RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME PARCIAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
CRITÉRIO DE QUANTIFICAÇÃO
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário


Encontra-se dentro dos padrões indemnizatórios, jurisprudencialmente seguidos em casos equiparáveis, a condenação da ré Seguradora a pagar uma compensação de € 15 000,00 ao autor lesado que, à data do atropelamento, tinha 59 anos de idade, foi submetido a intervenção cirúrgica e a múltiplos tratamentos de fisioterapia, ficou com reduzida mobilidade do ombro e braço esquerdos; sofreu um quantum doloris fixado em 4 numa escala de 7; e ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 8%.

Texto Integral




Supremo Tribunal de Justiça 6.a Secção Cível

Processo n. 820/20.0T8PDL.L1.S1

Recorrente: Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1.  AA, residente em ..., propôs a presente ação contra
"Lusitânia - Companhia de Seguros, SA", com sede em ..., pedindo a condenação desta a
pagar-lhe, além do mais:
- a título de danos patrimoniais, na vertente de lucros cessantes, pela perda de capacidade de ganho, decorrente do grau de incapacidade permanente geral de 15%, quantia não inferior a €30.000,00 (trinta mil euros);

- a título de danos não patrimoniais, a quantia de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros);
- juros de mora, à taxa legal, sobre todos os pedidos formulados, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, no montante global de €55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros) acrescidos dos respetivos juros de mora à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

2. Alegou, para o efeito, ter sido atropelado, ao atravessar uma passadeira, por uma viatura segurada na ré, com culpa exclusiva da respetiva condutora.

3. A ré contestou a ação e, após os pertinentes trâmites processuais, veio a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo:

«(...) julgo parcialmente procedente a ação e consequentemente: condeno a R. Lusitânia -Companhia de Seguros, SA. a pagar ao A. AA, a título de indemnização, o valor global de €32.000,00 (trinta e dois mil euros) resultante da soma das indemnizações por lucros cessantes no valor de €20.000,00 e pelos danos morais computados em €12.000,00, a que acrescem os juros vencidos por tais quantias, calculados à taxa legal, desde a data da citação e até efetivo pagamento; - no mais vai absolvida a R. (...)»

4.  A sentença foi alvo de recursos de apelação, interpostos tanto pelo autor como pela ré.

O autor entendeu que o montante de €12.000,00 atribuído a título de danos morais era insuficiente. A ré, por sua vez, considerou injustificado e excessivo o montante atribuído a título de lucros cessantes; e considerou excessivo o montante atribuído a título de danos não patrimoniais.

5. O TRL veio a acolher parcialmente as pretensões de ambas as partes, proferindo acórdão que reduziu o valor dos lucros cessantes em 4.000 Euros (descendo de 20.000 para 16.000), e que aumentou os danos não patrimoniais em 3.000 Euros (passando de 12.000 para 15.000). O autor passou, assim, a ter direito a uma indemnização global de 31.000 Euros (acrescida de inerentes juros de mora), em vez dos 32.000 Euros que a primeira instância lhe havia reconhecido.

6. Ainda inconformada, a ré interpôs o presente recurso de revista, continuando a sustentar que o lucro cessante inerente ao dano biológico não devia merecer qualquer indemnização, e que que aqueles valores sempre seriam excessivos. Admitiria, quanto muito, que aquele dano biológico pudesse ser indemnizado em € 10.803,52 e o dano moral em €7.500,00.

Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1.0 douto acórdão proferido pela Relação de Lisboa arbitrou o montante indemnizatório de €16.000,00 a título de danos patrimoniais e o montante indemnizatório de € 15.000,00 a título de danos não patrimoniais.

2. A Recorrente considera que o montante indemnizatório arbitrado a título de dano patrimonial o foi incorrectamente, porquanto deveria ter sido absorvido pela indemnização arbitrada a título de dano não patrimonial, uma vez que o lesado não desempenhava qualquer actividade profissional, encontrando-se reformado à data do acidente.

3.   O referido montante indemnizatório atribuído ao Autor afigura-se manifestamente
desajustado, atenta a factualidade julgada provada (e não provada) nos autos, e, bem assim,
os critérios jurisprudenciais atualmente seguidos pela nossa jurisprudência, encontrando-se,
nessa medida, incorretamente interpretadas e/ou aplicadas as normas legais previstas nos
artigos494.°, 496°, n.°sle4, 562.°, 563.°e566.°, n.°3do Código Civil

4. O Autor não exercia qualquer actividade profissional ã altura do acidente, encontrando-se reformado, no entanto, vem peticionar uma indemnização por lucros cessantes, face à IPP que viesse a ser fixada no âmbito dos presentes autos.

5. A indemnização pelo dano biológico, na vertente de um lucro cessante, é atribuída por via da perda de oportunidades geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que passa a afectar o lesado.

6. Neste perspectiva, o lucro cessante é indemnizável decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado.

7. Isto é, é atribuída ao lesado uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludida irremediavelmente pela incapacidade de que passou a padecer, bem como pelo esforço acrescido que o grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício da vida profissional e pessoal.

8. Sucede que, sendo o Autor reformado, apenas poderia o Tribunal a quo atender às suas eventuais actividades diárias, por forma a aferir da necessidade de fixação de montante indemnizatório a este título.

9. O facto é que o Autor não sofreu, de modo nenhum, qualquer perda de remuneração. E isto foi o que,  efectivamente,   resultou provado.   O Autor não sofreu qualquer perda de remuneração, quer por via profissional (porque reformado), quer relativamente a valores que, supostamente, terá de passar a suportar com trabalhos de jardinagem (por estar limitado nos trabalhos de jardim).

10. Pelo que, e salvo melhor opinião, e porque não existe qualquer implicação patrimonial para o Autor por via da incapacidade fixada, nada lhe será devido a título de dano biológico, devendo ser alterada a decisão recorrida.

