PERÍCIA COLEGIAL
RECUSA DE COLABORAÇÃO
VIOLAÇÃO DO DEVER DE COLABORAÇÃO
CONSEQUÊNCIAS
Sumário


I - Se a requerente respondeu que não ocorreu qualquer mútuo em 2019 e esclareceu a natureza e proveniência do passivo, o que vai para além daquilo que lhe havia sido determinado na decisão proferida em 14.3.2022 pela Relação de Guimarães, pois esta apenas se referia à existência de um mútuo, nem tal decisão está por cumprir, nem se verifica violação do princípio da cooperação por parte da requerente, nem existe fundamento legal para determinar a realização de perícia colegial com vista a esclarecer uma questão factual que a requerente já esclareceu.
II - A recusa de colaboração e consequente violação do dever de cooperação imposto pelo nº 1 do art. 417º, do CPC, não confere a possibilidade de requerer novos meios de prova, abrindo apenas lugar à possibilidade de aplicação das consequências enunciadas no nº 2, ou seja, aplicação de multa, recurso aos meios coercitivos possíveis, livre apreciação da recusa em termos probatórios e inversão do ónus da prova.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

P. B. - UNIPESSOAL, LIMITADA, propôs incidente de habilitação de cessionário contra F. J., pedindo que fosse habilitada para intervir, nos autos de insolvência, no lugar da aí reclamante Banco ..., S.A.
Alegou para o efeito, em síntese, ter celebrado um contrato de cessão de créditos (titulado por documento escrito que juntou), no qual Banco ..., S.A. declarou ceder-lhe o crédito que havia reclamado contra o insolvente (F. J.), mantendo a natureza e os acessórios a ele inerentes.
Mais alegou que, quer a cessionária, quer a cedente, comunicaram aquele contrato de cessão ao insolvente, o qual não deduziu qualquer oposição.

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Notificado, o requerido (F. J.) contestou pedindo que a habilitação fosse indeferida, por legalmente inadmissível, ou, subsidiariamente, fosse julgada improcedente.
Alegou para o efeito, em síntese, ser o incidente inadmissível face: à natureza própria do processo de insolvência, visto essencialmente como um processo executivo especial, em que não se pode verdadeiramente falar de partes ou litígio, nem de transmissão de coisa ou direito em litígio (sendo aqui o valor económico do crédito reclamado de € 16.000.000,00 praticamente nulo e inexigível), o que mais se acentuaria no incidente de exoneração do passivo restante (único pendente); à limitação da sua aplicação ao processo declarativo (reiterando ser o processo de insolvência de natureza especialmente executiva); e à exigência de que ocorra em causa pendente, o que não seria o caso face ao encerramento do processo de insolvência, por insuficiência da massa)
Mais alegou que o negócio-base da cessão (a compra e venda do crédito) é nulo, quer por simulação absoluta, quer por violar regras legais imperativas pertinentes ao exercício da atividade financeira, já que a cessionária não estaria autorizada a desenvolvê-la, agindo assim em fraude à lei.
Alegou ainda que a pretensa transmissão dos créditos foi feita apenas para tornar mais difícil a sua posição no procedimento de exoneração do passivo restante (sendo desde logo afirmado na carta que lhe comunicou a cessão que a cessionária pretenderia requerer a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante): a cessionária agiria como testa de ferro de outrem (seu familiar, com o qual mantém prolongados diferendos económicos), que a teria financiado para o pagamento do alegado preço de € 75.000,00 (já que ela própria não teria capacidade financeira para o efeito), não tendo a mesma qualquer interesse em pagá-lo para adquirir um crédito incobrável.
Por fim, o requerido (F. J.) defendeu atuar a requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) nos autos de má fé, pedindo que fosse sancionada em conformidade.
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Foi exercido o contraditório relativamente à exceção deduzida na contestação.
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Em 20.1.2020, foi proferido despacho que, para além de outras questões, fixou o valor do incidente em € 75 000, julgou admissível a dedução do incidente de habilitação, tendo determinado o seu prosseguimento com vista à apreciação das restantes questões suscitadas na oposição, e designou data para a realização da audiência final.
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Iniciada a audiência final, e na sequência de depoimento prestado pela testemunha R. P., o requerido (F. J.) apresentou requerimento, em 15.11.2021, pedindo que a requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) facultasse a identidade da pessoa ou entidade que em 2019 mutuou a quantia de € 102 708,36, juntando aos autos cópia dos documentos que dão suporte a tal transação e à transferência bancária desse valor.
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Foi proferido despacho que indeferiu tal pretensão probatória o qual, na sequência de recurso contra o mesmo interposto, veio a ser revogado tendo a Relação de Guimarães, por decisão proferida em 14.3.2022, no âmbito do apenso E, (a qual aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais) ordenado “a notificação da Requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) para indicar a identidade da pessoa(s) ou entidade(s) que, em 2019, lhe mutuou(aram) a quantia de € 102.708,36, juntando aos autos cópia dos documentos que deram suporte a essa operação (nomeadamente, da transferência bancária desse valor).”
