I. A reconvenção é admissível ao abrigo da alínea a) do n.º 2 do artigo 266.º do CPC «quando o pedido do réu emerge do mesmo facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa».
II. A reconvenção emerge do mesmo facto que serve de fundamento à ação quando o pedido reconvencional tem a mesma causa de pedir da ação, ou seja, assenta no mesmo facto jurídico (real, concreto) em que o Autor fundamenta o direito que invoca.
III. A reconvenção emerge do mesmo facto que serve de fundamento à defesa quando o Réu invoca como meio de defesa, qualquer ato ou facto jurídico que, a verificar-se, tenha a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do Autor (efeito útil defensivo).
IV. Não tendo o Réu invocado a nulidade e/ou anulação do contrato de arrendamento por falta ou vícios da vontade, aceitando a validade do contrato como foi escrito, e resultando da cláusula 3.ª, n.º 1 a aposição de um prazo certo para a vigência do dito contrato, não havia que indagar da vontade unilateral do arrendatário de permanecer no locado para além desse prazo, fosse qual fosse a razão que o motivava a assim entender, pelo que estava o juiz habilitado, em face do estado dos autos, a proferir decisão de mérito em sede de despacho saneador.
(Sumário elaborado pela Relatora)
2. Da cláusula terceira cláusula do acordo referido em 1. consta que «1. O arrendamento é feito pelo prazo de 1 ano, com início em 17 de Outubro de 2019 e terminando a 16 de Outubro de 2020. 2. Findo o prazo estabelecido, o contrato cessará, não sendo renovável. (…)»;
3.No dia 12 de Agosto de 2020, às 15h10, através do endereço de e-mail (…) enviado para o endereço de e-mail (…), fez-se constar o seguinte:
«Caro Sr. D.,
Espero que este e-mail encontre bem.
Como sabem, o senhorio está a tentar vender o imóvel e para o efeito é necessário elaborar um Certificado Energético.
Para preparar este documento o Engenheiro deve visitar o apartamento.
Por isso avise-nos quando for possível que esta visita do Engenheiro ao apartamento possa ser feita, por favor dê-nos mais um dia e hora para que tal seja acordado com o Engenheiro.
Por outro lado, esteja ciente de que você terá que deixar o apartamento no dia 16 de outubro de acordo com o contrato que estou anexando.
Sua permissão para visitar o apartamento de potenciais compradores está marcada no contrato e, como você pode entender, isso é vital para o vendedor e seu locador.
À disposição para esclarecer qualquer dúvida que você possa ter, cumprimentos,
S.
Advogada - Advogado - Advogado Responsabilidade Limitada
Rua (…)»
4. Em resposta ao referido e-mail, em 17 de Agosto 2020, 12:01 fez-se constar o seguinte:
«Querida (…),
Lamento, acabei de ver este e-mail. Obrigado por entrar em contato comigo.
Como você sabe, eu ia comprar o apartamento, mas pelos seguintes motivos não posso comprar o apartamento:
1. O calor no apartamento neste verão estava insuportável e o ar condicionado é muito ruim para mim.
2. Incerteza oculta. Não temos ideia do que este outono trará.
3. Incerteza de Brexit. Presentemente não existe acordo com Portugal e o Reino Unido e não pretendo tornar-me residente em Portugal. Consequentemente, não posso obter seguro sem um prêmio enorme.
4. Apesar do questionamento constante, não fui informado de custos para os reparos externos que são essenciais.
Além disso, a escada agora tem grandes pedaços de gesso caindo da umidade.
5. A escada para o Cama e Café e os apartamentos residenciais foi dividida em duas e é muito apertada. Os convidados raramente usam máscaras e não é um ambiente seguro cobiçoso. Sou um sobrevivente do câncer, tenho mais de 60 anos e me enquadro em duas categorias de "risco".
Claro que me mudarei no dia 16 de outubro e organizei uma empresa de mudanças para mover minhas coisas. No entanto, todos devemos estar cientes de que, se houver outro aumento nas infecções e o governo fechar tudo, devemos ter um plano para essa situação potencial.
Quanto às visualizações, estou muito feliz em dirigir 1 por semana para no máximo duas pessoas ao mesmo tempo.
