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PRIMEIRO INTERROGATÓRIO DO ARGUIDO
PROVA PROIBIDA
Sumário
I - A Lei nº 20/2013, de 21 de fevereiro, veio introduzir alterações ao Código Processo Penal designadamente, no que concerne à utilização em sede de audiência de julgamento, das declarações prestadas pelo arguido ao abrigo do disposto nos artigos 141.º n.º 4 al. b) e 357.º al. b) do Código de Processo Penal. Com tal alteração pretendeu o legislador conciliar a garantia dos direitos de defesa, por um lado e, por outro, as necessidades de celeridade e eficácia no combate ao crime e defesa da sociedade. II - No caso em apreço, o arguido prestou declarações no primeiro interrogatório subsequente à sua detenção, após ter sido expressamente advertido de que as suas declarações poderiam vir a ser utilizadas em fase posterior do processo. Assim, tais declarações ficam sujeitas à livre apreciação da prova, ou seja, adquirem a natureza de uma prova pré-constituída e, em paridade com os restantes meios de prova produzidos em audiência, vai fundamentar a convicção do juiz de julgamento. Contrariamente ao que acontecia antes da Lei nº 20/2013, em que a leitura de declarações anteriormente prestadas pelo arguido perante o juiz, apenas era permitida para esclarecer contradições ou discrepâncias com as declarações feitas em audiência, atualmente nada impede que o juiz de julgamento, perante declarações diametralmente opostas, funde a sua convicção apenas nas declarações prestadas em inquérito. III - No sentido de que a lei não exige a leitura de tais declarações em audiência para que as mesmas possam ser livremente apreciadas pelo tribunal na decisão final, se pronunciaram, entre outros, o Ac. do STJ de 27.01.2021 (Proc. nº 300/19.6GDTVD.L1.S1, Cons. Manuel A. Matos), o Ac. Rel. Porto de 14.09.2016 (Proc. nº 2087/14.0JAPRT.P1, Des. Artur Oliveira), o Ac. Rel. Évora de 07.02.2017 (Proc. nº 341/15.2JAFAR.E1, Des. João Amaro) e o Ac. Rel. Lisboa de 03.11.2020 (Proc. nº 660/19.9PBOER.L1-5, Des. Vieira Lamim). IV - Mal se compreenderia que uma prova produzida e realizada ao abrigo da lei com a observância plena do contraditório, integrada nos autos, indicada pela acusação em momento próprio e cuja leitura não é proibida visse, posteriormente, a sua valoração pelo tribunal condicionada à realização de um ato formal de “leitura” na audiência. V - A liberdade de o arguido se não incriminar não implica nenhum direito a dispor do que declarou – incompatível com a valoração, em quaisquer circunstâncias, das declarações por si prestadas antes do julgamento −, mas de um direito a contraditar a prova constituída por essas declarações. Com efeito, o arguido não pode exigir o apagamento do que disse, num exercício esclarecido de liberdade e rodeado de todas as garantias; o que pode, se assim o entender, é discutir o valor probatório das declarações que prestou. VI - Admitindo-se, a propósito das declarações livremente prestadas pelo arguido – que os direitos ao silêncio e à não auto-incriminação são renunciáveis, não se vê como o próprio direito a que as declarações sejam lidas ou reproduzidas em audiência, que se entende decorrer daquele, não seja igualmente renunciável. Assim, a faculdade de o arguido requerer a leitura ou reprodução das declarações – reconhecida na decisão recorrida – cumpre plenamente as exigências inerentes ao seu estatuto constitucional, sem que se justifique nenhuma imposição do estado de coisas correspondente ao seu uso efetivo. VII - É difícil compreender de que modo a não leitura ou reprodução de declarações prestadas pelo arguido quando este o não requeira possa ofender o princípio da lealdade. Quando o julgamento se inicia, o arguido tem a noção perfeita de que essas declarações, uma vez indicadas no despacho de acusação, e desde que prestadas em estrita obediência às exigências legais, constituem meios de prova. Da mesma forma, um documento da sua autoria pode ser valorado ainda que não seja lido em julgamento ou uma escuta telefónica em que tenha intervindo pode ser valorada mesmo que não reproduzida em audiência. Só haveria falta de lealdade se o despacho de acusação não mencionasse o meio de prova em causa. VIII - Considerar que este concreto meio de prova só poderá ser utilizado para formar a convicção do julgador se se tiver procedido à sua reprodução em audiência, seria transformar uma "faculdade" (permissão) em obrigatoriedade (condição sine qua non), numa situação em que tais declarações foram prestadas na presença de defensor, sendo o arguido devida e formalmente esclarecido da possibilidade da sua futura utilização e constando as mesmas dos meios de prova indicados pela acusação, pelo que o arguido não pode deixar de saber que as declarações que então prestou vão ser valoradas pelo tribunal, podendo em audiência livremente contrariá-las e justificar as razões de eventuais divergências com as declarações que entender prestar em audiência de julgamento. Consideramos, por isso, que inexiste qualquer ofensa aos princípios constitucionais do contraditório, da imediação e da oralidade, pelo facto de o tribunal recorrido ter valorado na sentença as declarações prestadas pelo arguido em primeiro interrogatório judicial, com respeito pelo artº 141º do C.P.P., não tendo por isso ocorrido qualquer valoração de prova proibida por violação do disposto nos artºs. 355º e 357º do C.P.P.
Texto Integral
Processo nº 436/20.0GAARC.P1 1ª secção
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
Nos autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Arouca, Comarca de Aveiro, com o nº 436/20.0GAARC, foi submetido a julgamento o arguido AA, tendo a final sido proferida sentença que condenou o arguido pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. no artº 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período sujeita a regime de prova e regras de conduta. Foi ainda o arguido condenado a pagar à assistente a quantia de €1.000,00 a título de reparação pelos prejuízos sofridos.
Inconformado com a sentença condenatória, o arguido interpôs o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1- A sentença recorrida, efetuou uma errada apreciação e valoração da prova produzida na audiência de julgamento, errando notoriamente na sua apreciação; Efetuou uma errada qualificação jurídico normativa dos factos dados como provados na douta sentença recorrida.; Violou o disposto na alínea d) do n.º 2 do 368, e do n.º 1 do art. 355, ambos do CPP.; Violou o n,º 1 do ar. 379 do CPP, por ter deixado de pronunciar-se sobre questões que deveria apreciar; Violou o artigo 20º, nº 4, da Constituição da República, que estabelece como direito fundamental que “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão (…) mediante processo equitativo”, e ainda o artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (a Convenção) que garante “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativamente”, diretamente aplicáveis na ordem jurídica portuguesa.
2- Considera o recorrente que os pontos 5 a 10 dos Factos Provados deveriam ter sido dados como não provados.
3- Existem no processo provas que impunham decisão diversa da recorrida, designadamente : 1- o que consta do auto de Inquirição do arguido em sede de 1.º Interrogatório Judicial, (fls. 137 a 138); Declarações da Testemunha Dr. BB, presidente da Comissão de Proteção de Menores ..., e professor do Ensino Secundário, sendo que o seu depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática
em uso no Tribunal recorrido consignando-se que o seu inicio ocorreu pelas 11:18 e o seu termo pelas 11:55. Declarações da Testemunha CC, filha do arguido, cujo depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido consignando-se que o seu inicio ocorreu pelas 16:37 horas e e o seu termo pelas 17:07.; Documento de Folhas 169 a 171 do Relatório da CPCJ ..., documentos cuja junção aos autos o arguido recorrente requereu e que faz parte do processo 17/21.1T8ARC-A (processo de Promoção Proteção ), junção essa que foi deferida e por determinação do Tribunal agrafada à contracapa, com a menção de confidencial; O relatório social para determinação da Sanção, junto a fls. 466 a 470.
4- O tribunal recorrido só valorou os factos que, na opinião do arguido, apenas serviram para o denegrir, numa inadequada apreciação da sua conduta e em violação do disposto no n.º 1 do 355 do CPP, da al. b) do n.º 1 do 379º, do CPP, mas que nela se baseou para definir uma personalidade bondosa altruísta da assistente, de que não foi feita qualquer prova.
5- A sentença recorrida revela uma incorreta apreciação da factualidade que se provou, julgando-se afinal um casamento entre o arguido e a assistente que não correu bem, perseguindo-se o recorrente pelos conflitos, discussões e acusações reciprocas que ocorreram num casamento desfeito há anos mas que foram transformados em atos de violência só da responsabilidade dele, confundindo-se assim o mau viver entre ambos com um crime que o arguido não praticou, acabando por ser proferida decisão confinada à preocupação em imputar ao arguido responsabilidades jurídico-penais dum fracasso matrimonial que é na verdade da responsabilidade de ambos, e fazendo assim emergir uma decisão que não é por acaso que acaba por não relevar que o recorrente não praticou qualquer ato de violência física, pois que nem sequer está ou foi provado qualquer ato dessa natureza praticado pelo arguido na pessoa da assistente.
6- A decisão recorrida acabou por transformar num procedimento criminal um casamento falhado em termos afetivos e irremediavelmente minado pela infelicidade no dia a dia dessa união, e que, falhando por esses motivos, foi esse desfecho assim transfigurado num crime de violência domestica que o arguido não praticou nem foi provado.
7- Além disso, tal sentença constitui uma decisão baseada na apreciação incompleta e truncada dos documentos juntos aos autos (por exemplo o relatório social de fls. 467, vº a 470), e tendeu para aproveitar tudo quanto servisse para descaracterizar a personalidade do arguido e para potenciar a sua insatisfação conjugal num crime, aproveitando-se para descaracterizar o recorrente com base nos factos e nos pormenores desagradáveis dessa união, apesar de irrelevantes, e depois para se empolar essa imagem grotesca que o Tribunal construiu duma união conjugal que, como se disse, tinha muitos problemas (e que por isso, terminou em divórcio), desprezando que o casamento entre ambos, a partir de determinada data, soçobra com uma hostilidade que é reciproca, patente na eclosão diária de conflitos e discussões que a assistente também provocou e não evitou, terminando no completo branqueamento da própria conduta da assistente e das suas responsabilidades, revelando-a afinal como a única vitima dum casamento que deveria ter terminado há muito mas sem qualquer referência às suas próprias responsabilidades como esposa.