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Em 8.4.2022 foi proferido despacho (ref. Citius 48499613) com o seguinte teor:

Na sequência da decisão sumária proferida pelo TRG no apenso E, determina-se a notificação da Requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) para indicar a identidade da pessoa(s) ou entidade(s) que, em 2019, lhe mutuou(aram) a quantia de € 102.708,36, juntando ainda aos autos cópia dos documentos que deram suporte a essa operação (nomeadamente, da transferência bancária desse valor).”
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Por requerimento de 19.4.2022, o requerido (F. J.) requereu a junção aos autos das declarações ficais de 2018 e 2019 apresentadas pela requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada), documentos cuja junção foi admitida por despacho de 3.5.2022.
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Por requerimento de 21.4.2022, veio a requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) dizer que não recebeu qualquer quantia em mútuo no exercício de 2019.
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Em 9.5.2022 veio o requerido (F. J.) pedir que se proceda a perícia colegial da escritura comercial da habilitanda P. B. - Unipessoal, Limitada para esclarecimento da seguinte questão de facto:
-Natureza e proveniência do passivo corrente de € 102 708,36 constante da IES de 2019 da habilitanda; identificação da pessoa(s) ou entidade(s) que figuram como credor(es) dessa(s) operação(ões) e exibição dos documentos que lhes deram suporte.
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Por requerimento de 9.5.2022, veio a requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) dizer que respondeu à questão que lhe foi colocada e nos termos em que a mesma foi colocada pois efetivamente não lhe foi feito qualquer empréstimo, seja de que montante for, seja porque pessoa for.
Mais alegou que, tal como vertido nos artigos 56.º a 65.º da resposta à contestação, “entre a habilitanda e o Dr. J. O. foi acertada a futura compra dos créditos em causa ou dos activos que porventura lhe sucedessem.
5.
Nesse propósito e nessa comunhão de interesses, a habilitanda assumiu a compra dos créditos e a promoção das diligências necessárias à sua recuperação.
6.
Prometendo vir a cedê-los a uma sociedade da esfera jurídica do Dr. J. O., a sociedade comercial “X, Unipessoal, Lda”, pelo preço de €100.000,00, com um diferencial de lucro por relação ao preço de aquisição, acertando entre eles a futura divisão dos lucros que a operação viesse a gerar no entretanto.
7.
Até ao presente momento, porque não estão ainda criadas as condições acordadas entre as partes, o contrato definitivo não foi outorgado, sendo que a promessa foi celebrada sem prazo, mantendo-se, pois, em vigor.
8.
E daí que, muito naturalmente e conforme determinam as boas regras da organização contabilística, tal quantia figure lançada na rubrica de “Outros Passivos Correntes”, em virtude de se tratar de contrato promessa ainda não cumprido, na qual não se inscrevem apenas empréstimos.
9.
Tornam-se, assim, face ao que agora se deixa vertido, completamente inúteis e desnecessárias quaisquer outras diligências, estando devidamente satisfeito o propósito do insolvente de saber e demonstrar - o que fica agora confessado - qual a proveniência daquela quantia e da identidade da pessoa que a efectuou.
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Na audiência final que teve lugar em 10.5.2022 foi proferido despacho com o seguinte teor:
“A questão colocada pelo Tribunal, na sequência da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, mostra-se claramente respondida, razão pela qual se não vislumbra a necessidade de qualquer produção subsequente à prova, designadamente, de carácter pericial, atendendo ademais ao período de tempo já decorrido desde o início dos trabalhos, indeferindo-se respectivamente a pretensão deduzida.”
*
O requerido (F. J.) não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1.ª Por mera economia processual, o Recorrente dá aqui por integrada e reproduzida a factualidade enunciada sob os n.ºs 1 a 3 do corpo da alegação, para concluir que, notificada a Recorrida para cumprir a Decisão Sumária de 14.3.2022 (refª 7965220) do Tribunal da Relação de Guimarães no sentido de “indicar a identidade da(s) pessoa(s) ou entidade(s) que, em 2019, lhe mutuou(aram) a quantia de € 102.708,36, juntando ainda aos autos cópia dos documentos que deram suporte a essa operação (nomeadamente, da transferência bancária desse valor”, refugiou-se numa mera alegação de plano redundante, traduzida numa recusa serôdia de cumprir o que estava decidido com trânsito em julgado e lhe havia sido ordenado.
2.ª Perante essa conduta da Recorrida, em 19.4.2022, o Recorrente requereu a junção aos autos das declarações fiscais de 2018 e 2019 apresentadas pela X à Administração Tributária e na competente Conservatória do Registo Comercial (refª 3558558), o que foi deferido por despacho de 3.5.2022 (refª 48605989).
3.ª Considerando que a conduta da Recorrida consubstanciou, em violação grosseira do dever de cooperação, uma recusa, ao menos tácita, das informações e documentos ordenados pelo Tribunal da Relação de Guimarães, o Recorrente requereu perícia colegial da escrituração comercial da X para o esclarecimento da seguinte questão de facto: natureza e proveniência do passivo corrente de € 102.708,36, constante do IES de 2019 da Habilitanda; identificação da pessoa(s) ou entidade(s) que figura(m) como credor(es) dessa(s) operação(ões) e exibição dos documentos que lhes deram suporte.
