IMPLANTAÇÃO DE OBRA PARA ESTABELECIMENTO DAS LINHAS ELÉCTRICAS
SERVIDÃO ADMINISTRATIVA
TITULAR DO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Sumário


- A indemnização prevista no art. 37º, Decreto-Lei n.º 43335 de 19/11/1960, visa a compensação pelos danos sofridos com a implantação da obra para estabelecimento das linhas eléctricas e com a referida servidão administrativa, à data em que a mesma se concretiza ou estabelece.
- As Servidão Administrativas, quando constituídas sobre determinado bem, não são susceptíveis de separação, continuando a ser eficazes e oponíveis perante terceiros, mesmo em caso de negócios jurídico-privados ou em venda judicial executiva, tal como se coaduna com o CE.
- Por isso, o proprietário que adquiriu o imóvel onerado com servidão cerca de 6 anos depois daquele momento, não é titular do direito à indemnização prevista no citado art. 37º.

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

1. RELATÓRIO

Recorrente(s): J. C.;

- Recorrido/a(s): X Distribuição – Energia, S.A.

*
J. C. veio propor contra X Distribuição – Energia, S.A. a presente acção declarativa de condenação, peticionando que a Ré: (i) seja condenada a reconhecer o direito de propriedade do Autor; (ii) a retirar os fios, cabos e postes de condução eléctrica de alta tensão que atravessam e ocupam o prédio do Autor; (iii) a pagar ao Autor uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais em quantia nunca inferior a € 327.000,00, em virtude da ocupação ilegal do referido prédio, do locupletamento às custas do Autor e dos prejuízos e danos a este causados, acrescidos de juros vincendos à taxa legal em vigor desde a data da citação até integral e efectivo pagamento; (iv) que se declare que a Ré está a violar os direitos de personalidade dos autores, seus familiares, nomeadamente, o direito à vida, o direito ao bem-estar, e segurança, o direito ao respeito pela vida privada, familiar e domicílio, bem como o seu direito de propriedade; sem prescindir, e caso assim não se entenda, por deter a Ré título que legitime a ocupação supra referida, (v) seja a Ré condenada a indemnizar o Autor pela oneração da servidão administrativa constituída no seu prédio, bem como pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo Autor, em quantia nunca inferior a € 345.000,00, acrescido de juros vincendos à taxa legal em vigor desde a data da citação até efectivo e integral pagamento; caso não se entenda ser de retirar na íntegra os fios e cabos de condução eléctrica e respectivos cabos de condução eléctrica e respectivos postes de suporte, (vi) seja a Ré condenada a alterar a passagem aérea e postes de suporte existentes na propriedade do Autor, colocando a mesma a uma distância nunca inferior a 20 metros da residência do Autor, junto à estrema da propriedade, e (vii) a condenação da Ré numa sanção pecuniária compulsória não inferior a € 1.000,00, por cada dia de atraso relativamente ao peticionado em (ii) e (vi), desde a data da citação ou, subsidiariamente, desde a data da sentença até efectiva alteração/remoção dos fios, cabos e postes de condução de energia eléctrica que atravessam o prédio do Autor.
Regularmente citada, contestou a Ré, invocando a constituição de uma servidão administrativa sobre o prédio do Autor, a ilegitimidade do Autor, a prescrição do direito invocado e impugnando motivadamente os factos alegados na petição inicial.
Em sede de audiência prévia, o Autor respondeu às excepções invocadas, foi proferido despacho saneador, julgou-se improcedente a excepção de ilegitimidade invocada, relegou-se para final o conhecimento da demais matéria de excepção.
A final foi proferida decisão
“Em face do exposto, julgo a acção proposta por J. C. contra X Distribuição – Energia, S.A. parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, consequentemente, declaro o Autor dono e legítimo proprietário do prédio descrito na alínea a), do ponto II.1..
Absolvo a Ré do demais peticionado
Custas pelo Autor (atenta a irrelevância tributária do decaimento), sem prejuízo do decidido administrativamente quanto ao apoio judiciário.”
*
Inconformado com tal decisão, dela interpôs Demandante o presente recurso de apelação, em cujas alegações formula as seguintes
conclusões:

