NULIDADE DA SENTENÇA
RESPONSABILIDADE PELOS ENCARGOS DA HERANÇA
HERANÇA INDIVISA E HERANÇA PARTILHADA
Sumário

I - Os empréstimos obrigacionistas correspondem a obrigações clássicas cujas condições de reembolso e remuneração são fixadas, à partida, pela entidade emitente e conferem direitos de crédito iguais sobre esta entidade.
II - Estas obrigações, emitidas pelas sociedades anónimas nos termos dos artigos 348.º a 372.º-B do Código das Sociedades Comerciais, constituem títulos de crédito causais (não abstratos) e são uma fonte de financiamento alternativo ao crédito bancário para investimentos em capital fixo de elevado montante e de vida útil longa.
III - Entre outras cláusulas de garantia ou de segurança, pode convencionar-se o vencimento antecipado e imediato da obrigação de pagamento em caso de incumprimento (cláusula cross default).
IV - A correlação entre a usura e os outros vícios na formação da vontade analisa-se do seguinte modo: se existe erro, medo ou incapacidade acidental relevante, o negócio é anulável pela simples verificação dos requisitos de qualquer desses vícios. Se, como tais, eles não forem relevantes, não deixa de se verificar uma situação de inferioridade do declarante, para os efeitos do artigo 282.°; a qual será operante se tiver havido o aproveitamento da sua inferioridade para alguém obter um beneficio excessivo e completamente injustificado.
V - No abuso de direito, o venire contra factum proprium e a suppressio têm de comum a existência de uma situação de confiança na contra-parte de que o direito nunca irá ser exercido; porém, no primeiro caso a situação de confiança decorre presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocar uma crença plausível na outra parte de que o direito não irá ser exercido, enquanto na suppressio esse investimento da confiança sucede porque o titular do direito não o exerce durante um lapso de tempo significativo levando a outra parte a crer na inação definitiva em relação a tal direito.
VI - O abuso de direito é difícil de compatibilizar com o vício da usura. Constituindo ambos mecanismos de correção de ocorrências para proteção de uma das partes, normalmente, deve prevalecer o efeito da declaração de uma determinada cláusula contratual como usurária sobre a invocação do abuso de direito pela parte contrária (mais forte).

Texto Integral

1

Proc. nº 499/19.1T8OBR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Bairro - Juiz 2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
AUTOR: L..., LDA., pessoa colectiva número ..., com sede na Quinta ..., ..., ... ....
RÉ: HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE AA e de BB, representada pelos herdeiros CC, residente na Rua ..., ..., ... ..., e DD, residente na Rua ..., ... ....
PEDIDO: Condenação no pagamento das quantias de 9.171,03€ e de 8.881,31€, acrescidas dos juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento, à taxa legal civil.
O pedido foi contestado.
OBJECTO DO LITÍGIO: responsabilidade civil contratual emergente de contratos de prestação de serviços em lar residencial.
Findos os articulados, foi proferido despacho saneador e designada data para audiência de julgamento oi proferido seguinte despacho:
“A invocada prescrição, conforme previsto no artigo 317.º do C.C.
A prescrição prevista no artigo 317.º funda-se na presunção de cumprimento (artigo 312.º) e é afastada quando o devedor confesse a dívida (artigo 313.º) ou quando pratique em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento (artigo 314.º, segunda parte), todos do código civil.
Na contestação, mais do que não alegar que pagou a totalidade do valor, a ré impugna o crédito em si mesmo.
A impugnação do crédito e a não aceitação do seu valor são actos incompatíveis com a presunção de cumprimento, já que não se pode presumir cumprido algo que se nega existir.
Pelo exposto, por não provada, julgo totalmente improcedente a prescrição presuntiva de cumprimento.”
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, decide julgar-se totalmente procedente, por provada, a presente acção declarativa comum e consequentemente condenar CC e DD, na qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito de AA e de herdeiros habilitados nestes autos de BB, a pagar ao L..., LDA. as quantias de:
• 8.391,17€ (oito mil trezentos e noventa e um euros e dezassete cêntimos), a título de capital em dívida, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos conforme peticionado;
• 8.113,73€ (oito mil cento e treze euros e setenta e três cêntimos), a título de capital em dívida, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos conforme peticionado.
Custas pela parte demandada, nos termos do total vencimento da acção (artigos 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, assim como artigo 6.º, n.º 1 do Regulamento das Custas Processuais).”

O réu, DD, interpôs recurso, concluindo:
1ª – A sentença recorrida violou, entre outras, as normas constantes dos artigos 405º, nº1, 406º, nº1 e 2 do Código Civil, fazendo incorrecta interpretação dos factos e aplicação do direito, incorrendo em erro de julgamento.
2ª – Resulta da sentença recorrida que os irmãos, DD e CC, filhos dos falecidos AA e BB, encontravam-se desavindos ainda e desde que os seus pais eram vivos.
3ª- Resulta dos Autos e da prova produzida que, em momento algum, o recorrente deu a sua anuência ou foi contactado por quem quer que seja, para o ingresso dos seus pais no lar residencial, ora recorrida.
4ª – Resulta ainda da sentença recorrida que os dois contratos de hospedagem, locação e de prestação de serviços foram assinados e subscritos pela R. CC, que foi quem negociou os seus termos e condições, sendo juridicamente a contratante, não se podendo imputar qualquer vínculo obrigacional dos mesmos resultante ao Recorrente, na qualidade de herdeiro das heranças abertas por óbito dos seus pais.
5ª – Aliás, resulta da mesma sentença que os pais do recorrente, à data do seu ingresso no Lar Residencial estavam capazes intelectualmente, nada resultando dos factos provados que não pudessem subscrever os referidos contratos.
6ª – O documento nº1 junto com a Contestação é cristalino, do mesmo resultando que CC, é a responsável legal da sua mãe, assim como o era do seu pai.
7ª – Assim, os contratos sub judice não foram celebrados pelos pais do recorrente, nem pelo ora recorrente, não podendo, quer uns quer outros ser considerados pates contratantes dos mesmos.
8ª - Deste modo, objetivamente e em bom rigor jurídico, a responsabilidade civil contratual emergente dos aludidos contratos sub judice, recaem apenas sobre a R. CC e não sobre as heranças de que o recorrente é co-herdeiro.
9ª - Preceitua o artigo 405º, nº1 do C.C. o seguinte:
“Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”.
E, preceitua o artigo 406º, nº1 e 2 do C.C., o seguinte:
“1. O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei”.
“2. Em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei”.
10ª - Como vem de ver-se as partes contratantes dos contratos de Prestação de Serviços foram a A. e a referida CC, na observância do princípio da Liberdade contratual, que os outorgaram.
11ª - Sendo os mesmos válidos e eficazes inter-partes e não em relação a terceiros, como é o caso do recorrente.
Termos em que deverá a sentença recorrida ser revogada, substituindo-se por outra que absolva o recorrente do peticionado, assim se fazendo sã, serena e objetiva JUSTIÇA!

CC também interpôs recurso, concluindo:
I. A autora instaurou a presente uma acção contra a Herança Aberta por óbito de AA tendo por base o incumprimento de um contrato de prestação de serviços de apoio social no âmbito de estrutura residencial para idosos, firmado com o de cujus marido e contra a Herança Aberta por óbito de BB que tinha por base o incumprimento de outro contrato de prestação de serviços de apoio social no âmbito de estrutura residencial para idosos, firmado pela de cujus mulher.
II. Refere o n.º 1 do artigo 33º do CPC que “Se, porem, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação jurídica controvertida, a falta de qualquer um deles é motivo de ilegitimidade.”
III. Neste pressuposto o n.º 1 do artigo 2091º do CC estipula que “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.”
IV. O que nos conduz a que, na herança aberta por óbito de AA, apreciada separadamente, estejamos perante uma situação de litisconsórcio necessário, de onde resulta que a acção terá de ser proposta, contra todos os herdeiros,
V. E na herança aberta por BB igualmente, apreciada separadamente, numa situação de litisconsórcio necessário, onde resulta que a acção terá também de ser proposta, contra todos os herdeiros.
VI. Neste caso a Autora foi mais longe e utilizando a figura da Coligação de Réus, colocou na mesma acção um pedido contra a Herança Aberta por óbito de AA e outro contra a Herança Aberta por óbito BB
VII. A grande diferença entre litisconsórcio e coligação é a de que “III.– Há litisconsórcio quando existe pluralidade de partes e unidade quanto ao pedido; IV. – Há coligação quando existe pluralidade de partes e pluralidade quanto ao pedido;”, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 24.05.2018.
VIII. Ou seja, nos casos dos autos, em virtude da posição tomada pela autora, temos simultaneamente litisconsórcio (quer no pedido contra a herança aberta por óbito de AA, quer no pedido contra a herança aberta por óbito de BB) e coligação.
IX. Quanto ao litisconsórcio, tal como decorre da lei e se supra aludiu, sabemos que nesta acção é obrigatório, é o chamada litisconsórcio necessário.
X. E quanto à Coligação, o que dizer?
XI. Dispõe o n.º 1 do artigo 36º do CPC “É permitida a coligação de autores contra um ou vários réus e é permitido a um autor demandar conjuntamente vários réus, por pedidos diferentes, quando a causa de pedir seja a mesma e única ou quando os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência.”, o que in caso não se verifica.
XII. Assim, apesar de ser permitido demandar vários Réus, por pedidos diferentes, o certo é que no caso dos autos a causa de pedir não é a mesma e única, e nem os pedidos estão entre si numa questão de prejudicialidade ou dependência.
XIII. Salvo melhor opinião, significa que a autora nunca poderia, no mesmo processo tentar responsabilizar duas heranças diferentes por causas e pedidos diferentes.
XIV. Ora, a causa de pedir e o pedido que é feito “contra” uma herança” e os efeitos desse mesmo pedido, integram factos concretos e relativos à própria, isto é, há uma causa de pedir exclusiva e singular, que nunca é a mesma causa de pedir do pedido efectuado contra a herança aberta por óbito de outra qualquer pessoa.
XV. A única “confusão” no caso concreto, deriva do factos das duas heranças abertas provirem de óbitos de duas pessoas que apesar de distintas tinham como elo de ligação o facto de ser marido e mulher, o que ainda assim obsta à sua apreciação.
XVI. Ao admitir em simultâneo o litisconsórcio necessário e a coligação de réus nos termos em que o foi na presente acção, qual será a taxa de justiça a liquidar pelos herdeiros/habilitados?
XVII. Liquidarão uma taxa de justiça correspondente ao litisconsórcio necessário relativamente à herança aberta por óbito de AA, e outra taxa referente ao litisconsórcio necessário da herança aberta por óbito BB?
XVIII. A esta, acrescerá ainda outra proveniente da Coligação de Réus e que deve ser liquidada nos termos da tabela i-B?
XIX. Por outro lado e como aconteceu no caso dos autos (apesar do tribunal não considerar provado) em que a partilha relativa ao bens do de cujos AA já ocorreu e que a herança aberta por óbito de BB permanece indivisa, que fazer pela habilitada CC, quando a título de exemplo, lhe for penhorado um bem próprio que não lhe adveio da herança?
XX. Utilizar o argumento que “aceita” a penhora uma vez que já foram efetuadas as partilhas da herança aberta por óbito de AA, mas que só responde pelos encargos na proporção da quota que lhe coube (artigo 2098°, 1, do Código Civil)?
XXI. Ou por outro lado, opor-se à penhora e utilizar o argumento que a Herança aberta por óbito de BB se encontra indivisa, e como tal, deverá o património autónomo responder única e exclusivamente pelas respetivas dívidas (artigo 2068º do Código Civil)?
XXII. Assim, que argumento utilizar quando for executada a sentença?
XXIII. Posto isto, e ainda que o Tribunal entendesse estarem preenchidos os requisitos do artigo 36 do CPC, deveria sempre entender estarmos perante um obstáculo à Coligação nos termos do n.º 4 do artigo 37 do CPC que dispõe, “Se o tribunal, oficiosamente ou a requerimento de algum dos réus, entender que, não obstante a verificação dos requisitos da coligação, há inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente, determina, em despacho fundamentado, a notificação do autor para indicar, no prazo fixado, qual o pedido ou os pedidos que continuam a ser apreciados no processo, sob cominação de, não o fazendo, ser o réu absolvido da instância quanto a todos eles, aplicando-se o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo seguinte.”
XXIV. Assim, não restam dúvidas que a Coligação não deve ser permitida no caso presente, e como tal, (já) deveria ter existido uma análise do Douto Tribunal a quo, que culminaria numa Coligação Ilegal que é de conhecimento Oficioso e que importaria a absolvição da instância.
XXV. Assim, ao decidir como decidiu, o Meritíssimo Juiz a quo, violou os preceitos legais constantes dos artigos nºs 36, 37 n.º 4, 576 n.º 2, 577 alínea f), 615 n.º 1 alínea d), todos do CPC.
XXVI. Continuando, importa referir que neste processo, apesar de ter sido já efectuada a partilha dos bens da herança aberta por óbito de AA, e porque a cópia da escritura de partilha “não está certificada e não está completa, faltando uma folha” o Douto Tribunal a quo decidiu, desconsiderar esse facto e considerar as duas heranças como “ilíquidas” e “indivisas” (atento os factos provados – à contrario).
XXVII. Naquela sentença, decidiu também o Douto Tribunal a quo “condenar CC e DD, na qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito de AA e de herdeiros habilitados nestes autos de BB, a pagar ao L..., LDA. as quantias de:
a. - 8.391,17 (oito mil trezentos e noventa e um euros e dezassete cêntimos), a título de capital em divida, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos conforme peticionado.
b. - 8.113,73 (oito mil cento e treze euros e setenta e três cêntimos), a título de capital em dívida, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos conforme peticionado.”
XXVIII. Enquanto não for efectuada a partilha, a acção destinada a exigir um crédito sobre a herança tem que ser instaurada contra todos os herdeiros.
XXIX. E pelos encargos da herança é responsável a sua massa patrimonial nos termos dos artigos 2068º e 2069º ambos de CC.
XXX. Quando esta permanece indivisa, o devedor é apenas um, ou seja é o património autónomo (herança), cfr. artigo 2097º do CC.
XXXI. A nossa jurisprudência é pacífica, em entender que no caso de herança indivisa não partilhada, os herdeiros apenas podem ser condenados a reconhecer a existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança.
XXXII. “Os herdeiros deverão ser demandados e condenados, não a pagar as dívidas de herança indivisa, mas simplesmente a reconhecerem a existência delas ou a vê-las satisfeitas pelos bens da mesma herança.”
XXXIII. Uma coisa é a condenação dos RR., ainda que enquanto herdeiros do falecido (…), a pagar ao A., a quantia de €42.398,46, acrescida de juros. Outra a condenação dos mesmos RR. a reconhecerem a existência da dívida e vê-la satisfeita pelos bens da mesma herança” (…) “O objeto do pedido e o objeto da decisão devem coincidir, não podendo a sentença determinar efeitos jurídicos que as partes não abordaram no desenvolvimento da lide”, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 20.02.2014
XXXIV. “Os herdeiros não têm qualquer responsabilidade directa pelo pagamento das dívidas da herança (nem mesmo até ao limite do que recebessem em herança); a responsabilidade é da herança (da qual os herdeiros são representantes) e não dos herdeiros, pelo que estes, enquanto a herança não for partilhada, não poderão, em caso algum, ser condenados a pagar as dívidas, na totalidade, na proporção do que lhes viesse caber ou até ao limite das forças da herança”
XXXV. Pelo que, atento tudo o que se supra referiu, e tendo em linha de conta que a autora/recorrida propôs a presente acção contra a Herança Aberta por óbito de AA e contra a Herança Aberta por óbito de BB, jamais poderiam ser condenados os herdeiros, nos termos em que o foram, existindo assim (inclusive), uma condenação em objecto diverso do pedido que gera a sua nulidade.
XXXVI. Resulta assim claro, que não podem ser condenados ao pagamento como herdeiros dos “de cujos”, como também não podem ser condenados a titulo individual/pessoal, uma vez que a acção nunca foi proposta contra aqueles, e o seu “aparecimento” resulta apenas da sua qualidade enquanto herdeiros/habilitados.
XXXVII. Assim, ao decidir como decidiu, o Meritíssimo Juiz a quo, violou os preceitos legais constantes dos artigos 2068º, 2097º do C.C. e ainda os artigos 615 n.º 1 alínea e) e artigo 609º do CPC.
Nestes termos, e nos mais de direito e sempre com o Mui Douto suprimento de V. Exas, deve a Douta Sentença ser substituída por outra que altere a decisão sobre a matéria de direito nos moldes referidos nas Conclusões.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, as questões a resolver consiste em saber se:
Recurso de DD
- não se lhe pode imputar qualquer responsabilidade por os dois contratos de hospedagem, locação e de prestação de serviços aos pais terem sido assinados e subscritos pela ré CC.
Recurso da ré CC
- este Tribunal da Relação pode conhecer da questão da coligação ilegal
- existe nulidade da sentença, nos termos do artigo 615º, n.º 1, al. d) do CPC, quanto à circunstância da acção ter sido proposta contra a Herança Aberta por óbito de AA e contra a Herança Aberta por óbito de BB e terem sido condenados os recorrentes na qualidade de herdeiros das heranças.

II – Fundamentação de facto
Factos provados
1) A autora é uma sociedade comercial por quotas, com sede na ..., que se dedica à exploração de lares para idosos e acção social para pessoas idosas com alojamento;
2) No dia 10 de Janeiro de 2019, faleceu AA, no estado de casado com BB;
3) Sendo seus herdeiros:
a. A mulher, BB;
b. O filho, DD;
c. A filha, CC;
4) No dia 06 de Janeiro de 2020 faleceu BB, no estado de viúva de AA;
5) Nenhum tendo deixado qualquer testamento ou disposição de última vontade;
6) Sendo seus herdeiros:
a. O filho, DD; b. A filha, CC;
7) Não existindo outras pessoas que, segundo a lei, prefiram ou que com eles possam concorrer à respectiva sucessão do falecido AA e BB;
8) No exercício da sua actividade, a autora celebrou com o falecido AA, um acordo denominado “contrato de prestação de serviços”, em 01 de Janeiro de 2016;
9) Mediante o referido acordo, foi estabelecido que a mensalidade seria fixada em 900,00€;
10) Os serviços ao abrigo desse acordo foram continuamente prestados até à data do óbito de AA;
11) Nunca foi apresentada qualquer reclamação quanto aos mesmos, quer pelo beneficiário AA, quer pelos seus familiares;
12) A mensalidade paga compreendia a prestação de serviços enumerada no artigo 6.º do Regulamento Interno do estabelecimento comercial da autora;
13) A primeira mensalidade seria paga na data de admissão dos utentes, sendo as restantes pagas até ao dia dez de cada mês, relativamente ao mês em curso;
14) Desde Agosto de 2017, que os pagamentos não eram efectuados;
15) Não chegando o valor transferido pelos seus familiares para liquidar todas as despesas decorrentes da celebração do acordo de prestação de serviços;
16) Conforme consta do acordo de prestação de serviços celebrado entre as partes, o pagamento dos medicamentos e ambulâncias deve ser efectuado pelos utentes ou seus familiares respectivamente na farmácia e bombeiros - cláusulas II e X do documento denominado contrato;
17) Sempre que tal valor fosse liquidado pela autora o mesmo deveria ser pago com a apresentação dos respectivos comprovativos aquando do pagamento da mensalidade do utente, avisando-se os familiares ou responsáveis pelo utente sempre que possível, sem prejuízo das situações de urgência;
18) A autora despendeu quantias com a aquisição de medicamentos, bem com outras despesas com fraldas e outras conforme documentos 5 a 34 juntos com a petição inicial, cujo teor se dá integralmente por reproduzido;
19) Bem como do transporte efectuado relativamente aquele utente;
20) Encontrando-se em débito a quantia de 8.3191,17€, conforme se descreve na sentença, o que aqui se dá por inteiramente reproduzido - documentos 5 a 34 juntos com a petição inicial;
21) Tudo despesas tidas no período compreendido entre Agosto de 2017 e Janeiro de 2019;
22) Sendo que a autora deu conhecimento dos referidos valores e todos os comprovativos das despesas aos familiares do utente, os aqui herdeiros da ré;
23) Tendo interpelado os mesmos para procederem ao pagamento do valor em débito;
24) Até à presente data, não obstante as tentativas efectuadas pela autora, permanece por liquidar a quantia de 8.319,17€;
25) No exercício da sua actividade, celebrou com BB, um acordo denominado “contrato de prestação de serviços”, em 1 de Janeiro de 2016;
26) Mediante o referido acordo, foi estabelecido que a mensalidade seria fixada em 900,00€;
27) Os serviços foram continuamente prestados até à data da saída da Ré BB do estabelecimento comercial da Autora que ocorreu em Janeiro de 2019; 28) E nunca foi apresentada qualquer reclamação quanto aos mesmos;
29) A mensalidade paga compreende a prestação de serviços enumerada na cláusula 6.º do Regulamento Interno do estabelecimento comercial da autora;
30) A primeira mensalidade seria paga na data de admissão da utente, sendo as restantes pagas até ao dia 10 de cada mês, relativamente ao mês em curso;
31) Ora, desde Agosto de 2017, que as mensalidades não têm sido liquidadas;
32) Bem como as demais despesas previstas no acordo de prestação de serviços celebrado;
33) Conforme consta do acordo de prestação de serviços celebrado entre as partes, o pagamento dos medicamentos e ambulâncias deve ser efectuado pelos utentes ou seus familiares respectivamente na farmácia e bombeiros - cláusula II e X do mencionado acordo;
34) Sempre que tal valor fosse liquidado pela autora o mesmo deveria ser pago com a apresentação dos respectivos comprovativos aquando do pagamento da mensalidade do utente, avisando-se os familiares ou responsáveis pelo utente sempre que possível, sem prejuízo das situações de urgência;
35) Ora, a autora despendeu várias quantias com a aquisição de medicamentos e outros produtos necessários para o bem-estar da utente;
36) Bem como do transporte efectuado relativamente àquela utente;
37) Encontrando-se em débito a quantia de 8.113,73€, conforme se descreve na sentença o que aqui se dá por inteiramente reproduzido - documentos 35 a 58 juntos com a petição inicial;
38) Tudo no período compreendido entre Agosto de 2017 e Janeiro de 2019;
39) Sendo que a autora deu conhecimento dos referidos valores e todos os comprovativos das despesas à beneficiária ainda viva à data, BB, e respectivos familiares;
40) Tendo sido interpelada a mesma para que fosse efectuado o pagamento do valor em débito;
41) Até à data da instauração da presente acção, não obstante as tentativas efectuadas pela autora, BB não procedeu ao pagamento da referida quantia;
42) Está por liquidar a quantia total de 8.113,73€.

III - Do mérito dos recursos
Recurso do réu, DD
Advoga o recorrente que resulta da sentença recorrida que os irmãos, DD e CC, filhos dos falecidos AA e BB, encontravam-se desavindos ainda e desde que os seus pais eram vivos.
Que em momento algum, o recorrente deu a sua anuência ou foi contactado por quem quer que fosse, para o ingresso dos seus pais no lar residencial, ora recorrida. Que os dois contratos de hospedagem, locação e de prestação de serviços foram assinados e subscritos pela ré CC, que foi quem negociou os seus termos e condições, sendo juridicamente a contratante, não se podendo imputar qualquer vínculo obrigacional dos mesmos ao recorrente, na qualidade de herdeiro das heranças abertas por óbito dos seus pais.
Ponderemos.
A acção foi proposta contra HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE AA e de BB, representada pelos herdeiros CC
Está provado que:
- No exercício da sua actividade, a autora celebrou com o falecido AA, um acordo denominado “contrato de prestação de serviços”, em 01 de Janeiro de 2016;
- Mediante o referido acordo, foi estabelecido que a mensalidade seria fixada em 900,00€;
- Os serviços ao abrigo desse acordo foram continuamente prestados até à data do óbito de AA;
- Nunca foi apresentada qualquer reclamação quanto aos mesmos, quer pelo beneficiário AA, quer pelos seus familiares;
- A mensalidade paga compreendia a prestação de serviços enumerada no artigo 6.º do Regulamento Interno do estabelecimento comercial da autora;
- A primeira mensalidade seria paga na data de admissão dos utentes, sendo as restantes pagas até ao dia dez de cada mês, relativamente ao mês em curso;
-Desde Agosto de 2017, que os pagamentos não foram efectuados;
- No exercício da sua actividade, a autora celebrou com BB, um acordo denominado “contrato de prestação de serviços”, em 1 de Janeiro de 2016;
- Mediante o referido acordo, foi estabelecido que a mensalidade seria fixada em 900,00€;
- Os serviços foram continuamente prestados até à data da saída da ré BB do estabelecimento comercial da Autora que ocorreu em Janeiro de 2019, encontrando-se em débito a quantia de 8.113,73;
- E nunca foi apresentada qualquer reclamação quanto aos mesmos;
No caso não está controvertido que os contratos tenham sido celebrados e os serviços prestados, logo não se questiona a dívida daí resultante.
Tendo os devedores falecido, se a herança estiver indivisa, dispõe o artigo 2097º do Código Civil que os bens da herança indivisa respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos.
E são encargos da herança as despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, os encargos com a testamentária, administração e liquidação do património hereditário, o pagamento das dívidas do falecido e o cumprimento dos legados – Vide artigo 2068º do C. Civil.
Efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.
Distinguem-se, assim, regimes diferentes para a satisfação os encargos da herança, consoante esta se mantenha ainda indivisa ou tenha sido já partilhada.
Determinados os herdeiros, como é o caso, só temos de saber em que momento nos encontramos: se estivermos antes da partilha, os bens respondem colectivamente pela liquidação das dívidas da herança (artigo 2097.°); se já estivermos depois da patilha, cada herdeiro responde só pelos encargos na proporção da quota que lhe couber na herança, podendo até os herdeiros deliberar sobre a forma de efectuar esse pagamento (artigo 2098.°).
Com efeito, a herança indivisa constitui um património autónomo ao qual a própria a lei atribui personalidade judiciária (artigo 12º, al. a) do CPC); a herança já partilhada perde a consistência de património autónomo e dissolve-se ou dilui-se nos patrimónios dos herdeiros, passando cada um dos bens que a integrar, a confundir-se com os demais bens do herdeiro a quem foi adjudicado.
Em relação aos credores da herança, enquanto esta permanece indivisa, o devedor é apenas um, ou seja, é aquele património autónomo, dotado de personalidade judiciária e, por isso, susceptível de ser parte, isto é, de demandar e ser demandado (embora tenha de ser representado, umas vezes pelo cabeça-de-casal, outras pelo conjunto dos herdeiros- artigos 2079º e seguintes e artigo 2091º). Após a partilha, esse património autónomo dá lugar a uma pluralidade de devedores, tantos quantos os herdeiros. E a medida da responsabilidade destes determina-se pela proporção da quota que lhes tenha cabido na herança e não por qualquer outro critério, designadamente, pelo valor dos bens que lhes tenham sido adjudicados.