Distanciamento social e máscaras devem ser usados / respeitados. Os sapatos devem ser removidos. Covid é obviamente um grande problema e em muitos países a visualização de apartamentos ocupados não é permitida. Vou verificar as diretrizes do governo português.
Seu,
D.»
5. O R. não procedeu à entrega do locado no dia 16 de Outubro de 2020, nem até à presente data, recusando-se a fazê-lo;
6. O A. solicitou que o R. desocupasse o imóvel por diversas vezes, mas o R. não o fez;
7. O R. mantém no locado a sua residência e tem no mesmo todos os seus bens pessoais, fazendo dele o seu centro de vida;
8. O R. pagou as rendas de Outubro de 2020 ao mês de Junho de 2021 (data da entrada da acção);
9. Em 20.12.2020, o R. testou positivo ao vírus Covid-19;
10. Na nota de enfermagem do episódio clínico consta «Utente de sexo masculino de 60A de idade esteve internado nesta unidade por Covid 19 positivo a 20/12. Veio de Inglaterra e no dia 18/12 iniciou quadro de diarreia, dor pleurítica bilateral, a 19/12 apresentou rush cutâneo nos ML febre, tremores e astenia (...). Último teste Covid 19 positivo a 20/12. Tem alta para o seu domicílio sai com a corporação da ambulância.»”
III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), consubstancia-se nas seguintes questões:
- Da admissibilidade da reconvenção;
- Se o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa;
- Da caducidade do contrato de arrendamento.
2. Da admissibilidade da reconvenção
Está em causa aferir da admissibilidade do pedido reconvencional tendo em conta os fundamentos fácticos que foram invocados.
Alegou o reconvinte, em síntese: (i) o despejo coloca-o num posição de fragilidade por falta de habitação própria; (ii) durante o período em que esteve com COVID 19, o Autor insistiu para o Réu mostrar o apartamento a terceiras pessoas contra as regras do isolamento e confinamento obrigatório, violando a legislação em vigor à data sobre o estado de emergência; (iii) o Réu mostrou o apartamento diversas vezes; (iv) sentiu-se envergonhado, embaraçado por expor terceiros ao contágio; (v) passou noites sem dormir, preocupado e ansioso com receio de ser «posto na rua», mesmo pagando pontualmente a renda; (vi) ficou triste, sentiu-se impotente, vexado e afetado na sua dignidade; (vii) tais danos de natureza não patrimonial devem ser compensados com quantia de €6.000,00.
O Reconvinte, ora apelante, não indica em qual ou quais das várias alíneas do n.º 2 do artigo 266.º do CPC, se enquadra a situação fáctica alegada, remetendo para o juiz a verificação dos requisitos da admissibilidade da reconvenção, limitando-se a alegar que deduzida a mesma, e somando o seu valor ao do pedido inicial, desde logo, é a reconvenção admissível.
O Tribunal a quo considerou no despacho que não admitiu a reconvenção que se verificavam os pressupostos de ordem formal/processual, mas não os de ordem material/substancial previstos nas alíneas a) a c), do n.º 2, do artigo 266.º do CPC.
Na apreciação da questão, corrobora-se o que foi decidido quanto aos pressupostos de ordem formal e quanto à exclusão das alíneas b) a c), do n.º 2, do artigo 266.º do CPC, porquanto é manifesto que a respetiva previsão normativa não tem qualquer respaldo na alegação do Reconvinte.
Está, assim, em causa aferir se a reconvenção é admissível à luz do preceituado no artigo 266.º, n.º 2, alínea a), do CPC, que estipula que o Réu pode deduzir pedidos contra o Autor «Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa».