8- Nesse sentido se percebe como é que o tribunal condena o arguido por expressões sem atributo penal e que até foram reciprocas, dirigidas alegadamente à assistente porque lhe chamava “TU ÉS UMA MALANDRA, ÉS UMA FALSA, UMA MORCONA, NÃO FAZES NADA, ÉS UMA GASTADORA, que cabem eventualmente na violação do dever de respeito como um dos deveres conjugais, em confusão entre violação de norma cível como expressão injuriosa ou de carácter criminal.
9- Por isso mesmo, repete-se é que o arguido, surpreendentemente foi acusado e condenado por expressões como “malandra“ és uma morcona e uma gastadora e não fazes nada”, como se tais expressões, retiradas que foram duma vida que era um mau viver entre ambos e em que eram vulgaríssimas nas discussões e nas acusações reciprocas entre arguido e assistente, fossem suficientes para a prova dum crime de violência domestica, mas inaptas para a caracterização da conduta do recorrente nos termos em que foi acusado e condenado.
10- Em varias passagens cujo sentido domina em toda a sentença, são feitas conclusões e apreciações negativas de todos os atos do arguido e aproveitamento de tudo aquilo que servisse para realçar um mau pormenor das intenções, desde que que tenham um cabimento qualquer nas declarações que fez, mesmo que não constituam senão, e apenas, um dos sentidos possíveis das suas declarações, e mesmo que nunca tal propósito a este lhe tenha passado pela cabeça,
11- Sem prova, o tribunal a quo (na motivação da matéria de facto, fls. 481 dos autos) resolveu concluir e dizer, a propósito de telefonema que o recorrente filhos antes do julgamento e porque, diga-se em abono da verdade, o arguido apenas pretendia que os filhos não fossem dizer más coisas ou falsidades desagraveis, (num dos poucos telefonemas que lhes fez numa circunstância de medo e bem sabendo da sua alienação parental) apressada e erradamente concluiu logo deste modo…, como ficou patente com o telefonema aos filhos, aludido pela assistente e por CC, em que o mesmo disse “ vejam lá o que vão dizer em Tribunal”.
12- É este mais um exemplo dos que o Tribunal se serviu para, na sentença recorrida, realçar-se de forma desagradável aquilo que nunca esteve na mente do arguido, numa interpretação do seu comportamento em que parece que o Tribunal tem o dom concluir sempre contra ele, e sem levar em consideração que o arguido o poderia estar a fazer por bons motivos e sem deixar margem para qualquer outra interpretação, nem ponderando sequer aquilo que motivou verdadeiramente o telefonema que o arguido fez aos filhos, (pedir-lhes no fundo que não exagerassem), para deles factos se retirar um conclusão erradíssima, inventando-se um clima de intimidação, (optando de imediato por essa interpretação dado que não deixa de ser um dos sentidos possíveis desse desabafo do arguido) apropriado para se construir um cenário mental apropriado à condenação do arguido, que foi condenado como um criminoso por ter chamado nomes à assistente.!
13- O tribunal fez uma visão a preto e branco que o Tribunal da conduta do recorrente sem reparar que, não obstante as discussões e as expressões duras de parte a parte, essa união sobreviveu e sobreviveria não fosse o “processo judicial” pois na realidade foi este quem lhe deu a machadada final, e tal constatação é ainda maior quando tais conflitos entre o casal nunca precipitaram nenhuma separação entre arguido e assistente, nem nunca deram causa a que eles não dormissem sempre todos os dias na mesma cama, com relações sexuais normais, o que revela que essa rotina de mau viver não poderia ser nunca enquadrada como o crime que a audiência de julgamento não provou, pois essa foi a confissão feita, com a hesitação sintomática da testemunha CC, filha do arguido, com depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido consignando-se que o seu inicio ocorreu pelas 16:37 horas e e o seu termo pelas 17:07.
14- O tribunal recorrido resolveu cindir ou recortar o relatório e dele retirar partes que serviram, não para os efeitos pretendidos, mas para insistir em promover uma errada imagem do arguido, retirando as que o desfavoreciam e assim descaracterizando o todo, pelo que a decisão recorrida, não se sustentando senão em parte do relatório, parece nesse aspecto dele divergir quanto às conclusões que desse documento constam, conclusões essas que já não se mostram perfilhadas na sentença como parece que também deveriam estar (e não só as desfavoráveis ao recorrente) e sem que o Tribunal tivesse fundamentado tal divergência, em violação do n.º 2 do art. 163 do CPP.
15- O Tribunal “a quo“ nada disse e nada relevou nem relativamente aos constrangimentos emocionais do arguido nem por exemplo à conclusão desse relatório é referido na sentença recorrida, designadamente esta importante conclusão (a fls 469 vº dos autos): “Face ao acima exposto, verifica-se que estamos perante uma situação em que o relacionamento entre o arguido e cônjuge mostra-se em termos qualitativos fragilizada já de longa data, resultando esta situação em conflitos verbais e num ambiente difícil com sinais de agressividade mais ou menos latentes …., sendo que tal conclusão na opinião do recorrente, não determina qualquer juízo ou apreciação da conduta do recorrente no que respeita à pratica de qualquer crime, mas apesar disso o Tribunal a quo desprezou por completo esta conclusão que, parece evidente, quando aí se refere e infere que a fragilização da união entre assistente arguido não é apenas da responsabilidade dele mas uma constatação da relação que manteve com a assistente quanto com ela foi casado- ou seja, com natureza reciproca!
16- A forma como o Tribunal, desse relatório, faz ressaltar apenas os aspectos desfavoráveis ao arguido nessa incorreta interpretação que dele faz, é acentuada ainda com a omissão e falta de referência daqueles aspectos que o favoreceriam ou pelo menos também desfavoreceriam a conduta da assistente, conduzindo-se para uma errada apreciação da sua personalidade, o que contribuiu para uma injusta sentença condenatória, em violação do disposto nas alíneas c) e d) do n.º 2 do 368, e do n.º 1 do art. 355, ambos do CPP.
17- Não obstante saber-se e aceitar-se que, nos termos do disposto no art. 283 3, al. b) do CPP, a exigência da datação rigorosa da prática dos factos na acusação, no sentido de que a indicação do dia, hora e local nem sempre é possível, no caso concreto, considera o recorrente que, apesar disso, não explica o Tribunal na sua decisão quanto ao 5 e 6 dos factos provados, porque é que aí neles se definiu o dia 29 do mês de Julho de 2019 e já por exemplo não se indica um dia concreto de Janeiro de 2021!!!), fixando-se essa data como uma estaca temporal sem sentido e ficando o arguido e o seu mandatário, e o próprio Tribunal de recurso sem saber a razão de ser da sua fixação!
18- Apesar dos aparentes cuidados que a sentença recorrida pretendente demonstrar no sentido de respeitar a decisão referida no processo 257/19.3GAARC, no qual o recorrente foi absolvido, (referida no ponto 4 da fundamentação de facto como considerando-se aí factos não provados), afinal acaba por ser proferida decisão condenatória mal explicada e sempre insuficiente e obscura, pois serviu-se de expressões que ou sendo ou exatamente iguais ou sinónimos daquelas de que já tinha sido absolvido e referidas nesse ponto 4, não evitou que fosse efetivamente condenado por factos pelos quais já, como se disse, tinha sido julgado e absolvido nesse processo anterior instaurado contra o arguido.
19- De forma obscura da fundamentação da sentença constando o que consta do ponto 4 dos factos provados e se foi o recorrente absolvido dos mesmos factos por não terem sido provados nesse processo 257/19 (cuja prática era imputada ao arguido ao período entre 28/9/2011 e 28/7 (Julho) do ano de 2019), não se pode aceitar que, depois, nesta sentença de que se recorre, se dê como provado que o arguido entre Julho de 2019 e Janeiro de 2021…. Praticou os factos do ponto 5 e 6 dos factos provados, pois parece evidente que o dia 29 de Julho de 2019 está dentro do mês de Julho de 2019 referido no ponto 4 dos factos provados, pois se o arguido não praticou os factos no mês de Julho de 2019 é evidente que os não praticou também no dia 29 de Julho de 2019 pois o mês de julho não parece ter apenas 28 dias.
20- Sem que o arguido consiga entender essa obscuridade da decisão em causa, que é aquilo que fica no espaço onde o Tribunal pretende fazer luz e, desse modo assim sem explicar porquê, ou com que expressões o arguido o terá feito, o Tribunal a quo diz o que consta do ponto 5 da sua fundamentação: que… ….Entre Julho de 2019 e Janeiro de 2021, o arguido, movido por ciúmes, gerava discussões com a ofendida, pelo menos uma vez por semana, nas quais, no interior da residência comum e na presença dos filhos, lhe dizia que tinha outros homens… e depois, para o que aqui agora interessa diz o seguinte que “TU ÉS UMA MALANDRA, ÉS UMA FALSA, UMA MORCONA, NÃO FAZES NADA, ÉS UMA GASTADORA”, bem como “TU VAIS VER O QUE TE VAI ACONTECER”.
21- Se esses factos que constam desse ponto 4 da sentença recorrida constavam duma acusação feita contra o pelo qual foi absolvido, a condenação do recorrente pelo ponto 5 e 6 dos factos provados constitui uma direta violação do principio “ne bis in idem “, violando diretamente n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
22- Parece de nulidade o que consta da sentença recorrida quando a seguir, nessa decisão se realça a bondade da assistente por… se ter recusado prestar declarações no âmbito de outro processo pelo mesmo crime, dando origem à absolvição do arguido (fls. 244e ss.), pois que tal consideração a ser valorizada neste processo, além de ser completamente falsa (pois a absolvição do arguido nesse outro processo de que a sentença fala não reside nem se resume a essa explicação) nem o Tribunal o poderia fazer mas fê-lo em mais outra violação do disposto pelo menos no n.º 1 do art. 355 do CPC, o Tribunal , que é de todo, ilegal e também por aí explica a sentença conforme ela foi dada.