1 - Atentos os factos provados, nomeadamente os factos provados em v), w) e y) resulta que o prédio do Autor sofreu uma desvalorização e que o Autor nunca recebeu o pagamento de qualquer indemnização da Ré por essa desvalorização.
2 - É entendimento do Tribunal de Primeira Instância que, uma vez que o Autor não era o proprietário do prédio aquando da emissão da licença de estabelecimento e constituição da servidão administrativa, não é credor da indemnização prevista no artigo 37.º do DL 43335 de 19/11/1960.
3 - A interpretação e fundamentação do Tribunal a quo quanto ao titular do direito de crédito à indemnização baseou-se na errada interpretação do artigo 37.º do citado diploma legal, posição com a qual se discorda.
4 - Tendo sido dado como provado que o prédio do Autor desvalorizou com o atravessamento da linha de condução eléctrica de média tensão, daqui resulta a verificação de um dano – a própria desvalorização e sendo certo que, a desvalorização é actual, ocorre no mesmo prédio, é um dano que que urge indemnizar e quem tem legitimidade a reclamar o pagamento da indemnização pela verificação desse prejuízo é o proprietário actual e sendo o ora Recorrente o proprietário actual do prédio, é aquele que pode reclamar e ser o credor da indemnização a que tem direito pela desvalorização, já que esta se verifica na sua esfera jurídica.
5 - Resultando dos factos dados como provados que se encontram reunidos os pressupostos previstos no artigo 37.º do DL 43335 de 19/11/1960, deveria a Ré ter sido condenada na obrigação de reparar o dano mediante o pagamento de uma indemnização ao Autor que é o dono e legítimo proprietário do imóvel descrito em a) – cfr. alínea b) dos factos provados.
6 - Verificando-se a existência de uma licença de estabelecimento para o atravessamento da linha média tensão tal ocupação é licita, o que não impede da obrigação por parte da Ré de reparar o dano e sendo a ocupação do espaço aéreo uma servidão administrativa, o artigo 37.º do DL 43335 de 19/11/1960 impõe a reparação dos prejuízos causados e a indemnização deve ser calculada.
7 - Tendo sido dado como provado que houve uma diminuição do valor de mercado do prédio com o atravessamento da linha eléctrica pelo prédio do ora Recorrente verifica-se a existência de um dano e está preenchido o requisito do artigo 37.º do DL 43335 de 19/11/1960 e daí reunidos os pressupostos para que seja paga a indemnização, a calcular com as necessárias adaptações de acordo com as normas do Código das Expropriações.
8 - O artigo 37.º do DL 43335 de 19/11/1960, fala de quaisquer prejuízos provenientes de construção, sejam eles directos e imediatos, sejam quaisquer outros que possam advir do simples facto da sua existência.
9 - Isto leva a que se considere, como se escreveu no Acórdão do STJ de 03/07/2014 “que o citado artigo 37.º do Decreto Lei n.º 43 335 de 19 de Novembro de 1960, ao prever quaisquer prejuízos provenientes da construção das linhas quis estabelecer um direito indemnizatório geral decorrente não só do facto de existirem prejuízos directos advindos do acto de construção mas de todos os prejuízos actuais e futuros decorrentes de uma diminuição do valor do imóvel pela construção ou passagem de linhas… ”.
10 - In casu tendo ficado provado que após a instalação da linha de média tensão o prédio do Recorrente ficou desvalorizado, não se vê como ao Autor não lhe assiste o direito de ser indemnizado pelo valor de uma tal desvalorização, sendo, assim, irrelevante que tenha adquirido o imóvel após a emissão da licença de estabelecimento.
11 – Aqui tem, por isso, aplicação um ensinamento de Pires de Lima e Antunes Varela, segundo o qual, “nos casos em que a lei permite a ocupação do espaço aéreo correspondente ao prédio para a satisfação de certos interesses de carácter colectivo (passagem de linhas de altas tensão para transporte de electricidade, instalação de fios telegráficos ou telefónicos, etc) há, em regra, a atribuição de um direito de indemnização ao proprietário pelo prejuízo que ele sofre. É mais um tipo de caso em que a licitude do acto não impede a obrigação de reparar o dano, pela injustiça que constituiria o sacrifício de uns tantos em proveito de muitos outros. ”