4.ª Exercido o contraditório nos termos do requerimento da Recorrida de 9.5.2022 (refª 3583372), por despacho de 10.5.2022, de que agora se recorre, o Tribunal indeferiu o requerimento do Recorrente referido na anterior conclusão, sustentando que o ordenado pelo Tribunal da Relação de Guimarães tinha sido “claramente” respondido, “não vislumbrando a necessidade de qualquer produção subsequente à prova, designadamente, de carácter pericial, atendendo ademais ao período de tempo já decorrido desde o início dos trabalhos, indeferindo-se respectivamente a pretensão deduzida” (cfr., acta de audiência, com a refª 48648200).
5.ª Todo o comerciante é obrigado a ter escrituração mercantil efectuada de acordo com a lei (art. 29º do Cód. Comercial), estando obrigado a arquivar a correspondência emitida e recebida, a sua escrituração mercantil e os documentos a ela relativos, devendo conservar tudo pelo período de 10 anos (art. 40.º, n.º 1, do Cód. Comercial).
6.ª Para além da contabilidade do comerciante, a escrituração comercial abrange diversos registos e arquivos, como actas, contratos, correspondência e outros documentos (cfr., Pupo Correia, Direito Comercial, 9.ª ed., pg. 93; Luís Brito Correia, Direito Comercial, 1.º vol., Sumários desenvolvidos das lições dadas à Turma B – Dia do 3.º ano jurídico de 1981/1982, pg. 114).
7.ª No que respeita à escrituração mercantil, “a exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos rege-se pelo disposto na legislação comercial” – art. 435º do CPC, restringindo a aplicação da legislação comercial ao art. 42.º do Cód. Comercial, e já não ao art. 43.º, pois só aquele se reporta à exibição integral dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos (cfr., neste sentido, v. g., Ac. RL de 29.1.2015, Proc. n.º 313/11, Ac. RC de 28.9.2016, Proc. n.º 1267/15).
8.ª No caso sub iuditio é plenamente admissível o exame (parcial) da escrituração mercantil da Recorrida – art. 417º, n.º 3, do CPC; Ac. RP de 21.11.2011, Proc. n.º 462/10.
9.ª A exclusão do segredo comercial das excepções contidas no art. 417º, n.º 3, do CPC, só é legítima quando importar, o que não é o caso: a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou de segredo de Estado.
10.ª No art. 435º do CPC, remetendo para o art. 42º do Cód. Comercial, tem apenas aplicação no caso particular da exibição por inteiro dos livros e documentos de escrituração comercial, o que não é o caso dos autos, uma vez que a pretensão probatória do Recorrente restringe-se, tão-só, ao exame aos livros e lançamentos que sejam relevantes para a prova dos factos sobre os quais irá incidir a perícia – em concreto, o empréstimo de terceiro à Recorrida e respectivos documentos de suporte, subsumível, portanto, à previsão do art. 43º do Cód. Comercial.
11.ª “Da conjugação dos normativos citados decorre, pois, que o segredo da escrituração mercantil, previsto nos artigos 41.º, 42.º e 43.º do Código Comercial, não faculta às partes recusar a apresentação dos documentos quando se trate de apurar factos em que tenha interesse ou responsabilidade a pessoa a quem eles pertençam, na medida em que aquele segredo não pode subsistir em tal situação, sendo que, em todo o caso, face a um eventual conflito de interesses, por um lado, o do segredo comercial e, por outro, o do dever geral de colaboração com a administração da justiça, sempre o direito ao segredo deve ceder perante um interesse público superior, que é o da boa administração da justiça.” - Juiz Conselheiro Fernando Pereira Rodrigues, (in Os Meios de Prova em Processo Civil, 2017, 3.ª ed., pgs. 118-120) – cfr., em idêntico pendor, J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em anotação ao art. 435.º do NCPC (que reproduz o art. 534.º do CPC de 1961), in CPC Anotado, vol. 2.º, 3.ª ed., pg. 254.
12.ª Efectivamente, o exame dos livros de escrituração comercial e documentos do comerciante em nome individual e das sociedades comerciais pode ter lugar quando esse comerciante ou sociedade seja parte na causa, e, portanto, nos dizeres expressos do n.º 1 do art. 43.º “tenha interesse ou responsabilidade na questão” – cfr., Ac. RP de 3.6.83, CJ, ano 8, t.3, pg. 256 e Ac. RE de 9.7.2009, Proc. n.º 15/08; cfr., tb, Ac. STJ de 21.4.2003 (Proc. n.º 003641) e Ac. RP de 14.6.2002 (com o n.º convencional JTRP00033385).
13.ª Acresce sublinhar que o exame por exibição (art. 42.º do Cód. Comercial) é distinto, e inconfundível, com o exame por apresentação (art. 43.º do Cód. Comercial); exibição é “o exame completo dos livros do comerciante, que tem propriamente por fim verificar o estado geral do negócio, ou a situação do património comercial. A “apresentação” é um exame mais restrito que recai apenas sobre os lançamentos referentes a um determinado ponto que, por meio dele, se pretenda determinar” (José Gabriel Pinto Coelho, in Lições de Direito Comercial, vol. I, 2.ª ed., pg. 544; cfr., no mesmo sentido, Ac. RP de 8.2.2011, Proc. n.º 6271/08.