11. O que se deveria ter tomado em conta é o facto de o Autor não ter nenhum rendimento proveniente de exercício de actividade profissional antes do acidente em causa, bem como o facto de apenas ter ficado limitado em algumas actividades do seu dia-a-dia e que não poderão ser valoradas com tal desproporção, que possam significar um enriquecimento ilegítimo - o que a aqui Recorrente considera ter sucedido com a fixação de uma indemnização, a este título, do valor de € 16,000.00.

12.    Considera a Recorrente que o dano biológico em causa não se traduz num dano
patrimonial futuro, ou seja, numa perda de capacidade de ganho do lesado ou na frustração
da obtenção de quaisquer rendimentos futuros, mas antes na afectação física com
repercussão nas actividades da vida diária, devendo, somente, ser compensado a título de
dano não patrimonial.

13.  A Recorrente entende que a reparação do dano biológico deverá ser feita, apenas, em
sede de dano não patrimonial, e não como dano patrimonial.

14.    Não pode ser fixada uma indemnização a título de dano biológico, na vertente
patrimonial, porque inexistiu qualquer dano adveniente do défice funcional de integridade
físico-psíquica a ressarcir, na medida em que não ocorreu uma efectiva perda da capacidade
de ganho, com perda de rendimento do trabalho.

15. A compensação por dano biológico, na vertente patrimonial, arbitrada pelo TRL contempla uma perspectiva não patrimonial, indemnizando danos já abarcados pela indemnização a título de danos não patrimoniais que fixou.

16. Entende a Recorrente que, sempre que o défice funcional de integridade físico-psíquica não implique perda da capacidade ganho (com perdas de rendimento do trabalho), o dano biológico só pode ser indemnizado na vertente de dano não patrimonial.

17. Independentemente da configuração do dano biológico como dano patrimonial ou como dano não patrimonial, não pode o mesmo ser ressarcido duas vezes, como fez o Venerando Tribunal a quo.

18. Na verdade, e sempre com o máximo respeito, o que se operou no douto acórdão (pese embora sob a égide de qualificação do dano biológico como dano patrimonial), foi uma verdadeira autonomização deste dano e o seu duplo ressarcimento.

19. Assim, visto o dano biológico sob a perspectiva de dano não patrimonial, mostra-se o mesmo englobado na compensação já fixada a título de danos não patrimoniais.

20. Verifica-se que o Meritíssimo Tribunal a quo atribuiu uma compensação por danos patrimoniais tendente a ressarcir o lesado pelo dano corporal sofrido, e concomitantemente, fixou uma compensação por danos não patrimoniais que abrangeu também essas mesmas lesões.

21. Temos, pois, que este dano biológico enquanto lesão corporal, lesão do bem saúde, foi duplamente indemnizado nos presentes autos.

22.  Não tem, pois, cabimento legal, a fixação de uma indemnização por dano biológico na
vertente de dano patrimonial, operada nos presentes autos, e em simultâneo com a concreta
indemnização em termos de dano não patrimonial.

23.    O douto acórdão recorrido operou uma verdadeira duplicação de indemnizações,
violando o vertido nos artigos 483.°, 496.°, 562." e 564.°, todos do Código Civil.

24.  Deverá, assim, ser o mesmo revogado e substituído por outro que não conceda qualquer
montante indemnizatório a título de dano biológico na vertente de dano patrimonial.

Sem prescindir,

25.    Na eventualidade de assim não ser doutamente entendido, sempre se dirá,
adicionalmente, que o valor de € 16.000,00 arbitrado ao A. como indemnização pelo dano
biológico, enquanto dano patrimonial, se mostra francamente empolado e, portanto,
desconforme com os critérios legais e jurisprudenciais aplicáveis.

26. Atenda-se, assim, à forma como se tem a nossa Jurisprudência pronunciado em situação semelhantes.

27. Reportando-nos ao caso concreto, para uma desvalorização entre 6 a 10pontos, são estabelecidos os valores de €487,35 a €666,90, quando a vítima tenha entre 56 a 60 anos de idade. Havendo uma desvalorização de 8 pontos, e equivalendo cada ponto a €577,125 (o que se atinge somando os dois valores e dividindo por 2, tendo em conta que a idade do lesado era de 59 anos à data do acidente (situando-se, por isso, a meio entre os 56 e os 60 previstos na tabela), a indemnização seria de €4.617,00. Contudo, tais valores da Portaria reportam-se à remuneração mínima mensal garantida em 2007, que era de €403,00 (nota 1 ao anexo IV). Se considerarmos a remuneração base média nacional de €943,00, no ano do acidente (2017) - in www.pordata.pt - e, observando uma regra de três simples, chegamos ao valor compensatório de € 10,803,52.

28. Assim, face ao exposto, e ainda que se entenda não haver duplicidade de indemnizações atribuídas na vertente não patrimonial, sempre deverá ser alterado o valor indemnizatório atribuído ao A. a título de dano biológico, e alterado para o montante máximo de € 10.803,52, de acordo e nos termos supra referidos.

29. Já relativamente aos danos não patrimoniais, para o cômputo da indemnização, além dos danos sofridos pelo Autor, sempre terá de ser analisado "o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso...", temperado por um juízo de equidade (artigos 494.° e 496.V3 do CC).

30. O que a ora Recorrente não pode (de todo) aceitar é o valor atribuído pelo Tribunal a quo, no montante de €15.000,00, que se reputa de manifestamente excessivo face aos danos concretamente sofridos pelo Autor e não têm sustentação na prova que o Tribunal considerou

-.para proferir tal decisão.

31. Antes de mais, sempre terá o Tribunal a quo de entrar em linha de conta com a eventual indemnização a atribuir a título de dano biológico na vertente não patrimonial, sob pena de haver uma duplicação de indemnizações e o enriquecimento ilegítimo do Autor.

32. Por outro lado, sem prejuízo dos progressos efectuados, por contributo doutrinário e aperfeiçoamento jurisprudencial, ainda hoje a principal dificuldade associada ao dano não patrimonial reconduz-se à sua reparação, porquanto apenas valorando o que, em si intrinsecamente considerado, seria insusceptível de quantificação monetária, pode o lesado almejar a composição, ainda que imperfeita e tendencialmente aquém do status quo ante, dos direitos e/ou interesses objecto de violação.