23- O Tribunal recorrido postergou e desprezou relevante documentação junto aos autos, e mesmo as declarações da única testemunha que depôs com total credibilidade, pois trata-se do Dr. BB, presidente da Comissão de Proteção de Menores ..., e professor do Ensino Secundário, conhecedor a fundo do relacionamento entre arguido e assistente e entre estes e os filhos, (também como mediador em sede de mediação familiar) e, além do mais, a única testemunha imparcial, conhecedora profunda dos pormenores importantes desta relação, corroborada por documento (relatório da CPCJ) relevante que o tribunal postergou em violação de lei.
24- Quanto ao valor do depoimento desta testemunha o tribunal violou o disposto no 1 do art. 355 a contrario e a al. c) do n.º 1 do art. 410 pois depôs com total isenção na audiência de julgamento e ainda por cima na qualidade de representante do Ministério da Educação na CPCJ ... veio o Tribunal considerá-lo meramente colateral, o Tribunal No entanto, o tribunal “a quo“ nada disse e nada relevou relativamente a este considerando o recorrente também restarmos perante neste caso de omissão de pronúncia, nos termos do disposto no 1, al c) art. 379 º do CPP, pois o Tribunal deixou de se pronunciar sobre questão que deveria ter apreciado mas não o fez.
25- O Tribunal “ a quo “ serviu-se de declarações e documentos prestados ou juntos a fase de inquérito, que não sequer foram lidas em audiência de julgamento, e face aos quais o arguido nunca foi confrontado, valorizando-se no entanto para a condenação do recorrente, e que constitui valoração proibida nos termos do 355 do CPP.
26- Pois conforme consta da sentença recorrida (fls. 480 vº) é nela referido logo a seguir ao titulo nela designado como “1.3 MOTIVAÇÃO DA MATERIA DE FACTO “ que o arguido não prestou declarações em sede de audiência de julgamento, e a seguir consigna-se que….. O arguido não prestou declarações em sede de audiência de julgamento, mas fê-lo no primeiro interrogatório judicial, tendo o tribunal valorado estas declarações nos termos do art. 357.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal (sendo certo que as mesmas foram indicadas como prova na acusação e que aquela norma não impõe a sua leitura ou reprodução na audiência.
27- O arguido recorrente, em sede de declarações prestadas em 1.º Interrogatório Judicial, ( fls 137 a 138 dos autos) não fez sequer quaisquer declarações que permitissem ao Tribunal “ a quo”, a errada constatação, na fundamentação de facto de que os pontos 5 a 13 e muito menos que possam resultar das declarações do arguido, considerando que tais declarações, que pura e simplesmente nem sequer constam dos autos de interrogatório do recorrente em 1.º interrogatório judicial ( fls. 137 a 138 dos autos) teriam ser sempre lidas e reproduzidas em audiência de julgamento.
28- Para o recorrente essa prova é assim ilegalmente adquirida para os autos , (não só porque o arguido nem sequer fez essas declarações ) consignada nos referidos pontos 5 a 10 dos factos provados , está ferida de nulidade na medida em que o art. 357.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal, é claro no sentido de que a valoração das declarações prestadas pelo arguido devidamente informado nos termos do art.141.º, n.º 4, alínea b), do mesmo Código, exige a reprodução ou leitura das mesmas em audiência de julgamento, pelo que na opinião do arguido e salvo mais douta opinião é, pelo menos nessa parte, nula a sentença recorrida, nos termos do art. 122.º, n.º 1, do C.P.P., por violação do disposto nos artigos 355.º e 357.º do mesmo Código.
29- A prova testemunhal foi feita exclusivamente com o testemunho dos filhos do arguido, menores, que não falam ao arguido, não lhe atendem o telefone, não têm qualquer conversa, tendo excluído por completo o pai das suas vidas, ignorando por completo o sofrimento que o recorrente sente, o desgosto profundo que sente como pai por esta exclusão e este afastamento.
30- Mais do que isso, os filhos já depuseram como testemunhas contra o pai, em vários processos, em fase de inquérito e em julgamento, quer neste quer no 257/19, quer ainda no processo de regulação do poder parental em que sempre demonstraram frieza pelo pai e tudo isto assim é porque resulta, sem qualquer duvida para o recorrente, pela indução que nesse sentido a assistente vem cozinhando à vontade, sem alguém que a oriente, e todos os dias, nos sentimentos que os filhos tem pelo pai, pois é isso que a custódia dos menores lhe permite fazer, provocando um dano nos vínculos afectivos entre filhos e pai, de forma abusiva, com consequências na prova como foi feita nestes autos e na sentença de que se recorre.
31- Todos os sintomas de alienação parental estão presentes nesta conduta dos filhos do arguido e que resulta do facto de viverem sozinhos há quase 2 anos com a mãe, em prejuízo da identificação correta dos modelos parentais do que o pai deve representar nas suas vidas e das boas orientações comportamentais, fundamentais para ao seu crescimento e desenvolvimento saudável das suas identidades, contra a vontade do arguido, e que se sente impotente para provocar qualquer alteração deste estado de coisas, não na relação com os filhos, nas consequências jurídico penais que tem sentido, mas mais importante do que isso, no futuro dos menores de quem é pai.
32- O tribunal recorrido também não soube, apesar de estar devidamente avisado pela prova que o arguido fez em audiência de julgamento, observar este fenómeno tão vulgar e não soube acima de tudo interpretar corretamente os testemunhos dos filhos do arguido, minados e toldados pelos sentimentos que a alienação parental a que a assistente os sujeita, e não soube evitar as suas consequências naquilo que deveria ser, mas não foi: a ponderada apreciação dessa prova testemunhal dos filhos menores do arguido, fazendo aqui também um notório erro na apreciação dessa prova, em violão do disposto, no c) do 410-º do CPP.
33- As considerações que acima se vê alegando determinam que o recorrente possa invocar que o Tribunal recorrido lhe negou o direito a um processo equitativo, previsto no artigo 20º, nº 4, da Constituição da República e artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que estabelece como direito fundamental que “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão (…) mediante processo equitativo”.
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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo que o mesmo não merece provimento.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: transcrição
1. O arguido AA e a ofendida DD contraíram casamento no dia 26/08/2001, tendo fixado residência na Rua ..., ..., na freguesia e município de Arouca.
2. Dessa união nasceram dois filhos: EE em 20/08/2004 e CC em 07/11/2006.
3. No âmbito do inquérito nº. 275/10.7GAARC, que correu termos no DIAP de Arouca, foi aplicada ao arguido em 27-01-2011 o instituto de suspensão provisória do processo por 8 meses por factos integradores da prática do crime de violência doméstica, em que era ofendida DD, tendo os autos sido arquivados por cumprimento das injunções.
4. No âmbito do processo comum singular n.º 257/19.3GAARC, por decisão de 09-01-2020, transitada em julgado em 17-02-2020, foi o arguido absolvido da prática, por factos ocorridos entre 28/09/2011 e 28/07/2019, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pessoa da ofendida DD, tendo sidos julgados não provados os seguintes factos: «c) Desde pelo menos 28 de setembro de 2011, o arguido frequentemente dirige-se à ofendida e afirma “tens outros homens”, “és uma malandra”, “podias ir trabalhar para o campo”, “qualquer dia mato-me”, o que não se coíbe de o fazer na presença dos filhos. d) No dia 13 de julho de 2019, no interior da residência, a ofendida jantou com o arguido e o filho e após o arguido foi até uma festa da localidade do Calvário. e) Cerca das 23:45 horas, o arguido regressou à residência e de imediato dirigiu-se à cozinha onde se encontrava a ofendida acompanhada do filho e afirmou “és uma malandra”, após, o arguido dirigiu-se ao quarto da filha menor e começou a atirar alguns objetos pela janela. f) De seguida, o arguido dirigiu-se ao filho e afirmou “já preparei uma corda na garagem para me matar”, tendo a ofendida se dirigido a este para o repreender e o arguido de imediato agarrou-a pelos braços com bastante força e abanou-a. g) Nesse dia a ofendida pernoitou na residência dos seus progenitores. h) Que em consequência da agressão a ofendida tenha sofrido as lesões referi das em 5º). i) No dia seguinte a ofendida regressou à residência do casal e o arguido esteve uns dias sem proferir qualquer palavra. j) No dia 28 de julho de 2019 o arguido começou novamente com frequência a apodar a ofendida de “malandra”, afirmando “não queres trabalhar no campo”, “a tua filha não sabe fazer nada e já tem idade para fazer alguns trabalhos, mas tu não a mandas fazer”».
5. Entre Julho de 2019 e Janeiro de 2021, o arguido, movido por ciúmes, gerava discussões com a ofendida, pelo menos uma vez por semana, nas quais, no interior da residência comum e na presença dos filhos, lhe dizia que tinha outros homens.
6. Em tal período, pelo menos uma vez por semana, quando a ofendida chegava ao domicílio comum depois do trabalho e na presença dos filhos comuns, o arguido gerava discussões com esta no decurso das quais lhe dizia “TU ÉS UMA MALANDRA, ÉS UMA FALSA, UMA MORCONA, NÃO FAZES NADA, ÉS UMA GASTADORA”, bem como “TU VAIS VER O QUE TE VAI ACONTECER”.
7. Em data não concretamente apurada, mas situada em finais do ano de 2019, o arguido disse à ofendida, na residência comum e na presença dos filhos, que tinha uma corda e um escadote na garagem para se matar.