14.ª Como assinala o Ac. RE de 9.7.2009 (Proc. n.º 15/18), “se é certo que o exame por “exibição” só pode ter lugar nos casos taxativamente indicados no art. 42.º por poderem implicar consequências gravosas para o comerciante por permitir uma devassa total da sua actividade profissional, o mesmo não sucede com o exame “por apresentação” a que se refere o art. 43.º, uma vez que visa apenas fazer prova de um facto concreto e consequentemente só pode ter por objecto o que sobre o mesmo conste nos livros e correspondente documentação”.
15.ª Temos, assim, por absolutamente certo e seguro, que o exame parcial da escrituração mercantil da Recorrida, na parte que seja necessária à prova, é plenamente admitido, quer pelo art. 417º, n.º 1, do CPC, quer pelo art. 43.º do Cód. Comercial – cfr., neste sentido, entre muitos outros, Ac. RC de 12.3.2013, Proc. n.º 882/09, Ac. RP de 7.2.2012, Proc. n.º 615/10, Ac. RP de 28.11.2011, Proc. n.º 462/10, Ac. RC de 15.2.2011, Proc. n.º 1561/07 e Ac. RC de 19.1.2010, Proc. n.º 7494/06.
16.ª Cumpre ainda sublinhar, sob um outro ângulo de observação, que o dever de cooperação das partes para a descoberta da verdade deve prevalecer sobre a protecção do segredo da escrituração comercial – vd., sem dissonância jurisprudencial, v.g., Ac. STJ de 16.2.2000, Proc. n.º 995260, Ac. RL de 18.11.2004, Proc. n.º 9105/2004, Ac. RL de 2.5.2006, Proc. n.º 1572/2006, Ac. RE de 13.6.2002, CJ, ano 27, t.3, pgs. 262 a 263; Ac. RP de 26.5.2003, CJ, ano 28, t. 3, pgs. 175-177; Ac. RP de 28.6.2004, CJ, ano 29, t.3, pgs. 202-204; Ac. RP de 10.3.2003, CJ, ano 28, t.2, pgs. 164-166, e Ac. RL de 1.7.2004, CJ, ano 29, t.4, pgs. 71-73.
17.ª Sendo os Tribunais órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, mal se compreenderia que o interesse público da descoberta da verdade não fosse preponderante – se se admitisse o seu recuo em nome do segredo comercial –, sob pena de fazer perigar o cumprimento da incumbência, com valor constitucional, de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e de diminuir os conflitos de interesses públicos e privados (art. 202.º da CRP).
18.ª O princípio de que a escrituração dos comerciantes é secreta (art. 41.º do Cód. Comercial) apenas significa, e só pode significar, a protecção a qualquer varejo ou devassa com a finalidade de verificar se o comerciante é, ou não, cumpridor das suas obrigações legais relativas à escrita; ressalvada esta necessidade, a escrituração não é mais secreta que quaisquer outros assuntos ou escritos particulares.
19.ª Justamente por que “é imposta por lei para permitir conhecer em cada momento o estado do negócio e fortuna do comerciante, isto é, porque se destina a constituir essencialmente um meio de prova, a escrita pode ser objecto de prova até, embora em casos especiais, contra a vontade e os interesses daquele a quem pertence” – cfr., J. Gabriel Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, vol. I, 3.ª ed., pg. 566; vd., no mesmo sentido, Ac. STJ de 12.7.49, in Vida Judiciária, ano 11.º, pg. 298, Ac. RP de 3.6.83, CJ, ano 8, t.3, pg. 256; Fernando Olavo, Direito Comercial, vol. 1.º, 2.ª ed., 1974, pgs. 346 e ss..
20.ª Demandando o exame à escrituração comercial conhecimentos científicos ou técnicos especiais, deve o mesmo ser realizado através de prova pericial (art. 388.º do Cód. Civil e art. 467.º e ss. do CPC).
21.ª Dado o óbvio desconhecimento da escrituração da Recorrida nos seus diversos detalhes relevantes para a decisão da causa, é suficiente e bastante a indicação da concreta questão sobre que os lançamentos versam, “podendo, por quaisquer circunstâncias ou referências, como as respeitantes à época provável da operação a que respeitam ou do seu registo, da conta a quem pertencem os assentos, etc., designar-se com maior ou menor precisão, com mais ou menos generalidade os lançamentos a examinar” (in Lições de Direito Comercial, vol. I, 2.ª ed., pg. 561; v.d., em idêntico sentido, Ac. STJ de 15.6.93, BMJ, 428.º - 607), como, justamente, o Recorrente fez.
22.ª Com efeito, para além de plenamente admissível, a perícia à escrituração comercial da Recorrida é pertinente e justificada, pois visa a prova de factos essenciais para a decisão do incidente de habilitação, e torna-se necessária e oportuna em face da recusa da Recorrida em esclarecer o mútuo reflectido nas suas declarações fiscais e fornecer documentos de suporte dessa operação.
