OBRIGAÇÃO FISCAL
IVA
FACTURA COMERCIAL
Sumário

I. Reclamando o A. o pagamento das rendas devidas no âmbito de um contrato que as partes denominaram de “cessão de exploração”, as quais se encontram sujeitas a IVA, estava obrigado a emitir factura aquando do vencimento de cada uma das rendas, cobrando o imposto à taxa então em vigor.
II. Apesar de não ter emitido as facturas, o incumprimento das suas obrigações fiscais não impede o A. de fazer valer em juízo os seus direitos (cfr. artigo 274.º do CPC), mas as rendas só serão exigíveis mediante a emissão e entrega ao R. das pertinentes facturas, que aqui funciona “como uma “implícita” condição legal (cfr. artigo 270.º do Código Civil) que, enquanto não preenchida, determina não poder considerar-se vencida e exigível a obrigação – toda ela, remuneração efectiva do serviço e imposto IVA”.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 3414/20.6T8LRA.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo Local Cível de Ourém


I. Relatório
AA, solteiro, maior, residente na Rua ..., em ..., instaurou contra BB, casado, com domicílio profissional na Estrada ..., em ..., acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação do demandado no pagamento da quantia de € 30.040,55 (trinta mil e quarenta euros e cinquenta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos, contados da citação até integral pagamento sobre o montante de € 28.000,00, valor em dívida referente a parte das rendas vencidas nos meses de Novembro de 2017 a Dezembro de 2018, no âmbito de contrato de cessão de exploração celebrado entre A. e R. tendo por objecto o estabelecimento comercial casa de hóspedes denominada “Casa de Hóspedes S...” sita em Estrada ..., ....
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Citado o R., impugnou ser devedor da quantia reclamada pelo autor e, ainda a admitir o contrário, sustentou não se verificar incumprimento da sua parte, uma vez que aquele nunca emitiu as facturas referentes às rendas dos meses que alega encontrarem-se parcialmente em dívida, apesar de ter sido interpelado diversas vezes pelo contestante para o fazer. A recusa de pagamento, defende, é, por isso, legítima, atento o disposto nos artigos 428.º e 787.º do CC, que expressamente convocou, a determinar a sua absolvição do pedido.
Finalmente, impugnou o montante indicado pelo autor como sendo a contrapartida mensal fixada, que disse ascender apenas a € 6.150,00, com IVA incluído, na sequência de acordo das partes que alterou o teor da cláusula 7.ª do acordo de cessão de exploração celebrado, daqui decorrendo que, não tendo emitido as facturas, o demandante não pode reclamar o valor do Iva, pelo que o valor em dívida, caso assim se venha a considerar, não ultrapassaria os € 11.900,00.
O autor respondeu à excepção do não cumprimento invocada, pronunciando-se no sentido da respectiva improcedência.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, no qual se relegou para decisão final o conhecimento da excepção, prosseguindo os autos com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decretou como segue:
a-) condenou o R. a pagar ao A. a quantia de 11.900 euros, correspondente ao valor remanescente e não pago das rendas referentes ao período temporal em causa, ou seja entre Novembro de 2017 e Dezembro de 2018, inclusive, e que ficaram em dívida.
b-) condenou o R a pagar ao A. os juros moratórios já vencidos contados desde o dia seguinte à data do vencimento de cada uma das rendas em dívida, ou seja desde 1-12-2017, 1-1-2018, 1-2-2018, 1-3-2018, 1-4-2018, 1-5-2018, 1-6-2018, 1-7-2018, 1-8-2018, 1-9-2018, 1-10-2018, 1-11-2018, 1-12-2018, e 1-1-2019, respectivamente, calculados sobre a parte das rendas dos meses de Novembro de 2017, Dezembro de 2017, Janeiro de 2018, Fevereiro de 2018, Março de 2018, Abril de 2018, Maio de 2018, Junho de 2018, Julho de 2018, Agosto de 2018, Setembro de 2018, Outubro de 2018, Novembro de 2018, Dezembro de 2018, respectivamente, que ficou por pagar, ou seja a quantia de 850 euros para cada um desses meses, à taxa legal que vigorar na altura para os juros civis, e que se cifra, desde 1 de Maio de 2003, em 4% (cfr. Portaria n.º 291/2003), e dos juros de mora vincendos até integral pagamento, absolvendo-o do mais peticionado.