O tribunal recorrido considerou que não estavam preenchidos os requisitos desta alínea, nos seguintes termos:
«No caso, não se crê que o pedido reconvencional decorra do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa. De facto, o fundamento jurídico da acção é a cessação do contrato de arrendamento, por caducidade. E se é certo que o R. pugna pela sua vigência, por considerar que o mesmo se renovou, o pedido reconvencional tem como causa a alegada violação «das regras inerentes ao estado de emergência nacional, nomeadamente, em janeiro de 2021 na sequência da obrigatoriedade de permanência na residência por Covid-19, perante a renovação da declaração do estado de emergência, nos termos dos Decretos do Presidente da República n.º 6-B/2021, de 13 de janeiro, n.º 31-A/2021, de 25 de março, n.º 6-A/2021, de 15 de abril (tendo o Governo declarado o estado de calamidade através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril, alterada pelas Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 46-C/2021, de 6 de maio, e 52-A/2021, de 11 de maio, prolongado até 30 de maio, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 59-B/2021, de 14 de maio)»
Assim, os danos morais sofridos pelo R. terão como causa a violação do confinamento obrigatório, por «estar a ser exposto perante terceiros quando o A sabia que essa exposição poderia resultar no contágio de terceiras pessoas.»
Tais factos e fundamentos jurídicos não se enquadram no requisito constante da alínea a) do art. 266.º, n.º 2 do C.P.C..
Tal como ensinam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código do Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 302, «O facto jurídico que serve de sustentação à defesa envolve essencialmente a matéria de exceção, mas poderá igualmente assentar em factos que integrem a impugnação especificada dos fundamentos da ação. Nestes casos, o réu aproveita a defesa não apenas para se defender da pretensão do autor, mas ainda para sustentar nos mesmos factos uma pretensão autónoma contra aquele». No caso, os factos que subjazem ao pedido reconvencional em nada se relacionam com os invocados para excepcionar ou impugnar os factos invocados pelo A..»
Estamos, no essencial, de acordo com a fundamentação acima exarada.
Como decorre do n.º 6 do artigo 266.º do CPC, a ação principal e a ação reconvencional não se confundem, constituindo ações distintas e autónomas, embora enxertadas uma na outra, porquanto como estipula o preceito, a improcedência da ação e a absolvição do Réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando esteja dependente do deduzido pelo Autor.
Por outro lado, na interpretação da alínea a) do n.º 2 do artigo 266.º do CPC (que corresponde à alínea a) do n.º 2 do artigo 274.º do CPC 1961, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25-09), é pacífico o entendimento que a expressão «quando o pedido do réu emerge do mesmo facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa» deve ser interpretada do seguinte modo: a reconvenção emerge do mesmo facto que serve de fundamento à ação quando o pedido reconvencional tem a mesma causa de pedir da ação, ou seja, assenta no mesmo facto jurídico (real, concreto) em que o Autor fundamenta o direito que invoca; a reconvenção emerge do mesmo facto que serve de fundamento à defesa quando o Réu invoque como meio de defesa, qualquer ato ou facto jurídico que, a verificar-se, tenha a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do Autor, ou seja, embora o pedido reconvencional não se enquadre estritamente na causa de pedir da ação, aquele emerge de facto jurídico que serve de fundamento à defesa, no sentido de que resulta dos factos com os quais indiretamente se impugna os alegados na petição inicial.
Ou seja, «Se o fundamento da reconvenção emerge da defesa, é necessário que o facto invocado produza efeito útil defensivo. O que tem sido entendido como correspondendo às exceções de natureza perentória, ou seja, àquelas exceções que tenham a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do Autor».[1]
Neste sentido, seguindo doutrina e jurisprudência consensualizada sobre a matéria, veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra[2], com o seguinte sumário:
«I - A admissibilidade da reconvenção pressupõe uma conexão objectiva entre as duas ações, um nexo entre os objectos da causa inicial e da causa reconvencional.
II - O pedido reconvencional do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação se existir identidade, total ou parcial, de ambas as causas de pedir, a da ação e da reconvenção.
III - O pedido reconvencional do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa quando faz nascer uma questão prejudicial em relação à causa principal, ou seja, produza “efeito útil defensivo”, capaz de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.»
Lendo-se na respetiva fundamentação:
«Para que a reconvenção seja admissível torna-se indispensável uma conexão objectiva entre as duas acções, ou seja, um nexo entre os objectos da causa inicial e da causa reconvencional.
O art. 266º, nº2, a) do CPC (mantendo o anterior texto do art.274º, nº2, a) do CPC/61) estabelece que a reconvenção é admissível quando “o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa”.
Esta norma tem sido consensualmente interpretada no sentido de que deve verificar-se uma identidade, total ou parcial, de ambas as causas de pedir, a da acção e da reconvenção (cf., por todos, Miguel Mesquita, Reconvenção e Excepção no Processo Civil, pág.146 e segs.).