23.ª Ao contrário do que é dito conclusivamente na decisão recorrida, a questão cujo esclarecimento foi ordenado pelo Tribunal da Relação não foi respondida pela Recorrida, pois o que resulta da sua versão confabulada é o propósito ostensivo, e censurável, de iludir e contornar quer a existência de mútuo por ela mesmo fiscalmente declarado quer a identidade do autor desse empréstimo; só assim não conclui quem for incauto ou distraído, não tiver o mínimo de senso comum e experiência de vida, e se eximir ao trabalho de indagar a verdade.
24.ª É absolutamente linear que a Recorrida: (i) não tem como negar a existência de mútuo de terceiro, pois essa operação, no valor de € 102.708,36, está reflectia na sua declaração fiscal e na IES de 2019, sob a rubrica “Outros passivos correntes”, (ii) de acordo com o estabelecido pelo n.º 1 do art. 9.º do DL n.º 158/2009, de 13 de Julho, a Recorrida, atento o total do seu balanço, o volume de negócios e o número de empregados evidenciados na prestação de contas (IES) de 2018 e 2019 é uma Microentidade (doc. 1 e 2 juntos com o requerimento datado de 19.04.2022 e com a refª. 3558558) (iii) o seu passivo de € 102.708,36 encontra-se contabilizado na IES de 2019 na rubrica “Outros passivos correntes”, (iv) o Sistema de Normalização Contabilística aplicável às Microentidades (SNC), determina que essa rubrica é residual e nela são contabilizados os passivos que não se ajustam às outras rubricas do passivo corrente e não corrente; donde, tal quantia não cabe nas outras rubricas porque não configura os critérios aplicáveis a cada uma delas (v.g. não é um empréstimo de “acionistas/sócios” ou um “financiamento obtido” ou “outras contas a pagar”, etc).
25.ª A inserção da quantia de € 102.708,36 na rubrica “Outros passivos correntes” na IES de 2019, só pode ter o significado de tratar-se de um empréstimo de curto prazo que um terceiro (com exclusão das instituições financeiras) fez à Recorrida em dinheiro ou, por exemplo, efectuou o pagamento de algo por conta dessa sociedade e esta reconhece essa dívida.
26.ª Consta ainda dos autos que o pagamento do preço de aquisição do crédito do Banco ... foi efectuado pela Recorrida e que essa aquisição foi registada na IES de 2019, na rubrica “Outros activos correntes”, como contrapartida de grande parte da quantia de € 102.708,36 vertida na rubrica “Outros passivos correntes”, o que significa tratar-se de documentos emanados e subscritos pela própria Recorrida, cuja autoria e veracidade não foi por ela impugnada (como poderia ser?), e que, por isso, fazem prova plena quanto às declarações produzidas e aos factos nelas compreendidos, na medida em que são contrários aos seus interesses, valendo nos mesmos termos da confissão (arts. 374.º, n.º 1, e 376.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, e art. 444.º do CPC) – cfr., v.g., Ac. STJ de 17.6.86, BMJ, 358.º - 463, Ac. RE de 27.9.90, BMJ, 399.º - 601, Ac. RL de 2.10.97, CJ, ano 22, t.4, 100 e RLJ, ano 101.º, pgs. 269 e 270.
27.ª A promessa ficcionada pela Recorrida no requerimento de 9.5.2022, com a refª 3583372 – de que não fez prova –, caso tivesse sido celebrada não daria lugar ao reconhecimento contabilístico nas contas da X, uma vez que não foi alegado, e menos ainda demonstrado, que tivesse havido pagamento de sinal ou da totalidade do preço; o que significa que não pode constar dos balanços da X nem da sua IES.
28.ª Mesmo que tivesse havido pagamento, o valor recebido teria necessariamente de ser registado a crédito, na rubrica “Outros passivos correntes”, e, simultaneamente, esse mesmo montante teria de ser forçosamente registado a débito, na rubrica “Caixa e Depósitos Bancários”, uma vez que tal quantia teria entrado na conta bancária da Recorrida; porém, concludentemente, nas IES de 2018 e 2019 da Recorrida, na rubrica “Caixa e Depósitos Bancários” existe um saldo de, respectivamente, € 212,92 e de € 11.589,56, o que, contrariando a “tese” da Recorrida, revela manifesta falta de credibilidade ou verosimilhança, num ostensivo e consciente exercício de má-fé que a decisão recorrida não terá surpreendido.
29.ª A conduta processual da Recorrida, e do seu gerente único, envolvendo uma violação grosseira do dever de cooperação, consubstancia, em rectas contas, uma recusa tácita de prestação das informações solicitada – cfr., neste sentido, o Ac. RE de 25.6.2015 (Proc. n.º 2168/09).
30.ª Em face da recusa da Recorrida, dada a sua verosimilhança e pertinência, a realização de exame à sua escrituração comercial é imprescindível, por decisiva, para a descoberta da verdade material e para a justa composição do litígio, sendo certo que, ao Tribunal, está vedada a rejeição de produção de qualquer dos meios de prova indicados pelas partes, com base na convicção pré-formulada da sua relevância / eficácia para prova de determinado facto em concreto – cfr., respectivamente, Ac. RG de 10.11.2016, Proc. n.º 5517/15 e Ac. RG de 16.2.2017, Proc. n.º 4716/15; basta que a requerida diligência probatória seja verosímil e pertinente.
