INSOLVÊNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
VALOR DA CAUSA
REJEIÇÃO DE RECURSO
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário


O art. 14.º, n.º 1, do CIRE estabelece um regime atípico e restrito de revista para o STJ, que, na apreciação da respectiva admissibilidade, não prescinde da verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade das decisões judiciais, desde logo os que respeitam ao valor da causa em face da alçada da Relação (arts. 629.º, n.º 1, do CPC, 17.º, n.º 1, do CIRE); sendo inferior ao da alçada da Relação o valor fixado no despacho saneador (art. 306.º, n.os 1 e 2, do CPC), constitutivo de caso julgado formal (art. 620.º, n.º 1, do CPC) por falta de impugnação tempestiva em recurso próprio (art. 644.º, n.º 1, al. a), do CPC), não pode ser manifestamente admitida e conhecida a revista.

Texto Integral










Processo n.º 1315/21.0T8VCT-A.G1.S1
Tribunal recorrido: Relação de Guimarães, 1.ª Secção



Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça



I) RELATÓRIO

1. Foi proferida, em 18/3/2019, pelo Juiz 2 do Juízo de Competência Genérica ..., sentença de declaração de insolvência de AA e cônjuge BB.

2. Foi proferida nos autos, em 13/7/2020, sentença de homologação de plano de insolvência dos requeridos devedores, transitada em julgado.

3. Em 5/1/2021 foi declarado encerrado o processo de insolvência n.º 808/18.0T8VLN.

4. A credora «Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ..., CRL» requereu a insolvência de AA e BB por incumprimento desse plano de insolvência homologado por sentença proferida no processo n.º 808/18.0T8VLN, entretanto declarado encerrado, referente a consolidação de créditos com venda de todos os imóveis garantidos por hipoteca a seu favor, alegando ser credora, nomeadamente, dos montantes de € 691.490,89 e € 81.958,36, acrescidos de juros de mora.
Os Requeridos deduziram Oposição, pugnando pela improcedência do pedido de insolvência.
A Requerente apresentou Resposta, no exercício do contraditório, nela incluindo a questão prévia do alegado “conflito de interesses” do respectivo mandatário e a matéria de excepção de inexistência do crédito alegada pelos Requeridos.

5. Realizou-se audiência de discussão e julgamento (8/6/2021), onde foi proferido despacho saneador, com definição do objecto do litígio e dos temas da prova, tendo sido então fixado à acção o valor de € 5.000,01 (nos termos dos arts. 15º e 301º do CIRE).

6. Foi proferida sentença em 9/6/2021 pelo Juízo de Comércio ..., em que se decidiu declarar insolventes os Requeridos.


7. Inconformados, os Requeridos interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto (TRP), que conduziu a ser proferido acórdão em 21/10/2021, no qual se julgou improcedente a nulidade da sentença recorrida, alegada nos termos do art. 615º, 1, d), do CPC, assim como a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, e, quanto ao exercício abusivo de direito, à bondade da declaração de insolvência e à condenação em litigância de má fé, julgaram-se igualmente improcedentes.

8. Inconformados com a decisão em 2.º grau, os Requeridos interpuseram recurso de revista para o STJ estribado no art. 14º, 1, do CIRE, visando a revogação do acórdão recorrido e devolução dos autos à Relação para efeitos de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto impugnada, e alegando para o efeito oposição de julgados com o Ac. do STJ de 11/2/2016, processo n.º 907/13.5TBPTG.E1.S1 (juntando depois nos autos a correspondente certidão).
A credora Requerente e Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade (em geral e em especial) da revista e, caso assim não se entenda, a sua improcedência.

9. Foi proferido despacho no âmbito e para os efeitos previstos no art. 655º, 1, ex vi art. 679º, do CPC.
Tal mereceu pronúncia dos Requeridos, que alegaram erro na fixação do valor da causa e invocaram o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva para sustentarem a admissão do recurso.


Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir em conferência, enfrentando como questão prévia a admissibilidade do recurso.



II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

Questão prévia da admissibilidade do recurso
10. A decisão proferida em 1.ª instância e reapreciada pela Relação, sendo tramitada endogenamente nos próprios autos de insolvência, rege-se pelo especial regime de recursos previsto no artigo 14º, 1, do CIRE, que configura uma revista atípica e restrita e, por isso, delimitador da susceptibilidade da revista para o STJ do acórdão recorrido. Assim, a admissibilidade desta depende, em especial, de ser invocada, como ónus processual do recorrente, e assente uma oposição de julgados com um (e um só) outro acórdão do STJ ou das Relações, com vista a inscrever tal conflito jurisprudencial como condição de acesso ao STJ.
Estabelece esta norma que:
«No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme».