Dissertando sobre a noção de causa de pedir para efeitos de reconvenção, Mariana Gouveia esclarece ser necessário identidade, ainda que parcial, de factos essenciais ou principais, isto é, os que constam da norma como constitutivos do direito, para concluir que “a causa de pedir, para efeitos de admissibilidade de reconvenção, deve ser definida através do facto principal comum a ambas as contra-pretensões” (A Causa de Pedir na Acção Declarativa, pág. 270 ).
Por seu turno, o facto jurídico que serve de fundamento à defesa significa tratar-se de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor fazendo nascer uma questão prejudicial relativamente à causa principal. Como acentua Miguel Mesquita “ao admitir os pedidos reconvencionais alicerçados numa relação de prejudicialidade-dependência, o legislador visa promover, para além da óbvia economia processual, a harmonia entre decisões” (loc. cit., pág. 162).
Neste contexto, e sobre a aplicação da segunda parte da alínea a) do nº2 do art. 266 CPC, entende-se não ser suficiente que o réu alegue qualquer facto do qual possa extrair um efeito jurídico através da reconvenção, pois é necessário que o facto alegado produza “o efeito útil defensivo”, que seja capaz de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor (cf., por ex., Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, 3ª ed., pág. 32, Marco António de Aço e Borges, A Demanda Reconvencional, 2008, pág. 42; Ac RG 10/7/2018 ( proc. nº 1630/17), Ac RL de 8/10/2019 ( proc. nº 45824/18), disponíveis em www dgsi.pt ).»
Em sentido idêntico, veja-se, ainda, o Acórdão da Relação de Guimarães[3], com o seguinte sumário:
«I- A primeira parte da al. a) do n.º 2 do art. 266 carece de ser interpretada no sentido de que a reconvenção é admissível quando o pedido reconvencional se funda na mesma causa de pedir (ou parte desta) em que o Autor funda o direito que invoca.
Já a segunda parte daquela alínea tem o sentido de que só é admissível a reconvenção quando o réu-reconvinte invoque como meio de defesa qualquer acto ou facto jurídico que tenha a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido formulado pelo autor e com base nesse acto ou facto – ou parte dele - que serve de fundamento à sua defesa, deduza o pedido reconvencional.
II- Isto porque, tratando-se de uma contra pretensão, conquanto dentro do mesmo processo, a reconvenção, embora com um pedido autónomo, deve ter certa compatibilidade com a causa de pedir do autor, pelo que o pedido reconvencional tem de ter necessariamente a sua génese na causa de pedir invocada pelo Autor-reconvindo, ou a factualidade na qual o Réu-reconvinte estriba a sua defesa em relação a essa causa de pedir invocada pelo Autor-reconvindo.»
No caso em apreciação, a causa de pedir da ação é a caducidade do contrato de arrendamento para fins habitacionais celebrado com prazo certo e o incumprimento do mesmo por parte do Réu que não desocupou o locado findo o prazo estipulado no contrato.
Grosso modo, o Reconvinte, apresenta como causa de pedir do pedido reconvencional:
Por um lado, invoca a existência de um contrato de arrendamento renovável automaticamente, mas não formula qualquer pedido autónomo (leia-se em termos reconvencionais) em relação a esta alegação, pois apenas pugna pela improcedência do pedido principal, pedindo a sua absolvição do pedido de despejo, pelo que o pedido reconvencional não emerge da causa de pedir da ação.
Por outro lado, invoca a existência de danos não patrimoniais por ter sido confrontado com a necessidade de mostrar o imóvel a terceiros durante o estado de emergência, ao arrepio da legislação que vigorava na altura sobre confinamento.
Ora, este fundamento também não emerge da defesa do Réu, porquanto os danos invocados, mesmo a provarem-se, não provocam «o efeito útil defensivo», que seja capaz de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do Autor, ou seja, o da caducidade do contrato de arrendamento.
O que igualmente se aplica à alegação referente à falta de solução habitacional se for despejado e à alegada situação de fragilidade por não ter habitação própria.
Em suma, e como bem referiu o despacho que não admitiu o pedido reconvencional, o Reconvinte faz assentar o pedido reconvencional na violação da legislação em vigor à data sobre o estado de emergência, o que não cumpre os requisitos de admissibilidade do pedido reconvencional previstos na alínea a), do n.º 2, do artigo 266.º do CPC.
Donde, improcede a apelação em relação a este segmento recursivo.
3. Se o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa
Alega o Apelante que foi violado o princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do CPC), por o Tribunal a quo ter proferido despacho saneador-sentença sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões de direito ou de facto, sendo as mesmas identificadas como a necessidade de apurar «a vontade real das partes» no que diz respeito à vontade do Réu habitar permanentemente o imóvel arrendado, inclusive de o querer comprar, daí ter transportado todos os seus pertences do Reino Unido para Portugal, e fazer do locado o seu centro de vida.
Vejamos, então.
Como decorre do Relatório deste Acórdão, foi convocada e realizada audiência prévia, tendo as partes sido convocadas com a indicação que o tribunal entendia que os autos já permitiriam o conhecimento do mérito da causa, caso a tentativa de conciliação se frustrasse, tendo, então e também, aquela diligência os fins previstos no artigo 591.º, n.º 1, alínea b) a g), do CPC.
Decorre da ata daquele ato processual, que as partes não chegaram a acordo, pelo que ali ficou exarado: «considerando já o Tribunal ter ao seu dispor todos os elementos a fim de proferir decisão, concedeu a Mmª Juiz a palavra aos ilustres mandatários das partes, para, querendo, usarem da palavra para alegações, o que fizeram.»
Como decorre dos artigos 591.º, 592.º e 593.º do CPC, no processo declarativo comum, vigora a regra da obrigatoriedade da audiência prévia, tendo sido a mesma cumprida por ter sido designada e realizada tal diligência processual.
Por outro lado, as partes foram convocadas para todos os fins previstos no artigo 591.º, n.º 2, do CPC, ou seja, tiveram a oportunidade de se pronunciar não só sobre a oportunidade do juiz conhecer de mérito em fase de despacho saneador, como de se pronunciarem sobre todas as questões excetivas suscitadas nos articulados.
Não se descortina, pois, como se pode agora o Recorrente invocar a violação do princípio do contraditório quando foi seguida de modo escorreito a tramitação legal, tendo as partes sido regularmente convocadas para o ato processual em causa e tendo nele participado através dos seus I. Mandatários.
Situação diversa é saber se os autos permitiam uma decisão de mérito na fase do saneamento.
O que se prende, na ótica do Apelante, com a questão do apuramento da vontade das partes ao celebrarem o contrato de arrendamento quanto à renovação automática do contrato de arrendamento.
A diretriz sobre esta matéria consta do artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC, ao estipular que em sede de despacho-saneador o juiz «Conhece[r] imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.»
Como explicam LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE[4]:
«O juiz conhece do mérito da causa no despacho saneador, total ou parcialmente, quando para tal, isto é, para dar resposta ao pedido ou à parte do pedido correspondente, não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo.
Tal pode acontecer por inconcludência do pedido (…), procedência ou improcedência de exceção perentória (…) e procedência ou improcedência do pedido.
Este conhecimento só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa».
O conhecimento de mérito nos termos previsto no preceito em relação a todas as situações ali previstas que permitam esse tipo de decisão, tem como pressuposto que «não exista matéria controvertida suscetível de justificar a elaboração de temas da prova e a realização de audiência final (…) independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto (…)».[5]
No caso em discussão, a questão que se colocava ao Tribunal a quo (arredada que estava a reconvenção por inadmissibilidade legal, como veio a ser supra confirmado) era tão só a questão da caducidade do contrato de arrendamento por ter chegado ao termo do seu prazo, sem que o Réu tivesse desocupado o locado.
A questão da interpretação da vontade das partes quanto à caducidade versus renovação automática do dito contrato, suscitada na contestação, não impedia o conhecimento de mérito nessa fase, nem determinava a produção de prova na fase da audiência de julgamento, porquanto o Réu não questionou a existência da cláusula 3.ª do contrato de arrendamento que estipula um prazo certo para a cessação dos efeitos do contrato (16-10-2020).