31.ª Citando o notável Acórdão da Relação de Guimarães de 14.3.2022 proferido nos autos (Proc. n.º 115/16), “uma diligência de prova só pode considerar-se impertinente se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende provar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma, ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa” – cfr., no mesmo sentido, Ac. RG de 16.2.2017, Proc. n.º 4716/15, e Ac. RE de 31.5.2012, Proc. n.º 28/11.
32.ª Considerando a materialidade documentalmente comprovada nos autos, devidamente enunciada sob o n.º 23 do corpo da alegação, que aqui se dá por reproduzida, mandam os critérios de normalidade e da experiência comum, que ninguém cede um crédito de mais de 16 milhões de euros pelo preço irrisório de setenta e cinco mil euros, salvo se entender que o mesmo é incobrável; e não é plausível que alguém se disponha a adquirir um crédito que não tem qualquer valor patrimonial, para se vir habilitar num processo de insolvência já encerrado por insuficiência da massa insolvente.
33.ª O “negócio” em causa ainda se revela mais estranho e incompreensível quando é certo que a Recorrida tem um capital social de apenas € 5.000,00, e o seu volume de negócios em 2018 foi de € 30.000,00!!! (cfr., doc. n.º 10 junto com a contestação ao requerimento de habilitação), sinais evidentes da sua incapacidade financeira própria para pagar o preço de € 75.000,00 declarado na cessão de créditos.
34.ª Estranheza e incompreensão acentuadas pelo facto incontornável de a Recorrida ter por escopo social a consultoria de negócio, assessoria à gestão e prestação de serviços de apoio administrativo” (cfr., doc. n.º 9 junto com a contestação da habilitação).
35.ª Em processo de insolvência já encerrado, a aquisição por um terceiro, sem capacidade financeira para tanto, de um crédito do qual não há a expectativa séria e razoável de pagamento, não tem a mínima racionalidade económica ou justificação empresarial, pelo que o motivo subjacente a essa tão estranha e especiosa operação só pode ser o de instrumentalizar a cessão de créditos para prejudicar o Recorrente no processo de exoneração do passivo restante, como, de resto, a própria Recorrida confessa ao declarar expressamente que a habilitação tem por finalidade “suscitar o incidente da cessação antecipada da exoneração do passivo restante, ao abrigo do estabelecido pelo artigo 243.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas” – cfr. doc. n.º 3 do requerimento de habilitação.
36.ª Todos os factos, conjugados entre si, maxime a recusa da Recorrida em prestar a informação e proceder a junção aos autos dos documentos de suporte do mútuo, conforme ordenado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.3.2022, dão suporte à alegação do Recorrente (entre outros fundamentos de defesa), de que a cessão do crédito foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo, pelo que, nesse âmbito, é incontroversa a relevância e a imprescindibilidade do apuramento da identidade de quem financiou a X para adquirir o crédito.
37.ª À luz do direito a um processo equitativo (art. 20.º, n.º 4, da CRP), dos direitos à defesa, ao contraditório (em termos de igualdade na proposição e acesso aos meios de prova potencialmente relevantes para o apuramento da realidade quer dos factos principais quer dos factos acessórios), como seus corolários; do direito à prova e à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º da CRP e 413.º do CPC); dos princípios da cooperação (arts. 417.º, 429.º e 430.º, do CPC), da justa composição do litígio (art. 7.º do CPC, maxime o seu n.º 4) e do dever de boa-fé processual (art. 8.º do CPC); do princípio do inquisitório, enquanto poder / dever vinculado ao cumprimento dos fins do processo de descoberta da verdade material e realização da justiça (arts. 411.º, 436.º, 452.º, 477.º, 490.º e 526.º do CPC), o apuramento da identidade do mutuante tem manifesto interesse para a decisão da causa, não podendo o Tribunal vedar a produção da sua prova, contrariando, de resto, o decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.3.2022 (cfr. fls. 31).
38.ª A decisão recorrida violou as disposições legais supra citadas.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.
Neste enquadramento, a questão a decidir consiste em saber se deve ser admitida a realização da perícia colegial da escritura comercial da habilitanda P. B. - Unipessoal, Limitada para esclarecimento da seguinte questão de facto:
-Natureza e proveniência do passivo corrente de € 102 708,36 constante da IES de 2019 da habilitanda; identificação da pessoa(s) ou entidade(s) que figuram como credor(es) dessa(s) operação(ões) e exibição dos documentos que lhes deram suporte.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão a proferir são os que se encontram elencados no relatório e resultam da consulta dos autos.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

O presente recurso versa sobre um despacho que não admitiu a realização de prova pericial no âmbito do incidente de habilitação de cessionário.
O incidente de habilitação de cessionário encontra-se previsto no art. 356º, do CPC, constituindo um incidente da instância ao qual são aplicáveis as regras gerais dos arts. 292º a 295º, do CPC.
