recíprocas do contrato de arrendamento, a que se somam, depois, outras dele decorrentes.
Veja-se, aliás, que o artº 1032º do CC só classifica de incumprimento do contrato pelo senhorio os casos e que os vícios da coisa locada não permitam realizar cabalmente o fim a que é destinada, ou carecer de qualidades necessárias a esse fim ou asseguradas pelo locador, mas, ainda assim, nas condições aí definidas, regime logo de seguida afastado no preceito seguinte, pelas circunstâncias ali enunciadas.
No entanto, a falta de obras atinentes à remoção das humidades não pode alicerçar a exceptio, não dispensa o pagamento da renda por não existir a proporcionalidade exigível entre a infracção contratual e a recusa de pagamento.
A falta de pagamento não pode deixar de ser considerada como incompatível com o gozo da coisa.
De resto, nada impede o arrendatário de fazer uso dos meios legais postos ao seu alcance, nomeadamente o que se consagra no artº 1036º do diploma que temos vindo a citar.
Acompanhamos, por tudo, a 1ª instância ao considerar que «Não resultando que a Ré tenha ficado privada, total ou parcialmente, do gozo/uso do mesmo, pois que continua ali a habitar, não se verifica o nexo de correspetividade exigido».
Já por acórdão de 6.05.1982 (BMJ 317º, pág. 239) o STJ concluía que a «mora do senhorio em fazer obras sem que tal implique a perda da coisa locada, não justifica que o arrendatário deixe de pagar as rendas pois estas obrigações não são correspectivas. À falta de cumprimento pelo senhorio da obrigação de fazer as obras correspondem o dever geral de indemnização, nos termos do art° 562° do CPC., e a faculdade conferida pelo art. 1036° do mesmo Código»
Pensamos, assim, poder afirmar que se é certo que, no incidente de despejo imediato, o arrendatário não está impedido de invocar qualquer meio de defesa com vista a demonstrar a inexigibilidade das rendas vencidas na pendência da acção, a existência de humidades/infiltrações no locado não dispensa o mesmo do seu pagamento, posto que a obrigação correspectiva do senhorio é a de proporcionar o gozo do locado, sendo acessória a de remover as humidades que, a existirem, poderão dar apenas lugar à redução da renda, ao abrigo do estatuído no artº 1040º do Código Civil.

III – DECISÃO

Nestes termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela ré/apelante, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

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Guimarães, 13 de Julho de 2022

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora – Raquel Rego;
1.º Adjunto - Jorge Teixeira;
2.º Adjunto - José Manuel Flores.