11. Como tem sido reconhecido e decidido sem reservas nesta 6.ª Secção do STJ, a revista admitida pelo art. 14º, 1, do CIRE não prescinde, na avaliação da sua admissibilidade, do preenchimento dos requisitos gerais estatuídos no art. 629º, 1, do CPC, demandado pela remissão feita pelo art. 17º, 1, do CIRE: «O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (…)».
Este preceito impõe que, enquanto condição geral de recorribilidade das decisões judiciais, a admissibilidade do recurso ordinário esteja dependente da verificação cumulativa desses dois pressupostos jurídico-processuais: (i) o valor da causa tem de exceder a alçada do tribunal de que se recorre; (ii) a decisão impugnada tem de ser desfavorável para o recorrente em valor também superior a metade da alçada do tribunal que decretou a decisão que se impugna. Tal significa que os requisitos previstos no art. 629º, 1, do CPC são cumulativos e indissociáveis (em rigor, um duplo requisito) e a observância do primeiro deles – “valor da causa” – precisa da averiguação (se possível: 2.ª parte do preceito) do segundo – “valor da sucumbência” – para, ainda que a título complementar, completar o requisito de admissibilidade.
Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000,00 (art. 44º, 1, da L 62/2013, de 26 de Agosto), anotando-se que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção (n.º 3 desse art. 44º).

12. O valor da causa principal foi fixado no despacho saneador, de acordo com o poder-dever atribuído oficiosamente ao juiz (sem prejuízo da indicação que impende sobre as partes) pelo art. 306º, 1 e 2, 2ª parte, do CPC. Com este exercício a lei visa evitar a manipulação do valor da causa (atribuído pelo Autor/Requerente ou aceite, expressa ou tacitamente, pelas partes: arts. 552º, 1, f), 583º, 2, 305º CPC)) – apresentando várias implicações processuais – em função de interesses particulares, entregando ao juiz a tarefa de zelar pelo cumprimento dos critérios legais. Em suma: “independentemente das posições assumidas pelas partes, o juiz sempre terá de se debruçar sobre o assunto e fixar o valor da causa, sem estar vinculado a qualquer dos valores indicados ou aceites por aquelas”[1].
Assim fixado, no valor de € 5.000,01, adquiriu nos autos trânsito em julgado (caso julgado formal) por falta de impugnação tempestiva em recurso próprio dessa decisão incidental (art. 644º, 1, a), CPC)[2] e consequente definitividade e consolidação endoprocessual (art. 620º, 1, CPC), o que não pode deixar de ser respeitado nas instâncias superiores[3], em especial para a verificação do preenchimento do art. 629º, 1, do CPC. 
Tal significa, assim, que não é esta a sede, como pretendem os Recorrentes, por ser extemporânea e sem adequação processual, para sindicar a bondade do critério que serviu de base à decisão incidental sobre o valor da causa.
Logo, tendo a presente causa o valor de € 5.000,01, e sendo, em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação de € 30.000,00, tal implica que soçobre a pretensão recursiva no momento preliminar de aferição da sua admissibilidade.

13. Esta aplicação do regime legal não está de todo ferida pelo alegado desrespeito do art. 20º da CRP.

Na verdade, a inadmissibilidade do recurso por efeito da opção legal de condicionar as pretensões recursivas em razão do valor da alçada dos tribunais não representa ablação ou diminuição das garantias de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, nos termos consagrados no artigo 20.º da CRP. E, ademais, não afecta, como regra, o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado, mesmo na regulamentação de processos como o da insolvência, com princípios e interesses de tutela específica.

Como tem sido acentuado na jurisprudência do TC e deste STJ, é consensualmente aceite que o legislador tem um amplo poder de conformação na concreta modelação processual, neste caso aplicado à disciplina recursiva para o STJ, desde que não se estabeleçam mecanismos arbitrários ou desproporcionados de compressão ou negação do direito à prática dos actos predispostos à impugnação recursiva. No caso dos autos, finalizado com a rejeição de recurso assim sancionada por lei pela não verificação dos requisitos gerais de admissibilidade da revista, não se configura uma situação de negação de acesso à justiça que afronte os princípios basilares de um Estado de Direito (particularmente o de «respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais», tal como, desde logo, prescrito no art. 2º da CRP), uma vez que cabe ao julgador rejeitar o conhecimento do objecto do recurso de revista através da sindicação preliminar do art. 629º, 1, do CPC, sem que dessa aplicação, antecipadamente conhecida e vigente, resulte um arbítrio intolerável e um afastamento casuístico que afrontaria a equidade e a efectividade da tutela jurisdicional.

III) DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso, atenta a sua manifesta inadmissibilidade.
Custas pelos Recorrentes, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.

STJ/Lisboa, 27 de Abril de 2022

Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).


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[1] ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 305º, pág. 356.
[2] V. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 644º, pág. 204.
[3] Ex professo, SALVADOR DA COSTA, Os incidentes da instância, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pág. 61.