Assim, como regra geral, o momento adequado para oferecimento do rol de testemunhas e requerer outros meios de prova, onde se inclui nomeadamente a prova pericial, coincide com a apresentação dos articulados, ou seja, a prova deve ser requerida no requerimento no qual o incidente é suscitado e na oposição que lhe for deduzida (art. 293º, nº 1, do CPC).
No caso em análise, resulta do iter processual supra descrito que a prova pericial não foi requerida no âmbito das regras gerais que disciplinam e regem o incidente de habilitação, pois não foi requerida no requerimento em que tal incidente foi deduzido.
Diversamente, o pedido de perícia colegial surgiu na sequência de um pedido feito pelo requerido (F. J.) para que a requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) facultasse a identidade da pessoa ou entidade que em 2019 mutuou a quantia de € 102 708,36, juntando aos autos cópia dos documentos que dão suporte a tal transação e à transferência bancária desse valor. Este pedido foi formulado na sequência de depoimento prestado por uma testemunha na audiência final a qual aludiu à existência de um mútuo.
Inicialmente, esta pretensão foi indeferida, mas, na sequência de recurso interposto, a Relação de Guimarães, por decisão proferida em 14.3.2022, no âmbito do apenso E, considerou que “é relevante apurar se o preço da dita cessão foi efectivamente pago com um empréstimo de cerca de € 100.000,00 (que teria realizado com esse fim) e a identidade do mutuante”, entendeu que “tendo o Requerido (F. J.) conhecido o alegado mútuo em causa apenas mercê do depoimento prestado pela testemunha R. P. em sede de audiência de julgamento, não se considera que lhe fosse exigível conhecê-lo antes” e, como tal, concluiu que se mostra assim “assegurada a tempestividade que condicionava o deferimento da pretensão do Requerido” e, em consequência, julgou procedente o recurso, revogou a decisão recorrida e ordenou a sua substituição por decisão em que se procedesse à “notificação da Requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) para indicar a identidade da pessoa(s) ou entidade(s) que, em 2019, lhe mutuou(aram) a quantia de € 102.708,36, juntando aos autos cópia dos documentos que deram suporte a essa operação (nomeadamente, da transferência bancária desse valor).”
Da leitura e interpretação da decisão de 14.3.2022 proferida pelo tribunal da Relação de Guimarães, feita em conjugação com a sua fundamentação, resulta que o facto que nessa decisão se considerou relevante apurar consiste em saber se o preço da cessão foi pago com um empréstimo de cerca de € 100.000,00 e a identidade do mutuante.
Na sequência de notificação feita na 1ª instância, em cumprimento da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, a requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) foi notificada para indicar a identidade da pessoa(s) ou entidade(s) que, em 2019, lhe mutuou(aram) a quantia de € 102.708,36, juntando ainda aos autos cópia dos documentos que deram suporte a essa operação (nomeadamente, da transferência bancária desse valor).
A requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) respondeu a esta notificação dizendo que não recebeu qualquer quantia em mútuo no exercício de 2019.
Ora, tendo respondido que não ocorreu qualquer mútuo em 2019, naturalmente que não podia proceder à junção de quaisquer documentos que suportassem tal contrato, posto que o mesmo, segundo a sua alegação, não ocorreu.
É na sequência desta resposta que o requerido (F. J.), invocando, a par de outros argumentos, que a requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) não deu cumprimento à decisão proferida em 14.3.2022 pelo Tribunal da Relação de Guimarães, designadamente tendo incorrido em violação do princípio da cooperação, posto que se recusou a juntar os elementos pedidos, veio requerer a realização de perícia colegial da escritura comercial da habilitanda P. B. - Unipessoal, Limitada para esclarecimento da seguinte questão de facto:
-Natureza e proveniência do passivo corrente de € 102 708,36 constante da IES de 2019 da habilitanda; identificação da pessoa(s) ou entidade(s) que figuram como credor(es) dessa(s) operação(ões) e exibição dos documentos que lhes deram suporte.
Aqui chegados, a primeira conclusão que se alcança é que a questão de facto que o requerido (F. J.) pretende ver esclarecida com a realização da perícia colegial é diferente da questão que tinha suscitado no requerimento probatório de 15.11.2021 que foi objeto de deferimento no âmbito da decisão proferida pela Relação de Guimarães de 14.3.2022.
Enquanto em 15.11.2021 o requerido (F. J.) pretendia saber a identidade da pessoa ou entidade que, em 2019, mutuou a quantia de € 102 708,36, e pretendia a junção aos autos de cópia dos documentos que dão suporte a tal transação e à transferência bancária desse valor, no requerimento de perícia colegial já pretende saber a natureza e proveniência do passivo corrente de € 102 708,36 constante da IES de 2019 da habilitanda; identificação da pessoa(s) ou entidade(s) que figuram como credor(es) dessa(s) operação(ões) e exibição dos documentos que lhes deram suporte.
Ou seja, em 15.11.2021 afirmava a existência de um mútuo e pretendia saber a identidade do mutante e obter os documentos de suporte de tal transação; com o pedido de perícia colegial, altera a sua pretensão e já pretende saber a natureza e proveniência do passivo corrente de € 102 708,36, situações que são diversas.