12 - Nos presentes autos, estamos perante a verificação de um dano actual, certo e evidente imposto ao Autor e que tem de ser indemnizado de acordo com a jurisprudência citada, com a Constituição e o Código das Expropriações e fazendo jus a toda a recente legislação, não podendo o Autor sofrer um sacrifício no seu direito de propriedade que fica desvalorizado substancialmente sem que tal lhe seja indemnizado.
13 - Neste sentido vidé também Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23 de Abril de 2017, processo 3608/11.
14 - Assim, entende o Recorrente que os danos indemnizáveis e atendíveis pelo artigo 37.º do Decreto- Lei n.º 43 335 deverão ser certos e actuais, tal como se pronuncia o Acórdão do STJ, de 14 de maio de 1974, que determina que: “a indemnização a que se refere o artigo 37.º do Decreto- Lei n.º 43 335, de 19 de Novembro de 1960, determina-se em função de danos certos e não dos que eventualmente possam resultar quanto a possíveis actividades futuras com o prédio onerado com a servidão.”
15 - O presente processo é uma acção, que na sua essência, visa a defesa do direito de propriedade privada, e na perspectiva dos danos causados ao proprietário - a desvalorização do imóvel dada como provada - tem como iminente objectivo a fixação de indemnização justa e equitativa, em consequência da passagem pelo espaço aéreo do imóvel do Autor de uma linha eléctrica de media tensão, que, só por isso, diminui o valor de mercado do prédio.
16 - O ora Recorrente, na qualidade de proprietário do seu prédio, sentindo-se lesado pela constituição de uma servidão administrativa como a que está em apreço nestes autos, com vista a alcançar uma indemnização por tal evento, pode e tem legitimidade para reclamar uma indemnização da Ré pela oneração do prédio, que por si só provoca uma desvalorização do mesmo.
17 - E não interessa se o prédio é titulado por proprietário diferente do que detinha a sua posse à data da emissão da licença de estabelecimento, pois o prédio é mesmo e encontra-se onerado com a mesma servidão administrativa.
18 - É certo que como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto 12/01/2016: “a questão da imposição de uma servidão administrativa não é semelhante à da expropriação na qual de encontra em causa a ablação de um direito real sobre a coisa, enquanto na primeira se visa a imposição de um direito, ónus ou sujeição sobre a emissão da licença de estabelecimento para a passagem das linhas pelo prédio direito pré-existente”, todavia, não se poderá esquecer, o preceituado no n.º 3 do artigo 8.º do Código das Expropriações – legislação subsidiariamente aplicável, de onde resulta, nomeadamente, a clarificação do conceito de indemnização, a qual, segundo o disposto no artigo 23.º n.º 1 do Código das Expropriações “(…) não visa compensar o beneficio alcançado pela entidade expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal…”.
19 - Assim, no conceito de indemnização que, além do mais, deve ser justa, deverá incluir-se o princípio da contemporaneidade e o princípio da igualdade, quanto ao ressarcimento dos prejuízos causados, tendo em linha de conta os factores em que se repercutem, como sejam os rendimentos, as culturas, os quaisquer outros constrangimentos relevantes, apresentando-se como uma reconstituição em termos de valor, de posição do proprietário que detinha antes da constituição da servidão administrativa de passagem da linha de transporte e distribuição de electricidade de alta tensão.
20 - Neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11/05/2021, Processo 3782/15T8VFR.P1.
21 – Assim sendo, o Meritíssimo Juiz a quo violou, por incorrecta interpretação e aplicação do direito, o artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 43335 de 19/11/1960.
22 – Nestes termos, muito respeitosamente, devem V. Exas. julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, e, consequentemente, condenar a Ré a pagar uma indemnização ao Autor, ora Recorrente, pela desvalorização do seu imóvel, que deve ser calculada, com as necessárias adaptações, de acordo com as normas do Código das Expropriações.”

contra-alegações
A Recorrida apresentou contra-alegações, que sumaria nos seguintes termos:
A. Ao contrário do que alega o Recorrente na presente Apelação, a sentença recorrida não merece qualquer reparo, designadamente no que respeita à interpretação e aplicação do artigo 37.º do DL 43335, de 19/11/1960.
B. Com efeito, a Licença de Estabelecimento da linha eléctrica foi emitida por despacho de 24/08/1971, correspondendo esta licença à declaração de utilidade pública, nos termos do disposto no parágrafo 1.º do do artigo 51.º do DL 43335.
C. Por sua vez, o Recorrente adquiriu o prédio em 11/05/1977, ou seja, depois da data de declaração de utilidade pública.
D. Em face destes factos dados como provados, não pode o Recorrente ser considerado credor do direito de indemnização previsto no artigo 37.º do DL 43335, pois carece de legitimidade activa para o efeito.
E. O DL nº 43335 é aplicável à matéria relativa ao estabelecimento de instalações eléctrica e à constituição de servidões, sendo pacífico tratar-se de uma lei especial, aplicável ao sector eléctrico.
F. Já o artigo 8.º n.º 3 do Código das Expropriações refere que “à constituição das servidões e à determinação da indemnização aplica-se o disposto no presente Código, com as necessárias adaptações, salvo o disposto em legislação especial”, sendo que – neste caso - a legislação especial é o artigo 37.º do citado DL 43.335.
G. A aplicação destes normativos tem de ser conjugada com o disposto no artigo 24.º do Código das Expropriações, de acordo com o qual o montante da indemnização é calculado com referência à data da declaração de utilidade pública e àqueles que nessa data são os proprietários do terreno onerado.
H. Ou seja, a aplicação do artigo 37.º do DL 43335 não pode ser dissociada do artigo 24.º do Código das Expropriações.
I. A data de declaração de utilidade pública corresponde à data de emissão da licença de estabelecimento, sendo a partir dessa mesma data que a Recorrida, na qualidade de operador de rede, pode exercer os direitos emergentes dessa mesma declaração de utilidade pública, conforme expressamente resulta do disposto no n.º 1.º e parágrafo 1.º do artigo 51.º do DL 43335, para os quais se remete na íntegra.
J. Assim, dúvidas é na data de declaração da utilidade pública que os prejuízos indemnizáveis nos termos do artigo 37.º do DL 43335 são calculados e pagos aos proprietários dos terrenos onerados com a servidão administrativa.
K. E são estes mesmos proprietários que – nessa data – também têm legitimidade para exercer o direito previsto no artigo 38.º, designadamente o direito de requerer arbitragem para fixação do valor do prejuízo.
L. Resulta do enquadramento legal citado que a legitimidade para o exercício do direito previsto no artigo 37.º do DL 43335 pertence àqueles que à data da declaração de utilidade são os proprietários dos terrenos onerados pelas linhas, o que não era o caso do Recorrente.
M. O entendimento defendido na presente Apelação é igualmente ofensivo do princípio da boa-fé, uma vez que o Recorrente adquiriu o prédio onerado com a servidão administrativa e aceitou o ónus e o encargo que tal representa.
N. Uma vez que nem sequer são conhecidas as condições em que a compra e venda foi negociada, o entendimento defendido pelo Recorrente poderia – no limite – conduzir a um enriquecimento sem causa, situação que não poderá jamais ser admitida.
O. Por outro lado, mal se entende como pretende o Recorrente receber uma indemnização, quando o imóvel foi por ele adquirido e aceite nas precisas circunstâncias em que agora se encontra.
P. Por esse mesmo motivo, nem sequer se pode falar em desvalorização, porque na data de aquisição do imóvel o mesmo apresentava-se no mesmo estado em que se encontra actualmente, ou seja, não houve qualquer desvalorização produzida na esfera jurídica do Recorrente, na qualidade de aquirente e após a data de aquisição do imóvel.
Q. Por outro lado, no âmbito da presente Apelação e por força das alegações apresentadas, forçoso é dar como reproduzida a matéria de Direito expendida a propósito da prescrição do direito do Recorrente à indemnização em causa, tal como oportunamente alegado na Contestação.
R. Considerando as datas de declaração de utilidade pública e, bem assim, a data de aquisição do imóvel, forçoso é concluir que já se encontra prescrito qualquer direito de indemnização que o Recorrente pretendesse exercer, por já ter decorrido sobre aqueles factos jurídicos o prazo ordinário de prescrição fixado em 20 anos, previsto no artigo 309.º do CC.
S. Por último, as indemnizações devidas pela constituição de servidões eléctricas são fixadas tendo em conta a natureza não definitiva do ónus imposto aos proprietários dos prédios e o reflexo tarifário inerente aos custos das obras integrantes da concessão de serviço público.
T. Atentos estes considerandos, os prejuízos indemnizáveis apenas podem corresponder aos danos certos e actuais que se verificam à data de constituição da servidão.
U. Assim, a alegada desvalorização imobiliária não poderá ser atendida como dano indemnizável para efeitos de aplicação do artigo 37.º do Dl 43335, uma vez que o conceito de “quaisquer prejuízos provenientes da construção das linhas” é entendido como aqueles que resultam directamente das obras de construção, como por exemplo a destruição de culturas e de instalações.
V. Aliás, não é despicienda a escolha que o artigo 37.º do DL 43.335 faz do conceito aplicado, referindo-se especificamente a “CONSTRUÇÃO DAS LINHAS” e não a estabelecimento ou exploração ou qualquer outro conceito mais amplo.
W. Neste sentido se pronuncia o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Maio de 1974, proferido no âmbito do Processo 064767, que determina que: “A indemnização a que se refere o artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 43335, de 19 de Novembro de 1960, determina-se em função de danos certos e actuais e não dos que eventualmente possam resultar quanto a possíveis actividades futuras no prédio onerado com a servidão (…)”.
X. E ainda o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03 de Abril de 1995, proferido no âmbito do processo 9410559, consagrando que: “Devem ser certos e actuais os prejuízos, indemnizáveis, provenientes da construção de linhas eléctricas”.
Y. Assim, por força de tudo quanto antecede, deve a presente Apelação improceder, mantendo-se, na íntegra, a sentença recorrida.

PELO QUE, FACE AO QUE SE DEIXA DITO E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE SER JULGADA IMPROCEDENTE A PRESENTE APELAÇÃO, MANTENDO-SE NA ÍNTEGRA A SENTENÇA RECORRIDA, …

II – Delimitação do objecto do recurso e questões prévias a apreciar:

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. (2) Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas (3) que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas. (4)
As questões enunciadas pelo recorrente podem ser reconduzidas à alegada violação, por incorrecta interpretação e aplicação do direito, do artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 43335 de 19/11/1960.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos

1. Factos (cf. art. 662º, do Código de Processo Civil)
1 – Factos provados
a) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o número …/20030912, um prédio misto, com a área total de 7.688 m2, sito em …, freguesia de ..., (...), conforme se retira da cópia da certidão permanente junta aos autos a fls. 13v e 14 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
b) A aquisição do direito de propriedade incidente sobre o supra-referido prédio encontra-se inscrita a favor de J. C., mediante a Ap. 7 de 1977/05/11, conforme se retira da cópia da certidão permanente junta aos autos a fls. 13v e 14 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
c) A casa onde reside o Autor encontra-se implantada no terreno do prédio supra-referido;
d) Encontra-se emitida a favor da Ré, com data de 24.08.1971, pela Direcção - Geral dos Serviços Eléctricos, pertencente à Secretaria de Estado da Indústria, do Ministério da Economia, no âmbito do processo nº 8/25173, a Licença de Estabelecimento da linha de média tensão (MT), denominada … - ..., destinada a fornecer o posto de distribuição …, conforme cópia da referida licença junta aos autos a fl. 36v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
e) Antes de 1971, a linha pertencia à autarquia de Viana do Castelo e em 1971 passou a conduzir mais potência eléctrica;
f) Desde, pelo menos, 1971 que a linha eléctrica em causa se encontra implantada com o trajecto e orientação actuais, à vista de toda a gente e não tendo merecido qualquer oposição por parte de qualquer pessoa;
g) E desde essa altura é vigiada e mantida operacional pela Ré procedendo esta às operações de manutenção necessárias;
h) A linha de média tensão (MT) que atravessa o prédio descrito em a) é uma linha de 15 kV, trifásica;
i) O referido prédio é atravessado aereamente por um vão daquela linha, sendo este um vão em declive;
j) Os dois apoios de extremidade do referido vão situam-se fora do perímetro do prédio descrito em a);
k) Os apoios são em betão e têm alturas de 22 metros (apoio à cota superior) e de 18 metros (apoio à cota inferior);
l) As armações são em aço, próprias para a disposição em galhardete dos condutores;
m) Existem dois condutores dispostos num mesmo plano vertical e um terceiro condutor num outro plano vertical, encontrando-se os mesmos em planos horizontais diferentes;
n) A distância mínima ao solo dos condutores da linha que passa aereamente sobre o prédio descrito em a) é de 13 metros;
o) A distância do cume do telhado da casa onde reside o Autor aos condutores da linha que passa aereamente pelo prédio é de 7,10 metros;
p) Os fios condutores da linha em questão percorrem uma distância de 59,6 metros sobre o prédio do Autor;
q) A área ocupada pela projecção dos condutores da linha sobre o perfil do terreno é de 106 m2;
r) O campo eléctrico máximo medido nos pontos assinalados a fl. 146v é de Emáx = 41,8 V/m;
s) O campo magnético máximo medido nos pontos assinalados a fl. 146v é de Bmáx = 0,04 μT;
t) Os indicadores de ruído diurno, entardecer e nocturno são de Lden = 57 e Ln = 48;
u) O prédio descrito em a) tem de área 6.292,20 m2;
v) O valor actual de mercado do prédio descrito em a) é de € 166.646,39;
w) O valor de mercado do prédio descrito em a), caso não fosse atravessado pela linha de condução eléctrica supra-referida seria de €200.800,00;
x) À data do facto referido em b) a linha eléctrica descrita em d) já ocupava o espaço aéreo do prédio descrito em a);
y) A Ré nunca pagou qualquer quantia ao Autor pela utilização do espaço aéreo do prédio referido em a);
z) No ano de 2013, a pedido da Junta de Freguesia de ... ..., a Ré fez recuar, tendo por referência o prédio descrito em a) e de molde a permitir o alargamento da Rua …, um dos apoios referidos em k), cerca de 80 centímetros;
aa) Mantendo a linha eléctrica o mesmo alinhamento e traçado;
bb) O Autor enviou à Ré as missivas cujas cópias se encontram juntas aos autos a fls. 22 e 25 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
cc) A Ré enviou ao Autor as missivas cujas cópias se encontram juntas aos autos a fls. 25v e 26 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
dd) A passagem da linha eléctrica pelo prédio descrito em a) causa ao Autor apreensão e angústia uma vez que este tem medo dos malefícios que a presença da linha eléctrica possa causar à saúde.

2- Factos não provados

Da petição inicial: artigos 7º, sem prejuízo do que se deu por provado nas alíneas f) e g), 9º, 11º, sem prejuízo do que se deu por provado nas alíneas y) e z), 12º, 16º, 17º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea dd), 18º, sem prejuízo do que se deu por provado nas alíneas v), w) e dd), 19º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea dd), 20º, 22º a 26º.
Da contestação: artigos 40º e 41º, sem prejuízo do que se deu por provado nas alíneas f) e g), 43º, 45º e 47º.

2. Direito

Nas conclusões que objectivam a presente Apelação, o Autor defende que, perante os factos apurados em v), w) e y), se constata que o seu prédio sofreu uma desvalorização e que o mesmo nunca foi ressarcido desse desvalor, que é actual e existe na sua esfera jurídica.
O Apelante insiste que, apesar de se tratar de uma ocupação lícita, por servidão administrativa, estão verificados os pressupostos do citado art. 37º. E tanto invoca jurisprudência para sustentar que abrange prejuízos actuais e futuros decorrentes dessa passagem eléctrica, como alega que os mesmos têm de ser actuais e certos (cf. 14.), concluindo ainda que se pretende uma “reconstituição em termos de valor, de posição do proprietário que detinha antes da constituição da servidão”.
Por sua vez, a sentença considerou, em suma, que, sic: “quando o Autor adquiriu o prédio, o mesmo já se encontrava onerado com a servidão administrativa supra-descrita, não podendo ser considerado o proprietário ao tempo da emissão da licença de estabelecimento, pois que na aquisição derivada translativa, o direito adquirido pelo novo titular é, nas suas exactas características e situação jurídica, o prédio que pertencia ao titular precedente.”
Por isso, defende que falta a demonstração de um pressuposto essencial da pretensão do Autor, a de que este era o dono do prédio na altura da ocorrência em causa, a constituição da dita servidão, posição que é secundada pelas alegações da Recorrida.

Vejamos…
O citado Art. 37.º estipula que os proprietários dos terrenos ou edifícios utilizados para o estabelecimento de linhas eléctricas serão indemnizados pelo concessionário ou proprietário dessas linhas sempre que daquela utilização resultem redução de rendimento, diminuição da área das propriedades ou quaisquer prejuízos provenientes da construção das linhas.
A boa interpretação dessa norma começa por exigir alguma contextualização. Ela insere-se na Secção V, respeitante à execução das obras do referido diploma, no qual se começa por estabelecer que (Art. 31.º) os concessionários serão obrigados ao cumprimento das leis e regulamentos em vigor, não só em relação ao licenciamento de todas as instalações, mas também no respeitante à construção, segurança e fiscalização das obras de qualquer natureza, à verificação dos aparelhos de medida e à prestação dos elementos estatísticos da exploração e de todas as informações que respeitem à sua actividade.
É, portanto, tendo em vista essa obras de implantação das redes eléctricas em apreço que se insere a obrigação das concessionárias de indemnizar os particulares donos dos prédios envolvidos, aliás semelhante à que visa o ressarcimento das entidades públicas cujo o espaço seja usado para o mesmo efeito (cf. art. 34º).
Nesta medida, não podemos deixar de concluir (cf. art. 9º, do Código Civil) que essa indemnização visa a compensação pelos danos sofridos com a implantação dessa obra e da referida servidão administrativa, à data em que a mesma se concretiza ou estabelece.
O conceito de servidão administrativa emana do conceito de servidão predial do direito civil, consistindo esta “no encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente: diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia". (…) A servidão administrativa tem sido entendida, por parte da doutrina como “o encargo imposto por disposição da lei sobre certo prédio em proveito da utilidade pública de uma coisa”.
Este conceito tem evoluído pois, por um lado, a servidão pode incidir sobre um imóvel não considerado prédio (por exemplo, a passagem de linhas eléctricas sobre uma estrada ou um curso de água) ou até sobre um direito, e, por outro lado, as servidões administrativas também podem ser constituídas por atos administrativos praticados para o efeito, ou até resultar de contratos administrativos.
Assim, por servidão administrativa deve entender-se o encargo imposto sobre um imóvel em benefício de uma coisa, por virtude da utilidade pública desta.
As servidões administrativas são encargos impostos sobre um imóvel, que pode ser privado ou público, em benefício de uma coisa revestida de utilidade pública. (5)
As Servidão Administrativas, quando constituídas sobre determinado bem, não são susceptíveis de separação, continuando a ser eficazes e oponíveis perante terceiros, mesmo em caso de negócios jurídico-privados ou em venda judicial executiva, tal como se coaduna com o CE. (6)

Posto isto, sendo indiscutível que estamos perante uma servidão, administrativa, ónus inseparável da coisa em apreço, julgamos não ser aceitável a pretensão defendida pelo Autor nesta apelação, que redundaria numa constante interpelação da entidade responsável por essa oneração para indemnizar cada um dos proprietários que fosse, sucessivamente, adquirindo, em vida ou por morte, o prédio assim onerado por tempo indeterminado, o que, convenhamos, não se pode retirar, desde logo, da letra ou do espírito da norma em apreço. Em rigor, cada adquirente ou até sucessor do/no direito Autor estaria, de acordo com o seu entendimento, legitimado a pedir uma indemnização pelos referidos danos patrimoniais.
Com efeito, à semelhança do que sucede com as servidões particulares (cf. art. 1554º, do Código Civil), é, ab initio, inadmissível que cada um dos sucessivos proprietários do prédio serviente possa reclamar uma indemnização pela sua existência ou repercussão no direito de propriedade assim limitado.
E isso sucede também porque o direito de gozo, de propriedade, transmitido, é comunicado ao titular subsequente, como no caso sucedeu ao Autor em 1977, nas suas exactas características e situação jurídica, como bem afirmou a sentença recorrida e a jurisprudência que nela se cita e para a qual, por brevidade, remetemos.
Neste conspecto, está patente nos factos apurados que a servidão em causa e tudo o que dela resultou para a limitação do direito de propriedade incidente sobre o prédio em causa, surgiu em 1971 e, presume-se, perante titular diverso, já que ficou assente que este só ingressou no património do Autor em 1977.
Deste modo, quando entrou na esfera jurídica do Apelante, esse direito já estava limitado e nada do que ficou apurado indica que tenha surgido qualquer alteração desse status que possa aqui ser atendível.
Por outro lado, sem prejuízo do exposto, não transparece dos factos apurados facto essencial para que se pudesse sequer ponderar, em tese, nos termos da regra geral do art. 562º, do Código Civil, qualquer desvalor patrimonial na esfera jurídica do Autor, já que não consta dos factos apurados qual o valor pelo qual adquiriu o prédio em questão. Por isso não sabemos sequer se, efectivamente, o património do Autor, quando foi por si adquirido o prédio em questão, suportou ou não o valor que agora pretende ver alcandorado a referência do seu património (€200800). Aliás, ciente disso, o Apelante tende a procurar na posição do seu antecessor um suporte para o seu desvalor que, porém, carece de qualquer sentido, já que esse desvalor patrimonial, a ter existido, não se comunicou a si.
Acresce, rebatendo outro argumento do Apelante, que não estamos aqui perante nenhum dano futuro dado que, repete-se, as limitações decorrentes da servidão administrativa ocorreram em 1971, noutra esfera jurídica ou patrimonial.
Com tudo isto, resta julgar improcedentes a conclusões do Apelante e, com ela, o seu recurso, com prejuízo para a discussão dos restantes argumentos.

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação.
Condena-se nas custas da apelação, a Recorrente (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil).
N.
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Guimarães, 13-07-2022

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. José Flores
1º Adj. - Des. Sandra Melo
2º - Adj. - Des. Conceição Sampaio



1. Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.
2. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
3. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efectivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
4. Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
5. Ricardo Jorge de Pinho Tavares, in SERVIDÕES ADMINISTRATIVAS E PLANEAMENTO URBANÍSTICO, p. 7 - https://sigarra.up.pt/fep/pt/pub_geral.show_file?pi_doc_id=72626
6. Carla de Fátima Costa Pereira, in SERVIDÕES ADMINISTRATIVAS, p. 19 - https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/94631/1/DISSERTA%c3%87%c3%83O%20-%20CARLA%20PEREIRA%20-%20SERVID%c3%95ES%20ADMINISTRATIVAS.pdf