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Inconformado com o decidido, apelou o A. e, tendo desenvolvido na alegação apresentada os fundamentos da sua discordância, formulou a final as seguintes conclusões:
I. Por sentença proferida em 21/12/2021, foi o ora recorrente condenado a pagar ao recorrente a quantia de € 11.900,00, correspondente ao valor das rendas referentes ao período temporal compreendido entre Novembro de 2017 e Dezembro de 2018.
II. Além disso, o tribunal a quo determinou que o ora recorrente pagasse ao recorrido juros moratórios contados desde o primeiro dia do mês seguinte ao qual a renda diz respeito.
III. Para tanto, o recorrido invocou e o tribunal a quo deu como provado que aquele celebrou com o ora recorrente um contrato de cessão de exploração de um estabelecimento comercial.
IV. O recorrido alegou ainda que o recorrente não procedeu ao pagamento de diversas rendas.
V. O ora recorrente deduziu na sua contestação, entre outras, a exceção de não cumprimento, aduzindo que o recorrido não emitira as faturas correspondentes a cada uma das rendas, pelo que não podia exigir o pagamento da renda e do IVA respetivo.
VI. Alegando que tal comportamento (na omissão de emissão das faturas e recibos relativos a rendas cujos valores foram pagos pelo recorrente) se prolongava ainda antes de começar a não cumprir com os pagamentos das rendas.
VII. O tribunal recorrido condenou o recorrente no pagamento do valor remanescente das rendas excluindo o valor do IVA, tendo em conta que, muito provavelmente o recorrido, caso recebesse do recorrente o valor do IVA, não o entregaria ao Estado.
VIII. Quanto à exceção de não cumprimento, entendeu o tribunal recorrido que, como estamos perante um contrato de locação que incide sobre um estabelecimento comercial (cessão de exploração), aplicam-se as regras relativas à locação e que a renda se vence automaticamente independentemente de interpelação e/ou emissão de fatura e entrega dos respetivos recibos de pagamento.
IX. Salvo o devido respeito, é neste ponto que discordamos da sentença recorrida.
X. Em primeiro lugar, há que ter presente que estamos perante um contrato mercantil, celebrado entre duas empresas e/ou comerciantes, em que ambos detêm contabilidade organizada, efetuando a dedução do IVA pago (no caso do recorrente/locatário), desde que o recorrido (locador) emita a respetiva fatura.
XI. Em segundo lugar, para além da dedução do IVA, o regime da contabilidade organizada impõe que o sujeito passivo possa deduzir os gastos/despesas tidos no âmbito da sua atividade às receitas/proveitos, sendo que o imposto a pagar, neste caso o IRS, incidirá precisamente sobre o produto da subtração do valor das despesas/gastos ao valor das receitas/proveitos.
XII. Por conseguinte, sem que a fatura seja emitida e, após o seu pagamento, o recibo seja emitido, é impossível ao locatário, in casu, o ora recorrente, proceder à contabilização das rendas que paga, não podendo subtrair tais gastos ao valor das receitas, o que levará ao pagamento de mais imposto, já que os seus lucros serão, para efeitos fiscais, maiores, implicando a aplicação de uma taxa de IRS maior, bem como um valor de matéria coletável também maior, o que lhe causa um prejuízo.
XIII. Já que, quando celebrou o contrato de cessão de exploração, o recorrente contava poder deduzir o IVA e o valor das rendas na sua contabilidade.
XIV. Como o recorrido não emitia qualquer fatura e recibo, o recorrente não pôde efetuar tais deduções, o que se traduziu no pagamento de um valor de IVA superior, bem como no pagamento de um valor de IRS também maior, o que o colocou em graves dificultadas financeiras.