33. Se alegados e provados, a satisfação ou indemnização a título de danos não patrimoniais deverá ser calculada, em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante), segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e demais circunstâncias do caso (sendo a referência, feita na parte final do artigo 494.° do Código Civil, entendida como indicativa de um numerus apertus — neste sentido, ver Rui Rangel, A Reparação dos Danos na Responsabilidade Civil: um olhar sobre a jurisprudência, Almedina, 2002, p. 31), a que acresce a necessidade de comparação com situações análogas equacionados noutras decisões judiciais (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-06-1991; Relator: Tato Marinho).

34. Ora, julgar segundo a equidade significa que o Tribunal deve atender à necessidade de adequada compensação da vítima, sem, com isso, violar o princípio constitucional e legalmente acolhido da proporcionalidade, à luz do qual a restrição, indemnização ou sanção operada deve ser a estritamente necessária (e apenas essa) à salvaguarda dos direitos e/ou interesses ofendidos.

35. Para esse efeito, e continuando a acompanhar a jurisprudência, o julgador deverá ter em conta "todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida" e servir-se dos padrões usuais de indemnização judicialmente estabelecidos para contornar, na medida do possível, a "dificuldade e delicadeza da operação de quantificação dos danos não patrimoniais" (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12-04-2011; Relator: Fonte Ramos).

36.    A Recorrente entende que a compensação a atribuir ao Autor, por danos não
patrimoniais, terá de ser consideravelmente menor, porque menor é o dano do Autor
comparativamente com outros casos identificados na jurisprudência e expostos em sede de
alegações, em que existem, inclusivamente, deficiências permanentes de locomoção - o que
não é o caso do Autor.

37. O montante atribuído pelo douto acórdão a título de danos não patrimoniais revela-se manifestamente excessivo e empolado, não se podendo considerar, atenta a factualidade provada, a verificação de um dano não patrimonial que assuma gravidade bastante para ser atribuído o montante indemnizatório que a esse título foi sentenciado.

38. Os critérios a utilizar para a determinação do dano não devem ser abstractos ou mecânicos, devendo antes atender ao caso concreto e sempre temperados por juízos de equidade.

39. Pelo que, deve a quantia fixada para indemnização por danos não patrimoniais a atribuir ao Autor ser corrigida, devendo a mesma ser reduzida para um valor mais justo e equitativo, o qual não deverá exceder o montante de € 7.500,00, sob pena de violação do artigo 496.° do CC.

Nessa medida, por tudo quanto se encontra exposto, e ressalvando novamente o devido respeito, que é muito, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, sendo o douto acórdão proferido nos presentes autos, revogado, e alterado por outro que arbitre uma indemnização apenas por danos não patrimoniais, no valor de € 7.500,00, eliminado a duplicidade de indemnizações arbitrada relativamente ao dano biológico sofrido, ou, caso assim V. Exas. não entendam, deverá a decisão recorrida ser substituída por outra que fixe em € 10.803,52 o valor indemnizatório a atribuir ao A. a título de dano biológico na vertente de dano não patrimonial, e € 7.500.00 a título de danos não patrimoniais, tudo nos termos supra explanados, só assim se fazendo justiça.»

7. Face à prefiguração da hipótese de não admissibilidade da revista, foram as partes notificadas para se pronunciarem, nos termos do art.655° do CPC.


8. A recorrente apresentou resposta, reafirmando a admissibilidade da revista. Cabe apreciar.

II. FUNDAMENTOS

1. A questão prévia da admissibilidade do recurso:

1.1.   A Ia instância condenou a ré, agora recorrente, a pagar €20.000,00 a título de lucros
cessantes e €12.000,00 a título de danos morais.

Ambas as partes apelaram. O autor entendeu que o montante de €12.000,00 respeitante aos danos morais era insuficiente. A ré considerou ambos os valores excessivos.

A Relação acolheu parcialmente as pretensões de ambos: reduziu o valor dos lucros cessantes em 4.000 Euros (descendo de 20.000 para 16.000); e aumentou os danos não patrimoniais em 3.000 Euros (passando de 12.000 para 15.000).

O autor passou a ter direito a uma indemnização global de €31.000, em vez dos €32.000 que a primeira instância lhe havia reconhecido.

A ré, apesar de "beneficiada" em 1.000 Euros, vem recorrer de revista.

Entende a recorrente (no ponto n.2 e seguintes das conclusões das suas alegações) que não deveria existir indemnização pelos lucros cessantes, porque tal conduziria a uma duplicação indemnizatória do mesmo facto (embora acabe por admitir, no ponto n.28, que esse valor poderia ser fixado em € 10.803,52). Entende, por outro lado (no ponto n.29 e seguintes das conclusões das alegações) que o valor da compensação por danos não patrimoniais - €15.000,00 - é excessivo (admitiria, porém, uma compensação de €7.500,00).

1.2.  Face à circunstância de o acórdão recorrido ter confirmado, numa perspetiva global, o
montante indemnizatório concedido pela Ia instância (havendo, até, uma melhoria da situação
da recorrente em €1000), sem existir voto de vencido, nem se identificando fundamentação substancialmente divergente das duas decisões (que assentaram em critérios de equidade), seria legítimo questionar a eventual verificação de uma situação de dupla conforme, prevista no art.671°, n.3 do CPC, impeditiva do recurso de revista. Efetivamente, do ponto de vista do montante indemnizatório global a pagar pela ré, as duas decisões são, essencialmente, coincidentes (sendo a decisão da 2a instância mais favorável em €1000).

