ACÇÃO POPULAR
COMPETENCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
Sumário

I.–O Regulamento (EU) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (designado Regulamento Bruxelas I) aplica-se em matéria civil e comercial e independentemente da jurisdição (art. 1º/1), estabelecendo o art. 7º/2, em caso de responsabilidade extracontratual uma regra especial de competência (derrogatória da regra geral prevista no art. 4º), nos termos da qual “as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”.

II.–Nos termos do art. 7º/2 do Regulamento Bruxelas I, os tribunais portugueses (Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão) são internacionalmente competentes para julgar a acção prevista no art. 13º da Lei 23/2018, de 5 de junho (Lei de Private Enforcement) - “acesso a meios de prova antes de intentada a acção de indemnização”, estando em causa apurar se os consumidores residentes em Portugal foram afectados por práticas anticoncorrenciais.

(Sumário da reponsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Acordam na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:

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I.–RELATÓRIO


ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS intentou a presente acção popular, sob a forma declarativa especial para apresentação de documentos, ao abrigo dos artigos 1045º a 1047º do CPC e art. 12º da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto, contra a ré MELIÁ HOTELS INTERNACIONAL, S.A., requerendo:

a)-a notificação da Comissão Europeia, em conjunto com a citação da presente petição inicial à Ré, para, querendo, apresentar observações escritas ao Tribunal sobre o pedido;
b)-a citação da Ré para apresentar os documentos elencados no §62 da presente petição inicial, eventualmente com medidas de garantia da proporcionalidade que o Tribunal entender adequadas;
ou, subsidiariamente,
c)-que o Tribunal determine quais, de entre os documentos referidos na alínea anterior, ou outros que o Tribunal entenda, são estritamente necessários para permitir à Autora perceber se foram afetados interesses difusos e se os consumidores residentes em Portugal foram afectados pelas práticas anticoncorrenciais referidas na presente petição inicial, se as práticas lhes causaram danos, e qual o montante desses danos.

Alegou, em síntese, que:
- De acordo com a Decisão da Comissão Europeia proferida em 21 de fevereiro de 2020, no âmbito do Caso AT.40528 – Holiday Pricing (doravante, “Decisão”), a Ré, entre janeiro de 2014 e dezembro de 2015, violou o artigo 101.º do TFUE e o artigo 53.º do Acordo EEE, por ter implementado práticas verticais, por via contratual, que diferenciavam os consumidores em função da sua nacionalidade ou país de residência, restringindo as vendas ativas e passivas de alojamento em hotéis por si geridos ou dos quais é proprietária a consumidores nacionais ou residentes em Estados-Membros por si determinados, tendo sido condenada numa coima no montante global de € 6.678.000.

-Em 2014 e 2015, a Ré celebrou 4216 contratos de venda de alojamento com operadores intermediários nos quais fez constar a expressa condição de as vendas serem feitas apenas aos consumidores com a nacionalidade ou a residência fixada nos países indicados no contrato.

-Em cumprimento de uma estratégia comercial global que visou compartimentar os mercados nacionais, incluindo o mercado português, e reduzir ou eliminar a concorrência, a Ré, através destes contratos, procurou restringir a concorrência, o que configura um comportamento subsumível às condutas previstas no artigo 101.º do TFUE e artigo 53.º do Acordo EEE.

-Resulta expressamente da Decisão que a prática anticoncorrencial em causa consistiu na diferenciação entre consumidores do Espaço Económico Europeu consoante o seu país de residência, em 2014 e 2015, e que os países afetados foram todos os países do Espaço Económico Europeu (EEE), o que obviamente inclui Portugal. Afirma-se ainda que a prática anticoncorrencial em questão restringiu a capacidade dos operadores turísticos de venderem livremente estadias em hotéis em todo o EEE (incluindo Portugal).

-Os contratos celebrados entre a Ré e os referidos operadores intermediários impediam a venda de alojamento em hotéis da Ré a nacionais ou residentes em Estados-Membros (incluindo Portugal) não incluídos no âmbito geográfico do contrato, vedando aos consumidores excluídos o acesso às condições de venda acordadas entre a Ré e os operadores turísticos acima identificados.

-As cláusulas restritivas encontravam-se no modelo de contrato que a Ré fornecia aos operadores turísticos durante as negociações dos acordos de venda de alojamento.

-As cláusulas restritivas dissuadiam os operadores intermediários de publicitar os hotéis da Ré, e as condições do alojamento – incluindo o preço - fora dos mercados geográficos contratualmente determinados (proibição de vendas ativas).

-Os operadores intermediários identificados não podiam vender nem responder a solicitações de compra de alojamento que lhes fossem dirigidas por cidadãos nacionais ou residentes nos Estados-Membros excluídos (proibição de vendas passivas).

-Os contratos relevantes referidos na Decisão, e os Estados-Membros excluídos pelas cláusulas restritivas de todos os contratos afetados, não constam da Decisão nem estão acessíveis ao conhecimento público, se bem que a Decisão refere expressamente que todos os Estados do Espaço Económico Europeu foram afetados.

-Dada a dimensão, presença e alcance da atividade prestada pela Ré na União Europeia, e atendendo ao âmbito geográfico afirmado na Decisão, é muito provável que os consumidores portugueses ou residentes em Portugal tenham sido afetados pelas cláusulas declaradas ilegais pela Comissão Europeia.

-Os consumidores residentes em Portugal podem, com acentuada probabilidade, ter sido excluídos pelos operadores intermediários em relação contratual com a Ré, vendo coarctada a oportunidade de encontrar alojamento nos hotéis da Ré situados em Portugal ou noutro Estado-membro da UE, ou até no resto do mundo, com melhores condições e menores preços.

-A Autora pretende confirmar que, tal como sugerido pelo âmbito geográfico das práticas descritas na Decisão, os comportamentos anticoncorrenciais da Ré identificados na Decisão causaram danos a interesses difusos constitucionalmente protegidos em Portugal e a interesses individuais homogéneos dos consumidores residentes em Portugal, e, sendo o caso, qual o quantum dos danos causados.

-É impossível à Autora, à luz das informações e documentos publicamente disponíveis, proceder de modo detalhado às determinações referidas no parágrafo anterior, para além da conclusão ampla de que a prática teve efeitos em Portugal.

-Caso a Autora determine, na sequência do acesso aos meios de prova que requer na presente ação, que os comportamentos anticoncorrenciais em causa da Ré lesaram interesses difusos e interesses individuais homogéneos de consumidores residentes em Portugal, é intenção da Autora intentar, com base nos meios de prova obtidos, ação de declaração do comportamento anticoncorrencial e de indemnização perante o Tribunal da Concorrência, Supervisão e Regulação (“TCRS”), ao abrigo da Lei n.º 23/2018, de 5 de junho, com causa de pedir fundada exclusivamente em infrações ao direito da concorrência, exercendo o direito de ação popular que lhe é conferido pela Constituição e legislação portuguesas, em representação dos consumidores lesados residentes em Portugal.
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Citada, a ré contestou, arguindo além do mais, a título de excepção, a incompetência internacional dos tribunais portugueses para a presente acção e a ilegitimidade da autora.
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Foi proferida decisão pelo Tribunal da Concorrência Regulação e Supervisão, que julgou improcedentes as excepções invocadas.
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Inconformada com a decisão proferida, veio a ré interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação, apresentando as seguintes conclusões:

a)-A DECISÃO proferida pelo Tribunal a quo, na parte em que julga improcedente a exceção de incompetência absoluta,é passível de apelação autónoma à luz do artigo 644.º, n.º 2, alínea b) do CPC;

b)-Em face da natureza (processo especial para acesso a documentos regulada nos artigos 1045.º a 1047.º do CPC) e contornos da presente ação, em que é demandada uma sociedade comercial domiciliada em Palma de Maiorca, Espanha, com fundamento em factos ocorridos naquele país, o critério geral do domicílio do réu plasmado no artigo 4.º, n.º 1 do REGULAMENTO BRUXELAS I deve prevalecer, o que conduz à falta de competência internacional dos tribunais portugueses;

c)-Não se aplicam ao caso nenhuma das regras especiais derrogatórias daquela regra geral,seja em face da natureza especial da presente ação, seja por se estar perante uma ação coletiva, seja, finalmente, por a ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS não poder em qualquer caso beneficiar das regras especiais dos artigos 18.º e 7.º, n.º 2 do dito Regulamento;

d)-A DECISÃO passa ao lado e desconsidera o argumento principal da defesa da ora APELANTE, acabando por não considerar e ponderar devidamente a particular natureza das ações especiais para aceder a meios de prova, o que conduziu à sua errada subsunção na categoria de ação de responsabilidade civil extracontratual;

e)-O entendimento segundo o qual o conceito de matéria extracontratual para efeitos do disposto no artigo 7.º, n.º 2 do REGULAMENTO BRUXELAS I abrange qualquer pedido destinado a envolver a responsabilidade de um demandado que não esteja relacionado com a matéria contratual, como se estivéssemos perante uma categoria residual que abrange tudo que não fique na peneira da matéria contratual, parece-nos excessivamente abrangente, conduzindo a resultados que seguramente não encontram suporte no espírito do legislador europeu;

f)-Sem conceder, é inquestionável que no caso que ora nos ocupa, a ação não visa responsabilizar a demandada, seja por aquilo que for, mas apenas e só obter o acesso a determinados documentos, sendo esse - e apenas esse - o pedido formulado, sendo também essa, no limite e sem conceder, a decisão positiva que o tribunal poderá adotar em caso de procedência total ou parcial da ação, o que basta para que se abandone o entendimento subjacente à DECISÃO;

g)-Resulta da primeira e última partes do artigo 13.º da LEI DE PRIVATE ENFORCEMENT que a ação especial para aceder a meios de prova consagrada nesse regime jurídico é, na sua essência, uma ação especial para apresentação de documentos, a qual tem se de legal adjetiva nos artigos1045.º a 1047.º do CPC e substantiva nos artigos 573.º a 576.º do Código Civil;

h)-Ora, o processo especial previsto nos artigos 1045.º a 1047.º do CPC configura, pois, uma verdadeira ação judicial autónoma, que visa tutelar interesses próprios, sendo dotada de uma tramitação especifica, não se confundindo com uma mera diligência processual, nem muito menos com uma providência cautelar, dependente de uma qualquer ação principal;

i)-Daí que, salvo melhor opinião, não faça qualquer sentido recorrer à futura e incerta ação de indemnização - cujos contornos são por isso mesmo, nesta fase, completamente desconhecidos - para, desconsiderando a natureza especial da presente ação, atribuir aos tribunais portugueses a jurisdição de uma ação que de outro modo caberia aos tribunais espanhóis, que são indubitavelmente aqueles melhor colocados para apreciar as questões aqui em causa;

j)-Tendo a ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS configurado a presente ação como uma ação coletiva, não tem lugar a aplicação da regra especial do artigo 7.º, n.º 2 do REGULAMENTO BRUXELAS I, valendo a regra geral do domicílio do réu, pelo que estamos, uma vez mais, perante um caso de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, exceção dilatória que dita a necessária absolvição da MELIÁ da instância;