XV. De referir ainda que, tendo em conta que os meses a que as rendas peticionadas se referem já terem decorrido há mais de 4 anos, mesmo que o recorrente viesse a proceder ao pagamento das rendas e IVA respetivo, não poderia já apresentar nova declaração de IRS e de IVA, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária, que passamos a citar: “A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”.
XVI. Consequentemente, o recorrido, mesmo que pagasse as rendas peticionadas, jamais poderia deduzir o IVA cujo valor o recorrido peticiona, nem poderia deduzir os gastos dessas rendas às receitas / proveitos.
XVII. Também com a citação para a ação que deu origem ao presente processo não se pode considerar que as obrigações de emissão de fatura e recibo se sanaram, uma vez que não ocorreu qualquer declaração perante a autoridade tributária e aduaneira.
XVIII. Mais, veja-se que o tribunal a quo deu como provado que, no contrato de cessão de exploração firmado entre recorrente e recorrido, na cláusula terceira se estabeleceu o seguinte: “O segundo outorgante ou locatário pagará ao primeiro outorgante ou locador (…) mediante facturas e recibos de quitação (…)”.
XIX. Ora, do contrato de cessão de exploração resulta de forma clara que a emissão das facturas e recibos de quitação era condição para o pagamento das rendas respetivas, daí a utilização da palavra “mediante”, sendo essa a vontade das partes quando celebraram o referido contrato.
XX. Pelo que a recusa no pagamento do valor integral das rendas por parte do recorrente e locatário é perfeitamente e de acordo com o acordo de vontades vertido no contrato citado.
XXI. Assim, a obrigação do pagamento das rendas não era automática, mas apenas se faria (era exigível) “mediante” a emissão da fatura respetiva, o que, como consta, do ponto 10.º dos factos dados como provados da sentença, o recorrido não cumpriu relativamente às rendas cujo pagamento peticionou nestes autos.
XXII. Neste sentido veja-se o ponto V constante do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 22/04/2004, em que se estribou o seguinte: “Para além do IVA não pode ser exigido sem prévia emissão e apresentação de factura com os requisitos estabelecidos no n.º 5 do artigo 35.º do CIVA, quando a emissão e apresentação duma tal factura for imposta por convenção das partes, estar-se-á perante condição da exigibilidade, e, assim, do vencimento, de toda a dívida – parte remuneratória e imposto – e, assim, perante uma condição suspensiva, sem o preenchimento da qual, conforme artigo 270.º do Código Civil, o pagamento não é exigível (…)
XXIII. Ora, foi precisamente por convenção das partes que se exigiu que o pagamento da renda devesse ser precedida da emissão da fatura respetiva.
XXIV. Por outro lado, apesar de, no contrato de cessão de exploração, a prestação principal do locador (aqui recorrido) ser a de facultar o gozo do estabelecimento comercial, mesmo que tal obrigação não se encontrasse prevista no contrato, sempre se trataria de uma obrigação acessória a tal contrato, o que, com recurso à analogia, poderia e devia levar à aplicação do artigo 428.º do Código Civil.
XXV. Neste sentido, veja-se o ponto II do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/04/2015: “Não se referindo o artigo 428.º (Excepção de não cumprimento do contrato) do Código Civil aos deveres acessórios ou de conduta, a aplicação desta norma a estes deveres só é viável através da analogia, nos termos do artigo 10.º do Código Civil.”
XXVI. Por fim, sem prescindir dos argumentos supra referidos, diremos ainda que, entre novembro de 2017 e dezembro de 2018, o recorrente efetuou o pagamento parcial das rendas ao recorrido, como consta do ponto 9.º dos factos dados como provados na sentença.
XXVII. Como consta também do ponto 10º dos factos dados como provados na sentença, o recorrido nunca emitiu as faturas correspondentes a tais meses, nem de forma parcial.
XXVIII. Pelo que também não poderia emitir os respetivos recibos.
XXIX. Ou seja, apesar de ter recebido o pagamento parcial das rendas referentes a 14 meses, o recorrido nunca emitiu qualquer fatura e/ou recibo, apesar de a isso estar obrigado.