Todavia, a jurisprudência dominante no STJ tem-se pronunciado no sentido de considerar separadamente os segmentos decisórios, aferindo-se, portanto, a existência de dupla conforme em relação a cada um desses segmento (e não quanto à globalidade do resultado decisório). Veja-se, a título de exemplo, o que se sumariou no acórdão do STJ, de 23.10.2018 (relator Henrique Araújo), proferido no processo n. 902/14.7TBVCT.G1.S1:

«No caso de pedidos múltiplos ou cumulativos, a conformidade ou desconformidade da decisão da Relação com a decisão de 1." instância relevante para efeitos de admissibilidade do recurso de revista, deve ser aferida em relação a cada um dos segmentos da decisão final»

1.3. Aplicando esta jurisprudência ao caso concreto, facilmente se conclui que existe dupla conforme quanto a um dos segmentos da decisão recorrida, ou seja, quanto à condenação em lucros cessantes, o que impede o recurso de revista nesta parte.

Estabelece o art.671°, n.3 do CPC

«Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.a instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.»

No caso concreto, no que respeita aos denominados lucros cessantes inerentes ao dano biológico, a primeira instância condenou a ré, agora recorrente, a pagar €20.000. E a segunda instância confirmou esse sentido decisório, tendo apenas divergido no montante da indemnização, mas em sentido mais favorável à ré.

Se a segunda instância tivesse confirmado integralmente a condenação nos 20.000 Euros, dúvidas não existiriam de que se havia formado dupla conforme integral, que claramente excluiria a possibilidade de a ré interpor recurso de revista. No caso concreto, a confirmação da segunda instância não foi integral, mas foi mais favorável à ré agora recorrente. Neste tipo de hipóteses, tem sido entendimento da doutrina e da jurisprudência que o recurso de revista também não pode ser admitido, dada a similitude das hipóteses e a razão de ser do limite estabelecido com a consagração da dupla conforme1.

Na jurisprudência do STJ, veja-se, por exemplo, o que se afirma nos seguintes acórdãos:
-    Acórdão do STJ, de 02.02.2016 (relator Fernandes do Vale), no processo
n.540/11.6TVLSB.L2.S1:
«(...)Na interpretação da norma constante no art. 671.°, n.°3, do NCPC, deve ponderar-se o seu elemento racional-teleológico para se concluir pela dupla conformidade de decisões, mesmo nos casos de ausência de sobreposição total, mas com decisão mais favorável para a recorrente.(...)»2

-  Acórdão do STJ, de 21.01.2016 - Revista n. 986/12.2TBCBR.C1.S1 (relator Oliveira
Vasconcelos):

«É de equiparar à situação de dupla conforme, impeditiva da admissibilidade do recurso de revista, aquela em que a Relação profere uma decisão que, embora não seja rigorosamente coincidente com a da 1° instância, se revela mais favorável à parte que recorre.»

11 Veja-se, neste sentido, Teixeira de Sousa, "Dupla conforme: critério e âmbito da conformidade", in Cadernos de Direito Privado, 2008, n.21, página 24 e seguintes; e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4a ed. pág.358 e seguintes.

http://www.dgsi.pt/isti.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/667964881 d2274b080257f4f0036751 e?OpenD ocument

Conclui-se, assim, que quanto ao segmento decisório respeitante aos denominados lucros cessantes inerentes ao dano biológico, o recurso de revista não é admissível porque a tal obsta o disposto no art.671°, n.3. Nesta parte, não se toma conhecimento do objeto do recurso.

1.4. No que respeita à condenação em danos morais, as instâncias decidiram também no mesmo sentido, ou seja, condenando a ré a compensar o autor por esse tipo de danos. Todavia, verifica-se uma divergência de ordem quantitativa, em sentido mais desfavorável à ré. Efetivamente, a segunda instância agravou essa condenação em €3.000, passando de €12.000 para €15.000.
Apesar de a recorrente não se ter conformado com os montantes atribuídos pelas instâncias quer a título de danos emergentes, quer a título de danos não patrimoniais (tendo sido condenada, pelo acórdão recorrido, no pagamento do montante total de €31.000,00) o recurso é admissível apenas na parte sobre a qual não se formou dupla conforme, ou seja, na que respeita à condenação em danos morais.

Assim, a única questão que integra o objeto da revista é a de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito no que respeita à condenação em danos morais. Deste modo, fica preterida a questão da "dupla indemnização", que a recorrente suscitou nas suas alegações de recurso, porquanto o objeto da sua discordância respeitava ao segmento decisório que não pode ser objeto de revista; não respeitava à existência de danos morais, que a recorrente expressamente admite, apenas discordando do seu montante.

2. A factualidade relevante:

As instâncias deram como assente a seguinte factualidade:
«1- No dia 19 de Maio de 2017, pelas 10h05m, o A., quando circulava a pé pela rua de ..., freguesia ..., concelho ..., decidiu atravessar a referida rua no sentido sul/norte, usando, para o efeito, a passagem de peões ali existente, devidamente sinalizada pelos sinais de trânsito vertical (H7) e longitudinal (Ml 1);

2- A mencionada rua de ... é constituída por quatro faixas de rodagem, das quais, atento o sentido de marcha do A., duas faixas de rodagem são de sentido de trânsito único na direção poente/nascente, e as outras duas faixas de rodagem são de sentido de trânsito único na direção oposta, ou seja, nascente/poente;

3- As faixas de rodagem de sentidos de circulação opostos encontram-se divididas por um separador central, que se apresenta como um passeio, permitindo que os peões ali possam permanecer, de forma a pausar o atravessamento que fazem na passadeira existente na dita rua de ...;

4- Após o A. ter decidido atravessar a rua de ..., no sentido sul/norte e de ter já passado pelas duas faixas de rodagem que permitem a circulação do trânsito automóvel no sentido poente-nascente, permaneceu no mencionado passeio central, que autoriza a estada de peões, e aguardou pela melhor oportunidade para continuar a atravessar a dita rua, agora, mediante a transposição das duas faixas de rodagem que permitem a circulação do trânsito automóvel no sentido nascente-poente;

5- Quando o A. ainda permanecia no referido passeio, a condutora do veículo matrícula ..-GS-.., BB, que circulava na rua de ..., no sentido nascente-poente, mas na faixa de rodagem da esquerda, ao aproximar-se da passadeira ali existente, devidamente assinalada pelos aludidos sinais vertical e longitudinal de passagem de peões, parou o seu veículo automóvel e cedeu a passagem devida ao A.;

6- Nessa sequência, o A. deu início à sua marcha e começou a atravessar sobre a referida passadeira, a dita faixa de rodagem da esquerda, sendo certo que, quando já se encontrava a caminhar na faixa de rodagem da direita da referida rua de ..., sempre sobre a passadeira ali existente, foi súbita e inesperadamente embatido pela frente do veículo matrícula ..-..-TZ, conduzido por CC, que nela circulava no sentido nascente-poente;

7- Em virtude do embate sofrido no seu corpo, o A. foi projetado em cerca de três metros para a frente do veículo ..-..-TZ e caiu no solo, com maior incidência sobre o seu ombro esquerdo;

8.- A condutora do veículo ..-..-TZ, CC, que circulava desatenta e sem observar as características do local, não parou o seu veículo de forma a ceder a passagem ao A. que se encontrava a atravessar a rua de ... na passadeira ali existente, devidamente assinalada pelos sinais vertical e horizontal de passagem de peões, e embateu com o seu veículo no corpo do A., projetando-o para a frente;

9-No dia, hora e local o tempo estava bom e o piso encontrava-se em bom estado, seco e limpo, sendo que a velocidade máxima permitida para o local é de 50km/h;

10- O veículo matrícula ..-..-TZ, encontravam-se à data do acidente segurado na R., mediante a celebração do contrato de seguro titulado pela apólice n°. ...85, através do qual esta assumiu todas as responsabilidades emergentes da circulação do referido veículo;

11- O acidente deu-se porque a condutora do veículo matrícula ..-..-TZ, CC, segurado na R., ao circular pela rua de ..., no sentido nascente-poente, na faixa de rodagem da direita de forma desatenta e imprudente, sem adequar a velocidade para o local que lhe permitisse parar o veículo que conduzia no espaço livre e visível que detinha à sua frente, ignorou o sinal vertical e horizontal de passagem de peões ali existentes e atropelou o A. que atravessava a dita faixa de rodagem na passadeira destinada aquele fim;

12- Em virtude do atropelamento de que foi vítima, o A. sofreu um traumatismo no ombro esquerdo, foi transportado, logo de seguida, de ambulância para os Serviços de Urgência do Hospital ..., em ..., onde chegou pelas 10h30 e onde foi atendido pela médica DD, que constatou que o A. apresentava, entre outras, "queixas referidas ao ombro esquerdo", tendo, posteriormente, sido observado pelo médico EE, a quem relatou "dor em ambos os ombros + esq e anca homolateral" e "dor à mobilização passiva", concluindo tais clínicos que o A. apresentava "traumatismo por atropelamento, com traumatismo do braço esquerdo, com dor na região do ombro esquerdo em alguns movimentos"; "síndrome do ombro doloroso (L92) - Esquerda. P's. Traumático";

13- Como as dores que o A. sentia no ombro esquerdo se apresentavam persistentes, o foi encaminhado pela R. para a "... - Clínica ...", com sede na Av. ..., n°. ..., ..., em ..., tendo aí realizado tratamentos de fisioterapia entre os dias 3 de julho de 2017 e o dia 12 de junho de 2018, num total de 180 sessões;

14-  No decurso das sessões referidas em 13., concluíram os serviços médicos da R., que o A.
necessitava de uma intervenção cirúrgica e, nesse sentido, foi encaminhado para o Hospital
…das em ..., onde se apresentou no dia 6.11.2017, com "síndrome do Manguito
Rotador do ombro e transtornos afins", sendo o motivo do internamento no referido Hospital
"Rotura da coifa à esquerda";

15-    Neste hospital, perante o "traumatismo no ombro esquerdo"... o ter "estado em
reabilitação desde então (...) com melhoria parcial", porque "mantém dor e limitação da
mobilidade, com défice de força" e após realizar RMN que afirmou "rotura completa do SE e
IE associadas à diminuição do espaço SA (acromion tipo Hl), atrofia muscular ligeira,
derrame articular extenso e SA"... foi então, o A., submetido a uma intervenção cirúrgica ao
ombro esquerdo, tendo ficado com "suspensão braquial com banda torácica" e tido alta no dia
10.11.2017;

16- De regresso à Ilha ..., o A., nos meses subsequentes, voltou a realizar sessões de fisioterapia junto da "... - Clinica ..."...contudo, e apesar disso, o A. para além de sofrer uma grave ausência de mobilidade no ombro e braço esquerdos, bem como de uma acentuada atrofia muscular, continua a sentir fortes dores no ombro esquerdo, sendo certo que apresenta um quadro de perturbação pós stress traumático na sequência da exposição direta ao atropelamento de que foi vítima, com perturbação e prejuízo significativo a nível social e ocupacional;

17- A data da consolidação médico-legal das lesões do A. foi no dia 25.7.2018, sendo certo que, mau grado esse facto, A. apresenta dificuldades em efetuar carga ou em pegar em objetos com pesos superiores aos 5 quilos com o membro superior esquerdo por despoletar dor no ombro, sofrendo, ainda, de dores intermitentes, no ombro esquerdo, com as mudanças climáticas (sobretudo quando o "tempo está mais húmido"), com os movimentos de flexão e abdução forçados acima dos 90° e no decúbito lateral esquerdo (quando se deita sobre o ombro);

18- O A. não consegue tratar do seu quintal e da relva, pelas limitações que apresenta no ombro esquerdo, contudo, as suas restantes atividades de vida diárias, apesar de não as fazer de uma forma tão expedita como fazia antes do acidente, consegue realizá-las, incluindo as atividades mais básicas, nomeadamente tratar da sua higiene, alimentação, vestir-se e despir-se sozinho;