8. Em data não concretamente apurada, mas situada no início do ano de 2020, o arguido, junto ao portão da residência comum e perante os filhos comuns, mostrou à ofendida um frasco que afirmou ser de veneno e disse-lhe “Logo quando chegares estou aqui estendido”.
9. Tais ameaças de por termo à vida causaram constrangimentos à ofendida e aos filhos menores de ambos, que ficaram assustados com a referida atitude que o arguido pudesse vir a fazer a qualquer momento.
10. Em data não concretamente apurada, mas situada em Outubro de 2020, num fim-de-semana e depois do almoço na residência comum, o arguido apontou uma faca de cozinha à ofendida e aos filhos comuns, dizendo “vocês estão a ver aqui esta faca?”, o que motivou que estes saíssem do local receosos.
11. No dia 29/12/2020, cerca das 15 horas, na residência comum, o arguido abeirou-se da ofendida, que estava na cozinha, chamou-a em viva voz de “MALANDRA, FALSA” e disse-lhe “SÓ SABES PEDIR DINHEIRO”.
12. De seguida, o arguido levantou a sua mão na direção da ofendida de forma a desferir-lhe uma bofetada, mas entraram na cozinha os filhos comuns que se encontravam na sala, tendo-se o filho EE interposto entre os pais.
13. A ofendida ficou com medo e chamou a GNR, que compareceu no local.
14. O arguido atuou da forma descrita, com a intenção, concretizada, de humilhar, intimidar e importunar a ofendida, e de atingir na sua honra e consideração, sabendo que lhe devia um especial dever de respeito dada a circunstância de ser sua esposa, bem como com o intuito de a atingir na sua integridade física e psíquica.
15. Sabia ainda que o fazia no interior da residência comum e na presença de menores.
16. Agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
17. A assistente mantém receio do arguido, o qual se encontra atenuado pelas medidas de coação aplicadas com vigilância electrónica.
18. O arguido é natural de Arouca oriundo de um agregado familiar de condição socioeconómica baixa, sendo os pais agricultores. É o 6º de uma fratria de 9 filhos. No seio da sua família de origem, beneficiou de modelos educacionais ajustados aos valores sociais vigentes à época.
19. Ingressou no ensino primário em idade considerada normal, tendo concluído o 4º ano de escolaridade. Em virtude dos problemas económicos da família, o arguido abandona o sistema de ensino com 10/11 anos, começando então a trabalhar na agricultura, apoiando os progenitores. Mais tarde realiza experiência de trabalho na construção civil, tendo depois transitado para o sector da segurança/vigilância, onde se manteve, sensivelmente, 21 anos.
20. A relação do casal ao longo do tempo foi marcada por evidentes dificuldades, algo que se agravou a partir do momento em que decidem iniciar a construção da casa morada de família. A habitação foi construída em terrenos cedidos pelos pais da vítima e com recurso a crédito bancário, estando a ser amortizada.
21. À data dos fatos o arguido mantinha vivência em comum com a ofendida, ocupando o casal a casa de morada de família. Na habitação, para além do casal, residiam ainda os dois filhos, EE, agora com 17 anos e CC, de 14 anos de idade, ambos estando inseridos em atividades escolares.
22. O arguido desenvolvia atividade laboral regular como vigilante no Centro de Saúde ..., enquanto que a ofendida trabalha como empregada de escritório numa empresa localizada em São João da Madeira.
23. A relação do casal continuava a evidenciar manifestas dificuldades, sendo que o arguido as reconhece e as percepciona como de difícil resolução.
24. Desta forma, apesar de manterem uma vivência em comum, esta apresentava-se como de pouca qualidade em termos afectivos, pelo que, em termos concretos, o casal acabava por ter vidas autónomas.
25. Esta realidade transportaria para o arguido sentimentos de insatisfação, mas, paralelamente, não colocava como solução a hipótese de separação, alegando que, nessa eventualidade, acabaria por perder o contacto com os filhos. Refere, ainda, questões como a divergência na postura educativa e na gestão financeira como fontes de tensão entre o casal.
26. Todas estas questões resultaram no arguido numa evidente instabilidade psico-emocional, necessitando de medicação para estabilizar o humor (recorrendo ao Centro de Saúde e sua médica de família) e culminaram na separação conjugal, em situação de conflitualidade, e concretizada na saída coerciva de casa da parte do arguido, com medida de afastamento à ofendida vigiada por meios electrónicos, instalados em 19 de Janeiro de 2021.
27. O período que se seguiu a este acontecimento revela-se bastante conturbado para o arguido, que inicialmente manteve uma atitude de não aceitação do divórcio por mútuo consentimento, bem como se mostrou emocionalmente instável e com dificuldades em gerir o sucedido, nomeadamente, o afastamento dos filhos.
28. No âmbito das responsabilidades parentais dos filhos, a guarda dos menores foi entregue à mãe/ofendida, sendo atribuída pensão de alimentos aos menores na quantia total de 200€, sendo que inexistem visitas ao progenitor por vontade dos filhos, o que se mantém até ao momento, e perante o qual o arguido verbaliza significativos sentimentos de pesar e abandono.
29. O arguido reconhece as suas fragilidades emocionais tendo recorrido ao apoio da sua médica de família e técnica de psicologia do Centro de Saúde ..., apresentando-se com sintomatologia ansiosa depressiva, tendo sido medicado em conformidade, frequentado duas sessões de psicologia, também com integração em grupo de terapia, e encaminhado para estrutura de apoio no âmbito da prevenção da violência doméstica, “Espaço .../...”.
30. O arguido apresenta-se sempre colaborante, mantendo-se assíduo e respeitador do agendamento das sessões de psicologia. 31. O arguido identifica a relevância do presente acompanhamento, apesar de se posicionar enquanto vítima e não se reconhecendo como elemento de atitudes de agressividade, remetendo para a ofendida a maior parte da responsabilidade sobre a conflitualidade conjugal.
32. O arguido adopta esta postura de quase negação da responsabilidade perante eventuais danos provocados na vitima, mas percebe que a situação de conflito de longa data poderia ter sido gerida da sua parte de forma mais adequada e com estratégias alternativas.
33. Afirma que, na atualidade, está descentrado da ofendida, da qual se divorciou em Maio de 2021, não pretendendo qualquer reconciliação com a mesma, mas apenas desejando retomar o convívio com os descendentes, os quais considera estarem instrumentalizados pela ofendida.
34. Desde a sua saída de casa em Janeiro de 2021, o arguido foi acolhido no agregado da sua irmã, onde contribui para as despesas domésticas (água, electricidade, trato de roupas), na quantia média de 150€. Paralelamente, recorreu ao apoio domiciliário para as refeições (serviço prestado pela Santa Casa da Misericórdia ...), pelo qual paga 116€/mês.
35. Em termos profissionais, o arguido ficou desempregado da actividade de Segurança/Vigilante em finais de 2019 e passou a integrar um Programa Ocupacional do Centro de Emprego, com a duração de 10 meses, tendo-lhe sido atribuídas tarefas de vigilante e de limpeza/manutenção das Rotas Terrestres do Concelho de Arouca, tendo terminado no mês de Outubro de 2021. Nestas circunstâncias, o arguido recebia o subsidio de desemprego no valor de 585€, acrescido de 80€ de bolsa, acrescido do subsidio de alimentação.
36. Neste momento, o arguido encontra-se sem fonte de rendimento, o que o levou a suspender também o pagamento da pensão de alimentos aos menores.
37. Desde Novembro de 2021, encontra-se também de baixa médica não remunerada, devido a ter sido submetido a cirurgia ortopédica.
38. O arguido apresenta como maior preocupação as dificuldades económicas que vivencia e, sobretudo, a aparente rejeição dos descendentes face à figura paterna, acalentando expectativas futuras de conseguir retomar a relação com os filhos, embora revela reservas quanto a esta possibilidade.
39. As questões supra referidas potenciam a instabilidade emocional do arguido, que se vinha a instalar de longa data e agravada com a saída coerciva da casa da morada de família, a qual ainda não foi sujeita a partilha patrimonial, o que poderá vir também a constituir fonte de tensão entre arguido e ofendida.
40. O processo em apreço tem acentuado no arguido a sua ansiedade e inquietação, quer pelo facto de estar sujeito ao uso dos meios electrónicos de vigilância, o que refere causar-lhe constrangimento pessoal e social, bem como pelo facto de estar afastado da casa morada de família e dos descendentes.
41. O arguido não possui antecedentes criminais.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: transcrição
O arguido não prestou declarações em sede de audiência de julgamento, mas fê-lo no primeiro interrogatório judicial, tendo o tribunal valorado estas declarações nos termos do art. 357.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal (sendo certo que as mesmas foram indicadas como prova na acusação e que aquela norma não impõe a sua leitura ou reprodução na audiência – neste sentido, Ac. do STJ de 27-01-2021, proc. n.º 300/19.6GDTVD.L1.S1, www.dgsi.pt, com indicação de jurisprudência das Relações concordante, e, por maioria de razão, Ac. de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 8/2017).
Os factos 1 e 2 resultam dos assentos de nascimento do arguido fls. 30-31 e dos filhos de fls. 32-33 e 34, bem como das declarações do arguido e da assistente.
A prova dos factos 3 e 4 colheu-se no print da base de dados de suspensões provisórias do processo de fls. 29, da certidão de fls. 96-102 e da certidão de fls. 233-254.
Relativamente aos factos 5 a 13, a convicção positiva sobre os mesmos assentou na conjugação das declarações da assistente e dos depoimentos das testemunhas EE e CC (filhos comuns), bem como nas próprias declarações do arguido.
Com efeito, a assistente descreveu os factos de que foi vítima de modo consistente, circunstanciado e espontâneo, num registo próprio de quem vivenciou efetivamente a situação, contextualizando os factos, dando pormenores de algumas das ocorrências, sem empolamentos ou efabulações e num discurso que não denotou qualquer propósito em prejudicar o arguido, o que logrou convencer o Tribunal de que os factos ocorreram do modo pela mesma descrito.