XXX. Veja-se que o recorrente procedeu ao pagamento integral das rendas referentes aos primeiros dez meses do ano de 2017 (pontos 7º e 8º dos factos dados como provados na sentença), passando a fazer o pagamento parcial de novembro desse ano e até ao final do ano seguinte, precisamente porque o recorrido não emitiu as faturas e recibos correspondentes.
XXXI. Pelo que era legítimo ao recorrente recusar o cumprimento da obrigação, como fez.
XXXII. Neste sentido veja-se o excerto do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/07/2018: A faculdade de recusa da sua prestação por parte de qualquer um dos contraentes, nas condições previstas no artigo 428.º e seguintes do Código Civil – excepção de não cumprimento do contrato –, pode também ser exercida no âmbito do contrato de locação.”
XXXIII. Posto isto, o tribunal a quo errou na decisão que tomou sobre a matéria de direito, decisão essa que se impugna pelo que se disse anteriormente.
XXXIV. Por isso, deve a sentença recorrida ser revogada e, por conseguinte, o recorrente absolvido do pedido deduzida pelo recorrido.
Não foram oferecidas contra-alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se deve proceder a excepção do não cumprimento / inexigibilidade da obrigação invocada pelo recorrente.
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II. Fundamentação
De facto
Vem assente na sentença recorrida a seguinte factualidade:
1. O A., na qualidade de 1.º outorgante ou locador, e o R., na qualidade de 2.º outorgante ou locatário, celebraram acordo escrito, intitulado “Contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial”, datado de 15 de Maio de 2012, cuja cópia se encontra junta aos autos de fls. 5 verso e 6, e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, que foi assinado pelo A. e pelo R. naquelas qualidades.
2. No contrato referido em 1) constam, designadamente, as seguintes cláusulas com relevância:
“CLÁUSULA PRIMEIRA:
O primeiro outorgante é dono e legítimo possuidor do estabelecimento comercial de casa de hóspedes ou alojamento local…denominado Casa de Hóspedes “S...”…situado na Estrada ..., em ....
CLÁUSULA SEGUNDA:
Pelo presente contrato o primeiro outorgante cede aos segundos outorgantes a exploração do seu referido estabelecimento comercial, exploração essa que tem início no dia 1 de Junho de 2012 e terminará no dia 31 de Dezembro de 2016. O contrato renovar-se-á por sucessivos períodos de 55 meses, se não for denunciado por qualquer das partes com antecedência mínima de 60 dias do termo do prazo ou da prorrogação em curso...
CLÁUSULA TERCEIRA: O segundo outorgante ou locatário pagará ao primeiro outorgante ou locador, a título de sinal e reserva e adiantamento, valendo para os 2 meses iniciais, a quantia de 4.000 euros, mais a quantia de 4.000 euros, acrescidos de IVA à taxa em vigor, agora de 23%, mediante facturas e recibos de quitação…
CLÁUSULA QUINTA:
Este valor de 4.000 euros + IVA, corresponderá e vigorará por cada mês, até 31 de Dezembro de 2012, isto é, durante 7 meses.
CLÁUSULA SEXTA:
A partir de 1 de Janeiro de 2013 e até 31 de Dezembro de 2013, vigorará o valor mensal de 5.000 euros + IVA.
CLÁUSULA SÉTIMA:
A partir de 1 de Janeiro de 2014 e até 31 de Dezembro de 2016, vigorará o valor mensal de 6.000 euros + IVA.
3. Em 20-10-2016, o A. remeteu ao R. carta registada com aviso de recepção, na qual lhe comunicava que pretendia denunciar o contrato de cessão de exploração referido em 2, invocando como motivo a falta de pagamento pelo R. das contrapartidas pela cessão de exploração.
4. No dia 26-12-2016, o A. e o R. reuniram-se, tendo este último solicitado a manutenção do contrato de cessão de exploração referido em 2), o que foi aceite pelo A.