19- A data do acidente o A. estava reformado da sua atividade profissional como mecânico de automóveis e também não exercia nenhuma atividade remunerada;

20- Em consequência do acidente aqui em causa, o A. ficou com:

- discreta atrofia muscular da fossa do supra e infra espinhoso;
- uma pequena cicatriz cirúrgica, vestigial, quase impercetível, de tonalidade semelhante à da restante pele, localizada na face anterior do ombro, com cerca de 1 cm de comprimento;
- limitação funcional do ombro nos movimentos de flexão e abdução com mobilidade ativa máxima até aos 95° a partir dos quais relata dor; consegue levar a mão esquerda à região lombar (L2) e ao pavilhão auricular; força muscular do membro grau 4/5 (devido a queixas álgicas); passou por um período de défice funcional temporário total de 6 dias;

- passou por um período de défice funcional temporário parcial de 427 dias;

21-0 quantum doloris do A. foi fixado em 4 numa escala de 7. E ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 8% pontos;

22- O A., à data do acidente tinha 59 anos de idade e estava reformado, contudo mantinha atividades da sua vida privada, para as quais, está agora impossibilitado desde que impliquem a movimentação do ombro, omoplata e braço esquerdo;

23- Apesar da consolidação das lesões, o A. mantém dores que perturbam a sua mobilidade, pois o mesmo não consegue, com recurso ao braço esquerdo, sequer, realizar a simples tarefa de substituir uma lâmpada, de cortar um abrigo ou, mesmo, colher um fruto de uma árvore ou sequer conduzir o seu automóvel sem sofrimento;

24-   Antes do atropelamento de que foi vítima, o A. não tinha qualquer problema de
mobilidade que lhe afetasse o ombro, omoplata e braço esquerdos e usufruía de uma
qualidade de vida associada à referida mobilidade, como um cidadão normal;

25- Após o acidente de que foi vítima, o A. passará a exercer qualquer atividade com um grau de dificuldade muito superior, exigindo-se-lhe para tanto um esforço suplementar físico e psíquico para obter o mesmo resultado;
26- Na sequência do acidente e no regresso a casa provindo do hospital, o A. ainda teve de permanecer acamado, o que lhe causou vários incómodos e dores no corpo, em virtude da imobilização que teve de cumprir com vista à sua recuperação, deslocando-se para as sessões de fisioterapia a muito custo, onde teve de cumprir o programa de reabilitação prescrito;

27- O A. teve ainda de se deslocar para ..., onde foi internado no Hospital ... e submetido a uma intervenção cirúrgica, tendo sofrido dores e incómodos de diversa natureza, que lhe causaram nervosismo e profunda angústia, tudo isso aliado ao facto de se encontrar deslocado da sua residência na Ilha ... e afastado dos seus familiares mais próximos;

28- Uma vez em ..., o A. foi viu-se a cumprir novo programa de fisioterapia na ... -Clínica ..., com vista à sua reabilitação, reabilitação esta que, infelizmente, não alcançou o sucesso desejado, pois ficou afetado por uma incapacidade permanente geral de 8%, e passou a sofrer permanentemente de dores e mal-estar, para além de ser portador de uma limitação física que o impede de levantar o braço esquerdo, assim como de o movimentar como antes fazia, o que o deixa deveras triste, nervoso e extremamente revoltado, para além de muito angustiado, por temer o agravamento das lesões que lhe afetam o ombro, omoplata e braço esquerdo, cada vez mais inutilizados pela imobilização involuntária do mesmo que as referidas lesões impõem;

29- Em face das lesões que apresenta, o A. encontra-se impedido de desenvolver qualquer atividade que implique movimentar o ombro, omoplata e braço esquerdo, como, por exemplo, fazer jardinagem, andar de bicicleta, ir à praia e nadar no mar, como conduzir o seu veículo automóvel sem o incremento de sofrimento, o que lhe nervosismo, angústia, tristeza, mau humor, grande revolta;

30- O A. sente-se diminuído física e psiquicamente, o que lhe provoca angústia e uma revolta permanente pelo facto de, na sequência do acidente dos presentes autos, que o atingiu aos 59 anos de idade, ter a perfeita consciência pelas dores e limitações físicas de que padece, de que jamais poderá desfrutar da sua vida com a qualidade de vida que detinha antes do atropelamento de que foi vitima;

31- No seguimento da participação de sinistro à ora R., e respetiva averiguação, o ora A. foi acompanhado pelos serviços clínicos da R., suportando esta todas as despesas médicas, medicamentosas e de tratamentos que se mostraram necessários durante a recuperação clínica do A.»

3. O direito aplicável:

3.1. Entende a recorrente que a condenação no pagamento de uma indemnização pelos danos morais, no montante de €15.000, é excessivo, pelo que, nessa medida, o acórdão recorrido teria feito errada aplicação do direito. Admite, porém, que a indemnização por este tipo de danos pudesse ser de €7.500.

Como decorre do previsto nos números 1 e 4 do art.496° do Código Civil, o montante da indemnização pelos danos não patrimoniais que mereçam a tutela do direito é fixada equitativamente pelo tribunal.

Assim, estando em causa uma decisão tomada segundo critérios de equidade (e não com base em critérios de legalidade estrita), tem sido entendimento reiterado do STJ que no recurso de revista não se procede a uma específica reapreciação dos juízos de equidade que sustentaram a decisão recorrida, mas se afere, apenas, da conformidade dessa decisão com os padrões jurisprudenciais seguidos em situações tipologicamente equiparáveis.

Veja-se, exemplificativamente, neste sentido, a seguinte jurisprudência:

-    Acórdão do STJ5 de 21.01.2016 (relator Lopes do Rego), no processo n.
1021/11.3TB ABT.E1.S1:

«O juízo de equidade das instâncias, essencial à determinação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais, assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso - e não na aplicação de critérios normativos - deve ser mantido sempre que - situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida - se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.»

-    Acórdão do STJ, de 07.04.2016 (relator Salazar Casanova), no processo n.
55/12.1TBOFR.C1.S1:
«A indemnização por danos morais deve ser fixada equitativamente conforme resulta do disposto no art. 496.°, n.4, do CC; equidade, no entanto, não significa discricionariedade. A indemnização deve ter em atenção os casos similares de que a jurisprudência do STJ dá notícia, procurando-se, assim, uma harmonização tanto quanto possível efetiva sem se perder de vista as singularidades dos casos concretos».

-    Acórdão do STJ, de 27.09.2016 (relator Alexandre Reis), no processo n.
2249/12.4TBFUN.L1.S1:

«(...) só haverá fundamento bastante para censurar o juízo formulado pela Relação e alterar o decidido se puder afirmar-se, tendo em conta os critérios que vêm sendo adoptados, generalizadamente, por este tribunal, que os montantes que foram fixados são manifestamente desproporcionados à gravidade objectiva e subjectiva dos efeitos (de natureza patrimonial e não patrimonial) resultantes da lesão corporal sofrida pela autora.»

3.2. Neste quadro, cabe apurar se, face à factualidade provada, o montante de €15.000 atribuído a título de compensação por danos não patrimoniais se encontra desfasado daquilo que tem sido decidido em situações próximas.

Considere-se, exemplificativamente, a seguinte jurisprudência:

- o supra referido Acórdão do STJ, de 21.01.2016 (relator Lopes do Rego), no processo n. 1021/11.3TBABT.E1.S1:

« Não é desproporcionada à gravidade objectiva e subjectiva das lesões sofridas por lesado
em acidente de viação o montante de
€50.000, atribuído como compensação dos danos não
patrimoniais, num caso caracterizado pela existência em lesado jovem, de 27 anos de idade,
de múltiplos traumatismos (...), envolvendo sequelas relevantes ao nível psicológico e de
comportamento, produzindo as lesões internamento durante 83 dias,
quantum doloris de 5
pontos em 7
e dano estético de 2 pontos em 7; ficando com um deficit funcional permanente
da integridade físico-psíquica, fixável em 16 pontos, e com repercussão nas actividades
desportivas e de lazer, fixável em grau 2 em 7, envolvendo ainda claudicação na marcha e
rigidez da anca direita; implicando limitações da marcha, corrida, e todas as actividades
físicas que envolvam os membros inferiores e determinando alteração relevante no padrão de
vida pessoal do lesado, que coxeia e é inseguro, física e psiquicamente, triste, deprimido e
com limitação na capacidade de iniciativa; sofrendo incómodos, angústias e perturbações
resultantes das lesões que teve, dos tratamentos e intervenções cirúrgicas a que foi sujeito;
terá de suportar até ao fim dos seus dias os sofrimentos e incómodos irreversivelmente
decorrentes das limitações com que ficou.
»                  ;

Acórdão      do      STJ,     de      21.01.2016      (relator     Lopes      do      Rego),      no processon.76/12.8T2AND.Pl.Sl:

«Não colide com os padrões jurisprudenciais correntes, nem com os princípios da igualdade e da proporcionalidade, o juízo de equidade das instâncias que fixou a indemnização pelos danos não patrimoniais no valor de € 25*000, valorando a gravidade objectiva e a repercussão subjectiva no sinistrado das lesões sofridas (pela demora na recuperação destas e pela sua repercussão fortemente negativa no padrão de vida e na autonomia pessoal da lesada, que teve de permanecer acamada e imobilizada por períodos temporais significativos, envolvendo ainda um reflexo incapacitante não desprezível para as plenas potencialidades da vida pessoal de lesado jovem) - ponderando ainda que o atropelamento sofrido se deveu a culpa grave e exclusiva do condutor/segurado»

-    Acórdão do STJ, de 02.06.2016 (relator Álvaro Rodrigues), no processo n.
6244/13.8TBVNG.P1.S1:

«A indemnização por danos não patrimoniais visa contrabalançar o mal sofrido e terá que ser verdadeiramente significativa, devendo o seu quantitativo traduzir a justiça no caso concreto, cabendo, pois, ao julgador ter em conta as regras da prudência, o bom senso e a justa medida das coisas.

Resultando dos factos provados que (i) o autor sofreu dores quantificáveis num grau de 3 em 7; (ii) sofreu um dano estético fixável em 1 numa escala de 7; e (iii) deixou de praticar actividades a que se dedicava como o motocross, é equitativa a fixação da indemnização devida em € 80.000, como se fez na Relação.»

-    Acórdão do STJ, de 15.02.2018 (relator Roque Nogueira), no processo n.
866/11.9TBABT.E1.S1

«Provado que, à data do acidente, (i) a autora tinha 56 anos de idade; (ii) em consequência do embate sofreu lesões sobretudo na cabeça e rosto; (iii) sofreu dores de grau 5 e dano estético de grau 4; (iv) sendo as dores persistentes e relevantes, com sequelas e repercussão na sua vida quotidiana, mostra-se adequado o valor indemnizatório fixado pela Relação, de € 35.000, a título de danos não patrimoniais, na vertente de ressarcimento do quantum doloris e do dano estético.»

-   Acórdão do STJ, de 17.10.2019 (relatora Maria Olinda Garcia), no processo n.
3717/16.4T8STB.E1.S1:

«Não é excessivo o montante de €32.000,00 a título de danos morais do autor que sofreu dores de grau 4/7; foi submetido a 5 intervenções cirúrgicas; sofreu tratamentos de fisioterapia durante 1 ano e 6 meses; só teve alta médica 1 ano e 10 meses após o acidente; ficou com cicatrizes e deformidades quantificáveis como dano estético permanente de grau 3/7; sofreu uma repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer que habitualmente praticava fixável em 5/7; tinha 35 anos à data do acidente.»

-   Acórdão do STJ, de 30.06.2020 (relator Paulo Ferreira da Cunha), no processo n.
313/12.9TBMAI.P1.S1:
«Entendesse adequada a compensação de € 35.000,00 por danos não patrimoniais a lesado de 49 anos na data da alta, que ficou a padecer de incapacidade permanente geral de 12 pontos, teve uma incapacidade temporária de duzentos e quarenta dias até à alta, sofreu dores de grau 5 numa escala de 0 a 7 e dano estético de grau 3 em idêntica escala.»