Ora, por um lado, a decisão da Relação de Guimarães de 14.3.2022 não determinou a realização desta diligência probatória e a diligência que determinou foi respondida pela requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) tendo a mesma dito que não recebeu qualquer quantia em mútuo no exercício de 2019.
E, por outro lado, a requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) esclareceu a natureza e proveniência do passivo corrente de € 102 708,36 constante da IES de 2019 da habilitanda, uma vez que no seu requerimento de 9.5.2022, para além de reforçar que respondeu à questão que lhe foi colocada e nos termos em que a mesma foi colocada pois efetivamente não lhe foi feito qualquer empréstimo, seja de que montante for, seja por que pessoa for, a mesma explicou que “entre a habilitanda e o Dr. J. O. foi acertada a futura compra dos créditos em causa ou dos activos que porventura lhe sucedessem.
5.
Nesse propósito e nessa comunhão de interesses, a habilitanda assumiu a compra dos créditos e a promoção das diligências necessárias à sua recuperação.
6.
Prometendo vir a cedê-los a uma sociedade da esfera jurídica do Dr. J. O., a sociedade comercial “X, Unipessoal, Lda”, pelo preço de €100.000,00, com um diferencial de lucro por relação ao preço de aquisição, acertando entre eles a futura divisão dos lucros que a operação viesse a gerar no entretanto.
7.
Até ao presente momento, porque não estão ainda criadas as condições acordadas entre as partes, o contrato definitivo não foi outorgado, sendo que a promessa foi celebrada sem prazo, mantendo-se, pois, em vigor.
8.
E daí que, muito naturalmente e conforme determinam as boas regras da organização contabilística, tal quantia figure lançada na rubrica de “Outros Passivos Correntes”, em virtude de se tratar de contrato promessa ainda não cumprido, na qual não se inscrevem apenas empréstimos.
9.
Tornam-se, assim, face ao que agora se deixa vertido, completamente inúteis e desnecessárias quaisquer outras diligências, estando devidamente satisfeito o propósito do insolvente de saber e demonstrar - o que fica agora confessado - qual a proveniência daquela quantia e da identidade da pessoa que a efectuou.
Por conseguinte, tendo a requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) respondido que não ocorreu qualquer mútuo em 2019 e tendo esclarecido, nos termos sobreditos, a natureza e proveniência do passivo, o que vai para além daquilo que lhe havia sido determinado na decisão proferida em 14.3.2022 pela Relação de Guimarães, pois esta apenas se referia à existência de um mútuo, nem tal decisão está por cumprir, nem se verifica violação do princípio da cooperação por parte da requerente, nem existe fundamento legal para determinar a realização de perícia colegial com vista a esclarecer uma questão factual que a requerente já esclareceu.
Portanto, diversamente do que sustenta o requerido (F. J.) não há qualquer recusa, expressa ou tácita, por parte da requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) de cumprir o que lhe foi determinado na decisão de 14.3.2022 proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães não tendo a mesma violado o dever de cooperação que sobre si impende.
De todo o modo, ainda que houvesse violação do dever de cooperação, que entendemos que não há, a consequência dessa violação não seria, como pretende o requerido (F. J.), a possibilidade de realização de perícia colegial fora do momento processualmente adequado para requerer a produção de prova. Com efeito, sobre esta matéria dispõe o art. 417º, nº 2, do CPC, que aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do art. 344º do Código Civil. Resulta, portanto, deste normativo que a recusa de colaboração e consequente violação do dever de cooperação imposto pelo nº 1 do art. 417º, do CPC, não confere a possibilidade de requerer novos meios de prova, abrindo apenas lugar à possibilidade de aplicação das consequências enunciadas no nº 2, ou seja, aplicação de multa, recurso aos meios coercitivos possíveis, livre apreciação da recusa em termos probatórios e inversão do ónus da prova.
O requerido (F. J.), nas alegações e conclusões, tece extensas considerações sobre a possibilidade de realização de perícia à escrita comercial de uma sociedade e sobre a circunstância de o segredo comercial dever ceder perante o interesse da administração da justiça e perante o dever de cooperação. Não consideramos tal argumentação minimamente pertinente para o caso concreto porque nem a requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada) se recusou a cumprir o que lhe foi determinado invocando segredo comercial, nem o despacho recorrido se fundamentou em qualquer situação de segredo comercial para indeferir a pretensão probatória do requerido (F. J.). Acresce ainda que não está em causa no presente recurso a possibilidade legal de, em geral, ser realizada perícia à escrita de uma sociedade, mas sim a de saber se, no caso concreto, tal perícia se justifica nos moldes pedidos e já supra concluímos que não, pelas razões que aí explicitámos.
Nestes termos, conclui-se pela total improcedência do recurso, inexistindo fundamento legal para determinar a realização de perícia colegial à escrituração comercial da requerente (P. B. - Unipessoal, Limitada).
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente na totalidade, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão de indeferimento de realização de perícia colegial formulada pelo requerido (F. J.).
Custas da apelação pelo requerido/recorrente (F. J.).
Notifique.
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Guimarães, 13 de julho de 2022.

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas.