RECTIFICAÇÃO DE SENTENÇA
TEMPESTIVIDADE
Sumário

I – Tendo sido interposto recurso da sentença de verificação e graduação de créditos, cuja retificação se pretende, sem que o pedido de retificação tenha sido formulado até à subida do recurso e sem que, até esse momento, se tenha procedido oficiosamente à mencionada retificação, em face do citado n.º 2 do artigo 614.º, apenas no Tribunal da Relação, e enquanto o recurso se mantiver em curso, poderá tal retificação ser requerida ou oficiosamente efetuada.
II – Nada disso tendo ocorrido, a possibilidade de retificação constante do artigo 614.º do Código de Processo Civil fica precludida.
III – A norma jurídica ínsita no n.º 2 do artigo 614.º do Código de Processo Civil assenta no pressuposto de que, quando há recurso, compete às partes, independentemente de terem ou não recorrido ou contra-alegado, apreciarem com mais acuidade a sentença ou o despacho objeto de recurso.
IV – Além disso, o recurso determina que um tribunal superior igualmente analise a sentença ou o despacho recorrido, pelo que a probabilidade de serem detetados e corrigidos erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto é bastante superior.
V – Se, porém, nem mesmo assim tais omissões ou lapsos evidentes não forem detetados, e posteriormente corrigidos, deverá imperar a inalterabilidade do caso julgado, sob pena de, em todas as situações e a todo o tempo, serem postos em causa os princípios da certeza e segurança jurídicas.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Proc. n.º 998/14.1TBSTB-N.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]

I - Relatório
No tribunal judicial da comarca de Setúbal nos autos de insolvência n.º 998/14.1TBSTB, foi declarado insolvente (…), por sentença proferida em 17-03-2014, já transitada.
No apenso de reclamação de créditos, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos em 14-03-2017, da qual foi interposto recurso pelo credor reclamante “(…) Banco, S.A”, vindo tal recurso a ser admitido.
Apreciado o recurso, foi proferido acórdão, em 14-09-2017, pelo Tribunal da Relação de Évora, julgando o mesmo improcedente.
A “Caixa Geral de Depósitos, S.A.” foi notificada da sentença de verificação e graduação de créditos por ofício enviado em 17-03-2017[2]; da interposição do recurso pelo “(…) Banco, S.A.” por email enviado em 10-05-2017; da admissão do recurso por ofício enviado em 29-06-2017; e do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora por ofício enviado em 15-09-2017.
O referido acórdão transitou em julgado em 23-10-2017, vindo o processo a ser arquivado em 29-11-2017.
Em 19-02-2021 “(…) – Unipessoal, Lda.”, em substituição da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, requerer a retificação da sentença de verificação e graduação de créditos, nos termos do artigo 614.º do Código de Processo Civil, passando a constar que sobre as verbas n.ºs 74 e 77, naquela data, se encontrava registada hipotecas a favor da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, entretanto, transmitidas para a ora credora.
(…), administrador da insolvência, em resposta, pronunciou-se no sentido de nada ter a opor à requerida retificação da sentença de verificação e graduação de créditos.
Por despacho proferido em 19-04-2021, o tribunal a quo decidiu tal requerimento nos seguintes termos:
Nos termos do n.º 1 do artigo 614.º do C.P.C., se a sentença proferida contiver quaisquer inexatidões devidas a omissão ou lapso manifesto, conforme é alegado pelo credor requerente, pode ser corrigida por simples despacho a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz. Ainda segundo o n.º 3 do mesmo artigo, tal rectificação, se nenhuma das partes recorrer, pode ter lugar a todo o tempo. Não obstante, caso haja recurso, prevê o n.º 2 que a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação. Do exposto decorre que a rectificação apenas pode ter lugar a todo o tempo quando não haja recurso pois, havendo-o, a mesma terá de ocorrer perante o tribunal superior.
Nos presentes autos foi interposto recurso da sentença cuja rectificação se requer, pelo que cumpre concluir que se revela extemporâneo o requerimento de rectificação e, consequentemente, inadmissível a mesma.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, indefere-se o requerido.
Notifique.
Não se conformando com tal despacho, a credora “(…) – Unipessoal, Lda.” recorreu, apresentando as seguintes conclusões:
A) No âmbito dos presentes autos foram apreendidos, entre outros, dois imóveis com hipoteca a favor da ora Recorrente, correspondentes ao Lote de terreno para construção urbana, com a área de 60.500m2, sito em (…) – (…), freguesia e concelho de Palmela, sob o n.º (…) da referida freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), correspondente à verba n.º 74 e ao prédio Rústico, sito em (…) – (…), freguesia e concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o n.º (…) da referida freguesia e inscrito na matriz predial sob o artigo (…) da secção Z (parte) e artigo (…) da secção Z (parte), correspondente à verba n.º 77;
B) Os créditos relativos a estes imóveis foram correctamente reconhecidos pelo Sr. Administrador de Insolvência, nomeadamente no seu requerimento junto aos autos em 04.04.2016;
C) Sucede, porém, que a sentença de verificação e graduação de créditos, por lapso, não graduou correctamente os créditos da CGD (cujos créditos foram cedidos à ora Recorrente), quanto a duas verbas, ou seja, as verbas 74 e 77;
D) Na sentença recorrida é feita referência àqueles imóveis, mas a mesma é omissa em relação às garantias registadas sobre os imóveis em causa, ao contrário do que sucede com os demais imóveis que têm hipotecas registadas, e cuja graduação foi efectuada correctamente pelo Tribunal a quo;
E) E ao contrário do requerimento apresentado pelo Administrador de Insolvência, no qual este reconhece os créditos relativamente a estes imóveis como créditos garantidos;
F) A ora Recorrente, após a sua habilitação no processo, e ao ter verificado a existência de tal lapso, requereu ao douto Tribunal a quo a rectificação da sentença, para que passasse a constar a garantia sobre os imóveis supra identificados do crédito a favor da ora Recorrente;
G) Após o pedido de rectificação, o Tribunal a quo ordenou a notificação do Administrador da Insolvência para que este se pronunciasse quanto ao pedido de rectificação apresentado, tendo este em 11.03.2021, junto aos autos requerimento onde confirma que existiu efectivamente um lapso;
H) O Administrador de Insolvência requereu também que o lapso fosse rectificado, uma vez que aquando a reclamação de créditos a CGD detinha hipoteca também sobre os imóveis aqui em causa, a qual é actualmente detida pela ora Recorrente;
I) Ora, nos termos e para os efeitos do artigo 614.º, n.º 2, do CPC, “Em caso de recurso, a rectificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à rectificação”;
J) Ora, não pode a ora Recorrente conformar-se com tal situação;
K) Conforme consta dos autos, o único credor que recorreu foi o Credor (…) Banco, cujos créditos em nada estão relacionados com os imóveis em questão e que são objecto do presente recurso;
L) Ou seja o (…) Banco enquanto credor com créditos que não sobre os referidos imóveis não tinha qualquer interesse em agir no eventual pedido de rectificação da sentença;
M) O Recorrente entende que o despacho recorrido proferido pelo Tribunal a quo é inconstitucional por violador do art.º 20.º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa;
N) A ora Recorrente entende que o despacho proferido, nos termos em que o foi, tal facto é violador da tutela jurisdicional efectiva a que a ora Recorrente tem direito por via da sua qualidade de credora hipotecária sobre os imóveis em crise.
O) A aplicação da norma constante do artigo 614.º, n.º 2, do CPC por parte do Tribunal a quo viola ostensivamente o artigo 20.º, n.º 1, da CRP, uma vez que não permite à Recorrente requerer a rectificação de uma sentença quando outra parte (ainda que com interesses não coincidentes ou até conflituantes) tenha recorrido.
P) Entende a ora Recorrente que a norma ínsita do artigo 614.º, n.º 2, do CPC é materialmente inconstitucional quando interpretada no sentido de vedar a toda e qualquer parte a possibilidade de requerer a rectificação da sentença por erros ou lapsos materiais caso tenha sido apresentado recurso, quando estejam em causa processos em que existem mais do que duas partes.
Q) Ou seja, em todo e qualquer processo onde existam vários credores, como é o caso dos presentes autos e de praticamente todos os processos de insolvência, a aplicação da norma constante do artigo 614.º, n.º 2, do CPC é inconstitucional, caso a mesma seja interpretada no sentido em que é vedado a qualquer Credor a rectificação da sentença caso a mesma tenha sido objecto de recurso por parte de outro Credor ou, no limite, até da Insolvente;
R) Ademais, não existia qualquer interesse em agir por parte do (…) Banco relativamente aos imóveis em crise no âmbito dos presentes autos aquando da apresentação do recurso da sentença, porquanto não tinha qualquer hipoteca sobre os mesmos;
S) Aliás, no limite o (…) Banco poderia inclusivamente, beneficiar da não graduação dos referidos imóveis como constituindo crédito garantido da ora Credora, dado que a parte dispositiva da sentença os gradua como comuns e, como tal, o produto da venda reverteria para os outros credores de forma rateada, entre os quais o (…) Banco;
T) Nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, a interpretação de uma norma não se deve cingir apenas à sua letra, mas também ao seu espírito, tendo em consideração as circunstâncias em que foi elaborada, tendo em consideração a unidade do sistema jurídico;
U) Resulta também da própria sentença de verificação e graduação de créditos, que esta homologou a lista apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência nos termos do artigo 129.º do CIRE;
V) Na verdade, o AI tinha reconhecido os créditos da ora Recorrente (inicialmente reclamados pela CGD) como garantidos em relação a todos os imóveis, nomeadamente em relação aos imóveis em causa no âmbito do presente recurso;
W) Nos termos e para os efeitos do artigo 130.º, n.º 3, do CIRE, caso não tenha existido qualquer impugnação à lista elaborada pelo Sr. Administrador de Insolvência, é de imediato proferida sentença;
X) O crédito da ora Recorrente (na altura ainda na esfera jurídica da CGD) foi reconhecido correctamente pelo Sr. Administrador de Insolvência, nomeadamente no que diz respeito ao respectivo montante e garantia;
Y) Desta forma e não tendo sido objecto de qualquer impugnação, a lista de credores apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência converteu-se em definitiva, cabendo apenas ao Tribunal a quo proceder à respectiva homologação, nos termos em que os créditos se encontravam reconhecidos, o que não sucedeu.
Face ao supra exposto, requer-se a V. Exa. se digne julgar totalmente procedente o presente recurso, alterando o despacho proferido em 1ª instância, pois só assim se fará a acostumada JUSTIÇA!
O credor Estado, representado pelo Ministério Público contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção do despacho recorrido, apresentando as seguintes conclusões:
1 - Em 08.09.2020 foi proferida decisão, em incidente de habilitação de cessionário, julgando-se habilitada como cessionária da credora Caixa Geral de Depósitos a ali requerente e ora recorrente (…) – Unipessoal, Lda.;
2 - No caso dos autos, ao não se atender, alegadamente e quanto aos bens imóveis em causa às garantias que os oneravam, ocorreu, quando muito, um erro de subsunção dos factos (v.g. lista de créditos reconhecidos e documentação predial correspondente) ao direito. Isto porque aquando da decisão de verificação e graduação de créditos tal momento subsuntivo tem que necessariamente ocorrer, não se vislumbrando na sentença em causa nenhum momento em que se possa suportar o alegado erro material, já que nunca o decisor afirma que tais garantias existem, antes separando as verbas 74 e 77 de todas as outras verbas e classificando-as junto daquelas outras não garantidas;
3 - A CGD, credora à data, foi sempre notificada de todas as decisões que para o caso em apreço importam e nunca reagiu às mesmas;
4 - Relativamente à CGD a sentença de verificação e graduação de créditos transitou em julgado já durante o ano de 2017, não podendo ser acolhida a interpretação da (…), precisamente porque a então interessada CGD teve a possibilidade de recorrer da decisão então proferida, de que o indeferimento da retificação da sentença, com fundamento no estatuído no artigo 614.º, n.º 3, do CPC, viola ostensivamente o artigo 20.º, n.º 1, da CRP, uma vez que não permite à Recorrente requerer a rectificação de uma sentença quando outra parte (ainda que com interesses não coincidentes ou até conflituantes) tenha recorrido;
5 - A ora recorrente assumiu o lugar da CGD na lide e deverá tê-lo feito consciente do estado dos autos e dos benefícios e prejuízos, eventuais, daí advenientes. Se não o fez sibi imputet.
Termos em que, e nos mais de direito, deve ser negado provimento ao recurso interposto pela credora e, consequentemente, ser confirmada a decisão recorrida, assim se fazendo a necessária JUSTIÇA!
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Após ter sido recebido o recurso neste tribunal nos seus exatos termos e dispensados os vistos por acordo, cumpre apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1 – Se o requerimento de retificação da sentença de verificação e graduação de créditos é tempestivo; e
2 – Se a aplicação do artigo 614.º, n.º 2, do Código de Processo Civil à presente situação é inconstitucional por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
III – Matéria de Facto
Os factos relevantes para a decisão são os que já constam do presente relatório.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) o requerimento de retificação da sentença de verificação e graduação de créditos é tempestivo; e (ii) a aplicação do artigo 614.º, n.º 2, do Código de Processo Civil à presente situação é inconstitucional por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
1 – O requerimento de retificação da sentença de verificação e graduação de créditos é tempestivo
No entender da Apelante, a sentença de verificação e graduação de créditos, por lapso, não graduou os créditos da CGD quanto às verbas 74 e 77, por ter sido omissa em relação às garantias registadas sobre os imóveis em causa, sendo que não é de aplicar o disposto no artigo 614.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, visto que o recorrente credor “(…) Banco” possuía créditos em nada relacionados com os imóveis em questão, não possuindo qualquer interesse em agir quanto ao eventual pedido de retificação da sentença que está em causa no presente recurso.
Dispõe o artigo 614.º do Código de Processo Civil que:
1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.
3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo.

Apreciemos.
Não existe dúvida que o n.º 2 do artigo 614.º do Código de Processo Civil apenas admite a retificação no tribunal a quo, havendo recurso, até ao momento em que o recurso subir, podendo, porém, as partes alegar perante o tribunal superior o que entenderem relativamente à retificação.
Ora, tendo sido interposto recurso da referida sentença de verificação e graduação de créditos, cuja retificação se pretende, sem que o pedido de retificação tenha sido formulado até à subida do recurso e sem que, até esse momento, se tenha procedido oficiosamente[3] à mencionada retificação, em face do citado n.º 2 do artigo 614.º, apenas no Tribunal da Relação, e enquanto o recurso se mantiver em curso, poderá tal retificação ser requerida ou oficiosamente efetuada. Nada disso tendo ocorrido, a possibilidade de retificação constante do artigo 614.º do Código de Processo Civil fica precludida.
A Apelante, sem pôr em causa tal dispositivo, vem, porém, considerar que o mesmo não se aplica quando existe mais do que duas partes e o recorrente possuir interesses não conflituantes com a parte que, posteriormente, vier a requerer a retificação, considerando que, nesse caso, se deve entender que, quanto à parte não recorrente, deve aplicar-se o dispositivo relativo à inexistência de recurso.
Na realidade, para além de o recurso de um qualquer credor reclamante (incluindo o recurso interposto pelo “… Banco, S.A.”[4]), por implicar alterações na sentença de verificação e graduação de créditos, sempre ter repercussões na graduação dos demais credores reclamantes (inclusive eventualmente na posição da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, razão pela qual são todos os credores reclamantes notificados do recurso para, querendo, contra-alegarem), pelo que não é possível que se possa considerar inexistir interesses conflituantes entre os credores reclamantes (ainda que os imóveis garantidos com hipoteca sejam distintos), sempre se dirá que o n.º 3 do artigo 614.º do Código de Processo Civil é bastante esclarecedor quanto ao alcance interpretativo a adotar ao referir “Se nenhuma das partes recorrer”. Daí decorre que se uma das partes recorrer, qualquer que ela seja e independentemente da quantidade de partes que existirem no processo, tal dispositivo já não é de aplicar.
A norma jurídica ínsita no n.º 2 do artigo 614.º do Código de Processo Civil assenta no pressuposto de que, quando há recurso, compete às partes[5] apreciarem com mais acuidade a sentença ou o despacho objeto de recurso, sendo que, acresce a essa situação, a circunstância de um outro tribunal analisar tal sentença ou despacho recorrido, pelo que a probabilidade de serem detetados e corrigidos erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto é bastante superior. Se, porém, nem mesmo assim tais omissões ou lapsos evidentes não forem detetados, e posteriormente corrigidos, deverá imperar a inalterabilidade do caso julgado, sob pena de, em todas as situações e a todo o tempo, serem postos em causa os princípios da certeza e segurança jurídicas.
O n.º 3 do artigo 614.º do Código de Processo Civil é, por isso, bastante perentório ao fazer consignar que apenas se aplica quando “nenhuma das partes recorrer”.
Pelo exposto, a pretensão da Apelante, nesta parte, terá de improceder.
2 – A aplicação do artigo 614.º, n.º 2, do Código de Processo Civil à presente situação é inconstitucional por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa
Considera a Apelante que, ao não ser autorizada a requerer a retificação da sentença de verificação e graduação, é violada a sua tutela jurisdicional efetiva, prevista no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, sendo que a interpretação dada ao n.º 2 do artigo 614.º do Código de Processo Civil viola igualmente as regras de interpretação constantes do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil.
Dispõe o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que:
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

Dispõe, por sua vez, o artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, que:
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

Apreciemos.
Na realidade, e quanto à invocada inconstitucionalidade, tendo a credora reclamante “Caixa Geral de Depósitos, S.A.” sido notificada (i) da sentença de verificação e graduação de créditos, com a qual se conformou, (ii) da interposição de recurso por um outro credor reclamante, sem que tivesse apresentado quaisquer contra-alegações, (iii) do despacho de admissão do recurso, e (iv) do acórdão proferido neste Tribunal da Relação sobre tal recurso, não se compreende como se possa considerar que à Apelante (que assumiu a posição da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”), ao lhe ser indeferido por extemporâneo o pedido de retificação que veio a formular, não foi assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Atente-se que o trânsito em julgado do acórdão da Relação de Évora ocorreu em 23-10-2017 e que o mencionado pedido de retificação deu entrado em juízo em 19-02-2021, ou seja, mais de três anos após o trânsito.
Por fim, dir-se-á que não resulta de nenhum texto legislativo, nem da unidade do sistema, a inaplicabilidade do n.º 2 do artigo 614.º do Código de Processo Civil aos processos que possuam mais do que dois intervenientes processuais (o Autor e o Réu), designadamente aos processos de insolvência, pelo que aplicar o referido artigo à situação dos presentes autos consubstancia uma aplicação correta das regras de interpretação jurídica, concretamente do citado artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil. Importa, aliás, salientar que a atual versão do Código de Processo Civil[6] é de 26-06-2013[7], altura em que já era bastante frequente a existência de processos com pluralidade de partes e não apenas com Autor e Réu, pelo que não se pode pretender que os n.ºs 2 e 3 do artigo 614.º do Código de Processo Civil foram pensados apenas para processos com duas partes processuais.
Deste modo, também quanto a este aspeto improcede a pretensão da Apelante.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente improcedente o recurso, mantendo-se o despacho recorrido.
Custas a cargo da Apelante (artigo 527.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 30 de junho de 2022
Emília Ramos Costa (relatora)
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho


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[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Rui Machado e Moura; 2.ª Adjunta: Eduarda Branquinho.
[2] Cujo mandatário era o Dr. (…).
[3] No caso de estarmos efetivamente numa das situações prevista no n.º 1 do artigo 614.º do Código de Processo Civil, o que não consiste, neste recurso, matéria de apreciação.
[4] Atente-se que o recurso deste credor reclamante versava especificamente sobre o pedido de retificação da sentença de verificação e graduação de créditos por nela não terem ficado a constar as hipotecas a seu favor sobre dois imóveis do insolvente, devendo tais hipotecas passar a constar na respetiva sentença, graduando-se, em consequência, os correspondentes créditos como garantidos por tais imóveis, pelo que, apesar de as verbas onde deveriam ter ficado a constar as hipotecas serem distintas, o teor do recurso era bastante semelhante ao atual pedido de retificação da sentença formulado pela Apelante.
[5] A todas elas e não apenas à parte que recorreu.
[6] Sendo que este artigo faz parte do Código de Processo Civil e não, como parece resultar das alegações de recurso, do Código Civil.
[7] Para além de já ter sofrido onze alterações.