-   Acórdão do STJ, de 26.05.2021 (relator Pinto de Almeida), no processo n.
763/17.4T8GRDC1.S1:

« Ponderando que a autora: na sequência desse acidente, para o qual não contribuiu, foi submetida a internamento hospitalar (12 dias); foi longo o período com tratamentos e deles continua a necessitar (fisioterapia); teve de usar, durante 6 meses, colete dorso lombar e vai ter necessidade de o continuar a utilizar (nos períodos de trabalho, de esforços físicos e na condução); as sequelas permanentes que apresenta são graves, com os inerentes e graves reflexos físicos e psíquicos (a carecer de acompanhamento psiquiátrico) e afectam não só a sua capacidade funcional, mas também a sua qualidade de vida, dificultando-lhe a realização actividades comuns da sua vida diária, com relevante prejuízo de afirmação pessoal sofreu dores muito intensas e irá sofrer dores (grau 4/7), só atenuadas com medicação, de que depende permanentemente, é ajustado, para compensar o da não patrimonial sofrido, o montante de € 35.000,00. »

-   Acórdão do STJ, de 11.11.2021 (relator Abrantes Geraldes), no processo n.
730/17.8T8PVZ.P1.S1:

«Num caso em que a lesada, engenheira civil, com 38 anos de idade, sofreu lesões na cervical de que ficaram sequelas que importaram num déficit psicofísico de 4 pontos, com interferência na atividade profissional e na vida pessoal, em lugar da indemnização de € 15.000,00 fixada pela Relação, é ajustada a indemnização de € 58.000,00 que foi atribuída pela 1.a instância.»

A luz desta jurisprudência, facilmente se conclui que a decisão recorrida, ao condenar a ré no pagamento de €15.000 a título de danos não patrimoniais é perfeitamente comportável nos padrões indemnizatórios que têm sido seguidos pelo STJ.

Efetivamente, como resulta da factualidade provada (particularmente dos pontos 15 e seguintes dos factos assentes), em consequência do atropelamento de que foi vítima, o autor teve de ser submetido a uma cirurgia ao ombro esquerdo e realizou um elevado número de sessões de fisioterapia. Todavia, como se apurou no ponto 16, continuou a "sofrer uma grave ausência de mobilidade no ombro e braço esquerdos, bem como de uma acentuada atrofia muscular, continua a sentir fortes dores no ombro esquerdo, sendo certo que apresenta um quadro de perturbação pós stress traumático na sequência da exposição direta ao atropelamento de que foi vítima, com perturbação e prejuízo significativo a nível social e ocupacional".
O quantum doloris do autor foi fixado em 4 numa escala de 7; e ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 8% (ponto 21 da factualidade assente).

Conclui-se, portanto, que (na parte em que é suscetível de revista) a decisão recorrida não merece censura, pois, ao decidir segundo juízos de equidade, não se afastou do que tem sido entendido pelo STJ quanto a casos relativamente equiparáveis.

Decisão: Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, na parte em que ela é admissível, confirmando-se a decisão recorrida. Quanto à parte em que a revista não é admissível, não se toma conhecimento do objeto do recurso.

Custas pela recorrente. Lisboa, 27.04.2022


Supremo Tribunal de Justiça 6.a Secção Cível

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins (Vencido, conforme declaração junta)

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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Supremo Tribunal de Justiça 6a. Secção Cível

Declaração de Voto

Votei vencido quanto à admissibilidade da revista.

No Acórdão da Relação a indemnização global baixou, dos €32.000 reconhecidos pela l.a Instância, para € 31.000, pelo que estamos perante uma situação de dupla conforme, para efeitos do art.67173 do CPC, não sendo admissível - como se refere no Acórdão e com o que se concorda - recurso de revista por parte da R/seguradora (e única recorrente).

A partir daqui não será pela "tese" segundo a qual se consideram separadamente os segmentos decisórios (decorrentes de pedidos múltiplos), aferindo-se, portanto, a existência de dupla conforme em relação a cada um desses segmentos, que a revista poderá ser introduzida e passar a ter lugar.

É que tal "tese" tem o sentido oposto àquele que lhe é atribuído no texto do Acórdão (como, aliás, resulta da leitura do citado acórdão do STJ, de 23.10.2018, proferido no processo n. 902/14.7TBVCT.G1.S1), uma vez que do que se trata, em tal "tese", é de, em revistas que são admissíveis (ou seja, em que não há o obstáculo do art. 671.73 do CPC), não conhecer, no âmbito de revistas assim admissíveis, de segmentos indemnizatórios/condenatórios em que há dupla conforme (apenas conhecendo daqueles segmentos em que não há dupla conforme).

Ou seja, tal "tese" é uma restrição ao objeto que pode ser conhecido em revistas que são admissíveis e não mais um caso de admissibilidade de revistas (que doutro modo não seriam admissíveis).

Doutro modo - a estar certo o sentido que é dado a tal "tese" no texto do Acórdão - estaríamos perante um caso de admissibilidade ad libitum de revistas (em caso de vários segmentos decisórios, decorrentes de pedidos múltiplos): bastaria que houvesse uma ínfima majoração da condenação (da 1 a Instância para a Relação) para ser admissível revista (ainda que em termos globais houvesse "dupla conforme" e ainda que a decisão impugnada fosse desfavorável ao recorrente em valor não superior a metade da alçada da Relação).

No limite - perdoe-se-nos o exemplo caricatural - em caso de vários segmentos decisórios (decorrentes de pedidos múltiplos), bastaria, em linha com a posição do Acórdão, uma desconformidade/majoração de um cêntimo (entre a decisão da 1 a Instância e a da Relação) para ser admissível revista.

Lisboa, 27.04.2022

António Barateiro Martins