A ausência desse propósito e de animosidade para com o arguido fica patente, de resto, no facto de a assistente ter anteriormente concordado com a aplicação da suspensão provisória do processo (fls. 97) e de se ter recusado prestar declarações no âmbito de outro processo pelo mesmo crime, dando origem à absolvição do arguido (fls. 244 e ss.), o que denota apenas a vontade de alguém que quer encerrar este capítulo da sua vida e prosseguir com a mesma.
Acresce que o relato da assistente resulta corroborado pelos depoimentos dos dois filhos comuns, os quais assistiram aos factos, tendo-os descrito de modo muito sereno, apesar de sujeitos a intensa e, as mais das vezes, inadequada contra-inquirição, não se descortinando espírito de maquinação contra o arguido, até porque foram capazes de reconhecer que os factos relatados não ocorriam diariamente.
Apesar da persistência da defesa do arguido em tentar demonstrar uma alienação destas testemunhas pela assistente, afigura-se-nos perfeitamente natural que as mesmas manifestem muitas reservas aos contactos e convívios com aquele tendo em conta, precisamente, os factos que presenciaram. Isso mesmo referiu, de modo expresso, CC. E para este estado de coisas o arguido continua a contribuir, pois que persiste em manter um clima de intimidação, como ficou patente com o telefonema aos filhos, aludido pela assistente e por CC, em que o mesmo disse “vejam lá o que vêm dizer ao tribunal”.
Também o episódio de Dezembro encontra sustento no auto de notícia de fls. 4-6.
Mas mais: no sentido da credibilidade da versão factual dada como provada concorrem as próprias declarações do arguido.
Sobre o episódio de Dezembro, o arguido admitiu uma discussão, embora aduza que foi a assistente a “provocá-lo”, admitindo ter “dado um berro mais alto”, perguntando-lhe “o que fizeste ao dinheiro?”. Acabou, porém, por reconhecer ter proferido as seguintes expressões: “malandra” (uma ou duas vezes, “sai da boca para fora”), “falsa”, “não fazes nada”, “só sabes pedir dinheiro”, “és uma gastadora”. Admitiu, ainda, um episódio em que verbalizou que se ia matar, mas localizando-o temporalmente em 2018.
Além disso, das declarações do arguido emergiu de modo manifesto o clima de conflito no relacionamento entre o casal suscitado por banda do mesmo, acusando a assistente de chegar a casa tarde, de não cozinhar, de a mesma ter “o vício de todos os dias ir às compras” e de precisar de “um grande tratamento”.
No mais, o arguido apresentou uma postura de mera vitimização, posicionando-se no papel de vítima e tentando perpassar uma imagem da assistente como uma pessoa desequilibrada, o que não mereceu qualquer credibilidade, tanto que o próprio, confrontado com a queixa apresentada contra a assistente, afirmou que a mesma era “para se defender”, confessando que não correspondia à verdade.
Atenta-se também que neste tipo de crime a prova testemunhal é muito reduzida, na medida em que os factos são normalmente cometidos (como o foram no caso) em momentos de privacidade familiar e fora de olhares exteriores, resumindo-se as mais das vezes ao depoimento das vítimas. Mas tal, por si só, não implica uma insuficiência probatória como também aventa a defesa do arguido. O que se exige, isso sim, é um cuidado acrescido na apreciação probatória que passa pela desmontagem de uma mera intencionalidade de prejudicar o arguido por parte das alegadas vítimas, o que, como referimos, não ocorre in casu.
Por outro lado, o depoimento da testemunha BB (representante do Ministério da Educação na CPCJ ...) foi meramente colateral, pois que o único conhecimento acerca do relacionamento entre o casal (cf. relatório da CPCJ ... junto na última sessão de julgamento) lhe adveio das próprias declarações do mesmo e, naturalmente, que delas ressaltaria uma “violência psicológica recíproca”, em face das acusações mútuas a esse respeito (notando-se, novamente, que o arguido admitiu que a queixa que apresentou era falsa).
A testemunha FF foi abonatória.
No que diz respeito aos factos de índole subjetiva constantes dos pontos 14 a 16, é sabido que, uma vez que o elemento subjetivo do tipo pertence à vida interior do agente e por isso, é insusceptível de direta apreensão e demonstração, só é possível captar a sua existência (salvo confissão), mediante inferência, através de factos materiais dos quais o mesmo se possa concluir de acordo com as regras da normalidade e da experiência, nomeadamente, dos factos integrantes dos elementos objectivos da infracção.
Ora, a partir do conjunto dos factos objectivos provados extrai-se com segurança, numa apreciação conforme as regras da experiência e atendendo à globalidade das condutas adoptadas pelo arguido e a todo o seu circunstancialismo inerente, a factualidade em referência.
O facto 17 resulta das declarações da assistente, sendo conforme com as regras da experiência comum considerando os factos em causa e a natureza impulsiva e manipuladora do comportamento do arguido.
Relativamente à matéria de facto atinente às condições de vida pessoal, familiar, profissional e económica do arguido, o Tribunal atendeu ao relatório social de fls. 466 e ss.
Quanto aos antecedentes criminais, teve-se em consideração o certificado de registo criminal de fls. 464.
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III - O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que o recorrente delimita o respetivo objeto à apreciação das seguintes questões, a saber:
- se a sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova;
- se foram incorretamente julgados os factos provados constantes dos pontos 5 a 10;
- se a sentença padece de nulidade por não se ter pronunciado sobre determinados meios de prova;
- se as declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial não podem ser valoradas por não se ter procedido à sua leitura em audiência;
- se foi violado o princípio ne bis in idem;
- se foi violado o direito a um processo justo e equitativo.
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A) Do vício de erro notório na apreciação da prova:
Alega o recorrente que a sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova previsto na al. c) do nº 2 do artº 410º do C.P.Penal, por não ter sabido interpretar os depoimentos prestados pelos filhos menores do arguido.
Tal afirmação do recorrente é sintomática do seu equívoco em sede de recurso.
Com efeito, constata-se que incorre no erro usual, mas incompreensível, de tratar os vícios do art.º 410º n.º2 do Código Processo Penal, como verdadeiros vícios do julgamento, o que é incorreto: os vícios do art.º 410º n.º2 do Código Processo Penal não são, nem devem ser tratados, como verdadeiros vícios do julgamento, mas sim como vícios da decisão.
O vício de erro notório de apreciação da prova ocorre quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis[3].
Ora, sob a capa de erro notório na apreciação da prova – vício que só releva, como se disse, se identificável no texto da decisão recorrida, art.º 410º n.º2 do Código Processo Penal – alega o recorrente algo de muito diverso, o erro de julgamento, o que não resulta do texto da decisão recorrida, e só pode ser apurado se ocorrer impugnação da matéria de facto nos termos do art.º 412º n.º3 do Código Processo Penal.
Como se refere no Ac. do STJ de 17.03.2004[4] "os vícios do artigo 410º nº 2 do CPP não pode, por outro lado, ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º do CPP."
Quando, como no caso sub judice, o recorrente coloca em causa o modo como o tribunal valorou a prova (testemunhal, pericial ou outra) não está a invocar os vícios do nº 2 do artº 410º, mas a questionar o uso que o tribunal recorrido fez do princípio da livre apreciação da prova (artº 12º do C.P.P.).
Pondo o recorrente em causa o modo como o tribunal a quo valorou o depoimento prestado em audiência pelos seus filhos menores, está a pôr em causa o julgamento e não a decisão, pelo que é errado lançar mão dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do C.P.Penal, razão por que improcede este fundamento do recurso.
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B) Do erro de julgamento da matéria de facto provada:
Sustenta o recorrente que os pontos 5 a 10 dos factos provados deveriam ter sido dados como não provados.
A respeito da impugnação da matéria de facto provada, nos termos do artigo 412º nº 3 do Código de Processo Penal, há que considerar o seguinte: Como se refere nos doutos acórdãos do S.T.J de 15.12.2005 e de 09.03.2006[5] e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».
A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto[6].
E, como se refere no acórdão desta Relação do Porto de 26 de Novembro de 2008[7] «não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido diretamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores», fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reações, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam»[8].
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário. Quando, no artigo 412º, nº 3, b), do C.P.P., se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.
De realçar que o juiz que, em primeira instância, julga goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção[9] e apreciação da prova. Nada obsta, pois, que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade[10].
É na audiência de julgamento que este princípio assume especial relevância, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355º do C.P.P., pois é aí o local de eleição onde existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova. Só os princípios da oralidade e da imediação “permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”[11].
No respeito destes princípios, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que decidiu contra o arguido não obstante terem subsistido (ou deverem ter subsistido) dúvidas razoáveis e insanáveis no seu espírito ou se a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum[12]. Assim, para impugnar eficientemente a decisão sobre a matéria de facto, "a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode (…) assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão"[13]. É que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si”. Dito de outra forma: “o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou corretamente as provas”[14]. Nada obsta a que o Tribunal alicerce a sua convicção, nos depoimentos de alguma ou algumas testemunhas em detrimento de outras ou do próprio arguido, por, conforme se escreve no Ac. da Relação Guimarães de 20-3-2006, proc. nº 245/06-1ª, rel. Fernando Monterroso “a função do julgador não é a de achar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos. Nem, tão pouco, tem o juiz que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe, antes, a espinhosa missão de elucidar, em cada um deles, o que lhe merece crédito. E citando Prof. Enrico Aguilha, Cruz Bucho em acórdão desse Tribunal «o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" – Psicologia Judiciária, vol. II,3ª ed. Pág. 12”.
Das motivações apresentadas pelo recorrente o que se depreende, na realidade, é que o mesmo faz a sua própria análise crítica da prova para concluir que o essencial dos factos que lhe dizem respeito deveriam ter sido considerados não provados. Mas o momento processualmente previsto para o efeito são as alegações finais orais a que alude o artigo 360º do CPP. A impugnação da decisão da matéria de facto não se destina à repetição, agora por escrito, do que então terá sido dito. Fica-se a saber qual teria sido a decisão se o arguido/recorrente tivesse sido o juiz do seu próprio caso, mas isso nenhumas consequências pode ter, pois é ao juiz e não a outros sujeitos processuais, naturalmente condicionados pelas específicas posições que ocupam, que compete o ofício de julgar.
Acresce que o artº 412º nºs 3 al. b) e 4 do C.P.Penal impõem que o recorrente, quando impugne a matéria de facto, especifique as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, e que essa especificação se faça por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 3 do artº 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, pois são estas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo de outras relevantes para a boa decisão da causa (nº 6 do mesmo preceito).
Ora, o recorrente não cumpriu esse ónus, limitando-se a indicar depoimentos de testemunhas que considera relevantes e especificando o início e termo dos respetivos depoimentos, manifestando a sua divergência ou discordância em relação à valoração das provas feita pelo tribunal recorrido. Ou seja, o que temos é uma diversa valoração dos meios de prova produzidos em audiência e a pretensão manifestada pelo recorrente de sobrepor a convicção que formou àquela que foi a convicção do tribunal de 1ª instância sobre os mesmos factos com base na prova produzida, livremente apreciada de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
Ora, pretendendo o recorrente impugnar a decisão sobre matéria de facto, a falta de indicação de qualquer das menções contidas nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do Cód. Proc. Penal, quer nas conclusões da motivação, quer na própria motivação do recurso, não impõe o convite ao aperfeiçoamento e tem como efeito o não conhecimento do objecto do recurso, nessa parte (assim, entre outros, o acórdão do TC n.º 259/2002, DR, II, de 13.12.2002, que considerou que tal interpretação não afronta qualquer norma constitucional).
Conclui-se assim que as motivações e conclusões, tal como estão formuladas pelo recorrente, não permitem apreciar a pretendida impugnação da matéria de facto.
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C) Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia:
Alega o recorrente que se verifica omissão de pronúncia nos termos do disposto no nº 1 al. c) do artº 379º do C.P.Penal, em virtude de o tribunal a quo não ter valorado devidamente o depoimento da testemunha Dr. BB, Presidente da Comissão de Proteção de Menores ... e conhecedor do relacionamento entre o arguido e a assistente e entre estes e os filhos.
Dispõe o artº 379º nº 1 al. c) do C.P.Penal, disposição legal convocada pelo recorrente, que "é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento".
Como se escreve no Ac. do STJ de 16.09.2008[15], «A omissão de pronúncia constitui uma patologia da decisão que consiste numa incompletude [ou num excesso] da decisão, analisado por referência aos deveres de pronúncia e decisão que decorrem dos termos das questões suscitadas e da formulação do objeto da decisão e das respostas que a decisão fornece.
A omissão traduz-se, assim, como resulta da tradução normativa da figura, na falta de tratamento e decisão (pronúncia) quando o tribunal deixa de conhecer de questões que deveria apreciar ou o excesso, quando conheça de questões de que não poderia conhecer – artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP.
A omissão de pronúncia significa, na essência, ausência de posição ou de decisão do tribunal em caso ou sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa (a “pronúncia”) sobre questões que lhe sejam submetidas.
As questões que o juiz deve apreciar são todas aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal (artigo 608º, nº 2 do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
As questões que são submetidas ao tribunal constituem o thema decidendum, como complexo de problemas concretos sobre que é chamado a pronunciar-se. Os problemas concretos que integram o thema decidendum sobre os quais o tribunal deve pronunciar-se e decidir, devem constituir questões específicas que o tribunal deve, como tal, abordar e resolver, e não razões, no sentido de argumentos, opiniões e doutrinas expostas pelos interessados na apresentação das respetivas posições[16].
Como se refere no Ac. do STJ de 26.01.2000[17] "não são os sujeitos processuais (nem os respetivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127º do Código de Processo Penal), aplicando depois o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade. Por isso, a circunstância de o conjunto dos factos provados não corresponder aos desejos dos referidos sujeitos processuais, não configura o vício de omissão de pronúncia, nem a violação dos artigos 368º e 379º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal".
Como bem realça o Sr. Procurador-Geral Adjunto deste Tribunal, no douto parecer que emitiu a fls. 538 e ss., "a omissão de pronúncia supõe que incida sobre uma verdadeira questão e não sobre consideração e valoração de meios de prova..."
Se o tribunal não atribuiu a determinado meio de prova o valor que o recorrente entende que o mesmo era merecedor, não estaremos nunca perante uma qualquer nulidade por omissão de pronúncia, devendo antes o recorrente socorrer-se (corretamente) do formalismo previsto no artº 412º do C.P.P.
Improcede, assim, mais este fundamento do recurso.
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D) Da valoração na sentença das declarações prestadas pelo arguido em primeiro interrogatório judicial:
Alega o recorrente que a utilização das declarações prestadas em 1ª interrogatório judicial constitui prova nula na medida em que a sua valoração exige a reprodução ou leitura das mesmas em audiência de julgamento, o que não foi feito, determinando a nulidade da sentença por violação do disposto nos artºs. 355 e 357º do C.P.P.
O artº 355º do C.P.P. estabelece, como regra geral, não valerem em julgamento, nomeadamente pra o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. Contudo, o nº 2 do mesmo preceito ressalva as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas nos termos dos artigos subsequentes.
Entre as exceções previstas pelo nº 2 do artigo 355º encontra-se a admissão de possibilidade de serem valoradas as declarações anteriormente prestadas pelo arguido perante autoridade judiciária nos termos estatuídos nos artigos 356º e 357º do Código Processo Penal.
A Lei nº 20/2013, de 21 de fevereiro, veio introduzir alterações ao Código Processo Penal designadamente, no que concerne à utilização em sede de audiência de julgamento, das declarações prestadas pelo arguido ao abrigo do disposto nos artigos 141.º n.º 4 al. b) e 357.º al. b) do Código de Processo Penal.
Com tal alteração pretendeu o legislador conciliar a garantia dos direitos de defesa, por um lado e, por outro, as necessidades de celeridade e eficácia no combate ao crime e defesa da sociedade.
A “Exposição de motivos” da Proposta de Lei n.º 77/XII que deu lugar à citada Lei expressa a preocupação mencionada, expendendo o seguinte: «(…) De maior relevância é a modificação introduzida quanto à possibilidade de utilização das declarações prestadas pelo arguido, na fase de inquérito e de instrução, em sede de audiência de julgamento. A quase total indisponibilidade de utilização superveniente das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores ao julgamento tem conduzido, em muitos casos, a situações geradoras de indignação social e incompreensão dos cidadãos quanto ao sistema de justiça. Impunha-se, portanto, uma alteração ao nível da disponibilidade, para utilização superveniente, das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores ao julgamento, devidamente acompanhadas de um reforço das garantias processuais. Assim, esta disponibilidade de utilização, para além de só ser possível quanto a declarações prestadas perante autoridade judiciária, é acompanhada da correspondente consolidação das garantias de defesa do arguido enquanto sujeito processual, designadamente quanto aos procedimentos de interrogatório, por forma a assegurar o efetivo exercício desses direitos, maxime o direito ao silêncio. (…).Por outro lado, exige-se a assistência de defensor sempre que as declarações sejam susceptíveis de posterior utilização, e exige-se a expressa advertência do arguido de que, se não exercer o seu direito ao silêncio, as declarações que prestar podem ser futuramente utilizadas no processo embora sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova (sublinhado nosso). A falta de assistência por defensor, bem como a omissão ou violação deste dever de informação determinam a impossibilidade de as declarações serem utilizadas, assegurando uma decisão esclarecida do arguido quanto a uma posterior utilização das declarações que, livremente, decide prestar. Preserva-se, assim, a liberdade de declaração do arguido que, apenas, voluntariamente pode prescindir do direito ao silêncio e, também, apenas voluntariamente, prescinde do seu controlo sobre o que disse. As declarações que, nos termos legais, possam e venham a ser utilizadas em julgamento, estão sujeitas à livre apreciação da prova, assim se autonomizando da figura da confissão prevista no artigo 344.º. A fiabilidade que devem merecer tais declarações, enquanto suscetíveis de serem utilizadas como prova em fase de julgamento, impõe que sejam documentadas através de registo áudio visual ou áudio, só sendo permitida a documentação por outra forma quando aqueles meios não estiverem disponíveis.».
Na sequência das alterações introduzidas pela Lei nº 20/2013 de 21.2, o artº 357º nº 1 al. b) do C.P.P., passou a dispor que: “A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido só é permitida: (…) b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 141º”.
E o artº 141º nº 4 al. b) passou a ter a seguinte redação: “Seguidamente, o juiz informa o arguido: (...) b) de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova.”
No caso em apreço, o arguido prestou declarações no primeiro interrogatório subsequente à sua detenção, após ter sido expressamente advertido de que as suas declarações poderiam vir a ser utilizadas em fase posterior do processo. Assim, tais declarações ficam sujeitas à livre apreciação da prova, ou seja, adquirem a natureza de uma prova pré-constituída e, em paridade com os restantes meios de prova produzidos em audiência, vai fundamentar a convicção do juiz de julgamento.
Contrariamente ao que acontecia antes da Lei nº 20/2013, em que a leitura de declarações anteriormente prestadas pelo arguido perante o juiz, apenas era permitida para esclarecer contradições ou discrepâncias com as declarações feitas em audiência, atualmente nada impede que o juiz de julgamento, perante declarações diametralmente opostas, funde a sua convicção apenas nas declarações prestadas em inquérito[18].
A questão que se coloca, porém, consiste em saber se as declarações prestadas anteriormente pelo arguido só poderão ser valoradas em julgamento se tiverem sido reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento.
