JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
DEVER DE LEALDADE
DESPEDIMENTO ILÍCITO
Sumário


I - Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
II - O juízo atinente à gravidade dos factos e à culpa do trabalhador pauta-se por critérios de razoabilidade, exigibilidade e proporcionalidade, aferidos de acordo com o entendimento de um empregador normal, em face das circunstâncias do caso concreto.
III - Na alínea f) do n° 1 do art.° 128°, do Código do Trabalho, está contido um dever de honestidade que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento suscetível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador.
IV - Entregando o trabalhador à empregadora "certificados de incapacidade" comprovativos da incapacidade temporária para o trabalho, com autorização para ausência do domicílio apenas para tratamentos, sofrendo o mesmo uma queda no local de trabalho do seu filho (que acompanhava), configura-se uma violação do dever de lealdade para com o empregador, em virtude de ter infringido a obrigação de se abster de comportamento que a empregadora confiava que não tivesse lugar, em face daquilo que o trabalhador lhe comunicara (a obrigação de, em virtude da doença de que padecia, não se ausentar de casa sem autorização médica).
V - Porém, não se demonstrando que o trabalhador estivesse a trabalhar para outrem, ou que estivesse capaz para trabalhar, não é razoável nem proporcional sancioná-lo com a mais grave das sanções disciplinares, tanto mais que está em causa uma relação laboral que perdura no tempo há mais de 20 anos, pelo que o despedimento promovido pela ré foi ilícito.

Texto Integral





Proc. n.º 150/21.0T8AVR.P1.S1
MBM/JG/RP


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.

1.1. A./recorrido: AA
1.2. Ré/recorrente: GALUCHO – INDÚSTRIAS METALOMECÂNICAS, S.A.

X X X

2. Em ambas as instâncias foram proferidas decisões a julgar parcialmente procedente a ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento em causa.

3. Interposto recurso de revista pela ré, não foi o mesmo admitido por despacho do Senhor Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto (TRP), invocando para tanto o preceituado no art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil[1]dupla conformidade.

4. A mesma deduziu reclamação, nos termos do art. 643º, alegando a descaracterização da dupla conforme, por a fundamentação das instâncias ser essencialmente diferente, a qual foi deferida (a primeira instância considerou não ter o trabalhador cometido uma infração disciplinar, enquanto o TRP, reconhecendo embora a relevância disciplinar da sua conduta, considerou inverificado o requisito “impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho” e concluiu no sentido de ser desproporcional o despedimento).

5. Na revista, sustenta essencialmente a recorrente, nas conclusões da sua alegação, que a violação do dever de lealdade imputada ao autor e reconhecida pelo TRP se reveste de “intolerável gravidade”, configurando justa causa de despedimento.

6. O A. contra-alegou, concluindo no sentido do improvimento do recurso.

Para além disso, peticiona a condenação da R. como litigante de má-fé, em virtude de, tendo interposto recurso sem fundamento legal, ter feito um uso manifestamente reprovável do processo.

Esta questão encontra-se manifestamente prejudicada pelo deferimento da reclamação (cfr. supra n.º 4) e consequente admissão da revista, pelo que não se conhecerá da mesma. 

7. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, em parecer a que respondeu o A./recorrido, em linha com o antes sustentado nos autos.

8. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine), em face das conclusões da alegação de recurso, a única questão a decidir consiste em determinar se in casu se verifica justa causa de despedimento.

Decidindo.



II.


9. Com relevância para a compreensão e decisão do recurso de revista, as instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1. O Autor foi admitido ao serviço da Ré em 04 de janeiro de 1999, para exercer as funções de ....

2. Em 09 de dezembro de 2016, o Autor deixou de trabalhar, em virtude de uma operação ao pé direito.

3. Entre 09 de dezembro de 2016 e 02 de junho de 2017, o Autor não se apresentou a prestar trabalho, entregando à Ré sucessivos certificados de incapacidade para a prestação da sua atividade.

4. Entre o dia 05 de junho de 2017 e o dia 09 de junho de 2017, o Autor gozou férias.

5. No dia 12 de junho de 2017, o Autor apresentou-se a prestar trabalho.

6. Em 14 de junho de 2017, o Autor apresentou à Ré novo certificado de incapacidade temporária para o trabalho, com fundamento em doença natural.

7. Desde o dia 14 de junho de 2017 que o Autor não voltou a apresentar-se para prestar trabalho na Ré, entregando-lhe periodicamente sucessivas renovações de declaração médica de situação de incapacidade para a prestação de trabalho.