k)-Mesmo que a regra especial do artigo 7.º, n.º 2, do REGULAMENTO BRUXELAS I fosse aqui aplicável, ela conduziria, ainda assim, à incompetência internacional dos tribunais portugueses, por no caso os elementos de conexão relevantes apontarem todos na direção do domicílio da demandada, ou seja Espanha;

l)-Com efeito, resulta do modo como a AUTORA configura a presente ação que o local onde ocorreu o facto alegadamente danoso foi Espanha, i.e., onde a MELIÁ (e a sua subsidiária Apartotel, S.A.) tem a sua sede e o seu estabelecimento, onde conduz a sua atividade e toma decisões, designadamente aquelas relativas aos contratos visados na Decisão da Comissão Europeia, todos eles celebrados em Espanha;

m)-E não se diga que, conforme erradamente conclui o Tribunal a quo, no caso em apreço a AUTORA alega que os danos resultantes do facto ilícito praticado em Espanha se materializaram em Portugal, para desse modo retirar a competência aos tribunais espanhóis e atribuí-la aos portugueses;

n)-Desde logo porque não foi isso que a AUTORA alegou, tendo antes apenas e só admitido que tal pudesse ter acontecido, como agravante de nem sequer ter apresentado qualquer fundamentação que permitisse concluir pela plausibilidade de tal hipótese, de tal modo que, depois de confirmada a sua jurisdição, o Tribunal a quo imediatamente a convidou a suprir essa insuficiência, através de aperfeiçoamento da petição inicial;

o)-Ou seja, cai por terra toda a argumentação laboriosamente construída pelo Tribunal a quo para fundamentar a sua decisão de se julgar internacionalmente competente, a qual assenta sempre e só nos pressupostos de que (a) houve danos e (b) os mesmos se materializaram em Portugal;

p)-Com efeito, salvo melhor opinião, sendo inquestionável que a competência se afere em função dos contornos da ação, tal como configurada pelo autor,se o Tribunal a quo concluiu, a nosso ver bem, que na petição inicial não foi invocada a existência de danos, nem sequer apresentada uma teoria do dano que permitisse concluir pela plausibilidade de materialização de danos na esfera dos consumidores portugueses de modo a estabelecer uma ligação ao nosso país, então não podia ter presumido o contrário momentos antes, quando tratou de interpretar e aplicar o artigo 7.º, n.º 2 do REGULAMENTO BRUXELAS I, que foi exatamente o que fez;

q)-Isto é, o tribunal não pode dizer uma coisa quando está a aferir se é internacionalmente competente - que foi invocada a existência de danos na esfera jurídica dos consumidores portugueses e o seu contrário que não foi e quer alegado que houve danos em Portugal e muito menos que fosse plausível que tivessem sobrevindo tais danos - quando trata de pronunciar-se sobre o mérito (ou falta dele) da ação;

r)-Visto de outro prisma, os argumentos e fundamentação que conduziram o Tribunal a quo a concluir que a ação, tal como configurada pela ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS não era viável, por lhe faltar um elemento determinante, qual seja a alegação de danos na esfera jurídica dos consumidores portugueses e uma teoria de dano plausível, ao ponto de exigir a apresentação de uma petição inicial aperfeiçoada, são os mesmo que deveriam ter conduzido a que declinasse a competência internacional em benefício dos tribunais espanhóis;

s)-De resto, o Tribunal parece ter acabado por considerar-se competente, já não face aos contornos da presente ação, mas à luz da eventual futura ação de indemnização tendo em vista a reparação de danos supostamente sofridos por consumidores portugueses, o que, salvo melhor opinião, não tem qualquer cabimento;

t)-Até porque, cumpre lembrar, se nesta fase nem sequer foram enunciados com um mínimo de detalhe e rigor os pressupostos da decretação do pedido de acesso a documentos - daí o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial - o que dirá de uma hipotética futura ação coletiva, cuja viabilidade se mostra altamente questionável, desde logo em face da mais do que provável inexistência de interesses individuais homogéneos a defender;

u)-Ou seja, exposto e desfeito este equívoco, porque, tal como na altura a APELANTE alegou, não foi sequer alegado que em resultado da conduta sancionada pela Comissão foram causados danos a consumidores domiciliados em Portugal, não estão verificados os pressupostos para que seja conferida jurisdição aos tribunais portugueses por via da aplicação da regra especial do artigo 7.º, n.º 2 do REGULAMENTO BRUXELAS I;

v)-Sem prescindir, diga-se que na linha dos considerandos 15 e 16 supra citados, o artigo 7.º, n.º 2, do REGULAMENTO BRUXELAS I não deve ser interpretado de forma extensiva de modo a incluir os tribunais do local ou dos locais em que hipoteticamente se poderiam ter materializado as consequências de determinado evento, devendo antes ser interpretado como dizendo respeito ao local onde há uma maior conexão entre o tribunal e o facto danoso;

w)-Conforme a doutrina indica acertadamente, a jurisprudência tradicional do TJUE (como o caso Shevill) no que se refere a uma multiplicidade de locais do dano, não se pode transpor para as ações populares que envolvem casos complexos de responsabilidade extra obrigacional, pois admiti-lo “seria levar a uma completa e desrazoável fragmentação da ação no caso de ações populares”;

x)-Mesmo que se considerasse que os alegados atos danosos ou os alegados danos não estejam limitados ao território espanhol (sem conceder), é claro que “o centro da gravidade do conflito” está situado em Espanha, onde se situa o centro de decisão da RÉ e tem lugar a celebração dos contratos contendo as cláusulas visadas pela DECISÃO, bem como a guarda da prova com eles relacionados, sendo, pois, os tribunais espanhóis aqueles que indubitavelmente estão melhor colocados para apreciar o litígio - seja o de acesso aos documentos, seja o hipotético futuro de private enforcement - e para melhor compreender os interesses em jogo;

y)-Como tal, os tribunais espanhóis têm competência exclusiva para apreciar a ação da ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS, mesmo nos termos do artigo 7.º, n.º 2, do REGULAMENTO BRUXELAS I;

z)-A Decisão faz errada interpretação e aplicação ao caso dos autos dos artigos 4.º e 7.º n.º 2 do REGULAMENTO BRUXELAS I, bem como dos artigos 1045.º a 1047.º do CPC, com referência aos artigos 573.º a 576.º do Código Civil e 13.º da LEI DE PRIVATE ENFORCEMENT.

Conclui que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que julgue procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta, absolvendo a ora APELANTE da instância.
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A Apelada ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:

1.–A regra geral de competência prevista no artigo 4.º do Regulamento Bruxelas I, que remete para o domicílio do demandado, concorre com as regras especiais previstas na secção II do capítulo II daquele diploma europeu (artigos 7.º e seguintes), pelo que, em caso de concurso de jurisdições, a escolha cabe ao demandante.
2.–No caso vertente, é aplicável a regra prevista no artigo 7.º(2) do Regulamento, segundo a qual, em matéria extracontratual, as pessoas domiciliadas num Estado-membro podem ser demandadas perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.
3.–O conceito de matéria extracontratual, que o Regulamento Bruxelas I não define, vem sendo interpretado de forma ampla pelo TJUE, não se exigindo, sequer, que esteja em causa um concreto pedido de indemnização, mas apenas que o pedido do demandante envolva a responsabilidade do demandado e não esteja em causa matéria contratual.
4.–No caso sub judice, devem ter-se por verificados ambos os requisitos: o pedido formulado pela Autora envolve a responsabilidade da Ré, porquanto se invoca a violação, por esta, de uma obrigação imposta pelo artigo 101.º do TFUE, vigente em Portugal e fonte de obrigações para as empresas que aqui operam, sendo irrelevante a análise do conteúdo dos contratos celebrados com os consumidores para determinar se aquela disposição foi violada e, em caso afirmativo, em que medida deve a Ré, ora Apelante, ser responsabilizada.
5.–Nas palavras do douto Tribunal a quo, “(...) o pedido envolve a responsabilidade da Ré, uma vez que o seu escopo consiste (...) na obtenção de documentos para efeitos de instauração de uma ação de indemnização por factos ilícitos e esse escopo não é um qualquer fim extra processual. Tem implicações decisivas na configuração da presente ação como uma ação em matéria extracontratual, porquanto um dos seus pressupostos essenciais consiste na alegação de factos e meios de prova “razoavelmente disponíveis e suficientes para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização ou da defesa” – cfr. artigo 12.º(2) ex vi do artigo 13.º(2) da LPE.
6.–A inserção sistemática da presente ação para acesso a meios de prova na LPE, que disciplina o direito a indemnização por infração ao direito da concorrência, concorre, de igual modo, para a conclusão de que está em causa matéria extracontratual.
7.–O foro previsto no artigo 7.º(2) - lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso – é, por um lado, aquele que efetivamente contribui para o reforço da certeza jurídica e para a boa administração da justiça, tendo em conta o estreito vínculo existente entre a jurisdição portuguesa e o presente litígio.
8.–Trata-se, por outro lado, de foro no qual a Ré podia razoavelmente prever vir a ser acionada, em função das consequências das suas práticas anticoncorrenciais, seja no que respeita à ação de indemnização, seja no que respeita a qualquer ação prévia ou subsequente àquela.
9.–Deve ter-se por liminarmente excluído, por assentar em elemento de conexão que o Regulamento nem sequer prevê, o paralelismo que a Ré pretende traçar entre o local da situação dos documentos requeridos na presente ação e os critérios de conexão previstos no artigo 24.º do Regulamento.
10.–É indubitável que a regra especial do artigo 7.º(2) do Regulamento tem plena aplicação a ações coletivas. Não só esta disposição, diferentemente do que sucede no artigo 18.º (que se refere, textualmente, a consumidores), não faz qualquer alusão à qualidade do demandante, como resulta que assim é, sem margem para quaisquer dúvidas, de múltiplas decisões do TJUE.
11.–De igual modo, é absolutamente pacífico na jurisprudência do TJUE que o elemento de conexão previsto no artigo 7.º(2) do Regulamento se refere, simultaneamente, ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na sua origem, podendo o demandado ser acionado, à escolha do demandante, perante os tribunais de um ou de outro local.
12.–É inegável que, residindo os consumidores lesados em Portugal, a materialização do dano ocorreu no país da sua residência. O lugar da materialização do dano é aquele onde o alegado dano se manifesta concretamente.
13.–O TJUE esclareceu que, quando uma decisão da Comissão Europeia identificou uma violação do artigo 101.º do TFUE na origem do alegado dano, que “abrangia todo o mercado do EEE”, “há́ que considerar que o lugar da materialização desse dano, para efeitos da aplicação do artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, se encontra no referido mercado (...)” - Caso C-30/20 Volvo EU:C:2021:604, §31.
14.–A decisão da Comissão Europeia em que se imputam comportamentos anticoncorrenciais à Ré, ora Apelante, refere que “(...) Meliá’s restrictions of active and passive sales covered the whole EEE” (§87). Portugal faz, pois, parte do mercado afetado por aquela prática restritiva da concorrência, pelo que, no que diz respeito aos consumidores residentes em Portugal, é este o local da materialização dos danos.
15.–Como bem salientado pelo douto Tribunal a quo, “a procedência da presente ação depende (...) da alegação de factos e meios de prova “razoavelmente disponíveis e suficientes para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização ou da defesa”, pelo que se justifica que “o critério [leia-se, de determinação da competência internacional] aplicável seja o mesmo que vale para a ação de indemnização”.
16.–Não obstante a Autora ter alegado a existência de danos em Portugal (cfr., e.g., §§30, 43-45, 49, 50 e 53 da petição inicial), é inerente à natureza da presente ação e resultado da assimetria informativa existente entre as partes, que a Autora não tenha, por enquanto, acesso a mais detalhes do que aqueles que já alegou para demonstrar que a conduta anticoncorrencial da Ré causou danos aos consumidores portugueses.
17.–Mais uma vez, porém, a jurisprudência europeia já esclareceu que não é necessário que exista um dano efetivo para que o artigo 7.º(2) seja aplicável, razão pela qual é igualmente desnecessária a alegação de um dano efetivo.
18.–Tudo visto e ponderado, forçoso é concluir que se verificam todos os pressupostos de que depende a afirmação da competência internacional dos tribunais portugueses para julgar a presente ação, ao abrigo do disposto no artigo 7.º(2) do Regulamento Bruxelas I, pelo que bem andou o douto Tribunal a quo ao julgar improcedente a exceção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses arguida pela Ré, ora Apelante.