5. Na ocasião referida em 4), o A. e o R. acordaram que a contrapartida pela cessão fosse fixada no valor mensal de 5.000 euros, a que acresceria o IVA à taxa legal, o que perfazia a importância de 6.150 euros.
6. Ainda na ocasião referida em 4), o R. entregou ao A. 24 letras que tinham aposta em cada uma delas a importância de €6.150,00, vencendo-se a primeira no dia 15-1-2017, e as restantes 23 no mesmo dia dos meses subsequentes, para satisfazer a condição estabelecida pelo A. para dar sem efeito a denúncia do contrato referida em 3).
7. As letras referidas em 6) destinavam-se à liquidação do valor das contrapartidas pela cessão de exploração do estabelecimento referentes aos meses de Janeiro de 2017 e seguintes.
8. O R. procedeu ao pagamento na íntegra do valor constante das 10 primeiras letras referidas em 6), referentes às contrapartidas pela cessão de exploração respeitantes aos meses de Janeiro a Outubro de 2017.
9. Em relação às contraprestações pela cessão de exploração referentes aos meses de Novembro de 2017, Dezembro de 2017, Janeiro de 2018, Fevereiro de 2018, Março de 2018, Abril de 2018, Maio de 2018, Junho de 2018, Julho de 2018, Agosto de 2018, Setembro de 2018, Outubro de 2018, Novembro de 2018 e Dezembro de 2018, o R. pagou ao A. apenas a quantia de 4.150 euros.
10. O A. não emitiu e não entregou ao R. as facturas referentes às contrapartidas pela cessão de exploração, respeitantes aos meses de Novembro de 2017 a Dezembro de 2018, inclusive.
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Facto não provado:
a) A partir do mês de Janeiro de 2017, a contrapartida pela cessão de exploração do estabelecimento referida em 1) e 2), foi fixada na quantia de 6.000 euros, a que acresceria o IVA à taxa legal.
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De Direito
Da excepção do não cumprimento do contrato e da inexigibilidade da obrigação
Sem controvérsia, vem assente que A. e R. celebraram contrato de cessão de estabelecimento comercial – Casa de Hóspedes ou Alojamento Local – instalado no prédio sito na Estrada ..., ....
Cessão de exploração de estabelecimento comercial ou industrial pode ser definido como a transmissão entre vivos, por acto voluntário e a título temporário, de um estabelecimento comercial ou industrial que, via de regra, tem uma retribuição como contrapartida.
Na esmagadora maioria dos casos, tal como ocorre no vertente, a cessão de exploração do estabelecimento é feita através de um contrato de locação: é a locação de estabelecimento prevista no artigo 1109.º do Código Civil (já em vigor à data da celebração do contrato dos autos)[1], nos termos do qual “A transferência temporária e onerosa do gozo de um prédio ou de parte dele, em conjunto com a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado, rege-se pelas normas da presente subsecção, com as necessárias adaptações”, assim remetendo para o regime do arrendamento para fins não habitacionais, donde a contrapartida pela transferência é a renda fixada.
Para o que aqui releva, sustenta e insiste o R., agora recorrente, que não tendo o autor locador emitido as facturas-recibo como previsto na cláusula 3.ª do contrato, o que consubstanciaria uma condição de exigibilidade da prestação, não se encontra obrigado a proceder ao pagamento das rendas reclamadas, invocando a seu favor a excepção do não cumprimento do contrato prevista no artigo 428.º do Código Civil, desatendida na decisão recorrida.
Antes de mais, visto o teor da cláusula invocada, verifica-se que a mesma dispõe apenas para a quantia inicial de € 8.000,00 acrescida de Iva que o apelante se obrigou então a pagar “a título de sinal e reserva e adiantamento para os dois meses iniciais”, dela não resultando directamente que a exigência se estendesse às rendas que se vencessem posteriormente.
Por outro lado, e tal como se explica na sentença recorrida, correspondendo embora a uma obrigação acessória, a emissão da factura não é a contrapartida da prestação cujo cumprimento se recusa, o que nos leva a afastar o funcionamento, no caso, da excepção do não cumprimento do contrato, assim se confirmando o entendimento a este propósito expendido na decisão impugnada.
Não obstante, a verdade é que nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea b), do CIVA a prestação de serviços ou transmissão de bens origina a obrigação de emitir fatura ou recibo – só assim não ocorre quando os sujeitos passivos pratiquem exclusivamente operações isentas de IVA –, tornando exigível o imposto, caso o prazo previsto para a emissão seja respeitado (5.º dia útil seguinte ao do momento em que o imposto é devido nos termos do artigo 7.º, conforme resulta dos artigos 8.º, n.º 1, 29.º, n.º 3 e 36.º, n.º 1, alínea a), do CIVA). Dispõe ainda o artigo 37.º que o imposto deve ser adicionado ao valor da factura para efeitos de ser exigido aos adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços.
Sob a epígrafe “Incidência objectiva”, dispõe-se no artigo 1.º do mesmo diploma que “Estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado: a) As transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal”, resultando do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 4 e 4.º, n.º 1, que a cessão de exploração é havida como prestação de serviços, que funciona como categoria residual.
Deste modo, não vindo questionado que a cedência da exploração do estabelecimento contratada por A. e R. – equiparada, como vimos, a prestação de serviços para efeitos de incidência de IVA –, dá origem à liquidação deste imposto, sobre as rendas reclamadas incide IVA, uma vez que a cessão de exploração não beneficiará da isenção prevista no ponto 29 do artigo 9.º do CIVA (cfr. a excepção prevista na alínea c) do preceito).
Estando em causa um imposto de prestação única que tributa a despesa, o autor estava obrigado a emitir factura aquando do vencimento de cada uma das rendas, cobrando o IVA à taxa então em vigor, valor que depois tinha de entregar ao Estado. Não o fez, conforme se encontra provado em 10., mas a circunstância de não ter cumprido as suas obrigações fiscais não o impede de fazer valer em juízo os seus direitos (veja-se o disposto no artigo 274.º do CPC), nem tão pouco constitui obstáculo à posterior regularização da sua situação fiscal. Necessário é, contudo, em nosso entender, que emita as facturas (facturas/recibo) correspondentes[2].
Conforme foi decidido no acórdão do TRC de 16/12/2015 (proferido no processo n.º 162/12.4TBMDA.C1, acessível em www.dgsi.pt), o montante em dívida só se torna exigível contra a apresentação da respectiva factura. Como se explica naquele aresto, “a emissão e apresentação duma factura, respeitante a um serviço prestado, não constitui apenas uma obrigação legal imposta pelos artigos 29.º/1/b) e 36.º/1, do CIVA; acaba por funcionar também como uma condição de cuja verificação/preenchimento depende a exigibilidade do pagamento em causa.
(…) Emissão obrigatória de factura que é pois uma condição legal da exigibilidade do IVA pela prestadora do serviço à utilizadora do serviço (que é quem deve efectivamente suportá-lo, que é a contribuinte de facto); e, sendo assim, não é apenas o IVA que não pode ser exigido sem prévia emissão e apresentação de factura (com os requisitos estabelecidos no artigo 36.º/5, do CIVA), é antes toda a dívida, ainda em discussão, que não pode ser exigida (uma vez que, sendo o IVA exigível no momento de realização do serviço, a remuneração deste serviço não pode ser exigida sem ser exigido o respectivo IVA)”. E aí se conclui que “(…) perspectivando em termos jus-civilistas o que vimos dizendo – a emissão obrigatória de factura funciona como uma “implícita” condição legal (cfr. artigo 270.º do Código Civil) que, enquanto não preenchida, determina não poder considerar-se vencida e exigível a obrigação – toda ela, remuneração efectiva do serviço e imposto IVA – aqui litigada, havendo, por isso, lugar à aplicação do artigo 610.º/1 e 2/a), do CPC” (cfr. no mesmo preciso sentido, recente acórdão do TRP de 17 de Maio de 2022, no processo n.º 5631/18.0T8PRT.P1, ainda em www.dgsi.pt).
Tal entendimento é válido no caso dos autos, assim procedendo o fundamento invocado pelo R. quando defende a inexigibilidade do pagamento das quantias em dívida enquanto as facturas não forem emitidas. E por assim ser, não se constituiu em mora, não havendo lugar à condenação em juros, mantendo-se, no entanto, a obrigação principal de pagamento do remanescente das rendas em dívida acrescidas de IVA, pelo que, ao invés do que pretende o recorrente, não há que decretar a sua absolvição.
Acrescenta-se ainda que não obsta ao decidido a invocada circunstância de já não poder deduzir o Iva pago, nem tão pouco contabilizar os montantes pagos como custo, a fim de diminuir a colecta para efeitos de IRS.
Por um lado, a ter sofrido prejuízos por força da conduta ilícita da contraparte, pode reclamar a pertinente indemnização, como de resto fez no âmbito do pedido reconvencional que formulou na acção que corre termos pelo tribunal Judicial da Comarca ... com o n.º 2009/20...., aí tendo incluído as rendas aqui em discussão, ainda que não as tivesse pago integralmente e sem que então tivesse suportado qualquer valor correspondente a IVA.
De outro lado, não temos de modo algum como seguro que não possa deduzir o IVA incluído nas facturas a emitir.
Com efeito, sendo o IVA um imposto de disciplina harmonizada ao nível europeu, a jurisprudência do TJUE impõe-se às Administrações Fiscais dos Estados Membros em geral, incluindo naturalmente a Autoridade Tributária e Aduaneira Nacional. Neste contexto, assumem relevância as recentes decisões nos Processos Volkswagen, de 21 de Março de 2018, e Biosafe, de 12 de Abril de 2018, neles tendo sido esclarecido, a propósito da emissão de facturas rectificativas, que o prazo de caducidade do direito à dedução “corre” a contar da data de recepção da factura rectificativa quando esta mencione um valor de IVA que não figurava na factura inicial, salvo se o sujeito passivo não podia nem devia ignorar o erro inicial[3]. Se assim é para os casos de retificação, afigura-se que a mesma solução se impõe no caso das facturas não terem sido oportunamente emitidas.
Atendendo a todo o exposto, mantém-se a condenação do R. a pagar o montante em dívida, a que acresce Iva à taxa legal de 23% calculado sobre o valor de € 5.000,00 relativo a cada uma das rendas, mas apenas contra a emissão das correspondentes facturas/recibo.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo R., o qual vai condenado a pagar ao A. a quantia de € 11.900,00 (onze mil e novecentos euros) referente ao remanescente das rendas vencidas desde Novembro 2017 a Dezembro de 2018, inclusive, acrescida de Iva à taxa legal de 23% liquidado sobre o valor de € 5.000,00 relativo a cada uma das rendas, mas apenas contra a emissão das correspondentes facturas/recibo.
As custas nesta e na 1.ª instância serão suportadas por A. e R., na proporção dos seus decaimentos.
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Sumário:
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Évora, 30 de Junho de 2022
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
Vítor Sequinho dos Santos


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[1] V., sobre os conceitos, Prof. Menezes Cordeiro, “Manual de Direito Comercial”, 2.ª edição, 2007, págs. 301 a 304.
[2] Sem que haja lugar a retenção na fonte. Veja-se a ficha doutrinária proferida a propósito no processo 3931/2017, com despacho concordante da Subdiretora de Serviços do IR, de 2018-05-23, acessível em https://www.apeca.pt/docs/informacaoapeca/52_PIV_12811.pdf.
[3] Prof. Maria Odete Oliveira, “IVA e facturação correctiva o tempo e o modo no direito à dedução. Os recentes acórdãos do Tribunal Europeu de Justiça”, acessível em file:///C:/Users/MJ01415/Downloads/6801-Texto%20do%20artigo-20009-1-10-20190615.pdf.