8. O último certificado de incapacidade entregue pelo Autor à Ré data de 15 de dezembro de 2020 e é referente ao período entre 15 de dezembro de 2020 e 13 de janeiro de 2021.

9. Nos termos do referido certificado, entregue pelo Autor à Ré, o Autor padece de doença incapacitante para a sua atividade profissional e apenas está autorizado a ausentar-se do seu domicílio para tratamento, prevendo a possibilidade de "em caso devidamente fundamentados o médico pode[r] autorizar a ausência no período das 11 às 15h e das 18 às 21h”.

10. O Autor desempenhava na Ré funções de Chefe de equipa da Secção de ..., desde há cerca de 10 anos antes de entrar de baixa médica.

11. As funções do Autor consistiam em «(...) retirar peças metálicas, de vários pesos e tamanhos (pode chegar aos 25 Kg) de uma caixa, colocá-las num gancho onde estas vão ser pintadas e depois de secas, retirá-las do referido gancho e voltar a arrumá-las na respetiva caixa. Esta tarefa é executada durante 8 horas e em pé. Para além desta tarefa é coordenador do seu sector que é a .... Portanto anda de um lado para outro a vigiar e a orientar o trabalho».
12. (…)
13. (…)
14. No dia 24 de setembro de 2020, o Autor encontrava-se nas instalações da sociedade "A...", tendo caído de cima de uma galera, sofrendo lesões na cabeça e tórax.

15. Aquando da queda o Autor, estava presente nas instalações da "A..." o filho do Autor, BB, trabalhador da referida sociedade, que se encontrava a preparar a carga de um veículo num reboque.
16. (…)
17. O sucedido motivou comentários dos trabalhadores da Ré.

18. O Autor acompanhava por vezes o filho nas viagens de trabalho que este fazia.

19. A 01 de outubro de 2020, a instrutora procedeu à abertura do procedimento disciplinar (…)
20. (…)
21. (…)
22. (…)
23. (…)
24. (…)
25. (…)
26. (…)
27. (…)
28. (…)
29. (…)
30. (…)
31. (…)
32. (…)
33. (…)
34. (…)
35. (…)
36. (…)
37. (…)
38. (…)
39. (…)
40. Em 08 de janeiro de 2021, a Administração da Ré (…) proferiu decisão final, deliberando a aplicação ao Autor da sanção disciplinar de despedimento com justa causa, sem compensação ou indemnização.
41. (…)
42. O Autor nunca tinha sido alvo de qualquer sanção disciplinar por parte da Ré.

43. No âmbito do procedimento disciplinar, foi requerida pela Ré ao Centro Distrital de Aveiro do Instituto da Segurança Social, I.P., em 25.11.2020, a verificação da situação de incapacidade temporária para o trabalho do Autor.
44. Em 11.11.2020, o Centro Distrital de Aveiro do Instituto da Segurança Social, I.P. comunicou o resultado dessa verificação, que foi no sentido de que o Autor «Não está apto para desempenhar a atividade».

45. Essa comunicação não foi junta ao procedimento disciplinar.
46. (…)
47. A situação de doença do Autor não estava ainda resolvida aquando da apresentação pelo Autor da contestação/reconvenção, em 09.03.2021

10. E não provado:

- que a queda sofrida pelo Autor no dia 24 de setembro de 2020 nas instalações da "A..." ocorreu quando o Autor executava trabalhos de serralharia por conta da referida empresa;

- que essa queda se deu quando o Autor se encontrava em cima de uma palete, num empilhador, a cortar uma peça numa galera de um reboque, usando para o efeito um maçarico;
- que o Autor alguma vez trabalhou para as empresas "A..." e/ou "CC", executando trabalhos de serralharia ou de qualquer outro tipo;
- que na referida data (24 de setembro de 2020), o Autor não estava incapacitado de prestar a sua atividade profissional;
(…)


III.

11. No plano do Direito, o objeto de qualquer processo é constituído por uma ou mais “questões”, abrangendo cada uma delas os pontos (sub-questões) que no caso concreto essencialmente a condicionam ou são seu pressuposto[2].

A “questão fundamental” que constitui o objeto processual da ação movida pelo autor à ré consiste em determinar se ocorre justa causa de despedimento, questão que se desdobra nas sub-questões correspondentes aos três requisitos – ou, dito de outra forma, elementos constitutivos (cfr. art. 342º, nº 1, do Código Civil) – deste conceito (cfr. arts. 351.º, n.ºs 1 e 3, e 330.º, n.º 1, do Código do Trabalho).