Trata-se de questão que não tem tido tratamento uniforme na jurisprudência dos tribunais superiores. No sentido de que as declarações anteriormente prestadas pelo arguido só poderão ser valoradas em julgamento e na sentença final se forem reproduzidas ou lidas em audiência pronunciaram-se, entre outros, o Ac. Rel. Coimbra de 04.02.2015 (Proc. nº 212/11.1GACLB.C1, Des. Orlando Gonçalves), o Ac. Rel. Lisboa de 20.03.2018 (Proc. nº 124/16.2PELSB, Des. Artur Vargues), o Ac. Rel. do Porto de 27.06.2018 (Proc. nº 370/16.9PEGDM.P1, Des. Ermelinda Carneiro), o Ac. Rel. Lisboa de 30.05.2019 (Proc. nº 28/18.4PESNT.L1-9ª, Des. Calheiros da Gama).
No sentido de que a lei não exige a leitura de tais declarações em audiência para que as mesmas possam ser livremente apreciadas pelo tribunal na decisão final, se pronunciaram, entre outros, o Ac. do STJ de 27.01.2021 (Proc. nº 300/19.6GDTVD.L1.S1, Cons. Manuel A. Matos), o Ac. Rel. Porto de 14.09.2016 (Proc. nº 2087/14.0JAPRT.P1, Des. Artur Oliveira), o Ac. Rel. Évora de 07.02.2017 (Proc. nº 341/15.2JAFAR.E1, Des. João Amaro) e o Ac. Rel. Lisboa de 03.11.2020 (Proc. nº 660/19.9PBOER.L1-5, Des. Vieira Lamim).
Como se decidiu no citado Ac. do STJ de 27.01.2021, também nós entendemos que «os princípios nucleares do processo penal, enquanto garantias essenciais de defesa do arguido, não são violados com a utilização de declarações que o mesmo tenha prestado, com plena observância do disposto no artigo 141.º do CPP, em especial do seu n.º 4, alínea b), para formar a convicção do tribunal, sem a leitura das mesmas em audiência de julgamento. Num processo de estrutura acusatória, temos como certo que o lugar natural para o debate sobre a produção e valoração da prova é a audiência de julgamento. Assim, por regra, toda a prova deve ser produzida e examinada em audiência de julgamento. Todavia, existem excepções à produção da prova em audiência de julgamento. O artigo 355.º n.º 1, do CPP contempla a regra segundo a qual só podem ser utilizadas para formar a convicção do tribunal as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência de julgamento. O n.º 2 do mesmo preceito ressalva, no entanto, as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, remetendo para as disposições excepcionais contidas nos artigos 356.º e 357.º, onde se incluem as declarações feitas anteriormente pelo arguido «quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º», conforme artigo 357.º, n.º 1, alínea b), do CPP. ... Numa interpretação literal e conjugada dos artigos 355.º e 357.º, n.º 1, alínea b), do CPP, podemos concluir que, sendo a leitura das declarações do arguido, prestadas em conformidade com o artigo 141.º, n.º 4, alínea b), expressamente permitida na alínea b) do n.º 1 do artigo 357.º, tratando-se de uma situação que se integra na ressalva do n.º 2 do artigo 355.º, está-se perante uma excepção à regra do n.º 1 deste preceito: mesmo não tendo sido produzida ou examinada em audiência, tal prova poderá ser valorada para o efeito de formação da convicção do tribunal. O artigo 357.º, nº 1, alínea b), do CPP não impõe a leitura na audiência das declarações feitas pelo arguido perante autoridade judiciária com assistência de defensor em que o mesmo tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º;apenas a permite. E, nos termos do artigo 355.º, as declarações cuja leitura é permitida na audiência valem como prova, mesmo que não sejam aí lidas (produzidas ou examinadas). Decorre desta “permissão” que a leitura dos atos processuais ali mencionados traduz-se numa faculdade, atribuída aos sujeitos processuais, de o poderem fazer ou requerer. Não se impõe uma obrigatoriedade de leitura. Efetivamente, não decorrendo, implícita ou expressamente, da lei a obrigatoriedade da leitura de tais declarações mas uma mera faculdade, seria uma contradição manifesta com o disposto no artigo 355º, nº 2, do CPP, fazer depender a validade dessa prova da sua leitura em audiência. Se o legislador entendesse que não se tratava de uma permissão de leitura mas de uma obrigatoriedade de leitura, certamente o teria explicitamente referido. Nos termos do n.º 9 do citado artigo 356.º do CPP, a permissão de uma leitura, visualização ou audição tem que possuir justificação legal, ficando essa justificação legal a constar da acta, sob pena de nulidade. Decorre desta disposição que não se pode confundir a obrigatoriedade de justificar a permissão de leitura, com obrigatoriedade de leitura das declarações para memória futura, para valerem em julgamento, para efeitos de formação de convicção do tribunal.»
Aliás, mal se compreenderia que uma prova produzida e realizada ao abrigo da lei com a observância plena do contraditório, integrada nos autos, indicada pela acusação em momento próprio e cuja leitura não é proibida visse, posteriormente, a sua valoração pelo tribunal condicionada à realização de um ato formal de “leitura” na audiência.
Acompanhamos, por isso, o voto de vencido dos Conselheiros Gonçalo de Almeida Ribeiro e João Pedro Caupers no Ac. do Tribunal Constitucional nº 770/2020 de 21.12.2020 que aqui reproduzimos: "A decisão baseia-se no argumento de que a valoração das declarações do arguido indicadas como meio de prova no despacho de acusação e prestadas perante autoridade judiciária – com assistência de defensor, advertência da sua aproveitabilidade no julgamento e garantia de contraditório no momento da produção – é constitucionalmente admissível se e na medida em que o arguido presente em audiência de julgamento gozar de um direito, fundado na liberdade de se não incriminar, de dispor do que anteriormente declarou, direito este que pressupõe a leitura ou reprodução em audiência das declarações anteriormente prestadas. Não podemos acompanhar este entendimento. Em primeiro lugar, a liberdade de o arguido se não incriminar não implica nenhum direito a dispor do que declarou – incompatível com a valoração, em quaisquer circunstâncias, das declarações por si prestadas antes do julgamento −, mas de um direito a contraditar a prova constituída por essas declarações. Com efeito, o arguido não pode exigir o apagamento do que disse, num exercício esclarecido de liberdade e rodeado de todas as garantias; o que pode, se assim o entender, é discutir o valor probatório das declarações que prestou. Em segundo lugar, admitindo-se – como se admite no acórdão, justamente a propósito das declarações livremente prestadas pelo arguido – que os direitos ao silêncio e à não auto-incriminação são renunciáveis, não se vê como o próprio direito a que as declarações sejam lidas ou reproduzidas em audiência, que se entende decorrer daquele, não seja igualmente renunciável. Assim, a faculdade de o arguido requerer a leitura ou reprodução das declarações – reconhecida na decisão recorrida – cumpre plenamente as exigências inerentes ao seu estatuto constitucional, sem que se justifique nenhuma imposição do estado de coisas correspondente ao seu uso efetivo. Em terceiro lugar, a conclusão segundo a qual a admissibilidade constitucional da valoração das declarações como meio de prova reclama a obrigatoriedade da sua leitura ou reprodução em audiência de julgamento contradiz a premissa maior do argumento, qual seja a de que o arguido deve ser tratado como sujeito e não objeto do processo penal, um sujeito capaz de se autodeterminar através de decisões informadas e rodeadas de garantias. Sujeitar o arguido à leitura ou reprodução das suas declarações anteriores sem que tenha manifestado a sua vontade nesse sentido ou mesmo contra a sua vontade expressa constitui uma agressão à sua dignidade, uma forma – ainda que inspirada pela benevolência − de o tratar como objeto do comportamento estatal. Em quarto lugar, é difícil compreender de que modo a não leitura ou reprodução de declarações prestadas pelo arguido quando este o não requeira possa ofender o princípio da lealdade. Quando o julgamento se inicia, o arguido tem a noção perfeita de que essas declarações, uma vez indicadas no despacho de acusação, e desde que prestadas em estrita obediência às exigências legais, constituem meios de prova. Da mesma forma, um documento da sua autoria pode ser valorado ainda que não seja lido em julgamento ou uma escuta telefónica em que tenha intervindo pode ser valorada mesmo que não reproduzida em audiência. Só haveria falta de lealdade se o despacho de acusação não mencionasse o meio de prova em causa. Finalmente, note-se que o juízo de inconstitucionalidade não recai sobre uma norma que admita a valoração das declarações prestadas pelo arguido sem que o juiz que preside ao julgamento o tenha questionado sobre se pretende que as mesmas sejam lidas ou reproduzidas em audiência. Por outras palavras, não está em causa a questão da admissibilidade constitucional do consentimento tácito perante a evidência de que o arguido está na posse de todos os dados e condições para exercer a faculdade que se lhe reconhece de exigir a leitura ou reprodução. O juízo de inconstitucionalidade proferido neste acórdão vai muito para além disso: pela sua amplitude, exige-se a leitura ou reprodução mesmo nos casos em que o arguido tenha expressamente renunciado a tal direito. A recondução desta exigência ao valor eminente da dignidade da pessoa, como sujeito capaz de se autodeterminar através de decisões livres e esclarecidas, parece-nos a quadratura do círculo».
Considerar que este concreto meio de prova só poderá ser utilizado para formar a convicção do julgador se se tiver procedido à sua reprodução em audiência, seria transformar uma "faculdade" (permissão) em obrigatoriedade (condição sine qua non), numa situação em que tais declarações foram prestadas na presença de defensor, sendo o arguido devida e formalmente esclarecido da possibilidade da sua futura utilização e constando as mesmas dos meios de prova indicados pela acusação, pelo que o arguido não pode deixar de saber que as declarações que então prestou vão ser valoradas pelo tribunal, podendo em audiência livremente contrariá-las e justificar as razões de eventuais divergências com as declarações que entender prestar em audiência de julgamento.