O que o Réu veio alegar na contestação foi a sua vontade de permanência no locado, alegando factos que, no seu entender, revelam essa vontade.
Porém, o Réu não invocou na contestação a nulidade e/ou anulabilidade do contrato por se ter verificado falta ou vícios da vontade e/ou na formação da vontade de contratar, suscetíveis de integração da situação alegada nos artigos 240.º a 257.º do Código Civil, de modo a inquinar o que veio a ser escrito no contrato quanto ao prazo da duração do mesmo.
O que o Réu alegou foi que o contrato de arrendamento era para habitação permanente ao qual se aplica o artigo 1096.º, n.º 1, do Código Civil (renovação automática) por sido esse o «espírito do contrato» considerando a eventual compra do locado e a vinda do Réu para Portugal transportando todos os seus pertences, e o pagamento da renda após a data que seria a da cessação do contrato, a que aliou, ainda, alegação relacionada com a contração da doença COVID 19, embora apenas em dezembro, muito para além do termo do contrato.
Em sede de recurso vem invocar o disposto no artigo 236.º do Código Civil quanto à interpretação da vontade das partes relacionada com a alegada vontade de comprar o imóvel e mudança definitiva dos seus pertences.
Ora, toda esta alegação é inconsequente sob o ponto de vista jurídico.
Não tendo o Réu invocado a nulidade e/ou anulação do contrato por falta ou vícios da vontade, aceitando a validade do contrato como foi escrito, e resultando da cláusula 3.ª, n.º 1, do contrato de arrendamento a aposição de um prazo certo para a vigência do mesmo, não havia que indagar da vontade unilateral do arrendatário de permanecer no locado para além desse prazo, fosse qual fosse a razão que o motivava a assim entender.
O que resulta do contrato é a vontade das partes no momento da sua celebração, que se encontra vertida no clausulado. E sendo um contrato escrito, rege o disposto nos artigos 236 a 238.º do Código Civil, resultando deste último preceito que nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do correspetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
No texto do contrato, nada se encontra escrito que leve o intérprete a questionar que o contrato de arrendamento não foi celebrado por um ano, não sendo renovável, quando foi expressamente estipulado no n.º 1 da cláusula 3.ª o seguinte: «O arrendamento é feito pelo prazo de 1 ano com início a 17 de outubro de 2019 e terminando a 16 de Outubro de 2020», e no n.º 2 da mesma cláusula: «Findo o prazo estabelecido, o contrato cessará, não sendo renovável.»
Nada do que foi alegado, cria qualquer dúvida interpretativa sobre uma estipulação tão clara.
Atento tudo o que vem sendo dito, a conclusão que se impõe é que o processo na fase do saneamento já dispunha de todos os elementos que permitiam uma decisão de mérito, sem necessidade de ulterior produção de prova, pelo que bem andou o Tribunal a quo quando proferiu sentença naquela fase processual.
4. Da caducidade do contrato de arrendamento.
A questão jurídica da caducidade do contrato foi decidida na decisão recorrida de forma que não nos suscita qualquer reserva ou dúvida que justifique um retomar da mesma análise, não se impondo, ademais, o conhecimento oficioso de qualquer outra questão, sendo que o recorrente também não questiona diretamente a decisão nesse prisma.
Nestes termos, cumpre apenas corroborar o decidido, o que aqui se declara para todos os efeitos, concluindo-se, assim, pela total improcedência da apelação.
5. Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 30-06-2022
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)
__________________________________________________
[1] Cfr. Ac. RG, de 23-03-2017, proc. n.º 2936/16.8T8GMR-A.G1 (Francisca Micaela Mota Vieira), em www.dgsi.pt
[2] Ac. RC, de 17-02-2020, proc. n.º 590/19.4T8GRD-A.C1 (Jorge Arcanjo), em www.dgsi-pt.
[3] Ac. RG, de 06-05-2021, proc. n.º 2103/19.9T8VNF-A.G1 (Jorge Teixeira), em www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, cfr. Ac. RL, de 22-11-2007, proc. n.º 8548/20.07-2 (Ezaguy Martins), em www.dgsi.pt
[4] Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Almedina, 3.ª ed., p. 659.
[5] ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 696 (9).