Elementos que são os seguintes: i) uma infração disciplinar, ou seja, um comportamento ilícito e culposo do trabalhador;[3] ii) a impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho (e, conexamente, a proporcionalidade do despedimento); iii) a existência de um nexo de causalidade entre o dito comportamento e esta impossibilidade.

 O direito do empregador ao despedimento pressupõe a verificação cumulativa dos três requisitos, os quais, em termos de precedência lógico-jurídica, se estruturam pela ordem indicada.

In casu, a primeira instância considerou não ter o trabalhador cometido, sequer, uma infração disciplinar, (única) razão pela qual julgou o despedimento ilícito.

A Relação, afastando os motivos que suportam esta decisão, decidiu, diferentemente,  ter o autor perpetrado uma infração disciplinar. Todavia, dando mais um passo no seu percurso lógico-jurídico e já noutro patamar analitico, afastou a existência de justa causa de despedimento, por ter julgado inverificado o segundo  elemento constitutivo desta figura: a impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho (e, bem assim, a proporcionalidade do despedimento).

12. Apesar de não estar em discussão neste recurso a problemática da relevância disciplinar da conduta do autor, tendo em conta a adjacência existente entre tal questão e o objeto da revista, bem como, conexamente, a importância de na sua globalidade se alcançar o pensamento enformador da decisão recorrida, afigura-se-nos ser pertinente registar os segmentos em que fundamentalmente se discorre na mesma sobre o assunto:

“(…)
Aquilo que está em causa nos autos são eventuais falsas declarações relativas à justificação de faltas, e não a ocorrência de faltas injustificadas (estas têm a ver com a violação do dever de assiduidade), pois as faltas foram justificadas (com apresentação de "certificados de incapacidade" com fundamento em doença natural incapacitante (…), restando saber se foram justificadas com um pressuposto falso/por meio de declarações falsas.

Tem-se entendido que para que existam falsas declarações sobre justificação de faltas se exige que o trabalhador falseie intencionalmente a verdade dos factos, iludindo o empregador e pondo em crise o princípio da mútua confiança e lealdade que caracteriza o contrato de trabalho.

Ora, a autoria dos "certificados de incapacidade" não pertence ao trabalhador (o Autor), não havendo elementos (não se retira dos factos provados) para dizer que essa incapacidade não existisse, ou seja, não se pode dizer que o Autor falseasse intencionalmente a verdade dos factos quanto à justificação das faltas.

Não se pode, pois, enquadrar a situação dos autos no n.° 2 do art.° 351.° do Código do Trabalho, importando, porém, ver se existe infração disciplinar, como alega a Recorrente (com violação do dever de lealdade).
(…)
Para além de regras de comportamento da contraparte (lealdade ao empregador), exige-se ainda que o trabalhador empreenda uma conduta correta do ponto de vista dos interesses da organização (lealdade à organização do empregador).

Ou seja, nesta alínea f) do n° 1 do art.° 128° do Código do Trabalho, está contido um dever de honestidade que implica uma obrigação de abstenção de qualquer comportamento que possa fazer desaparecer a relação de confiança (enquanto obrigação de conteúdo mais amplo) que se move nas coordenadas impostas pelo princípio da boa-fé.
(…)
Como se vê, não está apurado que o Autor executasse tarefa por conta da sociedade "A...", apenas se sabendo que num determinado dia sofreu uma queda quando estava em cima de uma galera nas instalações daquela sociedade.

Todavia, esse dia situa-se num período em que o Autor se encontrava "de baixa", tendo comunicado à empregadora (a Ré/Recorrente) que se encontrava doente (doença natural) com incapacidade para o trabalho, e que apenas podia sair de casa se autorizado (por médico), sendo certo que na comunicação que fez à empregadora - a comunicação corporizou-se na entrega de Certificado de Incapacidade Temporária para o Trabalho, como resulta do ponto 7 dos factos provados - não consta qualquer autorização específica para sair de casa, no espaço destinado a tal (como se comprova da visualização do respetivo Certificado, junto ao procedimento disciplinar, nada estando inserto no campo "autorização" ).
(…)
Quer isto dizer que o Autor violou a obrigação de se abster dum comportamento que a sua empregadora confiava não acontecesse, em face daquilo que o Autor lhe comunicou: a obrigação de, em virtude da doença de que padecia, não se ausentar de casa sem autorização médica.

Dito de outra forma: o trabalhador comunicou à sua empregadora que segundo avaliação médica se encontrava impossibilitado de trabalhar e por isso não comparecia para trabalhar, mas mais do que isso, que por determinação médica tinha que permanecer em casa, só podendo sair de casa com autorização médica que não estava dada; a partir daí a empregadora sabe que o Autor não comparece ao trabalho com justificação, e confia que o Autor permanece em casa porque não tem autorização para tal (podendo dizer-se ser o medicamente adequado para a sua recuperação).

Como refere a Recorrente, a mesma confiava que o Autor estava em casa a recuperar da doença, e não fora de casa, sem autorização médica, a colocar em causa a sua recuperação (com vista a poder voltar a cumprir a obrigação com que se comprometera com a empregadora - a prestação de trabalho - o mais rapidamente possível, como era interesse da empregadora).

Assim, o descrito comportamento do trabalhador é suscetível de minar a relação de confiança entre o trabalhador e a sua empregadora (note-se que o Autor não estava, por exemplo num Centro de Saúde em consulta médica; estava nas instalações de uma empresa, que por definição não tem fins altruísticos antes visa o lucro, a acompanhar o seu filho, que estava a trabalhar).

Não podemos, pois, deixar de considerar ter o Autor sido imprudente, ter tido um comportamento para com a sua empregadora censurável à luz da boa-fé que deve estar presente nas relações laborais.

Note-se que, a encontrar-se o Autor melhor do seu estado de saúde, cabia-lhe dar conhecimento à empregadora, pois esta tem interesse na recuperação de quem contratou para lhe prestar trabalho [cfr. arts. 109.°, n.° 3 e 128.°, n.° 1, als. b) e c), do Código do Trabalho].

Pelo exposto, concluímos que os deveres que impendiam sobre o trabalhador, mais propriamente o dever de lealdade, foram violados culposamente, pois o Autor podia e devia ter atuado de forma diferente, sendo a sua conduta, em si censurável, traduzindo uma atuação não aceitável, o mesmo é dizer, concluímos, em contrário da decisão de 1a instância, que é de imputar ao Autor a prática de infração disciplinar.”

13. Posteriormente, após concluir no sentido do cometimento pelo A. de uma infração disciplinar, ponderou assim o TRP, para afastar a existência de justa causa de despedimento:

“(…)
Perante o comportamento culposo do trabalhador impõe-se a seguinte ponderação de interesses: é necessário que, objetivamente, não seja razoável exigir ao empregador a subsistência da relação contratual (o comportamento do trabalhador quebrou a relação de confiança que existia), independentemente da existência de anteriores procedimentos disciplinares ou sanções.

É que, para que o trabalhador seja despedido não basta que pratique um ilícito laboral, sendo necessário que, apreciado que seja o desrespeito de um ponto de vista objetivo e iluminado por uma perspetiva de proporcionalidade dos interesses em causa, a subsistência da relação laboral se torne insustentável, intolerável, ou vulneradora do pressuposto fiduciário do contrato, sendo que, naquela apreciação, deve ser ponderado todo o circunstancialismo rodeador do objetivo desrespeito.
(…)
Ora, estamos perante uma situação de "baixa prolongada" (iniciou-se em dezembro de 2016), sendo de admitir algum "cansaço" do Autor de permanência em casa, não se retirando dos factos provados que estivesse a ser realizada qualquer tarefa (remunerada ou não), caso em que se questionaria porque realizava ali tarefas e não as realizava enquanto trabalhador da empregadora (já que existia incapacidade para o trabalho, sem discriminação).

Por outro lado, não se pode olvidar que a relação laboral já durava há um pouco mais que 20 anos, sem registo de sanções disciplinares.

Assim, nada mais de relevante resultando dos factos provados, ainda que fosse violada a lealdade à empregadora, não se pode dizer que fosse de forma de tal modo grave que quebrasse de forma irreparável a relação de confiança entre as partes, e tornasse insubsistente a relação laboral.

Relembramos que dos factos provados não se pode, como se viu supra, extrair que o Autor estivesse capaz para prestar o seu trabalho (estivesse ou não, a prova produzida não o demonstrou).

Em resumo, afigura-se-nos estarmos perante uma infração disciplinar, mas uma infração que não assume uma tal gravidade que leve a dizer ter a relação laboral ficado irremediavelmente comprometida, não se nos afigurando poder dizer-se terem deixado de existir condições para a Ré confiar que o Autor continuaria a ser um trabalhador leal.

Quer isto dizer que o despedimento do Autor se apresenta como desproporcional, bastando outra sanção disciplinar menos gravosa (que não cabe agora aferir qual).

Pelo exposto, acabamos por concluir como a sentença recorrida não ter existido justa causa para despedimento do Autor, despedimento que como tal foi ilícito nos termos do art.° 381°, al. b) do Código do Trabalho.”

14. Em face factualidade provada, não vemos que pudesse ser diverso o sentido decisório dado a esta questão, integralmente se acolhendo a descrita argumentação, aliás exaustiva e suportada em abundante doutrina e jurisprudência.

Com efeito:

Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho (art. 351.º, n.º 1, do Código do Trabalho), pautando-se este juízo por critérios de razoabilidade e exigibilidade (na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes – n.º 3 do mesmo artigo) e proporcionalidade (art. 330.º, n.º 1).

Neste âmbito, dois aspetos ainda a realçar: (i) a conduta do trabalhador deve ser apreciada globalmente, tendo em vista captar uma imagem global dos factos; (ii) e, como já se referiu, deve verificar-se um nexo de causalidade entre a conduta do trabalhador e a impossibilidade (prática e imediata[4]) de subsistência do contrato de trabalho,[5] sendo que “a gravidade dos factos e a culpa do trabalhador aferem-se de acordo com o entendimento de um empregador normal, em face das circunstâncias do caso concreto e em função de critérios de objetividade, exigibilidade e razoabilidade” (v.g., Ac. desta 4.ª Secção do STJ de 14.01.2015, Proc. n.º 272/10.2TTCVL.C1.S1).

Ora, in casu não se provaram os factos alegados pela R. que mais gravemente qualificariam (como fraudulento) o comportamento ilícito e culposo do trabalhador (e, sem dúvida, justificariam o despedimento), maxime, que nos períodos em que não se apresentou ao serviço para a ré estivesse capaz de o fazer, ou que alguma vez tenha trabalhado para outras empresas durante estes períodos de alegada incapacidade, mormente aquando da queda sofrida em 24.09.2020, nas instalações da "A...".

Não se discute que a conduta global do recorrido é censurável e assume relevância disciplinar.

Todavia, sabendo-se que o despedimento deve reservar-se para comportamentos graves, a que estejam aliadas “consequências apreciáveis” e uma “culpa grave”, justificar-se-á sancionar o mesmo com a mais grave das sanções disciplinares? Na imagem global dos factos, isso será razoável e proporcionado?

Tendo em conta todas as circunstâncias disponíveis e o contexto global dos factos praticados, reitera-se que a resposta não pode deixar de ser negativa, tanto mais que está em causa uma relação laboral que perdura no tempo há mais de 20 anos.

IV.

15. Em face do exposto, negando a revista, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela R.

Anexa-se sumário do acórdão.
    
Lisboa, 14 de julho de 2022


Mário Belo Morgado (Relator)

Júlio Manuel Vieira Gomes

Ramalho Pinto


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[1] Como todas as demais disposições legais citadas sem menção em contrário.
[2] Cfr. António Castanheira Neves, Questão de Facto – Questão de Direito, ou o Problema Metodológico da Juridicidade, Almedina, 1967, pp. 35 – 37.
[3] Segundo Claus-Wilhelm Canaris, a ilicitude (consistente na violação de um direito subjetivo de outrem ou da violação de uma norma jurídica destinada a proteger interesses jurídicos alheios) diz-nos o porquê e em que circunstâncias o lesado recebe a proteção do ordenamento jurídico, enquanto a culpa o porquê e em que circunstâncias ao agente é imposto o ónus de suportar o prejuízo sofrido por terceiro (citado por Felipe Teixeira Neto, in A ILICITUDE ENQUANTO PRESSUPOSTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DELITUAL: UM EXAME EM PERSPECTIVA COMPARADA (LUSO-BRASILEIRA) – https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/ 2017/6/2017_06_1163_1190.pdf).
[4] Cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 4ª edição, p. 821.
[5] Quanto à densificação do requisito “impossibilidade de subsistência da relação de trabalho”, cfr. Bernardo da Gama Lobo Xavier, Direito do Trabalho, Verbo, 2011, p. 738 – 739.