Consideramos, por isso, que inexiste qualquer ofensa aos princípios constitucionais do contraditório, da imediação e da oralidade, pelo facto de o tribunal recorrido ter valorado na sentença as declarações prestadas pelo arguido em primeiro interrogatório judicial, com respeito pelo artº 141º do C.P.P., não tendo por isso ocorrido qualquer valoração de prova proibida por violação do disposto nos artºs. 355º e 357º do C.P.P.
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E) Da violação do princípio ne bis in idem:
Sustenta o recorrente que o tribunal acabou por o condenar efetivamente por factos pelos quais já tinha sido julgado e absolvido no processo nº 257/19.3GAARC, pois que nesse processo lhe eram imputados factos ocorridos entre 28.09.2011 e 28.07.2019 e a presente condenação respeita a factos praticados entre Julho de 2019 a Janeiro de 2021 (cfr. ponto 4 dos factos provados).
Postula o artigo 29º, n.º 5 da Constituição da República que "Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime”.
O princípio ne bis in idem “embora pensado e estruturado em razão da segurança e paz jurídica”, “assume também uma garantia fundamental do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto”[19].
Quando se diz que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, a dificuldade está em determinar o que pode entender-se pela expressão "mesmo crime”.
Não pode desde logo ser considerada no seu estrito sentido técnico-jurídico, mas em função do que pode ser definido como objeto do processo e dos poderes de cognição do tribunal. Recorrendo a um critério não naturalístico mas essencialmente normativo, com máxima expressão no que concerne ao quadro dos poderes cognitivos do tribunal, pronunciou-se Eduardo Correia[20] do seguinte modo:«O objeto relativamente ao qual é mister pôr o problema da identidade do facto como pressuposto do caso julgado há-de ser o próprio conteúdo da sentença, não só nos expressos termos em que é formulada, mas ainda naqueles até onde se podia e devia estender o poder cognitivo do tribunal. A força consuntiva de uma sentença relativamente a futuras acusações e processos há-de ser medida pelos devidos limites do seu objeto, ou seja, estender-se-á até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos a julgamento». […] «O juiz tem, pois, de estender a sua atividade cognitiva até onde pode e deve. E pelos limites deste poder de cognição há que medir o âmbito do conteúdo da sentença e, portanto, os termos da sua força consuntiva relativamente a futuras acusações. A esta luz, o problema de saber quais os limites da eficácia do caso julgado em matéria penal está, assim, logicamente condicionado por este outro de determinar até que ponto pode e deve ir a atividade cognitiva do juiz».
Pode assim dizer-se que, definindo a acusação o objeto do processo e os poderes de cognição do juiz – a vinculação temática do tribunal – só os factos que constam dessa acusação estão abrangidos pelo referido efeito consuntivo de caso julgado, não podendo mais constituir objeto de futuro processo.
Como refere Frederico Isasca[21], citando GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA: «crime significa, aqui, um comportamento de um agente espacio-temporalmente delimitado e que foi objeto de uma decisão judicial, melhor, de uma sentença ou decisão que se lhe equipare» . «a expressão “crime” não pode ser tomada ao pé da letra, mas antes entendida como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar. O que o nº 5 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa proíbe é, no fundo, que um mesmo concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal».
Como se disse, são “os factos descritos na acusação normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória, que definem e fixam o objeto do processo, que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal”[22].
Como refere Frederico Isasca[23], «… o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que diretamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efetivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados».
Por sua vez, decidiu o Ac. do STJ de 15.03.2006, de que foi relator o Cons. Oliveira Mendes: “O termo “crime” não deve pois ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar.
O que o artigo 29º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, proíbe, é, no fundo, que um mesmo e concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal.
Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu diretamente, tem de considerar-se indiretamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.”
Traduzindo-se, pois, a expressão “mesmo crime”, no designado “pedaço de vida” apreciado e julgado e que constitui ou integra um determinado crime, importa agora analisar todo o factualismo fornecido pelos autos com vista à verificação ou não de caso julgado relativamente ao “pedaço de vida” que no caso releva.
Como se extrai do ponto 3 da matéria de facto provada, no Proc. nº 257/19.3GAARC foi imputada ao arguido a prática de factos ocorridos entre 28.09.2011 e 28.07.2019, integradores de um crime de violência doméstica agravada p. e p. no artº 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do Cód. Penal.
Nos presentes autos é imputada ao arguido a prática de novo crime de violência doméstica por factos ocorridos entre Julho de 2019 e Janeiro de 2021.
Pese embora as expressões depreciativas imputadas ao arguido, como tendo visado a assistente coincidam apenas parcialmente com as que lhe foram imputadas no Proc. nº 257/19.3GAARC, o certo é que os "todos" os factos praticados até 28 07.2019, tenham ou não sido incluídos na anterior acusação, têm de considerar-se como fazendo parte do "pedaço de vida" já julgado e por isso definitivamente resolvido, ainda que respeite a expressões diferentes das que lhe foram então imputadas.
Assim sendo, para que se respeite o caso julgado formado pela anterior decisão de absolvição proferida, impõe-se a alteração do ponto 5 da matéria de facto provada, passando a mesma a ter a seguinte redação:
"Entre 29.07.2019 e Janeiro de 2021, o arguido, movido por ciúmes, gerava discussões com a ofendida, pelo menos uma vez por semana, nas quais, no interior da residência comum e na presença dos filhos, lhe dizia que tinha outros homens."
Não obstante a precedente alteração temporal, a mesma não implica qualquer modificação da decisão final.
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F) Da violação do direito a um processo justo e equitativo:
Alega o recorrente que o tribunal recorrido lhe negou o direito a um processo equitativo consagrado no artº 20º nº 4 da CRP e no artº 6º nº 1 da CEDH, por ter "percutido o dever de efetuar um exame criterioso e diligente das provas apresentadas pelas partes".
A ordem jurídica portuguesa consagra, como direito fundamental, a exigência de um processo equitativo, como decorre dos artigos 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que, por ter sido ratificada por Portugal, faz parte integrante do direito português – art. 8.º, n.º 1, da Constituição.
O direito a um processo equitativo constitui um dos pilares mais relevantes do Direito Internacional, tendo como desiderato a salvaguarda dos indivíduos contra tratamentos arbitrários (encontrando ainda acolhimento em variados diplomas internacionais, a saber: arts. 14.º e 15.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; arts. 8.º e 9.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; arts. 7.º e 26.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos).
Na esteira de MANUEL AFONSO VAZ/CATARINA SANTOS BOTELHO[24] o direito ao processo equitativo “eaaveriguaçãodasuaviolaçãodeverãoefetuar-sesegundoumaanálisecasuística,queatendaàsparticularidadesdoprocessoemcausa.Nestasede,dever-se-áperspetivaroprocessocomoumtodo,noseuconjunto”.
Ora, perscrutando o caso em apreço, não se verifica que esteja em causa a violação do direito ao processo equitativo, na medida em que o arguido pôde exercer plenamente o seu direito de defesa, nele incluído o direito ao recurso e não resulta, nem o recorrente o demonstra, que o processo tenha sido apreciado e decidido de forma arbitrária, violando os seus direitos substantivos ou processuais. De realçar até que nenhum dos fundamentos invocados pelo recorrente obteve provimento, o que é revelador de que não se manifesta a violação do direito a um processo justo e equitativo.
Improcede, por isso, mais este fundamento do recurso.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando consequentemente a sentença recorrida.
Custas pelo arguido/recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC - artº 8º nº 9 do RCP e tabela III anexa.
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Porto, 13 de julho de 2022
(Elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)
Eduarda Lobo
Castela Rio
Francisco Marcolino
___________________ [1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada). [2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95. [3] Cfr. Simas Santos e Leal-Hemriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, pág. 77. [4] Proferido no Proc. nº 03P2612, Cons. Henriques Gaspar. [5] Proferidos nos Procs. nº 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos relatados por Simas Santos e disponíveis in www.dgsi.pt [6] Neste sentido, v. acórdão do S.T.J. de 21.01.2003, Proc. nº 02ª4324, rel. Afonso Correia, também disponível in www.dgsi.pt [7] Relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pgs. 176 e segs. [8] Neste sentido, v. acórdão do S.T.J. de 09.07.2003, Proc. nº 3100/02, rel. Leal Henriques, disponível in www.dgsi.pt). [9] A livre convicção “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores.” – cfr. Idem, Ibidem, pág.298. [10] “(…) há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, pelo que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.” Ac. RG 20/3/06, proc. nº 245/06-1. [11] V. Fig. Dias, Direito Processual Penal, 1º Vol., págs. 233-234. [12] Neste sentido, v. Ac. RC de 6/3/02, CJ, ano XXVII, t. II, pág. 44. [13] Cfr. Ac. T.C. 198/2004 de 24/3/04, acima citado. [14] V. Ac do STJ de 07/6/06, proferido no Proc. 06P763, disponível no site www.dgsi.pt [15] Proferido no Proc. nº 08P2491, proferido pelo Cons. Henriques Gaspar, e disponível em www.dgsi.pt. [16] Cfr., v. g., os acórdãos do STJ de 30.11.05, Proc. 2237/05; de 21.12.05, Proc. 4642/02 e de 27.04.06, Proc. 1287/06. [17] Proferido no processo nº 99P748, Cons. Pires Salpico. [18] Neste sentido, cfr. Santos Cabral, in “Código de Processo Penal Comentado”, António Henriques Gaspar e outros, pág. 591. [19] Cfr. Frederico Isasca, in Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância em Processo Penal, p. 218 e 226. [20] In A Teoria do Concurso em Direito Criminal, pág. 304 e 305. [21] Ob. cit, págs. 220/221. [22] Cfr., neste sentido, Ac. do TC nº 130/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. [23] Ob. cit., págs. 242 e 229. [24] In “Algumasreflexõessobreoartigo6.ºdaConvençãoEuropeiadosDireitodoHomem- Direitoaumprocessoequitativoeaumadecisãonumprazorazoável”, in E-Pública - Revista Eletrónica de Direito Público, n.º 7, 2016, p. 5.