NULIDADE DA DECISÃO
ACÇÃO ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
RELATÓRIO PERICIAL
REACÇÃO
SUPRIMENTO DO CONSENTIMENTO
AUDIÇÃO DO BENEFICIÁRIO
Sumário


I - A causa de nulidade da sentença prevista na alínea b) do nº1 do art. 615º do C.P.Civil de 2013, que é aplicável aos despachos ex vi do nº3 do art. 613º/3 do mesmo diploma legal, respeita apenas à falta absoluta de fundamentação (que pode reportar-se apenas aos fundamentos de facto ou apenas aos fundamentos de direito). Outra situação é a motivação ou fundamentação da sentença (ou do despacho) ser deficiente, incompleta, errada e/ou não convincente, a qual não constitui uma causa de nulidade mas sim uma causa de recurso por erro de julgamento, de facto ou de direito.
II - Realizada a perícia em processo judicial e notificado o respectivo relatório às partes, o legislador consagrou duas possibilidades de reacção: a reclamação prevista no art. 485º do C.P.Civil de 2013 (é o meio de reacção contra qualquer deficiência, obscuridade ou contradição detectadas no relatório e visa levar os peritos, que o elaboraram, a completá-lo, esclarecê-lo ou dar-lhe coerência) e a segunda perícia prevista no art. 487º do C.P.Civil de 2013 (é o meio de reacção contra inexactidão do resultado da primeira e procura que outros peritos confirmem essa inexactidão e a corrijam).
III - O procedimento probatório da prova pericial comporta quatro fases distintas: a da sua proposição, a da sua admissão, a da sua preparação (fixação do objecto da perícia), a da sua produção e a da sua assunção. Daqui decorre, por um lado, que é nas fases da admissão e/ou da preparação que é proferida a decisão de admissão ou de rejeição (total ou meramente parcial) do meio de prova pericial requerido pelas partes. E, por outro lado, que a reclamação apresentada por alguma das partes relativamente ao relatório pericial nos termos previstos no art. 485º e a respectiva decisão que recai sobre essa reclamação insere-se nas fases da produção e/ou da assunção da prova, tendo lugar, portanto, fora daquelas duas fases em que necessariamente se inscreve a decisão de admissão/rejeição.
IV - Neste “quadro”, do ponto vista técnico-jurídico, a decisão que conheça das reclamações previstas no referido art. 485º, quer acolhendo-as, quer denegando-as, não consubstancia uma efectiva decisão de admissão ou rejeição de um meio de prova, uma vez que não se aprecia se certa prova pericial deve ter lugar, ou não, no processo, nem se aprecia qual é o objecto da mesma (quais os factos sobre que deve, ou não, incidir).
V - O novo regime do maior acompanhado, ao introduzir um novo paradigma, provocou várias alterações na ordem jurídica, e entre essas alterações, ao nível processual, releva a referente à legitimidade para requerer o acompanhamento (art. 141º do C.Civil, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº49/2018), através da qual foi introduzida uma restrição ao “leque” das pessoas que podem instaurar a ação especial de acompanhamento de maior, tendo o legislador reconhecido legitimidade activa apenas: ao próprio beneficiário; ao cônjuge, ou unido de facto deste, ou a qualquer seu parente sucessível, desde que estes estejam autorizados pelo beneficiário; e ao Ministério Público, independentemente dessa autorização.
VI - Quando o beneficiário não a possa dar livre e conscientemente ou quando existir um fundamento atendível, a autorização de que o cônjuge, o unido de facto ou os parentes sucessíveis do beneficiário necessitam para estarem dotados de legitimidade activa, pode ser suprida pelo Tribunal, através do incidente de suprimento do consentimento, enxertado no processo especial de acompanhamento de maior, que não tem uma tramitação específica, mas integra, formal e estruturalmente, aquele próprio processo.
VII - Outra alteração processual relevante, decorrente deste novo regime, é a introdução do princípio da imediação na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário, e a concretização da obrigatoriedade imposta ao Juiz de, em qualquer circunstância, dever proceder de forma pessoal e direta à audição do beneficiário.
VIII - A diligência de audição, pessoal e directa, do beneficiário pelo Juiz também tem caracter obrigatório no incidente de suprimento da autorização, sendo que a decisão deste incidente sem a realização prévia desta diligência, configura uma nulidade processual.

Texto Integral


ACÓRDÃO (1)

ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES,

* * *
1. RELATÓRIO

1.1. Da Decisão Impugnada

O Requerente F. B. intentou a presente acção especial de acompanhamento de maior contra M. L., pedindo que seja «decretado o Acompanhamento de M. L., aplicando-se-lhe as medidas de representação geral e administração total de bens (artigo 145.º n.º 2 al. b) e c) do Código Civil)», alegando, essencialmente, o seguinte: «é filho da Requerida, que tem atualmente 87 anos, apresenta diagnóstico de demência, com desorientação no tempo e no espaço, que se tem agravado recentemente, que vem acompanhado de comportamento desadequado e discurso pouco coerente, não conseguindo fazer face aos cuidados básicos diários; a Requerida encontra-se impossibilitada para exercer plena e conscientemente os seus direitos e cumprir os seus deveres, pelo que se torna indispensável que beneficie de medidas de acompanhamento imediatas».
Por despacho de 10/03/2021, para além do mais, foi determinada a notificação do Requerente «para, em 10 dias, formular pedido de suprimento judicial da autorização da Requerida para a propositura da presente acção ou, em alternativa, demonstrar que tal autorização foi concedida ou judicialmente suprida».
Na data de 23/03/2021, através de requerimento, para além do mais, o Requerente formulou pedido de «suprimento de autorização judicial do beneficiário».
Citada, a Requerida contestou, pugnando por «a) não ser suprida a não autorização da Requerida, julgando-se procedente a excepção por ilegitimidade (artigo 141.º, do CC), indeferindo-se o requerido através do requerimento de referência Citius 38356958, e absolvendo-se a Requerida da instância; Sem prescindir, b) ser a acção julgada improcedente, por não provada; Caso assim não se entenda, e sem prescindir, c) ser designado como Acompanhante e para representação geral e administração geral dos bens o seu filho J. F., nascido a -.02.1957, portador do cartão de cidadão n.º ……, Empresário, residente na Rua … Calendário; d) Deverá ainda ser adoptado um tipo de publicidade diverso do decretado pelo Tribunal, que não seja tão lesivo da honra e reputação da Requerida, da sua família, e da Sociedade …, S.A., e ordenado que sejam retirados os editais eventualmente já afixados», fundado a sua defesa, essencialmente, no seguinte: «o Requerente carece de legitimidade para instaurar a acção porque a Requerida nunca deu, não dá e não dará a sua autorização no sentido de o acompanhamento ser requerido e não estamos perante um caso em que a “beneficiária” “não possa livre e conscientemente dar” a sua autorização, ou em que exista “um fundamento atendível” que justifique o suprimento da sua autorização pelo Tribunal; a Requerida não apresenta nenhum “diagnóstico de demência, com desorientação no tempo e no espaço, que se tem agravado recentemente”, “comportamento desadequado e discurso pouco coerente”, incapacidade de reconhecer o dinheiro, e, muito menos, incapacidade de “fazer face aos seus cuidados básicos diários”».
Na data de 28/06/2021, foi proferido o seguinte despacho: “Solicite ao GML a realização de exame pericial à Requerida, nos termos e com as finalidades previstas nos artigos 897.º e 899.º, do Código de Processo Civil, e, ainda, para apurar da verificação dos pressupostos do suprimento do seu consentimento para a propositura da acção, previstos no art.º 141.º, n.º 2, do Código Civil”.

Na data de 13/10/2021, foi junto aos autos o relatório pericial no qual está consignado:

“… Exame do estado mental e observação psicopatológica
A examinada compareceu acompanhada pelo Sr. L. M. (Diretor financeiro) ao exame. O biótipo é pícnico. Higiene e vestiário adequados ao seu nível sociocultural. Idade aparente igual com a sua idade real. Bem acordada. Atenta. A examinanda tem conhecimento do motivo da realização do exame pericial. O estado mental da examinanda permitiu que compreendesse a natureza, propósito e metodologia do presente exame pericial. Vigil, orientada no tempo, espaço e pessoa, colaborante, calma. Discurso lógico e coerente. Verbaliza desavenças com um filho por causa do património da empresa. Reconhece o valor facial e económico das notas e moedas em curso, sendo capaz de fazer trocos. Consegue realizar operações aritmética. Autónoma para as atividades da vida diária: higiene, vestiário e alimentação. Sabe utilizar o multibanco e o telemóvel. Humor neutro e sem oscilações do humor. Modulação afetiva normal. Não se apuram alterações da senso-perceção. Não se mencionaram alterações da líbido. Sono controlado. Apetite conservado. Juízo crítico e insight conservados…

G. DISCUSSÃO

A examinada não apresenta psicopatologia de relevo que comprometa a sua capacidade de administrar a sua pessoa, património e bens. Mantem o contacto regular com a sua empresa familiar. No âmbito de direitos pessoais e conteúdo de acompanhamento, do ponto de vista médico-legal, cumpre esclarecer que e função do supra descrito, á examinanda mantem a capacidade de decidir se aceita o recusa tratamentos que medicamente sejam indicados e propostos, mantem capacidade de elaborar testamento vital, mantem a capacidade para o adequado exercício das responsabilidades parentais, mantem a capacidade para cuidar e educar os filhos, tem capacidade para perfilhar ou adotar, tem a capacidade mínima para exercer as funções de tutor, tem capacidade para casar ou constituir situações de união, deverá manter o direito de fixar domicílio e residência, mantem o direito de se deslocar sozinha no pais ou no estrangeiro, tem o direito de escolher profissão, relativamente à presença em Tribunal tem capacidade para testemunhar ou dar uma opinião. No âmbito dos negócios da vida corrente e gestão do património, do ponto de vista médico-legal, cumpre esclarecer que a examinanda tem capacidade de administrar o seu património e celebrar negócios da vida corrente.

H. CONCLUSÕES

A examinada não apresenta anomalia psíquica nem psicopatologia de relevo que afete a sua capacidade de administrar a sua pessoa, património e bens…”.

Notificado do relatório pericial, na data de 29/10/2021, o Requerente apresentou requerimento com o seguinte teor:

“… tendo sido notificado do teor do Relatório Pericial elaborado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, requer a V. Exa., nos termos do artigo 485.º do CPC, se digne ordenar a notificação do Sr. Dr. D. R., Perito de Psiquiatria, para que venha esclarecer e fundamentar, por escrito:

1.
Na página 3 do relatório pericial é expressamente referido que examinada “trabalhou na indústria das carnes”. Cumpre esclarecer se tal informação lhe foi transmitida pela Examinada como se tratando, conforme escreve no próprio relatório, de uma ação ocorrida no passado, e que já não ocorre no presente.
2.
Na página 3 do relatório pericial é expressamente referido que “A examinada compareceu acompanhada pelo Sr. L. M. (Diretor Financeiro)”.
Não tendo sido requerida por qualquer das partes que a perícia fosse assistida por assessor técnico, nos termos do artigo 480.º do CPC, não se compreende por que razão a Requerida, aparentemente, entrou acompanhada do Sr. L. M., Diretor Financeiro.
Cumpre, portanto, esclarecer por que razão a Examinada entrou acompanhada na realização do Exame de Psiquiatria Forense, se para se apoiar a andar, se para ser apoiada a pensar... Mais, a que propósito foi entrevistado o referido Sr. L. M. (cfr. metodologia – entrevista ao acompanhante)??? Para dar as respostas a que a examinada não conseguia responder? O que foi dito pelo mesmo para justificar a qualidade de acompanhante? Esteve presente em todo o exame??
3.
Na página 3 do relatório pericial é expressamente referido que a Examinada se apresenta: “Vigil, orientada no tempo, espaço e pessoa, calma. (…) “Reconhece o valor facial e económico das notas e moedas em curso, sendo capaz de fazer trocos. Consegue realizar operações aritmética. Autónoma para as atividades da sua vida diária: higiene, vestiário e alimentação. Sabe utilizar o multibanco e o telemóvel. Humor neutro e sem oscilações do humor. Não se menciona alterações da líbido. Apetite conservado”
Cumpre esclarecer: Quais os comportamentos e testes realizados, concretas questões colocadas e concretas respostas prestadas pela Examinada (ou se as respostas foram dadas pelo acompanhante, Sr. L. M., Diretor Financeiro) que fundamentaram o entendimento de que esta: (i) Reconhece notas e moedas e é capaz de fazer trocos; (ii) Consegue realizar operações aritméticas;
(iii) É capaz de tomar banho, vestir-se e alimentar-se sozinha; (iv) É capaz de utilizar o multibanco e o telemóvel; (v) Apresenta humor neutro e sem oscilações do humor. Não se menciona alterações da líbido. Apetite conservado.
É de facto notável, não só a plenitude de coisas que a examinada é capaz de fazer, como ainda a qualidade com que o consegue fazer, sendo claramente de atribuir os méritos ao acompanhante, que como bom diretor financeiro, sempre conseguiu fazer umas contas e desenvolver o raciocínio... Afinal, a examinada estava certa ao escolher um assessor financeiro ao invés de um assessor do ramo da medicina, como por exemplo o seu médico...
4.
Na página 4 do relatório pericial é expressamente referido que a Examinada “tem capacidade mínima para exercer funções de tutor”. Cumpre esclarecer o que entende, o Sr. Perito, por capacidade mínima para o efeito que referem. Mais, quem falou em tutor? Quem perguntou ou explicou quais as funções exercidas por um tutor?
5.
Por último, na página 4 do relatório pericial é referido que a Examinada “tem capacidade de administrar o seu património e celebrar negócios da vida corrente”.
Cumpre esclarecer: O que entende o Sr. Perito por “negócios da vida corrente”? Comprar pão? Do exame que realizou consegue concluir que a Examinada tem capacidade psíquica para gerir uma empresa com média dimensão e cerca de duzentos funcionários? No seu entendimento, o ato de gestão de empresas é um ato de gestão de negócios corrente?
Conseguirá a examinada acumular o facto de ser tutora/cuidadora de alguém, como parece sugerir, com uma atividade de gestão de empresas como a referida supra? Quantas horas de trabalho diário poderá a examinada aguentar na sua vida, sem prejuízo para a sua saúde “de ferro” e estado de graça atual? O Sr. Perito acompanhou a examinada a alguma máquina multibanco? Como sabe que aquela a sabe utilizar?? Por declarações do omnipresente L. M.?
6.
Mantém a capacidade para o adequado exercício das responsabilidades parentais, mantem a capacidade para cuidar e educar os filhos, tem capacidade para perfilhar ou adotar?? O que pretende o Sr. Perito dizer com estas afirmações? Com 87 anos??
7.
Tem capacidade para casar ou constituir situações de união, deverá manter o direito de fixar domicílio e residência, mantém o direito de se deslocar sozinha no país ou no estrangeiro, tem o direito de escolher profissão?? O que pretende o Sr. Perito dizer com estas afirmações? Com 87 anos??”.

Na data de 26/11/2021, o Tribunal a quo proferiu as seguintes decisões:

“… no caso do relatório pericial junto a fls. 107 a 109, constata-se que o mesmo respondeu a todas as questões colocadas, na sequência do despacho de fls. 86.
Por outro lado:
- No que se refere ao ponto 1 da reclamação em apreço, afigura-se que o esclarecimento pretendido carece de relevo para a apreciação das questões suscitadas na perícia, dado que não se refere à capacidade da Requerida, mas, tão só, a um pormenor da sua história biográfica, resultante da entrevista à mesma;
- Por sua vez, o esclarecimento solicitado no ponto 2 reporta-se a um aspecto irrelevante da metodologia seguida pelo perito, sendo certo que nada na lei impede que este proceda à recolha de informações biográficas sobre o examinando junto de terceiros, não resultando do relatório pericial – antes pelo contrário – que a Requerida não tenha conseguido responder a qualquer pergunta e que essa resposta tenha sido dada pela pessoa que a acompanhou no exame;
- No que concerne ao ponto 3, cumpre dizer que o relatório pericial, para se considerar fundamentado, não tem que reproduzir todas as perguntas dirigidas à examinanda, sendo o mais que aí se refere quando a ser “notável, não só a plenitude de coisas que a examinada é capaz de fazer, como ainda a qualidade com que o consegue fazer” a mera manifestação de discordância perante as conclusões da perícia, que não constitui fundamento atendível de reclamação;
- Relativamente ao ponto 4 da reclamação, cabe dizer que, mais uma vez, está em causa um aspecto irrelevante, sendo certo, além do mais, que o que é pedido ao perito é, tão só, que proceda ao exame e, com base nesse exame e nos seus conhecimentos científicos e experiência profissional, formule as suas conclusões quanto às concretas aptidões do examinando – não lhe competindo dar explicações ao examinando sobre, designadamente, o conteúdo das funções de tutor, mas sim apreciar se, face ao que examinou, o mesmo tem ou não capacidade para o exercício das mesmas;
- Os aspectos que se pretende ver esclarecidos no ponto 5 da reclamação resultam claros do relatório pericial, até pela sua conjugação com as regras da experiência comum, sendo óbvio que a compra de pão se subsume aos actos da vida corrente, previstos no art.º 146.º, n.º 1, do Código Civil, o mesmo não sucedendo com a gestão de empresas; não compete ao perito esclarecer as partes sobre o que, à luz do normativo citado constitui “acto da vida corrente”; nem, tampouco é necessário que acompanhe os examinandos na execução de todas as tarefas para as quais conclui serem os mesmos aptos, designadamente, a caixas de multibanco, a estabelecimentos comerciais, etc.;
- O vertido nos pontos 6 a 7 da reclamação consubstancia mera discordância quanto às conclusões vertidas no relatório pericial, não podendo ser fundamento de reclamação.
Face ao exposto, indefiro a reclamação de fls. 101.
*
Estabelece o art.º 141.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, que:

“1. O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.
2. O tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível”.

Do normativo acima transcrito resulta que a legitimidade ad causam cabe, em primeira linha, ao próprio beneficiário: com excepção do Ministério Público, todas as demais pessoas aí referidas carecem de autorização do beneficiário para pedir o acompanhamento ou do seu suprimento pelo tribunal.
Segundo esclarecem, a este respeito, António S. A. Geraldes et al, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 333, a autorização do beneficiário pode ser suprida “quando as circunstâncias assim o impuserem, designadamente em face de situações que envolvam uma grave depressão, demência avançada, acidente vascular cerebral profundo ou outra circunstância reveladora da necessidade de medidas de protecção ou de acompanhamento”.

Ora, no caso, verifica-se, pelo relatório pericial junto a fls. 107 a 109 que a Requerida:
- Não tem antecedentes psiquiátricos;
- Compreende a natureza, propósito e metodologia do exame pericial;
- Está orientada no tempo, no espaço e em pessoa;
- Apresenta discurso lógico e coerente;
- Reconhece o valor facial e económico das notas e moedas em curso, sendo capaz de fazer trocos;
- Consegue realizar operações de aritmética;
- É autónoma para as actividades da vida diária: higiene, vestuário e alimentação;
- Sabe usar o multibanco e o telemóvel;
- Não apresenta alterações da senso-percepção;
- Tem o juízo crítico e o insight preservados.

Como tal, é manifesto que a Requerida se encontra em condições de, livre e conscientemente, se determinar quanto à autorização para o pedido de acompanhamento, não se verificando, em face das circunstâncias acima referidas, os fundamentos para o seu suprimento pelo Tribunal.
Face ao exposto, indefiro o suprimento da autorização da Requerida para a propositura da presente acção pelo Requerente e, em consequência, julgo este parte ilegítima, absolvendo a Requerida da instância…”.
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1.2. Do Recurso do Requerente

Inconformado com as referidas decisões, o Requerente interpôs recurso de apelação, pedindo que seja «(1) revogado o despacho recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que admita os esclarecimentos requeridos e determine a audição pessoal e direta da requerida/beneficiária, ou, caso assim não se entenda, (2) determinando a nulidade da sentença proferida», e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações:

1. O Tribunal a quo não admitiu a reclamação da perícia/pedidos de esclarecimentos apresentado pelo Recorrente.
2. Salvaguardado o devido respeito, o Tribunal a quo não sopesou, ao tomar a sua decisão, a relevância da prestação dos esclarecimentos suscitados, pelo que o recurso é apresentado na firme convicção de que se impõe, necessariamente, uma decisão diferente.
3. A resposta aos esclarecimentos suscitados pelo Recorrente permitiria carrear aos autos prova mais eficaz e dotar a decisão de maior segurança quanto aos factos e, por conseguinte, contribuiria para uma decisão mais justa.
4. O artigo 485.º do CPC determina que se as partes entenderem que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, podem formular as suas reclamações.
5. A admissão das reclamações reforça a descoberta da verdade material.
6. O direito à prova, constitucionalmente reconhecido (artigo 20.º da CRP), faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados tanto para a prova dos factos principais da causa, como, também, para a prova dos factos instrumentais ou mesmo acessórios
7. As diligências requeridas devem ser admitidas, quando legalmente admissíveis, pertinentes e não tenham cariz dilatório.
8. Por outro, o tribunal a quo não cumpriu todos os aspetos procedimentais do processo de acompanhamento de maiores regulados no CPC: o tribunal a quo não realizou a audição da requerida.
9. Nos termos definidos nos art.º 139.º, n.º 1, CC; art.º 897.º, n.º 2 CPC, a audição do beneficiário trata-se de um meio de prova obrigatório.
10. A falta de audição da requerida constitui uma irregularidade que influi no exame e decisão da causa, configurando uma nulidade processual, cf. artigo 195° do CPC.
11. Por outro lado, a sentença proferida não se encontra devidamente fundamentada: a sentença proferida não elenca a fundamentação da matéria de facto provada e não provada, com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão,
12. Assim como não se encontra devidamente fundamentada a convicção do julgador.
13. A deficiente alusão aos factos provados ou não provados compromete, como é evidente, o direito ao recurso da matéria de facto.
14. Neste enquadramento, a sentença proferida pelo tribunal a quo é, também, nula, nos termos definidos no art.º 615 n.º 1, al. b) do CPC, nulidade que deverá ser declarada”.
O Ministério Público e a Requerida contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
* * *
2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR

Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (2) (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida (3)).

Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pelo Requerente/Recorrente são três as questões a apreciar por este Tribunal ad quem:

1) Se a decisão recorrida que declarou o Requerente/Recorrente como parte ilegítima padece de nulidade processual por «falta de fundamentação»;
2) Se a reclamação deduzida pelo Requerente/Recorrente contra o relatório pericial deve ser admitida;
3) E se, no âmbito do incidente de suprimento do consentimento, a audição do beneficiário pelo juiz é uma diligência obrigatória e se a sua omissão configura uma nulidade processual.
* * *
3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que revelam para a presente decisão são os que se encontram descritos no relatório que antecede.
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4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Da Nulidade do Despacho Recorrido

Importa ter presente que as nulidades da decisão (sentença, ou, como no caso em apreço, despacho) constituem vícios intrínsecos da própria, deficiências da respectiva estrutura, o que não é confundível com o erro de julgamento, ou sequer com um alegado erro na forma de processo.
Prescreve o art. 615º do C.P.Civil de 2013 (relativamente à sentença mas que também é aplicável aos despachos ex vi do nº3 do art. 613º/3 do mesmo diploma legal):“1 - É nula a sentença quando:… b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;…”.
Esta causa de nulidade está directamente conexionada com a obrigação de fundamentação especificamente imposta no nº3 do art. 607º (“Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”) e com a obrigação geral de fundamentação imposta no nº1 do art. 154º (“As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”), ambos do C.P.Civil de 2013.
A necessidade de fundamentação das decisões judiciais constitui mesmo uma condição da sua própria legitimação (estatui o art. 205º/1 da C.R.Portuguesa que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”) e da verificação de um processo equitativo (exigência esta que decorre, no plano do direito fundamental internacional, do disposto no art. 6º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem das Liberdades Fundamentais, e no art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e, a nível constitucional, do estipulado no art. 20º/4 da C.R.Portuguesa).
Explicava Alberto dos Reis (4) que “A exigência de motivação é perfeitamente compreensível. Importa que a parte vencida conheça as razões por que o foi, para que possa atacá-las no recurso que interpuser. Mesmo no caso de não ser admissível recurso da decisão o tribunal tem de justificá-la, pela razão simples de que a decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. Claro que a força obrigatória da sentença ou despacho está na decisão; mas mal vai a força quando se não apoia na justiça e os fundamentos destinam-se precisamente a convencer de que decisão é conforme à justiça. A função própria do juiz é interpretar a lei e aplicá-la aos factos em causa; por isso, deixa de cumprir o dever funcional o juiz que se limita a decidir, sem dizer como interpretou e aplicou a lei ao caso concreto. A decisão é um resultado, é a conclusão dum raciocínio; não se compreende que se enuncie unicamente o resultado ou a conclusão, omitindo-se as premissas de que ela emerge”.

Esta causa de nulidade da sentença, mas com igual cabimento quanto aos despachos, respeita apenas à falta absoluta de fundamentação, como tem sido unanimemente defendido pela Doutrina. Entre outros:

- explicam A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil (5) que “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”;
- ensinava Alberto os Reis (6) que “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”;
- referia Rodrigues Bastos (7) que “a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença”
- afirma Teixeira de Sousa (8) que “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciaiso dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo… e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão… a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”;
- e concretiza Tomé Gomes (9) que “a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adoptada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão”.
A nível jurisprudencial também, desde há muito, que os tribunais superiores têm considerado, de forma unânime, que esta nulidade apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos, e não quando a fundamentação se mostra deficiente, errada ou incompleta: entre outros, refere-se o Ac. do STJ de 15/05/2019 (10) (“Para que se verifique a nulidade de falta de fundamentação prescrita no art. 615, nº 1, al, b), do CPC, não basta que a justificação seja deficiente, incompleta ou não convincente. É preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”), o Ac. do STJ de 02/03/2021 (11) (“Só a absoluta falta de fundamentação - e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação - integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil”) e o Ac. desta RG de 17/11/2004 (12) (no qual se refere “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), repetidamente aconselha que: a extensão da obrigação de motivação pode variar consoante a natureza da decisão e deve analisar-se à luz das circunstâncias do caso concreto; a motivação não deve revestir um carácter exageradamente lapidar, nem estar por completo ausente (cf. Vincent e Guinchard, Procédure Civile, Dalloz, §1232, e arestos aí citados). Mostra-se ainda útil esclarecer, a este propósito, que a exegese do disposto no art.º 668º nº1 al. b) C.P.Civ., de há muito vem entendendo que a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso… Só a ausência de qualquer fundamentação é susceptível de conduzir à nulidade da decisão. Ao aludir-se a “ausência de qualquer fundamentação” quer referir-se a falta absoluta de fundamentação, a qual porém pode reportar-se seja apenas aos fundamentos de facto, seja apenas aos fundamentos de direito”).
Em resumo: uma situação é a sentença (ou o despacho) não estar motivada ou fundamentada e outra é essa motivação ou fundamentação ser deficiente, incompleta, errada e/ou não convincente, sendo que a primeira configura a causa de nulidade prevista na alínea b) do referido art. 615º/1 e a segunda é (“apenas”) configura uma causa de recurso por erro de julgamento, de facto ou de direito (não produzindo qualquer nulidade da sentença ou do despacho, somente “enfraquecendo” o seu valor doutrinal e sujeitando-a, consequentemente, ao risco de ser revogada ou modificada em sede recurso). E podemos deixar assente ser esta a única interpretação legalmente admissível do normativo em causa.
Tal interpretação tem, aliás, inteira aplicação aos despachos: como se decidiu no Ac. desta RG de 21/05/2015 (13), “É nulo um despacho que omite por completo a fundamentação em que se baseia, limitando-se a deferir o requerido”.
Importa começar por precisar que, no presente recurso, são impugnadas duas decisões: a que indeferiu a reclamação deduzida pelo Requerente contra o relatório pericial; e a que indeferiu o suprimento da autorização da Requerida e, consequentemente, considerou o Requerido parte ilegítima. E, aliás, tais decisões são expressamente diferenciadas pelo Requerente/Recorrente na pretensão formulada no final das respectivas conclusões do recurso: «(1) revogado o despacho recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que admita os esclarecimentos requeridos e determine a audição pessoal e direta da requerida/beneficiária, ou, caso assim não se entenda, (2) determinando a nulidade da sentença proferida».
Em sede de recurso, a Requerente/Recorrente defende que «a sentença proferida não se encontra devidamente fundamentada, não elenca a fundamentação da matéria de facto provada e não provada, com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como não se encontra devidamente fundamentada a convicção do julgador» - cfr. conclusões 11ª a 14ª.
Daqui decorre que, ao deduzir a referida nulidade da sentença por falta de fundamentação, o Requerente/Recorrente está a reportar-se, inequivocamente, apenas à segunda decisão impugnada (a que indeferiu o suprimento da autorização e declarou a ilegitimidade), pelo que a apreciação desta questão será realizada apenas com referência a esta decisão (e não também quanto à primeira decisão impugnada).
Em cumprimento do disposto no art. 641º/1 do C.PCivil de 2013, no despacho de admissão do recurso, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre a presente nulidade: “… a decisão em crise:… a fls. 105v.º, indicou os factos com base nos quais considerou não estarem verificados os pressupostos para o suprimento do consentimento da Requerida e, consequentemente, a legitimidade do Requerente… indicou o meio de prova em que se baseou – o relatório pericial de fls. 107 a 109 –, cuja apreciação crítica já resultava da apreciação da reclamação apresentada pelo Requerente…” (não se transcreve aqui a parte em que o Tribunal a quo alude à primeira decisão impugnada porque, como supra se viu, a nulidade arguida não se reporta a esta decisão).
Analisando o teor da decisão recorrida aqui em causa, revela-se absolutamente claro que contém o mínimo de fundamentação exigida por lei.
Com efeito, ao contrário do alegado de que «não elenca a fundamentação da matéria de facto provada» (alegação que até “roça” a litigância de má fé), na decisão está expressamente discriminada a matéria de facto que o Tribunal a quo considerou relevante para apreciação da questão do suprimento (ou não) da autorização, aqui se transcrevendo o respectivo trecho: “no caso, verifica-se… que a Requerida: - Não tem antecedentes psiquiátricos; - Compreende a natureza, propósito e metodologia do exame pericial; - Está orientada no tempo, no espaço e em pessoa; - Apresenta discurso lógico e coerente; - Reconhece o valor facial e económico das notas e moedas em curso, sendo capaz de fazer trocos;- Consegue realizar operações de aritmética; - É autónoma para as actividades da vida diária: higiene, vestuário e alimentação; - Sabe usar o multibanco e o telemóvel; - Não apresenta alterações da senso-percepção; - Tem o juízo crítico e o insight preservados…”.
Daqui decorre está exposto e é inteligível o quadro factual em que assentou a decisão, pelo que a alegação de que «não elenca a fundamentação da matéria de facto não provada» é insusceptível que configurar uma omissão total de «fundamentação de facto»: embora na decisão recorrida não estejam discriminados os factos não provados (e não cabendo aqui saber se, na questão que estava em causa, existam factos relevantes que resultaram não provados…), certo é que tal falta pode representar, no máximo, um caso de incompleta ou deficiente fundamentação de facto, o que, perante aquele que é o entendimento unânime da Doutrina e da Jurisprudência, não preenche a causa de nulidade prevista na alínea b) do referido art. 615º/1 (que só se preenche com uma ausência absoluta de falta de indicação dos factos). E sempre importa salientar que o próprio Requerente/Recorrente acaba por admitir que não existe uma ausência absoluta de fundamentação de facto quando alega que «a deficiente alusão aos factos provados ou não provados…» (o sublinhado é nosso) - cfr. conclusão 13º.
Por outro lado, ao contrário do alegado no sentido de que também não há «indicação dos meios de prova que levaram à decisão», verifica-se que na decisão está expressamente indicado o meio de prova em que o Tribunal a quo fundou a sua convicção quanto aos factos que considerou provados, aqui se transcrevendo o respectivo trecho: “no caso, verifica-se, pelo relatório pericial junto a fls. 107 a 109 que a Requerida…”. Saber se tal indicação do meio de prova é suficiente para motivar aquela convicção (de demonstração probatória) é uma questão distinta da ausência absoluta de qualquer motivação (inexistência sequer da indicação de qualquer meio de prova), única que pode consubstanciar a nulidade de sentença aqui em causa. Aliás, frise-se que, também aqui, o próprio Requerente/Recorrente acaba por admitir que não existe uma ausência absoluta de fundamentação da convicção quando alega que «não se encontra devidamente fundamentada a convicção do julgador» (o sublinhado é nosso) - cfr. conclusão 12º.
Portanto, não se verifica causa de nulidade prevista na alínea b) do nº1 do art. 615º.
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que a (segunda) decisão recorrida não padece da causa de nulidade invocada e, por via disso, o recurso tem de improceder quanto a esta questão.
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4.3. Da (In)Admissibilidade da Reclamação contra o Relatório Pericial

Decorre do Princípio do Estado de Direito a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Como a realização do direito é determinada pela conformação jurídica do procedimento e do processo, a C.R.Portuguesa integra princípios e normas designados por garantias gerais de procedimentos e de processo (14).
Estatui o art. 20º da C.R.Portuguesa que “1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos… 4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.
Um dos direitos fundamentais processuais consiste precisamente no direito à prova, que emerge como corolário do direito de acção e defesa aludido no nº1 do referido art. 20º. Como se explica no Ac. da RP de 21/10/2021 (15), “Na conjugação” dos arts. 410º e 411º do C.P.Civil de 2013, “os quais visam efetivar o direito fundamental a um processo justo e equitativo (artigos 20.º, n.º 4 Constituição; 10.º, DUDH; n.º 14.º, n.º 1 PIDCP; 6.º, n.º 1 CEDH; 47.º § 2 CDFUE),na sua dimensão da tutela jurisdicional efetiva, mediante a apresentação de prova, está intimamente conexionado com a proposição já expressa no Ac. TC n.º 646/2006… de que «o direito de acesso à justiça comporta indiscutivelmente o direito à produção de prova». No entanto a prova a produzir está sujeita à sua validade constitucional e admissibilidade legal, enquanto «imperativo da integridade judiciária»”.
Mas se o direito de acesso à justiça comporta o direito à produção de prova, isso não significa que o direito subjetivo à prova implica a admissão de todos os meios de prova permitidos em direito, muito embora a recusa de qualquer meio de prova deva ser, devidamente, fundamentada na lei ou em princípio jurídico, não podendo o Tribunal fazê-lo forma discricionária. Como ensina Miguel Teixeira de Sousa (16), embora o direito de acesso à justiça comporte indiscutivelmente o direito à produção de prova, tal “não significa, porém, que o direito subjectivo à prova implique a admissão de todos os meios de prova permitidos em direito, em qualquer tipo de processo e relativamente a qualquer objecto do litígio ou que não sejam possíveis limitações quantitativas na produção de certos meios de prova (por exemplo, limitação a um número máximo de testemunhas arroladas por cada parte). Bastará percorrer as normas de direito probatório constantes do Código Civil ou do Código de Processo Civil para verificar que há diversas proibições de utilização de certos meios de prova cuja constitucionalidade nunca foi posta em causa… Em muitos casos, a inadmissibilidade, estabelecida pela lei, de prova testemunhal tem como fundamento o juízo do legislador sobre as graves consequências de um testemunho inverídico, dada a especial fiabilidade desse meio probatório. Tais casos de inadmissibilidade têm, porém, natureza excepcional e hão-de ter uma justificação racional”.
Refere-se no Ac. do TC nº504/2004 (17), “o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º n.º 1 da Constituição, não vincula à admissibilidade de todo e qualquer meio de prova e em todas e quaisquer circunstâncias; o legislador goza, nesta matéria, de uma considerável margem de liberdade de conformação dos meios de prova que prevê, nada obstando a que, de acordo com critérios de razoabilidade, estabeleça condicionamentos à sua utilização, nomeadamente… tendo em conta os limites que a finalidade desses meios logicamente impõem”.
Portanto, o direito à prova não é um direito absoluto e incondicionado, “não implicando a total postergação de determinadas limitações legais aos meios de prova utilizáveis, desde que essas limitações se mostrem materialmente justificadas e respeitadoras do princípio da proporcionalidade. Dentro desta linha de entendimento, o Tribunal Constitucional não se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade no tocante a diversas disposições legais que em relação a certos procedimentos jurisdicionalizados apenas admitem um específico tipo de prova” (18), sendo que “a emissão de uma norma restritiva da utilização dos meios de prova, não implica necessariamente um desrespeito do direito acesso à justiça na sua vertente do direito do interessado produzir a demonstração de factos que, na sua ótica, suportam o seu direito ou a sua defesa. Tal desrespeito só se verificará quando se possa concluir que a norma em causa determina para o interessado, na generalidade das situações, a impossibilidade de uma real defesa dos seus direitos ou interesses em conflito” (19).
Quanto aos termos em que deve ser aferida a relevância/pertinência dos meios de prova, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires de Sousa (20) que “de um modo abrangente, pode afirmar-se que um meio de prova será pertinente desde que se pretenda provar com o mesmo um facto relevante para a resolução do litígio, seja de um modo direto, por se tratar de um factos constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo, seja de um modo indireto, por se tratar de um facto que permite acionar ou impugnar presunções das quais se extraem factos essenciais…”.
Procurando precisar os moldes desta aferição, no já citado Ac. da RE de 25/01/2018 (21), decidiu-se que “I - Os meios de prova relevantes para a fixação da matéria de facto são aqueles que se apresentem como potencialmente úteis para a decisão dos factos necessitados de prova, entendendo-se estes como os que importem, ainda que instrumentalmente, a qualquer uma das possíveis soluções de direito da causa, a aferir na conformação do quadro do litígio por via da causa de pedir invocada e das excepções deduzidas. II - Movendo-se a parte requerente neste âmbito, a produção dos meios de prova não só pode, como deve, incidir não apenas sobre os factos essenciais que, directa e nuclearmente se reportem ao objecto do processo, entendido este tanto na perspectiva da acção como na da defesa, mas também sobre outros que, embora mediata ou indirectamente relacionados, são necessários ou instrumentais para a prova daqueles primeiros e para o apuramento da verdade material” (22).
Deste modo, a relevância jurídica dos meios de prova constitui uma condição da sua própria pertinência e deve ser verificada em função dos «interesses concretos» em causa na respectiva acção.
Já não serão admissíveis todos os meios de prova que se apresentem como irrelevantes (impertinentes) para a concreta causa a decidir, ou seja, todos aqueles que, atento o objecto do litígio em causa, se assumem como desnecessários ao apuramento da verdade material porque são insusceptíveis de acrescentar qualquer elemento probatório que se repercuta no desfecho da lide (não tem um mínimo de influência na decisão), seja porque dizem respeito a factos que já se mostram devidamente comprovados, seja porque respeitam a factos que não constam do elenco a apurar na causa (não integram os «factos necessitados de prova»).
Relembre-se que, também no âmbito da admissibilidade das provas, vigora o princípio da limitação dos actos consagrado no art. 130º do C.P.Civil de 2013, do qual decorre que não é lícito realizar no processo actos inúteis.
No que respeita especificamente à prova pericial, prescreve o art. 388º do C.Civil que “tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”.
Decorre deste normativo que a prova pericial incide sobre determinados factos e destina-se a elucidar o Tribunal sobre o seu significado e alcance, no pressuposto que a sua natureza e complexidade técnica exigem conhecimentos especiais que escapam ao juiz, sendo por esta razão que tem que ser produzida por pessoas dotadas de especiais conhecimentos no domínio científico, técnico, artístico, experimental e profissional e tem por objeto, à luz desse tipo de conhecimento, a perceção, apreciação e valoração desses factos (23).
Por força do disposto no art. 389º do C.Civil e do art. 489º do C.P.Civil de 2013, o juiz aprecia e valora livremente a força probatória deste meio probatório, tal como se decidiu no Ac. do STJ de 23/06/2021 (24), “A prova pericial está sujeita à livre apreciação pelas instâncias, cabendo a estas, no âmbito dos seus poderes para julgar a matéria de facto, fixar livremente a força probatória da prova pericial, nos termos dos artigos 389º do Código Civil e 489º do Código de Processo Civil”.
Realizada a perícia em processo judicial e notificado o respectivo relatório às partes, o legislador consagrou duas possibilidades de reacção:

- a reclamação prevista no art. 485º do C.P.Civil de 2013 que dispõe: “1 - A apresentação do relatório pericial é notificada às partes. 2 - Se as partes entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, podem formular as suas reclamações. 3 - Se as reclamações forem atendidas, o juiz ordena que o perito complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o relatório apresentado. 4 - O juiz pode, mesmo na falta de reclamações, determinar oficiosamente a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos previstos nos números anteriores”;
- e a segunda perícia prevista no art. 487º do C.P.Civil de 2013 que dispõe: “1 - Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado. 2 - O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade. 3 - A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta”.
Da análise destes preceitos resulta que se tratam de mecanismos processuais completamente distintos e inconfundíveis, quanto aos respectivos pressupostos e finalidades (25), com objectivos diversos, sendo que a reclamação é o meio de reacção contra qualquer deficiência, obscuridade ou contradição detectadas no relatório e visa levar os peritos, que o elaboraram, a completá-lo, esclarecê-lo ou dar-lhe coerência, e que a segunda perícia é o meio de reacção contra inexactidão do resultado da primeira e procura que outros peritos confirmem essa inexactidão e a corrijam (26).
Para o caso em análise apenas releva a reclamação prevista no referido art. 485º e, de acordo com este normativo, podem constituir fundamentos deste meio de reacção os seguintes vícios do relatório: 1) a deficiência, que se verifica quando o(s) perito(s) não se pronuncie(m) sobre todas as questões que integram o objecto da perícia; 2) a obscuridade, que ocorre quando não se consiga alcançar o sentido de observações, fundamentos ou conclusões; 3) a contradição, que compreende uma manifestação de afirmações reciprocamente incompatíveis; 4) e a insuficiência da fundamentação, que tem lugar quando não sejam indicadas as razões que sustentam as conclusões do(s) perito(os) ou quando aquelas se mostrem insuficientes para sustentar estas (27).
No caso em apreço, estamos no âmbito de processo especial de maior acompanhado, estatuindo que “findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por eles requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos”, apresentando-se a perícia de exame médico como uma das diligências instrutórias que frequentemente tem lugar no supra referido processo especial
Tal exame pericial destina-se a aferir se o maior beneficiário padece de alguma doença, deficiência ou tipo de comportamento que lhe afete as respectivas faculdades físicas ou intelectuais por forma a impossibilitá-lo (de forma total ou parcial) de exercer direitos e/ou cumprir obrigações em termos que justificam a adopção das medidas de acompanhamento previstas no art. 145º do C.Civil.
Atenta a regra contida no art. 549º do C.P.Civil de 2013, esse exame pericial está sujeito às regras gerais sobre prova pericial previstas nos arts. 467º a 489º do mesmo diploma legal, mas sem prejuízo das regras especiais estipuladas no art. 899º ainda mesmo diploma legal (28).
No nº1 do art. 899º estipula-se que “Quando determinado pelo juiz, o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afecção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis”, donde decorre que o objecto da perícia consiste em apurar se o beneficiário padece, ou não, de afecção (isto é, doença ou condição que prejudica as suas faculdades físicas ou psíquicas), e, em caso afirmativo, quais são as consequências (isto é, a qualidade, o grau e a intensidade do “prejuízo” das faculdades), qual a data provável do seu início e quais os meios de apoio e de tratamento que se mostram recomendáveis, e mais decorre que, no relatório pericial, o(s) perito(s) deve(m) pronunciar-se sobre cada um dos aspectos atrás mencionados (atento o disposto no art. 476º do C.P.Civil de 2013, estamos aqui perante uma regra especial quanto ao objecto da perícia, embora deva haver conjugação com o disposto no referido art. 476º)
Já no nº2 do mesmo art. 899º estatui-se que “Permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências”, donde decorre que, se o exame pericial concluir pela existência de dúvidas quanto ao beneficiário padecer, ou não, de afecção, ou quanto ao respectivo grau de afectação, pode ser realizado um exame pericial da especialidade, inclusive com internamento, ou podem ser realizadas outras diligências com vista à dissipação dessas dúvidas (também aqui se consagrou outra regra especial, agora perante ao fundamento da segunda perícia previsto no art. 487º do C.P.Civil de 2013, que, no caso deste preceito, é a discordância quanto às conclusões periciais e não a existência de dúvidas).
Tecidas estas considerações jurídicas, importa analisar a questão concreta que aqui cumpre apreciar.
Em sede de recurso, e relativamente à primeira decisão recorrida, o Requerente/Recorrente defende que «o Tribunal a quo não admitiu a reclamação da perícia/pedidos de esclarecimentos apresentado pelo Recorrente, mas não sopesou a relevância da prestação dos esclarecimentos suscitados; a resposta aos esclarecimentos suscitados permitiria carrear aos autos prova mais eficaz e dotar a decisão de maior segurança quanto aos factos e, por conseguinte, contribuiria para uma decisão mais justa; a admissão das reclamações reforça a descoberta da verdade material; o direito à prova, constitucionalmente reconhecido, faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados tanto para a prova dos factos principais da causa, como, também, para a prova dos factos instrumentais ou mesmo acessórios; as diligências requeridas devem ser admitidas, quando legalmente admissíveis, pertinentes e não tenham cariz dilatório» - cfr. conclusões 1ª a 7ª.
A análise destas conclusões permite concluir, por si só e sem margem para dúvidas, que não lhe assiste qualquer razão. Concretizando.
Em primeiro lugar, o Requerente/Recorrente parte do pressuposto errado de que a decisão que sobre o deferimento/indeferimento da reclamação contra o relatório pericial constitui uma verdadeira decisão sobre a admissibilidade/inadmissibilidade de um meio de prova.
Como resulta dos ensinamentos de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (29), o procedimento probatório da prova pericial comporta quatro fases distintas: a da sua proposição, a da sua admissão, a da sua preparação (fixação do objecto da perícia), a da sua produção e a da sua assunção.
Daqui decorre, por um lado, que é nas fases da admissão e/ou da preparação que é proferida a decisão de admissão ou de rejeição (total ou meramente parcial) do meio de prova pericial requerido pelas partes. E, por outro lado, que a reclamação apresentada por alguma das partes relativamente ao relatório pericial nos termos previstos no supra referido art. 485º e a respectiva decisão que recai sobre essa reclamação insere-se nas fases da produção e/ou da assunção da prova, tendo lugar, portanto, fora daquelas duas fases em que necessariamente se inscreve a decisão de admissão/rejeição.
Neste “quadro”, do ponto vista técnico-jurídico, a decisão que conheça das reclamações previstas no referido art. 485º, quer acolhendo-as, quer denegando-as, não consubstancia uma efectiva decisão de admissão ou rejeição de um meio de prova, uma vez que não se aprecia se certa prova pericial deve ter lugar, ou não, no processo, nem se aprecia qual é o objecto da mesma (quais os factos sobre que deve, ou não, incidir). Neste sentido se pronunciou o Ac. da RC de 27/09/2016 (30),“ A decisão de indeferimento de uma reclamação apresentada contra um relatório pericial com fundamento na insuficiência deste por alegada ausência de resposta a alguns dos quesitos formulados, por se considerar que o relatório em questão não padece de tal insuficiência, não envolve qualquer rejeição de qualquer meio de prova, especialmente nos casos em que o reclamante não demonstra e não desenvolve qualquer esforço argumentativo no sentido de que existem realmente quesitos formulados e incidindo sobre matéria passível de prova pericial que não foram objecto de resposta no mencionado relatório” (caso distinto, é o do requerimento da realização de uma «segunda perícia», em que a respectiva decisão configura efectivamente uma admissão ou rejeição de um meio de prova – realização de nova perícia).
E, no caso concreto, a prova pericial realizada foi judicialmente ordenada (não foi requerida por qualquer das partes) e com o âmbito legalmente previsto (não tendo o Requerente/Recorrido requerido a ampliação do objecto a perícia), pelo que, tendo sido junto aos autos o correspondente relatório pericial e não sendo sequer invocado na reclamação deduzida que existiu falta de resposta (total ou parcial) ao objecto da perícia, jamais se pode considerar que a decisão recorrida (que indeferiu a reclamação) rejeitou um meio de prova (seja porque não o admitiu, seja porque restringiu o respectivo objecto).
Nestas circunstâncias, à decisão recorrida de indeferimento a reclamação contra o relatório pericial deduzida pelo Requerente/Recorrente não se mostram aplicáveis quer o princípio constitucional do direito à prova quer os critérios que supra se elencaram para aferir da relevância/pertinência dos meios de prova, devendo tal decisão reger-se apenas de acordo com os fundamentos legalmente previstos para a reclamação (consagrados no referido art. 485º/2 e que supra se discriminaram), pelo que improcedem todas as conclusões formuladas na pretensão recursória nesta questão porque respeitam tão só aos princípios e regras de admissão/rejeição dos meios de prova, quando a decisão a reapreciar não tem tal natureza.
Em segundo lugar, verifica-se que, em nenhuma daquelas conclusões (como em nenhuma das alegações de recurso), foi minimamente colocado em causa (“atacado”, “contraditado”), de forma concreta, qualquer das razões consignadas na decisão recorrida para fundamentar o indeferimento da reclamação (ou seja, em bom rigor, em sede de recurso, nenhum argumento é invocado para colocar em causa a fundamentação em que o Tribunal a quo alicerçou o indeferimento).
Com efeito, na primeira decisão recorrida invocou-se que o relatório “respondeu a todas as questões colocadas”. Em sede de recurso (como, aliás, também sucedeu na própria reclamação deduzida), o Requerente/Recorrente não indicou uma única questão e/ou um único facto sobre os quais o perito não se tenha pronunciado.
Na mesma decisão recorrida, refere-se que os esclarecimentos do ponto 1 e dos pontos 2 e 4 da reclamação «carecem de relevo» e «reportam-se a aspectos irrelevantes» respectivamente. De novo, em sede de recurso, o Requerente/Recorrente não produz uma única alegação e/ou conclusão no sentido demonstrar, ou pelo menos indiciar, qual seria (ou poderia ser) a relevância de tais esclarecimentos.
Também na mesma decisão recorrida, no que concerne ao esclarecimento do ponto 3 da reclamação, consignou-se que “o relatório pericial, para se considerar fundamentado, não tem que reproduzir todas as perguntas dirigidas à examinanda” e que “o mais que aí se refere” é “mera manifestação de discordância”, sendo que a esta mesma referência de «mera discordância» é também consignada quanto aos esclarecimentos dos pontos 6 e 7 da reclamação. No âmbito do recurso, o Requerente/Recorrente não formula uma única alegação ou conclusão em que “conteste” tal fundamentação.
E ainda na mesma decisão recorrida, no que concerne ao esclarecimento do ponto 5 da reclamação, argumenta-se que “os aspectos que se pretende ver esclarecidos… resultam claros do relatório pericial”. No recurso, o Requerente/Recorrente volta a omitir qualquer alegação e conclusão no sentido de demonstrar que não se entende nem se compreende o sentido das observações periciais em causa.
Deste modo, se nenhuma das conclusões formuladas na pretensão recursória (tal como nenhuma das alegações produzidas) traduz uma impugnação, efectiva e concreta, das razões consignadas na decisão recorrida para alicerçar o indeferimento da reclamação, temos que concluir que o Requerente/Recorrente se conformou com a respectiva fundamentação e, por via disso, com o próprio indeferimento.
E, em terceiro lugar, verifica-se que o Requerente/Recorrente não formulou uma única conclusão (tal como não deduziu uma alegação de recurso) que no sentido de que (como supra já se referiu) o perito não se pronunciou sobre todas as questões que integram o objecto da perícia, e/ou de que não se consegue alcançar o sentido das observações, fundamentos e conclusões insertas no relatório, e/ou de que o relatório contêm afirmações incompatíveis, e/ou de que não foram indicadas razões que sustentam as conclusões periciais (ou foram indicadas de forma insuficiente). Assim sendo, porque não foi invocado qualquer dos fundamentos legalmente previstos no art. 485º do C.P.Civil para a formulação da reclamação contra o relatório pericial, então inexistia e inexiste motivo legal para deferir a reclamação deduzida pelo Requerente/Recorrente (frise-se que, atento o próprio teor da reclamação, a mesma mais traduz apenas discordância relativamente ao juízo pericial consignado no relatório, situação que, desde que alegasse fundadamente as razões dessa discordância, justificaria a formulação da pretensão de realização de segunda perícia - cfr. art. 487º do C.P.Civil de 2013 -, mas nunca pode justificar/fundamentar a pretensão de reclamação contra o relatório pericial, sendo que, como supra se viu, são reacções processuais com objecto e finalidades distintas).
Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, perante tudo o que supra se expôs e concluiu, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que não deve ser admitida a reclamação deduzida pelo Requerente/Recorrente, e, por via disso, o recurso terá que improceder quanto à primeira decisão recorrida.
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4.3. Da Obrigatoriedade da Audição Beneficiária no Âmbito do Incidente de Suprimento da Autorização

Como resulta do seu próprio texto, a Lei nº49/2018, de 14/08, criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminou os institutos da interdição e da inabilitação, e procedeu à alteração de vários diplomas legais, entre os quais, o Código Civil e o Código de Processo Civil (cfr. o respectivo art. 1º).
Este regime procede à consagração legal de princípios internacionais plasmados na Convenção das Nações Unidas de 30/03/2007 sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adoptada em Nova Iorque (aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº56/2009, de 07/05, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº71/2009, de 30/06), e no respectivo Protoloco Adicional. Como se refere no Ac. do STJ de 17/12/2020 (31), “A necessidade de alteração legislativa resultou de imperativos constitucionais e de obrigações internacionais do Estado Português após adesão” à aludida Convenção.
Nessa Convenção estabelece-se que o seu objecto é “promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” (art. 1º), que os Estados Partes comprometem-se “a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para todas as pessoas com deficiência sem qualquer discriminação com base na deficiência” (art. 4º/1).
A Lei nº49/2018 não contém preâmbulo (como, infelizmente, se tornou prática habitual…), mas podemos que recorrer à respectiva Proposta de Lei nº110/XIII/3 (32) para compreender a ratio deste novo regime. Nessa Proposta frisa-se que cumpre “assegurar o tratamento condigno não só das pessoas idosas mas também das de qualquer idade carecidas de proteção, seja qual for o fundamento dessa necessidade”, realçando-se a desadequação do regime das interdições e inabilitações até então previsto no Código Civil porque “a rigidez da dicotomia interdição/inabilitação que obsta à maximização dos espaços de capacidade de que a pessoa ainda é portadora; o carácter estigmatizante da denominação dos instrumentos de proteção; o papel da família que ora dá, ao necessitado, todo o apoio no seu seio, ora o desconhece; o tipo de publicidade previsto na lei, com anúncios prévios nos tribunais, nas juntas de freguesia e nos jornais, perturbador do recato e da reserva pessoal e familiar que sempre deveria acompanhar situações deste tipo”. Em seguida, discriminam-se os fundamentos finais da alteração que são “a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível; a subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns, próprios de qualquer situação familiar; a flexibilização da interdição/inabilitação, dentro da ideia de singularidade da situação; a manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado; o primado dos seus interesses pessoais e patrimoniais; a agilização dos procedimentos, no respeito pelos pontos anteriores; a intervenção do Ministério Público em defesa e, quando necessário, em representação do visado”, pelo que, afastando-se do sistema dualista «interdição/inabilitação» e de «substituição», o novo regime jurídico do maior acompanhado opta por um modelo monista “por se considerar ser o dotado de maior flexibilidade e de amplitude suficiente, por compreender todas as situações possíveis” e por um modelo de acompanhamento “em que a pessoa incapaz é simplesmente apoiada, e não substituída, na formação e exteriorização da sua vontade”, por ser o modelo que “melhor traduz o respeito pela dignidade da pessoa visada, que é tratada não como mero objeto das decisões de outrem, mas como pessoa inteira, com direito à solidariedade, ao apoio e proteção especial reclamadas pela sua situação de vulnerabilidade”.
Relevam importância os ensinamentos de António Pinto Monteiro (33): “A Lei acolheu a mudança de paradigma já há muito anunciada, afastando-se do modelo de tomada de decisões por substituição e abraçando o modelo do acompanhamento, pela tomada de decisões com recurso à assistência e apoio. «Proteger sem incapacitar», recorde-se, é a palavra de ordem do novo modelo…”.
Podemos assentar que o novo regime do maior acompanhado, introduzido no Código Civil por força da Lei nº49/2018, representa a realização infraconstitucional das liberdades e direitos das pessoas portadoras de deficiência com vista a encontrar soluções individualizadas, que ultrapassem a rigidez do antigo regime dualista da «interdição/inabilitação», garantindo à pessoa acompanhada a sua autodeterminação, e promovendo, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente, de acordo com o princípio da máxima preservação da capacidade do sujeito (34).
Ocorreu, portanto, uma alteração de paradigma: a rigidez do anterior sistema que assentava em duas figuras (interdição/inabilitação) que limitavam a capacidade de exercício da pessoa afectada de uma forma estanque e pré-definida na lei (no qual a regra era a da incapacidade de exercício), deu lugar ao sistema maleável do maior acompanhado, cujo conteúdo é preenchido casuisticamente pelo Juiz em função da real situação e das reais capacidades e possibilidades da pessoa em causa (no qual a regra é, agora, a da capacidade): agora parte-se da ideia de capacidade para dotar a pessoa dos instrumentos necessários para a sua tutela nos casos pontuais em que dela careça, e sempre tendo em conta as particularidades de cada actuação ou domínio de actuação; já não existe uma solução generalizante, procurando-se, sim, preservar até ao limite a possibilidade de atuação autónoma do pessoa, sendo que, no fundo, pretende-se «proteger sem incapacitar» (35).
É neste novo enquadramento legal que, na sua redacção actual (que lhe foi dada pela Lei nº49/2018), o C.Civil estatui no art. 138º (sob epígrafe “Acompanhamento”) que “o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”, estabelece no art. 140º (sob a epígrafe “Objectivo e supletividade) que “1 - O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença. 2 - A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam”, dispõe no art. 145º/1 (sob a epígrafe “Âmbito e conteúdo do acompanhamento”) que “O acompanhamento limita-se ao necessário”, e prescreve no art. 147º/1 (sob a epígrafe “Direitos pessoais e negócios da vida corrente”) que “O exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário”.
Nestes normativos (e ainda noutros do mesmo C.Civil – cfr. arts. 141º, 143º, 146º, 149º e 155º) são estabelecidos os princípios basilares do regime do maior acompanhado e que devem orientar a aplicação (ou revisão) de qualquer medida de acompanhamento: primazia da autonomia da pessoa humana até ao limite possível; subsidiariedade da medida relativamente aos deveres gerais de cooperação e de assistência; e necessidade absoluta e proporcional da medida para assegurar o bem-estar, a recuperação, o pleno exercício de direitos e cumprimento dos deveres.
Explica Miguel Teixeira de Sousa (36), que “a medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições: - Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no Art.º 145, n.º 2 do C.C.; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento; - Uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (Art. 140.º, n.º 2, C.C.), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior”.
Também a Jurisprudência tem vindo a sustentar que são aqueles os princípios que vigoram neste regime e a exigir o preenchimento destes “requisitos”. Entre outros, referem-se aqui, o Ac. da RL de 30/06/2020 (37), no qual se decidiu que “3. O regime do maior acompanhado assenta na primazia da autonomia de cada um e na subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade. 4. Consequentemente, qualquer limitação nos direitos pessoais do beneficiário tem de ter um fundamento fáctico bastante que justifique a intervenção do tribunal, a qual deve sempre ser subsidiária e devidamente balizada no tempo. 5. Nessa valoração serão aplicáveis os princípios da subsidiariedade e do respeito pela autonomia da pessoa humana (arts. 141º, 143º e 147º do CC), da necessidade (arts. 149º e 155º do CC), do bem-estar e recuperação do sujeito (arts. 140º e 146º do CC), os quais funcionam como os princípios basilares de todo o regime e, por esse motivo, devem orientar a aplicação e revisão das medidas a aplicar em cada situação”, e o Ac. desta RG de 26/11/2020 (38), no qual se entendeu que “III- A Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto, que institui o regime do maior acompanhado, introduziu uma alteração de paradigma uma vez que se passou de um anterior sistema que assentava em dois institutos - interdição e inabilitação - que limitavam a capacidade de exercício do requerido de forma estanque e pré-definida na lei para um sistema que criou a figura maleável do maior acompanhado, com um conteúdo a preencher casuisticamente pelo juiz em função da real situação, das capacidades e possibilidades da pessoa em concreto. III- A medida de acompanhamento de maior é decretada se estiverem preenchidas duas condições: tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e designadamente uma das medidas enumeradas no art.º 145º, nº 2 do C.C. (princípio da necessidade) e tal medida é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência nomeadamente de âmbito familiar (princípio de subsidiariedade)”.
Portanto, o regime do maior acompanhado centra-se exclusivamente na defesa dos interesses do mesmo, quer de ordem pessoal, quer de ordem patrimonial, sendo que a intervenção (a medida) deve ser reduzida ao mínimo possível, limitada ao estritamente necessário, proporcional e suficiente para a resolução do concreto problema (limitação) que afeta o maior e que não é ultrapassável por via dos deveres gerais de cooperação e assistência
Ainda que formalmente o processo de acompanhamento de maior não deva ser considerado um processo de jurisdição voluntária, ao mesmo é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (cfr. art. 891º/1 do C.P.Civil de 2013, na redacção introduzida pela Lei nº49/2018) (39): é um processo especial de natureza formalmente contenciosa e substancialmente de jurisdição voluntária (cfr. arts. 891º/1, 986º/2, 987º e 988º do C.P.Civil de 2013) (40).
O novo regime do maior acompanhado, ao introduzir um novo paradigma, provocou várias alterações na ordem jurídica, quer em termos substantivos, quer em termos processuais
Entre essas alterações, ao nível processual, releva a referente à legitimidade para requerer o acompanhamento (isto é, para propor o respectivo processo especial).

Estatui o art. 141º do C.Civil, sobre a epígrafe “legitimidade” e na redacção que lhe foi dada pela Lei nº49/2018:

“1 - O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.
2 - O tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível.
3 - O pedido de suprimento da autorização do beneficiário pode ser cumulado com o pedido de acompanhamento”.

Perante o teor na anterior redacção deste preceito, verifica-se que foi introduzida uma restrição ao “leque” das pessoas que podem instaurar a ação especial de acompanhamento de maior, tendo o legislador reconhecido legitimidade activa apenas: ao próprio beneficiário; ao cônjuge, ou unido de facto deste, ou a qualquer seu parente sucessível, desde que estes estejam autorizados pelo beneficiário; e ao Ministério Público, independentemente dessa autorização.
Quando o beneficiário não a possa dar livre e conscientemente ou quando existir um fundamento atendível, a autorização de que o cônjuge, o unido de facto ou os parentes sucessíveis do beneficiário necessitam para estarem dotados de legitimidade activa, pode ser suprida pelo Tribunal, sendo que a pretensão de suprimento deve ser logo formulada aquando da instauração da ação e em cumulação com o pedido de acompanhamento, frisando-se que aqueles requerentes só têm legitimidade para a acção de acompanhamento se o Tribunal encontrar fundamento e deferir o suprimento da vontade do requerido/beneficiário, enquanto facto legitimador da protecção deste.
A razão de ser da necessidade da autorização do beneficiário prende-se com o facto de estarem em causa interesses pessoais do beneficiário e importando salvaguardar a liberdade pessoal do mesmo (41), sendo que, como se refere no Ac. da RC de 10/12/2019 (42), reconhece-se que “situações existem em que fruto da incapacidade do beneficiário, este não disporá de capacidade e discernimento para prestar a sua autorização para a propositura da ação e para avaliar plenamente o significado e as consequências do seu acto de autorização ou da recusa em a dar, e que, não obstante se conferir legitimidade ativa ao Ministério Público para propor a ação independentemente dessa autorização, esta válvula de segurança poderá ser insuficiente para salvaguardar cabalmente os interesses e direitos da pessoa com incapacidade”. E explica Menezes Cordeiro (43) que “o preceito fixa o primado da vontade do acompanhado: está em causa um benefício, de que ele pode ou não querer prevalecer-se. Todavia, em certas situações (anomalia congénita grave, acidente cerebral profundo, depressão total, coma, dependência avançada), o interessado não está em condições de dar uma autorização consciente. A lei poderia enumerar as circunstâncias que possam levar a esse suprimento. A tarefa seria ingrata: ficariam hipóteses de fora sendo que, no fundo, tudo depende do prudente arbítrio do juiz”.
Este incidente de suprimento do consentimento, enxertado no processo especial de acompanhamento de maior, não tem uma tramitação específica (44), mas integra, formal e estruturalmente, aquele próprio processo (45).
Como se assinala no Ac. da RE de 17/06/2021 (46), “Decorre alguma dificuldade pelo facto da lei prever um incidente na própria ação de acompanhamento de maior acompanhado, exigindo-se ao tribunal que verifique, caso seja junta a autorização do beneficiário, se este está em condições de a conceder ao requerente ou se se justifica suprir essa falta de autorização. Para isso o tribunal terá que apurar factos que constituem a própria causa de pedir da acção de acompanhamento, ou seja, apurar se o beneficiário se encontra impossibilitado por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”.
Assim sendo, o regime definido para o processo abrange tudo o que o integra e, por isso, também o concreto incidente de suprimento de autorização, o qual merece da parte do juiz uma especial atenção, já que de tal decisão depende, ou não, a promoção do processo e este processo visa salvaguardar e reforçar a defesa dos interesses do beneficiário (47).
E quanto ao critério do julgamento deste incidente, explica Miguel Teixeira de Sousa (48) que “cabe sempre ao tribunal controlar se se justifica suprir a falta de autorização do beneficiário… também o suprimento da falta de autorização do eventual beneficiário deve ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal,… Trata-se de um importante controlo que o tribunal deve realizar de forma tão minuciosa quanto possível, dado que não se pode partir do princípio nem de que o autorizante está em condições de conceder a autorização, nem de que esse autorizante, estando em condições de o fazer, quis efetivamente conceder a autorização. Os poderes inquisitórios que são atribuídos ao tribunal em matéria de facto e de prova pela remissão constante o art.º 891.º, n.º 1, para o regime dos processos de jurisdição voluntária podem ser aqui muito relevantes”.
Outra alteração processual relevante, decorrente deste novo regime, é a introdução do princípio da imediação na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário (49), e a concretização da obrigatoriedade imposta ao Juiz de, em qualquer circunstância, dever proceder de forma pessoal e direta à audição do beneficiário. Tal princípio e tal obrigatoriedade resultam, inequivocamente, da conjugação dos seguintes preceitos legais:
- art. 139º (sob epígrafe “Decisão Judicial”) do C.Civil - “O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas” (o sublinhado é nosso);
- art 897º do C.P.Civil de 2013 (sob a epígrafe “Poderes Instrutórios”) - “1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos. 2 - Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre” (o sublinhado é nosso);
- e art. 898º C.P.Civil de 2011 (sob a epígrafe “Audição pessoal”) - “1 - A audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas. 2 - As questões são colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas. 3 - O juiz pode determinar que parte da audição decorra apenas na presença do beneficiário” (o sublinhado é nosso).
A imediação agora consagrada apresenta uma dupla finalidade: 1) permitir ao Juiz inteirar-se da real situação em que se encontra o beneficiário; 2) e ajuizar, perante tal situação, e daquilo que observar, das medidas mais adequadas de acompanhamento que deverão ser tomadas em prol daquele (50).

A Jurisprudência tem vindo a sustentar, de forma unânime, o caráter obrigatório da diligência de audição do requerido/beneficiário no que concerne à decisão sobre a aplicação de uma medida de acompanhamento, aqui se referindo, entre outros, os seguintes arestos:

- o citado Ac. da RP de 24/09/2020 (51) decidiu que “I - A audição direta e pessoal do beneficiário por parte do juiz, prevista no art. 139º/1 CC e art. 897º/2 CPC, representa a concretização de um princípio estruturante em que assenta o novo regime de acompanhamento dos maiores, o princípio da imediação. II - A norma do art. 897º/2 CPC de cariz imperativo veda ao juiz a possibilidade de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como um autêntico dever”, argumentando-se que “Em defesa de tal posição alinham-se argumentos que apelam aos elementos literal, histórico e teleológico, face à redação do art. 897º CPC. As expressões “em qualquer caso” e “sempre” empregues pelo legislador (vg. no nº 2 do citado artº. 897º o CPC), tornam inequívoca a intenção do legislador em tornar obrigatório que a decisão final a proferir neste tipo de processos especiais de acompanhamento de maior seja sempre precedida da obrigatória audição do beneficiário pelo juiz. Tal opção do legislador representa um corte com o regime que até então vigorou para os institutos da interdição e da inabilitação, em que essa audição só se tornava obrigatória se fosse deduzida contestação (cfr. nº. 2 do artº. 896º do CPC, na sua versão anterior). Fazendo apelo ao fim e natureza do atual regime que visa tão só salvaguardar e reforçar a defesa dos interesses do beneficiário, considera-se que a audição direta e pessoal não só permite ao juiz inteirar-se da real situação em que este se encontra mas também ajuizar, daquilo que observar, das medidas mais adequadas de acompanhamento que deverão ser tomadas em seu benefício”;
- o Ac. da RP de 04/06/2019 (52) sustenta que a “a audição direita do beneficiário pelo juiz, no âmbito do processo especial de acompanhamento de maiores, determinada no n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, na redação da Lei n.º 49/2018 de 14 de agosto, deve ocorrer em todos os processos, sem excepção”, explicando que a audição do requerido permite “evitar que terceiros (familiares, amigos ou pessoas próximas) consigam submeter uma pessoa à medida de acompanhamento sem que ela careça de tal medida, tendo como finalidade, por exemplo, apropriar-se dos bens ou rendimentos produzidos pelos bens do pretenso sujeito carecido de acompanhamento. Estes casos serão de verificação rara, mas a sua hipotética existência futura não pode ser excluídos e um modo de os impedir consistirá em prever que o beneficiário possa estar em contato direito com o juiz, incluindo a sós, contribuindo de modo efetivo para a decisão do caso que lhe diz respeito”;
- o Ac. desta RG de 04/06/2019 (53) defende que “no novo regime jurídico do maior acompanhado, introduzido pela Lei n.º49/2018 de 14 de Agosto, a audição pelo juiz do beneficiário da medida de acompanhamento, determinada pelo n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, tendo por objectivo «averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas», é uma diligência de importância estrutural, que não comporta excepções nem possibilidade de dispensa”;
- e no Ac. da RC de 03/03/2020 (54) entendeu-se que “I- Entre os vários princípios que orientam/norteiam o processo especial de acompanhamento de maiores encontra-se o da imediação (pelo tribunal/juiz) na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário. II- Princípio esse que impõe obrigatoriamente ao juiz que, em qualquer caso e circunstância, proceda (direta e pessoalmente) à audição do beneficiário, sem que a possa dispensar. III- A omissão dessa audição é geradora de nulidade processual”, invocando-se a seguinte fundamentação: “As expressões «em qualquer caso» e «sempre» empregues pelo legislador (vg. no nº 2 do citado artº. 897º o CPC), não deixam, a nosso ver, qualquer margem dúvidas sobre a intenção determinada do legislador em tornar obrigatório que a decisão final a proferir neste tipo de processos especiais de acompanhamento de maior seja sempre precedida da obrigatória audição do beneficiário pelo juiz, respondendo, assim a algumas criticas feitas ao pretérito regime da interdição ou da inabilitação em que essa audição só se tornava obrigatória se fosse deduzida contestação (cfr. nº. 2 do artº. 896º do CPC, na sua versão anterior). Ao contrario, neste novo regime criado, e ao contrário do que sucedia no anterior, a nomeação de peritos e a realização de relatório pericial deixou de ser obrigatória (cfr. artºs 897º, nº. 1- fine -, e 899º, nº. 1, do CPC, na sua atual redação).
Diga-se ainda que, sendo assim, e visando, como vimos, a audição direta e pessoal não só permitir ao juiz inteirar-se da real situação em que se encontra o beneficiário mas também ajuizar, daquilo que observar, das medidas mais adequadas de acompanhamento que deverão ser tomadas em prol do último, e sem perder de vista que o novo regime instituído de acompanhamento dos maiores visa tão só salvaguardar e reforçar a defesa dos seus interesses, não colhe o argumento aduzido pela sra. juíza a quo de que, face ao teor do relatório pericial junto aos autos, a audição da aqui beneficiária se mostra não só inexequível, inútil e desnecessária (note-se ainda que do teor desse relatório apenas se refere haver limitações de comunicação com a beneficiaria decorrentes da doença de demência de que padece), como também atentatória da sua integridade pessoal e do direito à reserva da intimidade da sua vida privada (o não vislumbramos sequer, como tal possa ocorrer, e tanto mais que o juiz pode determinar que parte dessa audição possa ter lugar apenas na presença da beneficiaria- nº. 2 do artº. 898º do CPC). Por outro, constituindo, como vimos, a audição direta e pessoal do beneficiário por parte do juiz, a concretização de um principio estruturante em que assenta o novo regime de acompanhamento dos maiores, e decorrendo ela ainda de uma norma de cariz imperativo, fica vedada ao juiz a possibilidade de (através de invocação das regras do processo de jurisdição voluntaria, para a qual remete, com as devidas adaptações, o artº. 891º, nº. 1, do CPC, na sua atual redação data pela citado Lei nº. 49/2018) de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como vimos, como um autêntico dever. Em conclusão, e respondendo à questão acima colocada, a sra. juiz quo não disponha de poder para dispensar (como dispensou) a audição pessoal e direta da beneficiária, e ao fazê-lo, através do despacho recorrido, tal conduz à nulidade deste e bem assim dos actos subsequentes que porventura tem sido praticados e de que dele dependam absolutamente (artºs. 195º, nºs. 1 e 2, do CPC)”.
Este entendimento também tem sido prosseguido na Doutrina. Explica Menezes Cordeiro (55), que “o contacto pessoal com o juiz é decisivo, revogando-se [a norma do CPC antes da reforma de 2013] que o dispensava em certos casos. Se o beneficiário estiver internado ou em casa, impedido de se deslocar, o tribunal irá até ele, para se inteirar da situação e confirmar o que lhe seja dito… A reforma pretendeu dar, ao juiz, um máximo de informação para decidir em consciência, em prol do beneficiário”. E ensina Miguel Teixeira de Sousa (56), que se trata de “um meio de prova que é obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores (art. 139/1 do CC; art. 897/2 do CPC), dado que, por razões facilmente compreensíveis, se pretende assegurar que o juiz tem conhecimento efectivo da real situação em que se encontra o beneficiário. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e directa não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art. 6/1 do CPC) e de adequação formal (art. 547 do CPC), não deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição”.
A questão que se coloca é a de saber o princípio da imediação e a obrigatoriedade da audição do beneficiário que vigora na acção especial de acompanhamento de maior também se aplica ao incidente de suprimento do consentimento.
Afigura-se-nos que as razões (supra discriminadas) que justificam a consagração legal de tal princípio e de tal regra de obrigatoriedade têm plena validade e aplicação no incidente de suprimento do consentimento, incidente que integra a própria acção, e uma vez que a lei não contém qualquer “normativo” no sentido de que exigência da diligência da audição apenas se reportar à fase da decisão da medida a aplicar (não podendo ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal - cfr. art. 9º/2 do C.Civil -, sendo que onde o legislador não distingue não cumpre ao julgador fazê-lo), entendemos que a diligência em causa também tem caracter obrigatório no incidente em causa.
E tem sido neste sentido que a Jurisprudência tem vindo a pronunciar-se (e tanto quanto é do nosso conhecimento, de forma unânime).
No Ac. da RL de 24/09/2020 (57) decidiu-se que: “I - Para suprir a falta de autorização do requerido para que seja intentado um processo de acompanhamento, o juiz, previamente, tem de o ouvir pessoal e directamente, sempre que tal não se mostre impossível. II - O exercício do contraditório realizado através da citação para os pedidos, não é o mesmo que a audição prévia, pessoal e directa do requerido. III – A falta dessa prévia audição acarreta uma nulidade processual, porque a falta dela implica a falta de um acto que a lei prescreve para que seja proferida decisão sobre o suprimento, pressupondo a importância da audição do requerido para o efeito, e por isso é presumido poder influir na decisão da causa (art. 195/1 do CPC)”. Reportando-se ao art. 141º do C.Civil, neste aresto afirma-se que “é possível tirar desta norma o reforço do princípio de que a audição prévia, pessoal e directa, deve ocorrer para, entre o mais, se apurar se é verdade o alegado sobre a situação invocada para pedir o suprimento da falta de autorização e que tal só não deve acontecer se o requerido, pelas razões gravíssimas elencadas, ou equivalentes, não estiver em condições de ser ouvido para o efeito. Trata-se de uma decisão tomada contra o requerido, que o afecta, pelo que, só em circunstâncias excepcionais, já referidas, se poderia dispensar a audição prévia, pessoal e directa dele sobre os factos alegados para o suprimento da falta de autorização, de acordo, de resto, com o princípio 13, inserido na Parte III, relativa aos princípios processuais, da Recommendation n.º R (99) 4 Of The Committee Of Ministers To Member States, On Principles Concerning The Legal Protection Of Incapable Adults: Right to be heard in person: The person concerned should have the right to be heard in person in any proceedings which could affect his or her legal capacity … ou seja (na tradução do google): Direito de ser ouvido pessoalmente: A pessoa em causa deve ter o direito de ser ouvida pessoalmente em qualquer processo que possa afectar a sua capacidade jurídica. Ou seja, respeitando a qualquer processo, não deve ser restringido só à questão principal, mas também à questão incidental, tão relevante quanto aquela, da possibilidade do processo se iniciar sem ou contra a vontade do beneficiário”.
No já citado Ac. da RP de 24/09/2020 (58), defende-se que “o incidente de suprimento do consentimento, previsto no art. 892º/2 CPC, integra formal e estruturalmente o processo de acompanhamento de maiores; o regime definido para o processo abrange tudo o que o integra e por isso, também em sede de incidente deve o juiz proceder à audição do requerido/beneficiário”, explicando-se que: “A decisão do incidente com base em prova pericial, assente num interrogatório indireto realizado pelo perito, não permite ao juiz comunicar ao requerido o objetivo do processo, nem averiguar a sua situação, o conhecimento efetivo da real situação em que se encontra o beneficiário e o motivo em concreto da falta de autorização. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e direta não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art.º 6º, n.º 1) e de adequação formal (art.º 547º), deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição. Acresce que a não se entender assim poderia acontecer de o processo ser instaurado e terminar com a decisão do incidente de suprimento do consentimento, sem se realizar a audição do requerido pelo juiz, quando o art. 897º/2CPC refere: “[e]m qualquer caso, o juiz deve proceder sempre à audição pessoal e direta do beneficiário[…]”. Conclui-se do exposto que a audição do requerido/beneficiário constitui uma diligência obrigatória do processo de acompanhamento de maiores e por isso, deve ser cumprida em sede de incidente de suprimento de autorização do beneficiário”.
Também no citado Ac. da RC 26/04/2022 (59), sustenta-se que “No processo especial de acompanhamento de maiores, a decisão sobre o pedido de suprimento da autorização do maior a acompanhar deve ser precedida da audição pessoal e directa do beneficiário. Só assim não sucederá quando que essa audição for impossível”, apresentando-se a seguinte justificação: “A lei não faz qualquer distinção, no sentido de exigir a audição apenas na fase da decisão da medida a aplicar e por isso, onde o legislador não distingue não cumpre ao julgador fazê-lo. Apesar de se aplicar ao processo o regime dos processos de jurisdição voluntária, não fica na livre disponibilidade do juiz a realização da diligência, que o legislador previu como sendo obrigatória. Constituindo, como vimos, a audição direta e pessoal do beneficiário por parte do juiz, a concretização de um princípio estruturante em que assenta o novo regime de acompanhamento dos maiores, e decorrendo ela ainda de uma norma de cariz imperativo, fica vedada ao juiz a possibilidade de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como um autêntico dever. O regime definido para o processo abrange tudo o que o integra, e por isso, também o concreto incidente de suprimento de autorização, o qual merece da parte do juiz uma especial atenção, já que de tal decisão depende, ou não, a promoção do processo e este processo visa salvaguardar e reforçar a defesa dos interesses do beneficiário”.
Igualmente a Doutrina tem acolhido este entendimento. Segundo Miguel Teixeira de Sousa (60), “a decisão do incidente com base em prova pericial, assente num interrogatório indireto realizado pelo perito, não permite ao juiz comunicar ao requerido o objetivo do processo, nem averiguar a sua situação, o conhecimento efetivo da real situação em que se encontra o beneficiário e o motivo em concreto da falta de autorização. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e direta não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma)”.
Tecidas estas considerações jurídicas, importa analisar a questão concreta que aqui cumpre apreciar.
Em sede de recurso, e relativamente à segunda decisão recorrida, o Requerente/Recorrente defende que «o tribunal a quo não cumpriu todos os aspetos procedimentais do processo de acompanhamento de maiores regulados no CPC, não realizou a audição da requerida; a audição do beneficiário trata-se de um meio de prova obrigatório; a falta de audição da requerida constitui uma irregularidade que influi no exame e decisão da causa, configurando uma nulidade processual» - cfr. conclusões 8 a 10.
E, efectivamente, assiste razão ao Requerente/Recorrente. Concretizando.
A presente acção especial de acompanhamento de maior, foi interposta pelo Requerente/Recorrente, na qualidade filho da Beneficiária/Requerida (parente sucessível), mas sem dispor de autorização desta, sendo que, na sequência de despacho judicial com essa finalidade, aquele veio requerer o suprimento de consentimento da beneficiária.
Ora, a segunda decisão recorrida indeferiu o incidente de suprimento da autorização, sem proceder à prévia audição da Beneficiária, sendo certo que esta está em condições de ser ouvida pelo Juiz, como resulta quer do relatório pericial quer da factualidade considerada provada na própria decisão (designadamente, «não tem antecedentes psiquiátricos; está orientada no tempo, no espaço e em pessoa; apresenta discurso lógico e coerente; não apresenta alterações da senso-percepção; tem o juízo crítico e o insight preservados»). Portanto, não está comprovada qualquer situação excepcional que impossibilite da audição da Beneficiária.
Acresce que a decisão recorrida nem sequer se pronunciou sobre a dispensa da audição da Beneficiária e, por isso, também não contém qualquer justificação para a não realização de tal diligência(porque certamente entendeu que o relatório pericial era suficiente para decidir o incidente), mas sempre importa salientar que o exercício do contraditório realizado através da citação da beneficiária (e respectiva contestação que apresentou) não substitui a diligência da sua audição pessoal e directa pelo Juiz, e que, porque se se trata de uma diligência obrigatória, não está na livre disponibilidade do Juiz a realização da mesma (nem mesmo através do recurso aos critérios que vigoram nos processos de jurisdição voluntária).
Logo, tendo o despacho recorrido indeferido o incidente de suprimento a autorização e considerado o Requerente/Recorrente parte ilegítima, absolvendo a Beneficiária da instância, tudo sem realizar a diligência prevista no nº2 do art. 897º do C.P.Civil de 2013 - audição directa e pessoal da Beneficiária -, omitiu efectivamente a prática de um acto processual que é imperativo por lei (e que é obrigatório também no incidente em causa), o que consubstancia a prática de uma nulidade processual, atento o disposto no art. 195º/1 do C.P.Civil de 2013.
Como se sabe, as nulidades processuais constituem quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder (embora não de modo expresso) uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais (61).
As nulidades processuais distinguem-se entre principais, que são as que estão previstas nos arts. 186º a 194º do C.P.Civil de 2013, e as secundárias, que são as que estão elencadas nas previsão geral do art. 195º/1 do C.P.Civil de 2013, sendo que estas são presentemente qualificadas pela lei como “irregularidades”.
Resulta da previsão geral do referido art. 195º que as nulidades secundárias podem consistir na prática de um ato proibido, na omissão de um ato prescrito na lei ou na realização de um ato imposto, ou permitido por lei, mas sem o cumprimento do formalismo legalmente previsto.
A omissão de audição directa e pessoal do Beneficiário não está prevista em qualquer dos referidos arts. 186º a 194º, pelo que não pode ser qualificada como uma nulidade principal, e como representa a omissão de um acto que a lei prescreve, constitui uma irregularidade, a qual, por força do disposto na parte final do nº1 do art. 195º, só produz nulidade se «influir no exame ou na decisão da causa» (sendo que inexiste nenhum normativo legal que declare a nulidade em razão de tal omissão).
Quanto à interpretação do segmento normativo «irregularidade que possa influir no exame e decisão da causa», continuam a relevar os ensinamentos de Alberto dos Reis (62): “os actos de processo têem uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram actos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela”.
A omissão de audição directa e pessoal da Beneficiária, no caso concreto, comprometeu o conhecimento do incidente de suprimento da autorização uma vez não se estabeleceu a imediação entre o Juiz do Tribunal a quo e a Beneficiária e, por via disso, não permitiu ao Juiz comunicar-lhe o objetivo do processo e do próprio incidente, e não permitiu ao Juiz inteirar-se da real situação em que se encontra aquela, nem averiguar o motivo em concreto da falta de autorização, e nem apurar se é verdade o alegado pelo Requerente/Recorrente para pedir o suprimento da falta de autorização (e assinale-se que na decisão recorrida não foi consignada qualquer fundamentação ou razão para não ser realizada a audição em causa). Logo, influiu no exame e decisão da causa e, por via disso, é uma irregularidade que produz nulidade.
Nos termos dos arts. 199º/1 e 149º/1 do C.P.Civil de 2013, tal irregularidade tinha que ser arguida no prazo de 10 dias contado a partir da data em que foi notificada a segunda decisão recorrida.
E, conforme resulta do regime previsto nos arts. 196º a 199º do C.P.Civil de 2013, o recurso de apelação não constituirá o meio processual próprio para conhecer das infrações às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela alegadamente ocorreu. Porém, como se refere no já citado Ac. da RP de 24/09/2020 (63), “seguindo os ensinamentos de Manuel de Andrade, Alberto dos Reis e Antunes Varela, porque existe a decisão recorrida que sancionou a omissão, na medida em que considerou não ser necessário qualquer outro meio de prova, o conhecimento da nulidade pode-se fazer através deste meio de recurso. É que a nulidade está coberta por uma decisão judicial que a sancionou ou confirmou, pelo que o meio próprio de a arguir, será precisamente o recurso. Não é essa omissão que aqui está diretamente em causa, mas sim o despacho que a ela conduziu”. E mais se salienta no também já citado Ac. da RL de 24/09/2020 (64), “tem vindo a ser admitido, «numa compreensão inteligente da razão de ser dos ónus processuais», embora num entendimento menos rigoroso da lei, que, neste caso, o prazo seja o do recurso e que a questão possa ser levantada no próprio recurso (assim, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre…, com indicação de acórdãos nesse sentido, sendo que desde então se têm multiplicado decisões no mesmo sentido em vários tipos de situações diferentes), entendimento que, dada a sua generalização, não se deve contrariar para evitar desigualdades na aplicação da lei em casos semelhantes (art. 8 do CC)”.
Por conseguinte, entende-se que a presente nulidade processual pode ser arguida em sede de recurso e, assim sendo, porque conduziu à omissão uma diligência obrigatória e tem influência no exame e decisão do incidente de suprimento da autorização, a decisão recorrida que indeferiu este incidente não pode manter-se, devendo ser declarada a sua nulidade, o que implicará que seja proferida outra decisão que determine a audição da Beneficiária (não há lugar à anulação de qualquer outro acto - cfr. art. 195º/2 do C.P.Civil de 2013).
Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, perante tudo o que supra se expôs e concluiu, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que a falta de realização da audição directa e pessoal da beneficiária no âmbito do incidente de suprimento da autorização configura uma nulidade processual com influência no exame e decisão do incidente, e, por via disso, o recurso deverá proceder quanto à segunda decisão recorrida, a qual deverá ser declarada nula, devendo os autos prosseguirem para que, antes da decisão do incidente, seja a Beneficiária ouvida, pessoal e directamente, pelo juiz sobre os factos alegados sobre a matéria do pedido de suprimento (sem prejuízo de ser ouvido também quanto aos factos alegados para o pedido de acompanhamento se assim for entendido pelo tribunal recorrido, e sem prejuízo das demais diligências de instrução necessárias à decisão do incidente).
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4.4. Do Mérito do Recurso

Perante as respostas alcançadas quanto às questões que se impunham decidir, deverá julgar-se apenas parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo Requerente/Recorrente.
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4.5. Da Responsabilidade quanto a Custas

Procedendo o recurso apenas de forma parcial, uma vez que ambos ficaram vencidos, as custas do presente recurso ficarão a cargo do Requerente/Recorrente e da Beneficiária/Recorrida na proporção de ½ para cada um - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
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5. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação (por maioria) em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo Requente/Recorrente e, em consequência, mais decidem:

1) manter a decisão recorrida que indeferiu a reclamação contra o relatório pericial;
2) e anular a decisão recorrida que indeferiu o incidente de suprimento da autorização (e declarou o Requerente/Recorrente parte ilegítima e absolveu a Beneficiária da instância), determinando-se que os autos prosseguirem para que, antes da decisão do incidente, seja a Beneficiária ouvida, pessoal e directamente, pelo juiz.
Custas do recurso pelo Requerente/Recorrente e pela Beneficiária/Recorrida, na proporção de ½ para cada um.
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Guimarães, 13 de Julho de 2022.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)

Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
1ºAdjunto - José Carlos Pereira Duarte;
2ºAdjunto - José Fernando Cardoso Amaral (que junta voto de vencido)


Declaração de Voto de Vencido do Exmo Sr. Juiz Desembargador José Fernando Cardoso Amaral

Vencido quanto ao ponto 4.3 da fundamentação e respectivo ponto 2) da Decisão final.
Analisado e interpretado o especial regime substantativo e adjectivo resultante dos artºs 139º, nº 1, do CC, e 897º, nº 2, do CPC, cotejado com o de análogos procedimentos adjacentes, maxime aqueles em que a lei comete ao Juiz o suprimento incidental de faltas diversas (de consentimento, de representação, de capacidade, de autorização, de deliberação), à luz dos expostos argumentos da Doutrina e Jurisprudência sobre esta questão, atento o disposto no artº 3º, nº 2, CPC (que mesmo do sagrado contraditório salvaguarda casos excepcionais), bem como a finalidade do suprimento aqui em causa e a natureza urgente do processo, e, enfim, ponderados todos os fundamentos em que doutamente se alicerçou, no presente acórdão, a mui respeitável orientação vencedora, não estou convencido, certa e seguramente, que, no estrito âmbito da verificação do respectivo pressuposto de natureza processual e para o exclusivo efeito de apreciação, nos termos do artº 141º, do CC, do pedido incidental (cumulado com o principal de acompanhamento) de prévio suprimento da falta de autorização do beneficiário ao parente sucessível, necessário para a este poder ser reconhecida legitimidade ad causam (sucedânea da legitimidade própria), o juiz deva, sempre, por força do nº 2, do artº 897º, do CPC, sob pena de nulidade, proceder, tal como quando para decidir de meritis, à audição pessoal e directa daquele.
Menos ainda o fico quando, como no presente caso, as circunstâncias entretanto já averiguadas e que resultam evidentes da prova pericial obtida, afastam, de todo, qualquer indício de a progenitora requerida se encontrar impossibilitada de exercitar os mecanismos necessários e adequados à defesa e gestão dos seus interesses, maxime de, livre e conscientemente, dar a autorização e, assim, conferir legitimidade a um dos seus filhos para, substituindo-a numa importante dimensão da sua autodeterminação, este intentar a acção em suposto benefício dela, ou de existir qualquer outro fundamento atendível que justifique a falta do seu consentimento para tal e, portanto, de que a audição pessoal seja, no caso e para o efeito em vista, conditio sine qua non para garantir a sua protecção efectiva.
Apesar de, como condição prévia incontornável da decisão (artº 139º, nº 1, CC) sobre o mérito do pedido de acompanhamento e medidas, a lei consagrar o princípio da audição obrigatória do beneficiário, uma vez findos os articulados, pelo juiz, de forma pessoal e directa (artº 897º, nº 2, CPC), não me parece que a decisão do pedido de suprimento da autorização que constitui o objecto do prévio incidente respectivo, deva considerar-se um “qualquer” daqueles em que a audição tem “sempre” lugar.
É que, não se duvidando da imperatividade resultante do emprego deste advérbio (“sempre”) nem da amplitude da expressão literal (“em qualquer caso”) com que o legislador explicitou e vincou a sua intenção no que respeita à instrução e decisão do pedido de acompanhamento, considero que, tendo-se com isso querido obrigar à audição independentemente do valor, força e diversidade dos demais meios de prova de que disponha e até das possíveis circunstâncias adversas em que aquela
haverá de ter lugar, a consequente obrigatoriedade não se projecta no momento prévio, incidental, em que se trata apenas da aferição da legitimidade substitutiva da da própria requerida e que os pressupostos do pedido de suprimento não se confundem com os de procedência da acção, àqueles, portanto, não se referindo, em princípio, o objectivo de “averiguar a sua situação” que o nº 1, do artº 898º, CPC, também atribui à audição pessoal.
A meu ver, os factos relativos ao suprimento da falta de autorização (como se infere do disposto no nº 2, do artº 892º, CPC) circunscrevem-se apenas à circunstância de que resulte a impossibilidade de a requerida a dar livre e conscientemente ou outras que para tal o juiz considere serem motivo atendível. Eles não abrangem o âmbito de todos aqueles que consubstanciam a impossibilidade fundamentadora da necessidade de acompanhamento e a justificação das medidas
adequadas, decisões estas que, aí sim, não podem ser tomada sem a referida audição.
Entendo, pois, que, em relação a medidas provisórias e urgentes (artº 139º, nº 2, CC, e 891º, nº 2, CPC) e a questões incidentais como esta (artº 141º) ou outras de idêntica natureza que se suscitem no âmbito e ao longo do processo cuja estrutura, exigências probatórias e efeitos não se confundem com as da causa e seu objecto e, portanto, não contendam com a decisão de acompanhamento e sobre as medidas respectivas, a audição, sendo embora possível, não tem carácter obrigatório, e que, portanto, a sua não realização não implica a nulidade secundária.
Não tendo sido estabelecida uma específica regulamentação adjectiva para tal, afigura-se-me que, caso o legislador quisesse ter-se apartado da prevista para os incidentes em geral ou da daqueles em que especialmente se apreciam questões análogas e, na decisão dele, também impor como obrigatória a audição pessoal, teria, como fez quanto às demais novidades introduzidas no processo em si, na averiguação da situação de impossibilidade visada no artº 138º, CC, e para os efeitos de acompanhamento e medidas adequadas – em que séria e definitivamente está em causa a capacidade jurídica e de exercício do beneficiário justificativa da actuação máxima do juiz – , explicitado, designadamente no contexto do artº 141º, a referida obrigatoriedade em vez de aí, pura e simplesmente, a omitir, apenas a prevendo como antecedente à decisão (nº 1, do artº 139º, CC) e subsequente ao fim dos articulados (nº 1, do artº 897º, CPC), ou seja, em momento crucial é certo mas que pressupõe já resolvida a do pedido de suprimento da autorização inicialmente em falta.
Isto não quer dizer que o controlo pelo juiz das condições em que este pode ser deferido ou deve ser indeferido não seja, face, ainda assim, àquilo que está em causa – e o que está em causa é reconhecer a uma das pessoas referidas no nº 1, do artº 141º, CC, que possa assumir legitimidade para intentar a acção sem autorização do beneficiário e, desse modo, intrometer-se num domínio fundamental relativo à personalidade deste –, realizado “de forma tão minuciosa quanto possível” e “cuidadosamente ponderado”, “dado que não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização” (M. Teixeira de Sousa, ob. cit., página 48).
Quer dizer que, havendo outros meios de prova idóneos – como no caso há – a garantir tal desiderato e a permitir uma decisão segura e conscienciosa, esta pode ser tomada sem audição pessoal, sob pena de, então, a considerar-se que esta deve obrigatoriamente ter lugar em todos os momentos e a propósito de todas as questões mesmo que apenas acessórias da fundamental (o acompanhamento e as medidas), se ter de repetir a audição e aferir a “situação” respectiva em função de cada uma das diversas questões, o que não parece ter sido pensado, nem querido, nem se perspectiva como necessário, adequado e praticamente exercitável.
Por isso se diz no Acórdão da Relação de Lisboa, de 02-07-2020, processo 18153/18.0T8LSB-B.L1-6, que o incidente em causa, destinado apenas a regularizar a instância, não exige uma indagação probatória tão exaustiva e um juízo tão exigente como o que é reclamado para a aplicação ao beneficiário de uma medida de acompanhamento, sob pena de esvaziamento deste processo nos casos em que com o pedido de acompanhamento se cumule o pedido de suprimento de autorização do beneficiário.
De resto, ainda que se entendesse ser obrigatória a audição nesta fase e ter sido cometida irregularidade, não me parece que esta, em face do resultado da prova pericial obtida, possa influir no exame ou na decisão do incidente, pois que, com ou sem audição, as conclusões daquela no sentido de que a requerida tem a possibilidade de, livre e conscientemente, dar ou não dar autorização é inequívoca, segura e convincente.
Embora, o juiz seja tradicionalmente referido como o “perito dos peritos”, a realidade é que não se cogita que, face ao parecer médico-legal especializado, aquilo que viesse a dizer-lhe pessoalmente a requerida ou ele a perscrutar presencialmente na conduta dela, comprometeria ou influenciaria significativamente e em sentido diferente do propiciado pelas conclusões periciais o exame e a decisão da questão incidental, ou seja, que, afinal, diversamente, viesse a impor-se deferir o suprimento por se lhe deparar aí um quadro impossibilitante de ela, livre e conscientemente, dar autorização – que é o alegado pelo recorrente e reeditado nesta parte do recurso.
Referia Alberto dos Reis (Comentário, II, página 486), que tal comprometimento ocorre, ou não, uma vez verificada a irregularidade, consoante o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos do processo; fique, ou não fique, garantido ou satisfeito; com os actos praticados. Só se não ficar, se tal finalidade resultar comprometida, é que a nulidade deverá ser decretada.
Com efeito, como explicava aquele autor (pág. 345), o sistema que informa o artº 195º (antes o 201º) não é o legalista mas o pragmático. Pressupõe este que a nulidade só será decretada quando há utilidade real em a declarar, o que sucede quando a inobservância da forma compromete o fim prático que com o acto se pretendia conseguir, sendo certo que, como já então perspectivava (página 346); A orientação pragmática é a que domina na actualidade. A tendência moderna é no sentido de evitar, quanto possível, a anulação do acto ou do processo, em obediência à directriz económica que assinalámos. Em linha geral, a anulação produz-se somente quando há uma razão de utilidade prática a justificá-la.
Em suma, não reconheceria a nulidade processual e julgaria também nesta parte improcedente a apelação.



1. A presente decisão é redigida segundo a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
2. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139.
3. Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
4. In Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra Editora, 1945, p. 172/173
5. In Coimbra Editora, 2ªedição, 1985, p. 687.
6. In Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, p. 140.
7. In Notas ao Código de Processo Civil, III, p. 194.
8. In Estudos sobre o Processo Civil, p. 221.
9. In Da Sentença Cível, p. 39.
10. Juiz Conselheiro Ribeiro Cardoso, proc. nº835/15.0T8LRA.C3.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
11. Juíza Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, proc. nº3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
12. Juiz Desembargador Vieira e Cunha, proc. nº1887/04-1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
13. Juíza Desembargador Ana Cristina Duarte, proc. nº1/08.0TJVNF-EK.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
14. Cfr. Ac. RE 10/03/2022, Juiz Desembargador Tomé de Carvalho, proc. nº7679/19.8T8STB-A.E1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.
15. Juiz Desembargador Joaquim Correia Gomes, proc. nº nº3714/15.7T8VNG-A.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
16. In As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, 1995, p. 228.
17. Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
18. Ac. TC nº530/2008.
19. Ac. RC 21/04/2015, Juíza Desembargadora Maria João Areias, proc. nº124/14.1TBFND-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
20. In obra citada, p. 511.
21. Juíza Desembargadora Albertina Pedroso, proc. nº1180/11.5TBCTX-B.E1.
22. Este entendimento foi secundado pelos também já citados Ac. RG 30/04/2020, Juiz Desembargador Alcides Rodrigues, proc. nº828/19.8T8BRG-B.G1 e Ac. RE 10/03/2022, Juiz Desembargador Tomé de Carvalho, proc. nº7679/19.8T8STB-A.E1.
23. Cfr. Ac. STJ 26/09/1996, in BMJ, 459º, p. 513 e Ac. RL de 17/10/1996, Juiz Desembargador Salvador da Costa, proc. nº0074676, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.
24. Juíza Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, proc. nº199/07.5TTVCT-E.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
25. Cfr. Ac. RG 19/05/2016, Juiz Desembargador José Amaral (aqui 2ºadjunto), proc. nº188/12.8TMBRG-F.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
26. Cfr. Ac. RG 16/11/2017, Juiz Desembargador Jorge Teixeira, proc. nº1024/15.9T8BGC-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg e Ac. RL de 08/03/2018, Juíza Desembargadora Maria Manuela Gomes, proc. nº468/15.0T8PDL-B.L1-6, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.
27. Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ªedição, almedina, p. 339, e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, almedina, 2018, p. 545.
28. Ac. RL de 08/03/2018, Juíza Desembargadora Maria Manuela Gomes, proc. nº468/15.0T8PDL-B.L1-6, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.
29. In Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, p. 585 a 595.
30. Juiz Desembargador Jorge Manuel Loureiro, proc. nº26/11.9TBMDA-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
31. Juiz Conselheiro Maria Clara Sottomayor, proc. nº5095/14.7TCLRS.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
32. Disponível em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=42175.
33. In RLJ, Ano 148º, Secção de Legislação, Das incapacidades ao maior acompanhado, p. 72.
34. Cfr. o já citado Ac. STJ de 17/12/2020.
35. Cfr. Mafalda Miranda Barbosa, in Maiores Acompanhados: da Incapacidade à Capacidade, ROA, Ano 78, jan./jun. 2018, p. 236.
36. In apresentação realizada no CEJ, em 11/12/2018, no âmbito da ação de formação “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado - O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspetos Processuais”, p. 51.
37. Juíza Desembargador Ana Rodrigues da Silva, proc. nº2669/19.3T8PDL-A.L1-7, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.
38. Juíza Desembargador Margarida Almeida Fernandes, proc. nº228/17.4T8PTL.G2, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
39. Cfr. Ac. desta RG 30/09/2021, Juíza Desembargadora Maria Cristina Cerdeira, proc. nº2394/20.2T8BRG.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
40. Cfr. Ac. RP 22/03/2021, Juíza Desembargadora Eugénia Cunha, proc. nº22295/19.6T8PRT.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
41. Ac. da RC 26/04/2022, Juiz Desembargador António Domingos Pires Robalo, proc. nº144/21.5T8PMS.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
42. Juiz Desembargador Isaías Pádua, proc. nº7779/18.1T8CBR.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
43. In Código Civil Comentado, I, CIDP/FDUL, Almedina, 2020, p. 400.
44. Cfr. Ana Luísa Santos Pinto, in O regime processual do acompanhamento de maior, Julgar nº41, Maio –Agosto de 2020, Coimbra, Almedina, p. 150, nota 15.
45. Cfr. o citado Ac. da RC 26/04/2022, Juiz Desembargador António Domingos Pires Robalo, proc. nº144/21.5T8PMS.C1, e o Ac. RP 24/09/2020, Juíza Desembargadora Ana Paula Amorim, proc. nº16021/19.7T8PRT.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
46. Juíza Desembargadora Elizabete Valente, proc. nº2126/19.8T8OER.E1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.
47. Cfr. o citado Ac. RP 24/09/2020, Juíza Desembargadora Ana Paula Amorim, proc. nº16021/19.7T8PRT.P1.
48. In O Regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais, in e-book O novo regime jurídico do maior acompanhado, CEJ, p. 48.
49. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in obra referida, p. 44, e Ana Prata (coord.) Código Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, almedina, 2019, p. 170.
50. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in obra referida, p. 44.
51. Juíza Desembargadora Ana Paula Amorin, proc. nº16021/19.7T8PRT.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
52. Juiz Desembargador Alberto Ruço, proc. nº647/18.9T8ACB.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
53. Juíza Desembargadora Eva Almeida, proc. nº891/18.9T8FAF.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
54. Juiz Desembargador Isaías Pádua, proc. nº858/18.7T8CNT-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
55. In obra referida, p. 396 e 397.
56. In obra citada, p. 41.
57. Juiz Desembargador Pedro Martins, proc. nº2625/21.1T8CSC-2, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.
58. Juíza Desembargadora Ana Paula Amorin, proc. nº16021/19.7T8PRT.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
59. Juiz Desembargador António Domingos Pires Robalo, proc. nº144/21.5T8PMS.C1.
60. In obra referida, p. 44.
61. Cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, coimbra editora, 1993, p. 156.
62. In Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra Editora, p. 486.
63. Juíza Desembargadora Ana Paula Amorin, proc. nº16021/19.7T8PRT.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
64. Juiz Desembargador Pedro Martins, proc. nº2625/21.1T8CSC-2, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.