Conclui que deve o presente recurso de apelação ser considerado improcedente, por não provado, confirmando-se a decisão recorrida.
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II.–QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º/4 e 639º/1 do CPC, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, decidir:
- Se os Tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar e decidir a presente acção.
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III.–FUNDAMENTAÇÃO
Apreciando a excepção da incompetência, o Tribunal recorrido proferiu a seguinte decisão [transcrição]:

10.–Os autos dispõem de todos os elementos necessários para a decisão das exceções dilatórias invocadas pela Ré, uma vez que os sujeitos processuais intervenientes já se pronunciaram sobre as mesmas. O que se fará de seguida, ao abrigo do disposto no artigo 547.º, do CPC.
FALTA DE JURISDIÇÃO DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES NOS TERMOS DO REGULAMENTO BRUXELAS I:

11.–Alega a Ré que os tribunais portugueses carecem de competência internacional para decidir a presente ação, com base, em síntese, nos seguintes fundamentos:

aplica-se ao caso a regra geral do domicílio do réu vertida no REGULAMENTO BRUXELAS I, uma vez que não há lugar à aplicação de nenhuma das regras  especiais derrogatórias da regra geral do domicílio do réu, seja em face da natureza especial da presente ação, seja por se estar perante uma ação coletiva, seja, ainda, por em qualquer caso a IUS OMNIBUS não poder beneficiar das regras previstas nos artigos 18.º e 7.º, n.º 2 do REGULAMENTO BRUXELAS I, únicas que em tese poderiam valer-lhe para conferir competência a este Tribunal.

12.–A Autora respondeu à exceção invocada, nos termos que constam nos artigos 2.º a 74.º da sua resposta, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela sua improcedência.

13.–Cumpre apreciar e decidir.

14.–A competência internacional deve ser aferida, no caso, à luz das normas previstas no Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, alterado pelo Regulamento (UE) n.º 542/2014, de 15.05, e pelo Regulamento (UE) n.º 281/2015, de 25.02 (doravante “Regulamento” ou “Regulamento n.º 1215/2012”). Este diploma aplica-se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição (cf. artigo 1.º, n.º 1, 1.ª parte, do Regulamento), não estando o presente caso incluído em nenhuma das exceções aí previstas no artigo 1.º, n.º 1, 2.ª parte e n.º 2, do Regulamento.

15.–Nos termos deste Regulamento, a regra geral de atribuição de competência plasmada no artigo 4.º, n.º 1 consiste no domicílio do réu. No caso concreto, a aplicação desta regra geral conduz à incompetência internacional deste Tribunal, uma vez que a Ré tem sede em Espanha, facto que não é controvertido.

16.–Contudo, a referida regra sofre várias derrogações, em particular, a seguinte: em matéria extracontratual, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso (artigo 7.º, 2), do Regulamento).

17.–Há outras derrogações. Contudo, desde já se têm por afastadas por falta de total afinidade com o caso ou, quanto ao artigo 18.º do Regulamento, porque esta norma aplica-se apenas a ações instauradas por consumidores. Neste sentido, esclareceu o Tribunal de Justiça no acórdão Henkel o seguinte: “a uma pessoa colectiva que age na qualidade de cessionário dos direitos de um consumidor final privado, sem ela própria ser parte num contrato celebrado entre um profissional e um particular, não pode ser reconhecida a qualidade de consumidor na acepção da Convenção de Bruxelas, de modo que ela não pode invocar os artigos 13.° a 15.° desta convenção. Ora, esta interpretação deve igualmente valer no que concerne a uma associação de protecção dos consumidores tal como a VKI, que intentou uma acção de interesse colectivo por conta destes” - § 33.

18.–No que respeita ao citado artigo 7.º, 2) do Regulamento considera a Ré que esta norma não é aplicável ao caso por três razões: em primeiro lugar, porque a presente ação é uma ação especial para acesso a documentos e não configura uma ação de responsabilidade extracontratual; em segundo lugar, nenhuma das regras especiais enunciadas nos artigos 18.º e 7.º, 2), ambos do REGULAMENTO BRUXELAS I se aplicam a ações de tutela coletiva; em terceiro lugar, não é aplicável a Regra Especial do artigo 7.º, 2), do REGULAMENTO BRUXELAS I. Por fim, invoca a falta de jurisdição dos tribunais portugueses quanto a hipotéticos danos verificados fora do território nacional.

Analisemos cada um destes argumentos em separado e pela sua análise ir-se-á determinar se é ou não aplicável ao caso a derrogação plasmada no citado artigo 7.º 2) do Regulamento.

Da não aplicabilidade das Regras Especiais do REGULAMENTO BRUXELAS I a Ações Especiais como aquela aqui em causa:

20.–Extraem-se da jurisprudência do Tribunal de Justiça alguns parâmetros essenciais para a decisão da questão suscitada pela Ré.

21.–Assim, em primeiro lugar, “a regra de competência especial em matéria extracontratual deve ser objeto de uma interpretação autónoma, referindo-se ao sistema e aos objetivos do regulamento de que faz parte”1 – § 23, acórdão do TJ Gtflix Tv contra DR, de 21 de dezembro de 2021, processo C-251/20.

22.–Nos mesmos termos se pronunciou o TJ no acórdão HRVATSKE ŠUME d.o.o., Zagreb contra BP EUROPA SE de 09 de dezembro de 2021, processo C-242/20, a propósito da norma equivalente no Regulamento n.º 44/2001, aí se esclarecendo que é assim com vista a assegurar a aplicação uniforme do diploma em todos os Estados-Membros. Mais acrescentou que: “Esta exigência, que vale nomeadamente para a delimitação do âmbito de aplicação respetivo destas duas regras, implica que os conceitos de «matéria contratual» e de «matéria extracontratual» não possam ser entendidos no sentido de que remetem para a qualificação que a lei nacional aplicável efetua da relação jurídica em causa no órgão jurisdicional nacional” - § 40.

23.–Esta jurisprudência é aplicável ao artigo 7.º, 2) do Regulamento n.º 1215/2012, pois, conforme o Tribunal de Justiça recordou no acórdão Verein für Konsumenteninformation contra Volkswagen AG, de 09 de julho de 2020, processo C-343/19, “de acordo com o seu considerando 34, o Regulamento n.º 1215/2012 revoga e substitui o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), que, por sua vez, substituiu a Convenção de 27 de setembro de 1968  Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e  Comercial (JO 1972, L 299, p. 32), conforme alterada pelas sucessivas convenções relativas à adesão dos novos Estados-Membros a essa Convenção (a seguir «Convenção de Bruxelas»), a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça às disposições destes instrumentos jurídicos vale também para o Regulamento  n.º 1215/2012 quando essas disposições possam ser qualificadas de  «equivalentes» (Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor-Trans, C-451/18,  EU:C:2019:635, n.º 23 e jurisprudência referida). Ora, é o que acontece com o artigo 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas e do Regulamento n.º 44/2001, por um lado, e com o artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, por outro” - § 22.

24.–Por conseguinte, revela-se essencial para o caso entender qual o significado que o conceito “matéria extracontratual” assume no âmbito do sistema e dos objetivos do Regulamento n.º 1215/2012.

25.–Neste plano, resulta de jurisprudência constante do TJ que o “conceito de «matéria extracontratual», na aceção do artigo 5.º, ponto 3, do Regulamento n.º 44/2001, abrange qualquer pedido destinado a envolver a responsabilidade de um demandado e que não esteja relacionado com a «matéria contratual», na aceção do artigo 5.º, ponto 1, alínea a), deste regulamento” - § 42 do acórdão HRVATSKE ŠUME d.o.o., Zagreb contra BP EUROPA SE de 09 de dezembro de 2021, processo C-242/20.

26.–Extrai-se da jurisprudência precedente que o conceito de “matéria extracontratual” é um conceito bastante amplo, não sendo exclusivo de ações de indemnização, e que está dependente apenas e só da verificação de dois requisitos: por um lado, o pedido tem de envolver a responsabilidade de um demandado; e, por outro lado, não pode estar relacionado com “matéria contratual”, ou seja, não pode estar relacionado com qualquer “obrigação livremente consentida por uma pessoa relativamente a outra”2.

27.–No acórdão Wikingerhof GmbH & Co. KG contra Booking.com BV, de 24 de novembro de 2020, processo C-59/19, o TJ esclareceu melhor este segundo requisito, referindo que “quando o demandante invoca, na sua petição, as regras da responsabilidade extracontratual, a saber, a violação de uma obrigação imposta por lei, e não se afigura indispensável examinar o conteúdo do contrato celebrado com o demandado para apreciar o caráter lícito ou ilícito do comportamento censurado a este último, uma vez que tal obrigação se impõe ao demandado independentemente desse contrato, o fundamento da ação enquadra-se na matéria extracontratual, na aceção do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012” - § 33.

28.–Transpondo os parâmetros expostos para o caso concreto conclui-se pela verificação dos dois requisitos referidos.

29.–Assim, quanto ao segundo requisito (o pedido não pode estar relacionado com “matéria contratual”), conforme a Autora esclarece, o seu objetivo consiste na obtenção de documentos tendo em vista aferir da verificação dos requisitos necessários para uma eventual instauração de uma ação de indemnização por danos provocados a possíveis consumidores finais por uma prática restritiva da concorrência pela qual a Ré foi condenada. Isto significa que a presente ação não se sustenta nem em quaisquer contratos celebrados entre a Autora e a Ré, nem é indispensável examinar o conteúdo de eventuais contratos celebrados pela Ré com potenciais consumidores finais lesados para apreciar o caráter lícito ou ilícito do comportamento imputado à Ré, que se sustenta, conforme referido, numa prática restritiva da concorrência.

30.–Quanto ao segundo requisito (o pedido tem de envolver a responsabilidade de um demandado) considera-se que o mesmo também se mostra verificado, pois o pedido envolve a responsabilidade da Ré, uma vez que o seu escopo consiste, conforme referido, na obtenção de documentos para efeitos de instauração de  uma ação de indemnização por factos ilícitos e esse escopo não é um qualquer  fim extra processual. Tem implicações decisivas na configuração da presente  ação como uma ação em matéria extracontratual, porquanto um dos seus  pressupostos essenciais consiste na alegação de factos e meios de prova “razoavelmente disponíveis e suficientes para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização ou da defesa” – cf. artigo 12.º, n.º 2, ex vi artigo 13.º, n.º 2, ambos da Lei n.º 23/2018, de 05.06.

31.–Em perfeita coerência com o exposto veja-se que o regime desta ação não resulta apenas dos artigos 573.º a 576.º do Código Civil (CC), mas é complementado, de forma determinante, pela citada Lei n.º 23/2018, que regula o direito a indemnização por infração ao direito da concorrência. Por conseguinte, é também a inserção sistemática deste tipo de ação neste regime especial que demonstra, de forma particularmente impressiva, que a presente ação visa, em última instância, a responsabilidade da Ré.

32.–É importante que se tenha presente que isto não é exclusivo da lei nacional, pois a Lei n.º 23/2018 transpôs a Diretiva 2014/104/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia. Ora, resulta dos considerandos 14 a 33 da Diretiva e do Capítulo II que a obtenção de meios de prova para efeitos de sustentação do pedido de indemnização faz parte integrante do regime especial que se pretendeu instituir em matéria de responsabilidade extracontratual por práticas restritivas da concorrência. E este fazer parte inclui não só o pressuposto sistemático referido, no sentido de que este tema está previsto no mesmo diploma, mas mais do que isso: significa que esse mecanismo é considerado, na lógica da Diretiva e, consequentemente, também na lógica da lei nacional, como necessário para assegurar o exercício efetivo do direito à reparação de danos causados por infrações ao direito da concorrência da União (cf. considerando 4 e artigo 4.º da Diretiva).

33.–A referência aos regimes legais indicados, nos quais se insere o pedido  efetuado, é relevante, porque, conforme o TJ tem entendido, para efeitos da interpretação de uma disposição do direito da União deve-se ter em conta “não  só os termos desta mas igualmente o contexto em que esta se inscreve e os objetivos prosseguidos pela legislação de que aquela faz parte” - § 24, acórdão do TJ BT contra Seguros Catalana Occidente, EB, de 09 de dezembro de 2021, processo C-708/20.

34.–Os parâmetros assinalados também são demonstrativos de que a conclusão alcançada se mostra conforme com a ratio legis das soluções consagradas no Regulamento, que surge enunciada nos considerandos 15 e 16 do diploma nos seguintes termos: “As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição. (16) O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. Este elemento é especialmente importante nos litígios relativos a obrigações extracontratuais decorrentes de violações da privacidade e de direitos de personalidade, incluindo a difamação”.

35.–Estes enunciados têm sido desenvolvidos e melhor concretizados pelo TJ, que tem esclarecido a propósito da solução consagrada no artigo 7.º, 2) do  Regulamento que “a regra de competência especial que esta disposição prevê por derrogação da regra geral da competência dos órgãos jurisdicionais do  domicílio do demandado estabelecida no artigo 4.° desse regulamento  baseia-se na existência de um nexo particularmente estreito entre o litígio e os  tribunais do lugar onde ocorreu o facto danoso, suscetível de justificar uma  atribuição de competência a estes últimos por razões de boa administração da  justiça e de organização útil do processo (…) Com efeito, em matéria  extracontratual, o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso é normalmente o mais apto para decidir, nomeadamente por razões de proximidade do litígio e de facilidade de administração das provas” - § 29 e 30 do acórdão ZK, contra insolvência da BMA Nederland BV, de 10.03.2022, processo C-498/20.

36.–A interpretação que se faz do artigo 7.º, (2), do Regulamento nos termos enunciados é a mais compatível com estes desideratos pelas razões que se passam a expor.

37.–Assim: levando em conta que a presente ação visa a eventual instauração subsequente de uma ação de indemnização para reparação de danos por práticas restritivas da concorrência; considerando, consequentemente, que um dos seus pressupostos decisivos consiste na alegação de factos e meios de prova “razoavelmente disponíveis e suficientes para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização ou da defesa”; considerando também que o seu regime está incluído no regime especial previsto para as ações de indemnização por práticas restritivas da concorrência; e considerando ainda que pedidos similares àquele que estão em causa nos autos podiam ser efetuados na própria ação de indemnização (cf. artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2018) é de concluir que a interpretação mais linear, mais expectável e que, por isso, é garante de um maior grau de certeza do artigo 7.º, alínea 2), do Regulamento é no sentido de que ações deste tipo estão incluídas nessa norma.

38.–Por outro lado, um dos pressupostos decisivos da presente ação consiste conforme referido na alegação de factos e meios de prova “razoavelmente disponíveis e suficientes para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização ou da defesa”, o que dá satisfação às referidas razões de proximidade do litígio e de facilidade de administração das provas.

39.–Em sentido contrário ao exposto, alega a Ré que “conforme resulta da petição inicial, os documentos a que a AUTORA pretende ter acesso, nos casos em que existem, encontram-se em Espanha, à guarda de uma sociedade de direito espanhol, de acordo com as regras em vigor naquele país”. Este argumento não é procedente, pois os documentos em questão são coisas móveis. Por conseguinte, o facto de se encontrarem em Espanha ou em qualquer outro país é irrelevante. Quanto à alusão às regras em vigor em Espanha relativas à guarda de documentos não está em causa a aplicação dessas regras, nem a causa de pedir versa sobre a guarda de tais documentos.

40.–Alega ainda a Ré que a “situação aqui em causa apresenta mesma algumas similitudes com aquelas reguladas no artigo 24.º do REGULAMENTO BRUXELAS I, respeitantes a casos de competência exclusiva dos tribunais da situação dos prédios ou da sede das sociedades e associações, para conhecer de ações respeitantes a direitos reais e de ações respeitantes a temas societários, respetivamente. Tal como aí o critério determinante da competência é o local da situação dos bens e da sede social, aqui o critério determinante deve ser o do local da situação dos documentos, sendo indubitavelmente os tribunais da sede da RÉ aqueles que melhor estão colocados para apreciar os pedidos formulados”. Também aqui a Ré não tem razão, porque a particularidade das ações respeitantes a direitos reais consiste no facto incontornável dos prédios serem coisas imóveis. Quanto às ações respeitantes a temas societários, a particularidade reside na circunstância de dizerem respeito a questões internas das próprias sociedades e associações.

41.–Por conseguinte, improcede também este fundamento invocado pela Ré.

Da não aplicabilidade das Regras Especiais do REGULAMENTO BRUXELAS I a Ações Coletivas:

42.–Também aqui se considera que a Ré não tem razão, pois não se consegue retirar do artigo 7.º, 2) do Regulamento, nem do artigo 1.º, nenhum  fundamento para excluir as ações coletivas. Se no que respeita à aplicação do  artigo 18.º, n.º 1, do diploma, o argumento em análise se revela decisivo, uma vez que a norma faz expressa menção a consumidor, já o artigo 7.º, 2) não faz a mínima referência ao sujeito.

43.–Isto mesmo resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, designadamente no acórdão Henkel, de 01 de outubro de 2002, processo C-167/00, conforme salienta a Ré.

44.–Neste aresto foi submetida ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial: “O pedido de cessação de utilização de cláusulas gerais de contratos ilícitas ou contrárias aos bons costumes, previsto pelo § 28 da [KSchG], formulado por uma organização de consumidores ao abrigo ao abrigo do § 29 da mesma lei e com referência ao artigo 7.°, n.° 2, da Directiva 93/13/CEE [...], constitui uma acção em matéria extracontratual que pode ser intentada no órgão jurisdicional investido de competência especial ao abrigo do artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas [...]?”.

45.–A conformação do pedido, em particular a identidade do demandante, é reveladora de que se tratava de uma ação coletiva. Ora, a resposta do Tribunal foi afirmativa, daqui resultando, sem qualquer dúvida, que as ações coletivas estavam incluídas no âmbito de previsão do citado artigo 5.º, ponto 3, da Convenção de Bruxelas.

46.–Esta jurisprudência é aplicável ao artigo 7.º, 2) do Regulamento n.º 1215/2012, pois é equivalente ao artigo 5.º, ponto 3, da Convenção de Bruxelas.

47.–A Ré faz alusão a literatura académica e bem assim às alegações do Advogado Geral Bobek na sua opinião em Schrems v. FACEBOOK IRELAND e a um Estudo da Direção Geral para as Políticas Internacionais da UE3. Contudo, são argumentos de autoridade que falecem perante a maior autoridade que deve ser reconhecida à referida jurisprudência do Tribunal de Justiça. Para além disso, o facto da aplicação do artigo 7.º, 2) a ações coletivas ser problemática, designadamente por ser suscetível de conduzir a processos paralelos, conforme salienta o referido estudo, não significa que o diploma não seja aplicável a este tipo de ações.

48.–Por conseguinte, improcede também este fundamento invocado pela Ré.

Da não aplicabilidade da Regra Especial do artigo 7.º, n.º 2, do
REGULAMENTO BRUXELAS I:
49.–A Ré considera que não é aplicável a regra especial consagrada no artigo 7.º, 2), do Regulamento n.º 1215/2012, por entender, para além das razões já enunciadas e analisadas, que o local onde alegadamente ocorreu o facto  danoso foi em Espanha.

50.–Vejamos.

51.–Segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça “a expressão «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso» abrange simultaneamente o lugar do evento causal e o da materialização do dano, sendo cada um deles suscetível,    fornecer  uma    indicação particularmente útil no que diz respeito à prova e à organização do processo” - § 27 acórdão do TJ de 21 de dezembro de 2021, processo C-251/20.

52.–Mais resulta da jurisprudência do TJ que “o lugar da materialização do dano é aquele onde o alegado dano se manifesta concretamente” e que quanto “ao  dano que consiste em acréscimo de custos pagos em razão de um preço  artificialmente elevado”, como o de um bem que foi objeto de um cartel, “esse lugar só é identificável para cada alegada vítima individualmente considerada e, em princípio, encontra-se na sede social desta” – § 52 do acórdão Cartel Damage Claims (CDC) Hydrogen Peroxide SA, de 21 de maio de 2015, processo C-352/13.

53.–Esclarece o TJ, no mesmo aresto, que o “referido lugar apresenta todas as garantias com vista à organização útil de um eventual processo, considerando que a análise de um pedido de indemnização de um dano alegadamente causado a uma determinada empresa por um cartel ilícito que já foi declarado, de forma vinculativa, pela Comissão depende, no essencial, de elementos próprios da situação dessa empresa. Nestas circunstâncias, o órgão jurisdicional do lugar onde esta tem a sua sede social é, de forma evidente, o que está melhor colocado para conhecer desse pedido” - § 53.

54.–Sobre esta matéria esclareceu ainda o TJ que “quando o mercado afetado pelo comportamento anticoncorrencial se localiza no Estado-Membro em cujo território o alegado dano supostamente ocorreu, há que considerar que o lugar da materialização do dano, para efeitos da aplicação do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, se localiza nesse Estado-Membro”, acrescentando que esta “solução corresponde, com efeito, aos objetivos de proximidade e de previsibilidade das regras de competência, na medida em que, por um lado, os tribunais do Estado-Membro no qual se situa o mercado afetado são os mais bem colocados para apreciar essas ações de indemnização e, por outro, um operador económico que se dedica a comportamentos anticoncorrenciais pode razoavelmente esperar ser demandado nos tribunais do lugar onde os seus comportamentos falsearam as regras de uma sã concorrência” e que “esta determinação do lugar da materialização do dano está também em conformidade com as exigências de coerência previstas no considerando 7 do Regulamento (CE) n.o 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II) (JO 2007, L 199, p. 40), na medida em que, segundo o artigo 6.o, n.o 3, alínea a), deste regulamento, a lei aplicável às ações de responsabilidade civil relacionadas com uma restrição de concorrência é a lei do país em que o mercado seja afetado ou seja suscetível de ser afetado” - § 33 a 35 do acórdão Tibor-Trans Fuvarozó és Kereskedelmi Kft contra DAF Trucks NV, de 29 de junho de 2019, processo C-451/18.

55.–Não há razões para divergir da jurisprudência citada, que é aplicável, por identidade de razões, aos casos de restrições verticais e aos casos em que os potenciais lesados são pessoas singulares.

56.–A sua aplicação ao caso concreto conduz à afirmação da competência internacional do presente Tribunal, por duas razões.

57.–Em primeiro lugar, consta na decisão da Comissão Europeia o seguinte: “Taking into account these factors and the fact that Meliá’s restrictions of active and passive sales covered the whole EEA” (87). Isto significa que Portugal faz parte do mercado afetado pela prática restritiva da concorrência em causa.

58.–Em segundo lugar, o escopo da ação é, conforme referido, o apuramento de elementos para efeitos de uma eventual instauração de uma ação de indemnização tendo em vista a reparação dos danos sofridos por consumidores portugueses em virtude do acréscimo de custo dos serviços prestados pela Ré gerado pela prática restritiva da concorrência pela qual foi condenada pela Comissão Europeia. Por conseguinte, à luz da jurisprudência citada, o dano materializou-se em Portugal, por ser aqui que residem os potenciais lesados.

59.–É certo que não está em causa o pedido de indemnização. Contudo, a procedência da presente ação depende, conforme referido, da alegação de factos e meios de prova “razoavelmente disponíveis e suficientes para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização ou da defesa”. Em consequência, justifica-se que o critério aplicável seja o mesmo que vale para a ação de indemnização.

60.–Mas analisemos os argumentos invocados pela Ré a fim de verificar se os mesmos contariam as conclusões alcançadas.

61.–Assim, a Ré começa por alegar que resulta do modo como a AUTORA configura a presente ação que o local onde alegadamente ocorreu o facto danoso foi em Espanha, i.e., onde a MELIÁ (e a sua subsidiária Apartotel, S.A.) tem a sua sede e o seu estabelecimento, onde conduz a sua atividade e toma decisões, designadamente aquelas relativas aos contratos visados na DECISÃO da Comissão Europeia, todos eles celebrados em Espanha.

62.–Este argumento não afasta as conclusões alcançadas, pois, conforme resulta das asserções supra exaradas, o facto danoso abrange simultaneamente o lugar do evento causal e o da materialização do dano. Podendo os factos invocados pela Ré serem relevantes no que respeita ao evento causal já não têm qualquer implicação relativamente à materialização do dano.

63.–Alega ainda a Ré que jurisprudência firmada no acórdão Henkel e no caso J. Sales Sinués sugere que, no que diz respeito aos pedidos inibitórios intentados por organizações de consumidores, em que se faz apelo às regras do artigo 7.º, n.º 2, a conexão mais relevante continua a ser com o domicílio do réu.

64.–Este argumento também não é procedente, porque, independentemente do teor da referida jurisprudência, não estamos perante um pedido inibitório. É verdade que também não estamos, conforme referido, perante um pedido de indemnização. Contudo, pelas razões já explicitadas, a presente ação deve seguir, no que respeita à determinação do lugar de materialização do dano, os critérios aplicáveis às ações de indemnização por práticas restritivas da concorrência porque partilha os pressupostos desta ação, ainda que em termos de plausibilidade.

65.–Invoca ainda a Ré a ratio legis do Regulamento, designadamente os transcritos considerandos 15 e 16, esclarecendo que “deve ser feita uma interpretação atualista do artigo 7.º, n.º 2, do REGULAMENTO BRUXELAS I de acordo com os seus Considerandos 15 e 16, os quais introduzem novos elementos de interpretação das regras de competência na UE. Desde logo a importância de assegurar que a competência deve apresentar um elevado grau de certeza para os litigantes na UE, de uma forma geral. Evitando que o requerido possa ser demandado em tribunais de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele, como manifestamente ocorre no presente caso, em que a RÉ se veria inesperadamente demandada em Portugal, por factos ocorridos em Espanha”.

66.–Este argumento também não é procedente, pois a interpretação alcançada é a mais previsível, à luz da jurisprudência citada.

67.–Alega ainda a Ré que a AUTORA “não estando sequer alegado em termos definitivos que a DECISÃO causou danos a consumidores domiciliados em Portugal, não estão verificados os pressupostos para aplicação da regra especial do artigo 7.º, n.º 2 do REGULAMENTO BRUXELAS I”.

68.–Este argumento também não é procedente, porque a presente ação exige a demonstração da plausibilidade da existência de danos.

69.–Invoca ainda a Ré a jurisprudência do Acórdão Kronhofer, segundo a qual: “O artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, com a redacção que lhe foi dada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica, pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia, deve ser interpretado no sentido de que a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» não se refere ao lugar do domicílio do requerente, no qual se localiza «o centro do seu património», pelo simples motivo de aí ter sofrido um prejuízo financeiro resultante da perda de elementos do seu património ocorrida e sofrida noutro Estado contratante”. Mais acrescenta que “muito embora a AUTORA não apresente, como lhe competia, uma teoria do dano minimamente clara e fundamentada, se bem entendemos a sua tese, os hipotéticos – mas inexistentes danos - teriam que ter epicentro num país que não Portugal, onde por hipótese tivesse sido vedado o acesso a serviços por aplicação das cláusulas visadas na DECISÃO”.

70.–Este argumento também não é procedente, porquanto este aresto não diz especificamente respeito a práticas restritivas da concorrência ao contrário da jurisprudência inicialmente indicada.

71.–Alega ainda a Ré, citando doutrina, que na linha dos considerandos 15 e 16 supra citados, o artigo 7.º, n.º 2, do REGULAMENTO BRUXELAS I não deve ser “interpretado de forma extensiva de forma a incluir os tribunais do local ou dos locais em que hipoteticamente se poderiam ter materializado as consequências de determinado evento, deve antes ser interpretado como dizendo respeito ao local onde há uma maior conexão entre o tribunal e o facto danoso”. Mais acrescente que “um facto pode ter diversas consequências remotas e inadvertidas em várias jurisdições. Se aos autores fosse permitido intentar ações em qualquer uma dessas jurisdições (como a IUS OMNIBUS pretende fazer no caso concreto), as partes não teriam qualquer certeza jurídica. Nesse caso, os réus correriam o risco de serem demandados pelo mesmo facto em múltiplas jurisdições, algumas das quais poderiam nem ter qualquer conexão com qualquer facto objetivo, além da alegação do autor de que a consequência se poderá ter materializado naquela jurisdição. Este tipo de interpretação permitiria aos autores procederem a um verdadeiro “forum shopping”, o que iria seriamente comprometer a certeza jurídica em violação do Considerando do REGULAMENTO BRUXELAS I. Iria também comprometer a ratio do artigo 7.º, n.º 2, do REGULAMENTO BRUXELAS I, a qual, conforme já confirmado pelo TJUE, não tem como objetivo a proteção da parte mais fraca - isto a admitir que a IUS OMNIBUS carecesse de tal proteção, o que já vimos não ser de todo o caso -, tendo antes e apenas como objetivo a eficácia na administração da justiça”.

72.–Estes argumentos não são procedentes, pois resulta da jurisprudência do TJ, conforme referido: que o conceito de facto danoso inclui a materialização do dano; que esta materialização ocorre, no caso de sobre custo provocado por práticas restritivas da concorrência, no local onde o potencial lesado tem a sua residência; que quando o mercado  afetado pelo comportamento anticoncorrencial se localiza no Estado-Membro em cujo território o alegado dano supostamente ocorreu, há que considerar que o lugar da materialização do dano, para efeitos da aplicação do artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, se localiza nesse Estado-Membro; e que esta solução respeita a ratio legis do Regulamento. Adicionalmente, o facto de estarem causa hipotéticos danos não dá razão à Ré, pois a competência é sempre definida em função da causa de pedir nos termos em que é alegada pelo autor. O receio de a partir desta alegação se proceder a um verdadeiro “forum shopping” é um argumento falacioso, porque o autor tem de demonstrar os danos ou, no caso, a plausibilidade.

73.–Alega ainda a Ré que “os factos danosos que a IUS OMNIBUS invoca ocorreram necessariamente em Espanha. Conforme reconhecido pela própria AUTORA, é em Espanha que a RÉ tem a sua sede; Sendo também nesse país que exerce a sua atividade, designadamente e para o caso que aqui nos ocupa, através da celebração dos 4.216 contratos visados na DECISÃO, todos eles celebrados em Espanha. É também em Espanha que a RÉ guarda os documentos e informação a que a AUTORA pretende aceder (isto nos casos em que existe), de acordo com as regras e legislação locais que regem a sua atividade. De resto, a RÉ pode desde já adiantar que nenhum dos 140 hotéis referidos na DECISÃO, abrangidos pelos 4.216 contratos contendo a cláusula considerada restritiva da concorrência, se encontra sequer localizado em Portugal. Sendo também certo que as entidades mencionadas pela própria AUTORA como contrapartes da ora RÉ, no caso “Kuoni”, “REWE Group”, “Thomas Cook” e “TUI”, são todas elas estrangeiras”. Na mesma linha, conclui que “Mesmo que se considerasse que os alegados atos danosos ou os alegados danos não estejam limitados ao território espanhol (sem conceder), é claro que “o centro da gravidade do conflito” está situado em Espanha, onde se situa o centro de decisão da Ré e tem lugar a celebração dos contratos contendo as cláusulas visadas pela DECISÃO, bem como a guarda da prova com eles relacionados. Os tribunais espanhóis estão indubitavelmente melhor colocados para apreciar o litígio -seja o de acesso aos documentos, seja o de private enforcement - e para melhor compreender os interesses em jogo”.

74.–Nenhum destes argumentos é procedente. Assim, em primeiro lugar, a Ré alega que os factos danosos ocorreram em Espanha. Contudo, não indica o conceito de “factos danosos” que está a pressupor. Assumindo-se que esteja a referir-se ao evento causal já se esclareceu que este não é o único fator de conexão, pelo que o facto da Ré ter a sua sede em Espanha, o facto de ser aí que exerce a sua atividade, o facto de ter sido aí que celebrou os contratos e o facto de ser aí que guarda os documentos e informação são irrelevantes. O mesmo se aplica ao facto das contrapartes da Ré serem todas elas estrangeiras. Quanto ao facto de nenhum dos hotéis envolvido na prática restritiva da concorrência estar localizado em Espanha isso não significa, à luz da jurisprudência citada e da Decisão da Comissão Europeia, na passagem transcrita, que o dano não se tenha materializado em Portugal, por ser aqui que residem os consumidores potencialmente afetados que a Autora pretende representar.

75.–Por fim, alega a Ré que mesmo que os “alegados atos danosos ou os supostos danos não estivessem limitados ao território espanhol, os tribunais portugueses continuariam a não ter competência internacional nos termos do artigo 7.º, n.º2, do REGULAMENTO BRUXELAS I. Isto deve-se – conforme indica a doutrina – à “inutilidade das regras de competência em matéria de responsabilidade extracontratual aplicada a ações populares em resultado de casos complexos de responsabilidade extra obrigacional” e mais especificamente “à dificuldade em aplicar as regras de competência em matérias de responsabilidade extra obrigacional numa situação envolvendo uma multiplicidade de factos que dão origem a danos ou a locais de produção de dano”. Com efeito, “a extensa natureza dos danos resulta, em muitos casos, das denominadas “violações” complexas, vistas como aquelas para as quais há uma dissociação geográfica dos seus elementos materiais. Isto porque o local do ato danoso e o local onde ocorre o dano não coincide (...) ou porque cada um dos elementos (o ato que causou o dano ou o dano) consiste num conjunto de factos que se desenrolaram em diversos Estados”. Conforme a doutrina indica acertadamente, a jurisprudência tradicional do TJUE (como o caso Shevill) no que se refere a uma multiplicidade de locais do dano, não se pode transpor para as ações populares que envolvem casos complexos de responsabilidade extra obrigacional, pois admiti-lo “seria levar a uma completa e desrazoável fragmentação da ação no caso de ações populares”.

76.–Estes argumentos também são improcedentes, porque se bem se compreende a argumentação da Ré estão em causa casos cujo ato que causou o dano ou o próprio dano se consubstanciou numa multiplicidade de factos que se desenrolaram em diversos Estados tendo por referência o mesmo demandante popular. Não é o caso, pois a Autora apenas pretende representar os danos alegadamente sofridos por consumidores portugueses.

77.–Em consequências, improcedem os argumentos invocados pela Ré.
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Da falta de jurisdição dos tribunais portugueses quanto a hipotéticos danos verificados fora do território nacional:
78.–Por fim, alega a Ré parecer ser pacífico que os tribunais portugueses sempre careceriam de jurisdição para apreciar pedidos de indemnização por hipotéticos danos sofridos por consumidores não residentes em Portugal em resultado dos factos objeto da DECISÃO.
79.–É efetivamente pacífico tal entendimento conforme resulta dos pedidos efetuados e a Autora esclarece na sua resposta.
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80.–Por todas as razões expostas, julga-se improcedente a exceção de incompetência internacional invocada pela Ré.
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IV–MÉRITO DO RECURSO

Discute-se nos autos a questão da competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar e julgar a presente acção, arguindo a ré/apelante a excepção da incompetência absoluta do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, considerando ser aplicável ao caso o critério geral do domicílio do réu previsto no art. 4º/1 do Regulamento Bruxelas I e sustentando a inaplicabilidade das regras especiais derrogatórias daquela regra geral, designadamente dos artigos 7º/2 e 18º.

Para tanto, alega sob as alíneas g) a n) das conclusões do recurso que:

g)-Resulta da primeira e última partes do artigo 13.º da LEI DE PRIVATE ENFORCEMENT que a acção especial para aceder a meios de prova consagrada nesse regime jurídico é, na sua essência, uma acção especial para apresentação de documentos, a qual tem sede legal adjetiva nos artigos 1045.º a 1047.º do CPC e substantiva nos artigos 573.º a 576.º do Código Civil;

h)-Ora, o processo especial previsto nos artigos 1045.º a 1047.º do CPC configura, pois, uma verdadeira ação judicial autónoma, que visa tutelar interesses próprios, sendo dotada de uma tramitação especifica, não se confundindo com uma mera diligência processual, nem muito menos com uma providência cautelar, dependente de uma qualquer ação principal;

i)-Daí que, salvo melhor opinião, não faça qualquer sentido recorrer à futura e incerta acção de indemnização - cujos contornos são por isso mesmo, nesta fase, completamente desconhecidos - para, desconsiderando a natureza especial da presente ação, atribuir aos tribunais portugueses a jurisdição de uma ação que de outro modo caberia aos tribunais espanhóis, que são indubitavelmente aqueles melhor colocados para apreciar as questões aqui em causa;

j)-Tendo a ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS configurado a presente ação como uma ação coletiva, não tem lugar a aplicação da regra especial do artigo 7.º, n.º 2 do REGULAMENTO BRUXELAS I, valendo a regra geral do domicílio do réu, pelo que estamos, uma vez mais, perante um caso de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, excepção dilatória que dita a necessária absolvição da MELIÁ da instância;

K)-Mesmo que a regra especial do artigo 7.º, n.º 2, do REGULAMENTO BRUXELAS I fosse aqui aplicável, ela conduziria, ainda assim, à incompetência internacional dos tribunais portugueses, por no caso os elementos de conexão relevantes apontarem todos na direção do domicílio da demandada, ou seja Espanha;

l)-Com efeito, resulta do modo como a AUTORA configura a presente ação que o local onde ocorreu o facto alegadamente danoso foi Espanha, i.e., onde a MELIÁ (e a sua subsidiária Apartotel, S.A.) tem a sua sede e o seu estabelecimento, onde conduz a sua atividade e toma decisões, designadamente aquelas relativas aos contratos visados na Decisão da Comissão Europeia, todos eles celebrados em Espanha;

m)-E não se diga que, conforme erradamente conclui o Tribunal a quo, no caso em apreço a AUTORA alega que os danos resultantes do facto ilícito praticado em Espanha se materializaram em Portugal, para desse modo retirar a competência aos tribunais espanhóis e atribuí-la aos portugueses;

n)-Desde logo porque não foi isso que a AUTORA alegou, tendo antes apenas e só admitido que tal pudesse ter acontecido, com a agravante de nem sequer ter apresentado qualquer fundamentação que permitisse concluir pela plausibilidade de tal hipótese, de tal modo que, depois de confirmada a sua jurisdição, o Tribunal a quo imediatamente a convidou a suprir essa insuficiência, através de aperfeiçoamento da petição inicial;

Concluindo a recorrente que o centro de gravidade do conflito está situado em Espanha (onde se situa o centro de decisão da ré, tiveram lugar a celebração dos contratos contendo as cláusulas visadas pela decisão, bem como a guarda da prova com eles relacionados), considerando serem os tribunais espanhóis exclusivamente competentes para apreciar esta acção, nos termos do art. 7º/2 do Regulamento Bruxelas I.

Pugnando, assim, pela revogação da decisão recorrida, por ter feito errada interpretação e aplicação ao caso dos arts 4º e 7º/2 do citado regulamento, bem como dos arts 1045º a 1047º do CPC, com referência aos artigos 573º a 576º do C. Civil e 13º da Lei de Private Enforcement.

Em sentido oposto pronuncia-se a autora/apelada, defendendo, em síntese que (remetendo-se para a numeração das respectivas conclusões das contra-alegações):

1.–A regra geral de competência prevista no artigo 4.º do Regulamento Bruxelas I, que remete para o domicílio do demandado, concorre com as regras especiais previstas na secção II do capítulo II daquele diploma europeu (artigos 7.º e seguintes), pelo que, em caso de concurso de jurisdições, a escolha cabe ao demandante.

2.– No caso vertente, é aplicável a regra prevista no artigo 7.º(2) do Regulamento, segundo a qual, em matéria extracontratual, as pessoas domiciliadas num Estado-membro podem ser demandadas perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.

3.–O conceito de matéria extracontratual, que o Regulamento Bruxelas I não define, vem sendo interpretado de forma ampla pelo TJUE, não se exigindo, sequer, que esteja em causa um concreto pedido de indemnização, mas apenas que o pedido do demandante envolva a responsabilidade do demandado e não esteja em causa matéria contratual.

4.–No caso sub judice, devem ter-se por verificados ambos os requisitos: o pedido formulado pela Autora envolve a responsabilidade da Ré, porquanto se invoca a violação, por esta, de uma obrigação imposta pelo artigo 101.º do TFUE, vigente em Portugal e fonte de obrigações para as empresas que aqui operam, sendo irrelevante a análise do conteúdo dos contratos celebrados com os consumidores para determinar se aquela disposição foi violada e, em caso afirmativo, em que medida deve a Ré, ora Apelante, ser responsabilizada.

6.–A inserção sistemática da presente ação para acesso a meios de prova na LPE, que disciplina o direito a indemnização por infração ao direito da concorrência, concorre, de igual modo, para a conclusão de que está em causa matéria extracontratual.

7.–O foro previsto no artigo 7.º(2) - lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso – é, por um lado, aquele que efetivamente contribui para o reforço da certeza jurídica e para a boa administração da justiça, tendo em conta o estreito vínculo existente entre a jurisdição portuguesa e o presente litígio.

8.–Trata-se, por outro lado, de foro no qual a Ré podia razoavelmente prever vir a ser acionada, em função das consequências das suas práticas anticoncorrenciais, seja no que respeita à ação de indemnização, seja no que respeita a qualquer ação prévia ou subsequente àquela.

9.–Deve ter-se por liminarmente excluído, por assentar em elemento de conexão que o Regulamento nem sequer prevê, o paralelismo que a Ré pretende traçar entre o local da situação dos documentos requeridos na presente ação e os critérios de conexão previstos no artigo 24.º do Regulamento.

10.–É indubitável que a regra especial do artigo 7.º(2) do Regulamento tem plena aplicação a ações coletivas. Não só esta disposição, diferentemente do que sucede no artigo 18.º (que se refere, textualmente, a consumidores), não faz qualquer alusão à qualidade do demandante, como resulta que assim é, sem margem para quaisquer dúvidas, de múltiplas decisões do TJUE.

11.–De igual modo, é absolutamente pacífico na jurisprudência do TJUE que o elemento de conexão previsto no artigo 7.º(2) do Regulamento se refere, simultaneamente, ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na sua origem, podendo o demandado ser acionado, à escolha do demandante, perante os tribunais de um ou de outro local.

12.–É inegável que, residindo os consumidores lesados em Portugal, a materialização do dano ocorreu no país da sua residência. O lugar da materialização do dano é aquele onde o alegado dano se manifesta concretamente.

13.–O TJUE esclareceu que, quando uma decisão da Comissão Europeia identificou uma violação do artigo 101.º do TFUE na origem do alegado dano, que “abrangia todo o mercado do EEE”, “há́ que considerar que o lugar da materialização desse dano, para efeitos da aplicação do artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, se encontra no referido mercado (...)” - Caso C-30/20 Volvo EU:C:2021:604, §31.

14.–A decisão da Comissão Europeia em que se imputam comportamentos anticoncorrenciais à Ré, ora Apelante, refere que “(...) Meliá’s restrictions of active and passive sales covered the whole EEE” (§87). Portugal faz, pois, parte do mercado afetado por aquela prática restritiva da concorrência, pelo que, no que diz respeito aos consumidores residentes em Portugal, é este o local da materialização dos danos.

Vejamos.

Sob a epígrafe “competência internacional” dispõe o art. 59º do Código de Processo Civil (CPC) que:

“Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.

Por seu turno, o artigo 62º estabelece os factores de atribuição de competência internacional, enquanto que o art. 63º dispõe sobre a competência exclusiva dos tribunais portugueses.

Como defendem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2ª edição, vol I, pág. 95, «A  competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeira linha, do que resultar de convenções internacionais (v.g. Convenção de Lugano) ou dos regulamentos europeus sobre a matéria (v.g. Regulamentos nº 1215/2012 e 2201/2003) e, depois, da integração de algum dos segmentos normativos dos arts 62º e 63º, sem embargo da que possa emergir de pacto atributivo de jurisdição, nos termos do art. 94º (…)».

Segundo os mesmos autores, «Para efeitos de competência internacional do tribunal nacional (que pode ser exclusiva ou concorrencial), deve ser dada prioridade ao que resultar de regulamentos europeus e de instrumentos de direito internacional que vinculem o Estado Português» - v. ob cit. pág. 98.

O Regulamento (EU) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (designado Regulamento Bruxelas I) aplica-se em matéria civil e comercial e independentemente da jurisdição (art. 1º/1), sendo que o objectivo central do legislador europeu foi o de restringir o âmbito de aplicação material do regulamento às relações jurídicas de direito privado, embora estejam excluídas da sua aplicação as matérias especificadas no nº 2 do art.1º do regulamento.

As partes não discutem a aplicabilidade ao caso do Regulamento Bruxelas I, divergindo antes sobre o âmbito de aplicação das regras de competência ínsitas designadamente nos arts 4º e 7º/2.
Em conformidade com os Considerandos 13. e 15. do regulamento, o art. 4º estabelece que, independentemente da sua nacionalidade, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro, consagrando-se aqui o princípio actor sequitur forum rei.

Esta regra geral do domicílio do réu é reforçada pelo art. 5º/1, nos termos do qual “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo”.

O art. 7º insere-se precisamente na secção 2 do regulamento, estabelecendo uma regra especial de competência, que, além do mais, permite que “as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso” (nº 2); podendo ainda ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.

Quer dizer que o autor tem a possibilidade de escolher entre propor a acção nos tribunais do Estado-Membro do domicílio do réu ou nos tribunais do Estado-Membro que sejam competentes à luz do critério especial, ou seja, a competência é alternativa, estando-se perante uma situação de fórum shopping.

Suscita-se aqui, como sucede no caso vertente, a questão de saber qual o conceito de «matéria extracontratual» a tomar em consideração para efeitos da aplicação do art. 7º.

Nas palavras de Marco Carvalho Gonçalves (in Scientia Ivridica, Revista de Direito Comparado português e brasileiro, tomo LXIV, nº 339, 2015, pág. 432), «o conceito de “responsabilidade civil extracontratual” tem vindo a ser interpretado de forma subsidiária em relação ao conceito de “responsabilidade contratual” constante do art. 7º/1. Assim, conforme se decidiu no Ac. do TJUE de 18/7/2013, P. C-147/12, “o conceito de matéria extracontratual na acepção do art. 5º, ponto 3, do Regulamento nº 44/2001 [revogado pelo Reg 1215/2012], relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, abrange qualquer acção que tenha em vista pôr em causa a responsabilidade do demandado e que não esteja relacionada com a matéria contratual (…)
Por outro lado, sobre o que se deva entender por “lugar onde ocorreu ou deverá ocorrer o facto danoso” o TJUE tem vindo a considerar que esse lugar tanto abrange o lugar onde se verificou o evento causal, como aquele onde se verificou o facto danoso. Com efeito, aquilo que é relevante é que exista uma forte ligação entre o litígio e o tribunal. Permite-se, dessa forma, julgar o litígio com maior proximidade em relação ao lugar onde ocorreu efectivamente o dano».

A este propósito e na mesma linha, pode ler-se na decisão recorrida que (referindo-se os números aos parágrafos da decisão):

20.–Extraem-se da jurisprudência do Tribunal de Justiça alguns parâmetros essenciais para a decisão da questão suscitada pela Ré.

21.–Assim, em primeiro lugar, “a regra de competência especial em matéria extracontratual deve ser objeto de uma interpretação autónoma, referindo-se ao sistema e aos objetivos do regulamento de que faz parte”1 – § 23, acórdão do TJ Gtflix Tv contra DR, de 21 de dezembro de 2021, processo C-251/20.

22.–Nos mesmos termos se pronunciou o TJ no acórdão HRVATSKE SUME d.o.o., Zagreb contra BP EUROPA SE de 09 de dezembro de 2021, processo C-242/20, a propósito da norma equivalente no Regulamento n.º 44/2001, aí se esclarecendo que é assim com vista a assegurar a aplicação uniforme do diploma em todos os Estados-Membros. Mais acrescentou que: “Esta exigência, que vale nomeadamente para a delimitação do âmbito de aplicação respetivo destas duas regras, implica que os conceitos de «matéria contratual» e de «matéria extracontratual» não possam ser entendidos no sentido de que remetem para a qualificação que a lei nacional aplicável efetua da relação jurídica em causa no órgão jurisdicional nacional” - § 40.

23.–Esta jurisprudência é aplicável ao artigo 7.º, 2) do Regulamento n.º 1215/2012, pois, conforme o Tribunal de Justiça recordou no acórdão Verein für Konsumenteninformation contra Volkswagen AG, de 09 de julho de 2020, processo C-343/19, “de acordo com o seu considerando 34, o Regulamento n.º 1215/2012 revoga e substitui o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), que, por sua vez, substituiu a Convenção de 27 de setembro de 1968 Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (JO 1972, L 299, p. 32), conforme alterada pelas sucessivas convenções relativas à adesão dos novos Estados-Membros a essa Convenção (a seguir «Convenção de Bruxelas»), a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça às disposições destes instrumentos jurídicos vale também para o Regulamento n.º 1215/2012 quando essas disposições possam ser qualificadas de «equivalentes» (Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor-Trans, C-451/18,  EU:C:2019:635, n.º 23 e jurisprudência referida). Ora, é o que acontece com o artigo 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas e do Regulamento n.º 44/2001, por um lado, e com o artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, por outro” - § 22.

24.–Por conseguinte, revela-se essencial para o caso entender qual o significado que o conceito “matéria extracontratual” assume no âmbito do sistema e dos objetivos do Regulamento n.º 1215/2012.

25.–Neste plano, resulta de jurisprudência constante do TJ que o “conceito de «matéria extracontratual», na aceção do artigo 5.º, ponto 3, do Regulamento n.º 44/2001, abrange qualquer pedido destinado a envolver a responsabilidade de um demandado e que não esteja relacionado com a «matéria contratual», na aceção do artigo 5.º, ponto 1, alínea a), deste regulamento” - § 42 do acórdão HRVATSKE ŠUME d.o.o., Zagreb contra BP EUROPA SE de 09 de dezembro de 2021, processo C-242/20.

26.–Extrai-se da jurisprudência precedente que o conceito de “matéria extracontratual” é um conceito bastante amplo, não sendo exclusivo de ações de indemnização, e que está dependente apenas e só da verificação de dois requisitos: por um lado, o pedido tem de envolver a responsabilidade de um demandado; e, por outro lado, não pode estar relacionado com “matéria contratual”, ou seja, não pode estar relacionado com qualquer “obrigação livremente consentida por uma pessoa relativamente a outra”2.

27.–No acórdão Wikingerhof GmbH & Co. KG contra Booking.com BV, de 24 de novembro de 2020, processo C-59/19, o TJ esclareceu melhor este segundo requisito, referindo que “quando o demandante invoca, na sua petição, as regras da responsabilidade extracontratual, a saber, a violação de uma obrigação imposta por lei, e não se afigura indispensável examinar o conteúdo do contrato celebrado com o demandado para apreciar o caráter lícito ou ilícito do comportamento censurado a este último, uma vez que tal obrigação se impõe ao demandado independentemente desse contrato, o fundamento da ação enquadra-se na matéria extracontratual, na aceção do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012” - § 33.

28.–Transpondo os parâmetros expostos para o caso concreto conclui-se pela verificação dos dois requisitos referidos.

29.–Assim, quanto ao segundo requisito (o pedido não pode estar relacionado com “matéria contratual”), conforme a Autora esclarece, o seu objetivo consiste na obtenção de documentos tendo em vista aferir da verificação dos requisitos necessários para uma eventual instauração de uma ação de indemnização por danos provocados a possíveis consumidores finais por uma prática restritiva da concorrência pela qual a Ré foi condenada. Isto significa que a presente ação não se sustenta nem em quaisquer contratos celebrados entre a Autora e a Ré, nem é indispensável examinar o conteúdo de eventuais contratos celebrados pela Ré com potenciais consumidores finais lesados para apreciar o caráter lícito ou ilícito do comportamento imputado à Ré, que se sustenta, conforme referido, numa prática restritiva da concorrência.

30.–Quanto ao segundo requisito (o pedido tem de envolver a responsabilidade de um demandado) considera-se que o mesmo também se mostra verificado, pois o pedido envolve a responsabilidade da Ré, uma vez que o seu escopo consiste, conforme referido, na obtenção de documentos para efeitos de instauração de uma ação de indemnização por factos ilícitos e esse escopo não é um qualquer fim extra processual. Tem implicações decisivas na configuração da presente ação como uma ação em matéria extracontratual, porquanto um dos seus pressupostos essenciais consiste na alegação de factos e meios de prova “razoavelmente disponíveis e suficientes para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização ou da defesa” – cf. artigo 12.º, n.º 2, ex vi artigo 13.º, n.º 2, ambos da Lei n.º 23/2018, de 05.06.

31.–Em perfeita coerência com o exposto veja-se que o regime desta ação não resulta apenas dos artigos 573.º a 576.º do Código Civil (CC), mas é complementado, de forma determinante, pela citada Lei n.º 23/2018, que regula o direito a indemnização por infração ao direito da concorrência. Por conseguinte, é também a inserção sistemática deste tipo de ação neste regime especial que demonstra, de forma particularmente impressiva, que a presente ação visa, em última instância, a responsabilidade da Ré.

32.–É importante que se tenha presente que isto não é exclusivo da lei nacional, pois a Lei n.º 23/2018 transpôs a Diretiva 2014/104/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia. Ora, resulta dos considerandos 14 a 33 da Diretiva e do Capítulo II que a obtenção de meios de prova para efeitos de sustentação do pedido de indemnização faz parte integrante do regime especial que se pretendeu instituir em matéria de responsabilidade extracontratual por práticas restritivas da concorrência. E este fazer parte inclui não só o pressuposto sistemático referido, no sentido de que este tema está previsto no mesmo diploma, mas mais do que isso: significa que esse mecanismo é considerado, na lógica da Diretiva e, consequentemente, também na lógica da lei nacional, como necessário para assegurar o exercício efetivo do direito à reparação de danos causados por infracções ao direito da concorrência da União (cf. considerando 4 e artigo 4º da Directiva).

33.–A referência aos regimes legais indicados, nos quais se insere o pedido efetuado, é relevante, porque, conforme o TJ tem entendido, para efeitos da interpretação de uma disposição do direito da União deve-se ter em conta “não só os termos desta mas igualmente o contexto em que esta se inscreve e os objetivos prosseguidos pela legislação de que aquela faz parte” - § 24, acórdão do TJ BT contra Seguros Catalana Occidente, EB, de 09 de dezembro de 2021, processo C-708/20.

34.–Os parâmetros assinalados também são demonstrativos de que a conclusão alcançada se mostra conforme com a ratio legis das soluções consagradas no Regulamento, que surge enunciada nos considerandos 15 e 16 do diploma nos seguintes termos: “As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição. (16) O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. Este elemento é especialmente importante nos litígios relativos a obrigações extracontratuais decorrentes de violações da privacidade e de direitos de personalidade, incluindo a difamação”.

35.–Estes enunciados têm sido desenvolvidos e melhor concretizados pelo TJ, que tem esclarecido a propósito da solução consagrada no artigo 7.º, 2) do Regulamento que “a regra de competência especial que esta disposição prevê por derrogação da regra geral da competência dos órgãos jurisdicionais do domicílio do demandado estabelecida no artigo 4.° desse regulamento baseia-se na existência de um nexo particularmente estreito entre o litígio e os tribunais do lugar onde ocorreu o facto danoso, suscetível de justificar uma atribuição de competência a estes últimos por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo (…) Com efeito, em matéria extracontratual, o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso é normalmente o mais apto para decidir, nomeadamente por razões de proximidade do litígio e de facilidade de administração das provas” - § 29 e 30 do acórdão ZK, contra insolvência da BMA Nederland BV, de 10.03.2022, processo C-498/20.

36.–A interpretação que se faz do artigo 7.º, (2), do Regulamento nos termos enunciados é a mais compatível com estes desideratos pelas razões que se passam a expor.

37.–Assim: levando em conta que a presente ação visa a eventual instauração subsequente de uma ação de indemnização para reparação de danos por práticas restritivas da concorrência; considerando, consequentemente, que um dos seus pressupostos decisivos consiste na alegação de factos e meios de prova “razoavelmente disponíveis e suficientes para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização ou da defesa”; considerando também que o seu regime está incluído no regime especial previsto para as ações de indemnização por práticas restritivas da concorrência; e considerando ainda que pedidos similares àquele que estão em causa nos autos podiam ser efetuados na própria ação de indemnização (cf. artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2018) é de concluir que a interpretação mais linear, mais expectável e que, por isso, é garante de um maior grau de certeza do artigo 7.º, alínea 2), do Regulamento é no sentido de que ações deste tipo estão incluídas nessa norma.

38.–Por outro lado, um dos pressupostos decisivos da presente ação consiste conforme referido na alegação de factos e meios de prova “razoavelmente disponíveis e suficientes para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização ou da defesa”, o que dá satisfação às referidas razões de proximidade do litígio e de facilidade de administração das provas.

39.–Em sentido contrário ao exposto, alega a Ré que “conforme resulta da petição inicial, os documentos a que a AUTORA pretende ter acesso, nos casos em que existem, encontram-se em Espanha, à guarda de uma sociedade de direito espanhol, de acordo com as regras em vigor naquele país”. Este argumento não é procedente, pois os documentos em questão são coisas móveis. Por conseguinte, o facto de se encontrarem em Espanha ou em qualquer outro país é irrelevante. Quanto à alusão às regras em vigor em Espanha relativas à guarda de documentos não está em causa a aplicação dessas regras, nem a causa de pedir versa sobre a guarda de tais documentos.

40.–Alega ainda a Ré que a “situação aqui em causa apresenta mesma algumas similitudes com aquelas reguladas no artigo 24.º do REGULAMENTO BRUXELAS I, respeitantes a casos de competência exclusiva dos tribunais da situação dos prédios ou da sede das sociedades e associações, para conhecer de ações respeitantes a direitos reais e de ações respeitantes a temas societários, respetivamente. Tal como aí o critério determinante da competência é o local da situação dos bens e da sede social, aqui o critério determinante deve ser o do local da situação dos documentos, sendo indubitavelmente os tribunais da sede da RÉ aqueles que melhor estão colocados para apreciar os pedidos formulados”. Também aqui a Ré não tem razão, porque a particularidade das ações respeitantes a direitos reais consiste no facto incontornável dos prédios serem coisas imóveis. Quanto às ações respeitantes a temas societários, a particularidade reside na circunstância de dizerem respeito a questões internas das próprias sociedades e associações.

41.–Por conseguinte, improcede também este fundamento invocado pela Ré.

Concordamos inteiramente com o entendimento perfilhado pelo tribunal a quo.

Com efeito, não podemos deixar de entender que a presente acção, atento o seu objecto, incide sobre matéria extracontratual, integrando-se, por conseguinte, no citado art. 7º/2 do Regulamento Bruxelas I, adoptando-se o conceito abrangente que tem sido firmado pela jurisprudência emanada do TJUE.

O que a A. pretende com a presente acção popular, sob a forma declarativa especial para apresentação de documentos, é o acesso a um acervo de documentos que se encontra na posse da ré, de molde a aferir se foram afectados interesses difusos, se os consumidores residentes em Portugal foram afectados pelas práticas anticoncorrenciais referidas na petição inicial e se estas lhes causaram danos, tendo em vista a instauração de futura acção de indemnização por danos decorrentes das infracções ao art. 101º do TFUE e ao art. 9º da Lei nº 19/2012, sendo certo que a Comissão Europeia condenou a ré, por decisão de 21/2/2021, por violação do art. 101º do TFUE e art. 53º do Acordo EEE, por ter implementado práticas verticais por via contratual, que diferenciavam consumidores em função da sua nacionalidade ou país de residência, restringindo as vendas ativas e passivas de alojamento em hotéis por si geridos ou dos quais é proprietária a consumidores nacionais ou residentes em Estados-Membros por si determinados, tendo sido condenada numa coima no montante global de € 6.678.000 - cf. art. 26 da petição inicial.

Como consta deste articulado, a acção em apreço colhe o seu fundamento legal nos artigos 52.º(3) e 60.º(3) da CRP, artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, artigos 31.º e 1045.º a 1047.º do CPC, e nos artigos 13.º e 19.º da Lei n.º 23/2018, de 5 de junho (Lei de Private Enforcement).

Conforme refere o tribunal a quo, “a presente acção não se sustenta nem em quaisquer contratos celebrados entre a Autora e a Ré, nem é indispensável examinar o conteúdo de eventuais contratos celebrados pela Ré com potenciais consumidores finais lesados para apreciar o carácter lícito ou ilícito do comportamento imputado à ré, que se sustenta, conforme referido, numa prática restritiva da concorrência.” – cf. parágrafo 29 da decisão recorrida.

A fonte da obrigação violada é imposta pelos aludidos art. 101º do TFUE e art. 9º do Regime Jurídico da Concorrência, enquadrando-se a acção em causa na tutela dos direitos dos consumidores lesados por práticas anticoncorrenciais. Tal acção encontra-se prevista no art. 13º da Lei 23/2018, sob a epígrafe “acesso a meios de prova antes de intentada a acção de indemnização”, dependendo a sua procedência da alegação de factos e meios de prova para corroborar a plausibilidade do pedido de indemnização (como referido no parágrafo 59 da decisão recorrida).

Ora, não estamos seguramente perante matéria contratual, o que exclui a aplicação do art. 7º/1 a). Diversamente, o caso dos autos enquadra-se no apontado conceito amplo de responsabilidade extracontratual, sendo de afastar a aplicação de qualquer outro critério especial, designadamente o art. 18º do mesmo regulamento, por não estar em causa matéria de contratos de consumo.

Não obsta à aplicação ao caso dos autos do art. 7º/2 o facto de a presente acção não constituir uma acção de indemnização por infracção ao direito da concorrência (private enforcement), mas antes uma acção prévia/preliminar, que visa a recolha de documentos para apuramento dos danos decorrentes daquela infracção, visando o seu ressarcimento. O que releva é que o litígio, não tendo na sua origem obrigação emergente de um contrato e como tal não se integrando na alínea a) do art. 7º/1, cai necessariamente na previsão do nº 2 deste preceito.

Este entendimento está em consonância com o Considerando 15 do Regulamento Bruxelas I, do qual se extrai o princípio de que as regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica, tal como é assinalado na parte final do parágrafo 37 da decisão recorrida. Acresce que na situação vertente, estando em causa o apuramento dos danos sofridos pelos consumidores portugueses decorrentes das aludidas práticas anticoncorrenciais, é razoavelmente previsível que a acção seja intentada no Estado-Membro que apresenta um vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio, em ordem a assegurar uma boa administração da justiça (cf. Considerando 16 do regulamento).

Por outra banda, é irrelevante para os efeitos em apreço o local onde se encontram os documentos a que autora/apelada pretende ter acesso ou o facto de a ré/apelante ter sede em Espanha, aderindo-se, neste conspecto, ao vertido nos parágrafos 39 e 40 da decisão sob recurso.

Também não colhe o argumento invocado pela recorrente de que a regra especial do art. 7º/2 não se aplica às acções colectivas, porquanto se a lei não estabelece qualquer limitação, está vedado ao intérprete fazê-lo.

Por último, secundamos o entendimento do tribunal a quo vertido no parágrafo 54 e 59 da decisão, acerca do local onde ocorreu o dano, devendo considerar-se que o lugar da materialização do dano se localiza no Estado-Membro onde supostamente ocorreu (sendo em Portugal que residem os consumidores potencialmente afectados, representados pela autora/apelada), considerando que os tribunais do Estado-Membro no qual se situa o mercado afectado são os mais bem colocados para apreciar tais acções, à luz da jurisprudência do TJUE ali indicada (v. processo C-451/18) e jurisprudência indicada pela apelada no art. 14. das conclusões das contra-alegações de recurso (v. processo C-30/20).

Destarte, a decisão recorrida não merece censura, carecendo de fundamento a alegada errada interpretação/aplicação das normas legais nela vertidas, afigurando-se correcta e adequadamente fundamentada.

Em face de todo o exposto, impõe-se concluir que os tribunais portugueses (no caso o TCRS) são internacionalmente competentes para julgar a presente acção.

Consequentemente, improcede o recurso totalmente, devendo manter-se a decisão recorrida.
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V.–DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente (artigo 527º/1 e 2 do CPC).
Registe e notifique.
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Lisboa, 13 de Julho de 2022



Ana Mónica C. Mendonça Pavão - (Relatora)
Maria da Luz Teles Menezes de Seabra - (1ª Adjunta)
Carlos M. G. de Melo Marinho - (2º Adjunto)