É que as quotas que a cada um dos herdeiros caibam na partilha não têm de ser necessariamente preenchidas com bens, podendo, por exemplo, ser adjudicados todos os bens a um único herdeiro, pagando este as tornas devidas aos demais. Nestas circunstâncias, obviamente, que o herdeiro a quem foram adjudicados todos os bens não fica – a não ser que isso tenha sido acordado, por permissão do artigo 2098º, nºs 2 e 3 – responsável pela totalidade dos encargos, antes respondendo apenas na proporção da sua quota na herança. E os restantes herdeiros, que não receberam qualquer bem da herança, não ficam, na proporção das suas quotas, desonerados do pagamento dos respectivos encargos, por eles respondendo, na dita proporção, com todo o seu património.
Diga-se ainda que as obrigações dos herdeiros da herança partilhada perante os credores não são solidárias, pois nada na lei impõe tal solidariedade (artigos 513º e 2098º). Deste modo, não é ao credor permitido exigir a cada herdeiro mais do que a proporção da sua quota na herança, nem assiste ao herdeiro que porventura pague mais do que aquela proporção direito de regresso contra os demais herdeiros (artigo 524º).
Feito este enquadramento legal, é patente a falta de sentido da argumentação do recorrente pois nada lhe está ser exigido pessoalmente mas antes às heranças indivisas das quais ele é um representante, como herdeiro que é.

Recurso de CC
Defende esta recorrente que a coligação não deve ser permitida no caso presente, sendo ilegal, o que é de conhecimento oficioso e importa a absolvição da instância.
Que a acção foi proposta contra a Herança Aberta por óbito de AA e contra a Herança Aberta por óbito de BB pelo que jamais poderiam ser condenados os herdeiros, nos termos em que o foram, existindo assim (inclusive), uma condenação em objecto diverso do pedido que gera a sua nulidade.
No que respeita à questão da coligação, devemos começar por referir que no nosso sistema legal o recurso não é uma reapreciação ex novo do litígio, uma segunda opinião sobre o litígio, mas antes uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito).
O recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido. Só se recorre de uma decisão que analisou uma questão suscitada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido.
Abrantes Geraldes, Recursos, 2017, fls. 109 clarifica que: “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objecto, decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas”.
Só assim não será quanto a questões de conhecimento oficioso.
Nesta lógica, não tendo esta questão sido posta à apreciação do tribunal recorrido, não pode este Tribunal da Relação conhecer da mesma por impossibilidade legal.
Quanto à circunstância da acção ter sido proposta contra a Herança Aberta por óbito de AA e contra a Herança Aberta por óbito de BB, não podendo jamais ser condenados os herdeiros, nos termos em que o foram, a resposta encontra-se na explanação legal já efectuada, sendo manifesto assistir aqui razão à recorrente.
Na verdade, foram as heranças indivisas, enquanto patrimónios autónomos, dotados de personalidade judiciária, que foram demandadas, embora representadas pelos herdeiros, ora recorrentes. Assim são estas heranças que têm de ser condenadas.
De acordo com o disposto no artigo 615º, n.º 1, al. d) do CPC a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse conhecer ou quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
O artigo 609.º epigrafado “Limites da condenação” no nº 1 estatui que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.
Como se viu a acção foi proposta contra as heranças indivisas e a condenação recaiu sobre os recorrentes CC e DD, na qualidade de herdeiros, tendo sido cometida a predita nulidade.
Ora, a nulidade da decisão recorrida não determina, necessariamente, a baixa dos autos à 1ª Instância, cabendo antes, ao tribunal ad quem, no exercício dos seus poderes de substituição, suprir essa nulidade, mediante a prolação da decisão que se impunha proferir.- Cfr. artigo 665º, nº 1 do CPC
Tendo em conta o princípio da estabilidade da instância previsto no artigo 260º do CPC no sentido de que, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, proposta a acção contra uma herança indivisa, o devedor é apenas um, ou seja, é aquele património autónomo, dotado de personalidade judiciária e só ele pode ser condenado, sem prejuízo de dever ser representado pelo cabeça-de-casal, ou pelo conjunto dos herdeiros, o que se irá consignar.
Pelo exposto, delibera-se julgar:
- Totalmente improcedente a apelação de DD:
- Totalmente procedente a apelação de CC, declarando-se a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, al. d) do CPC, quanto à condenação de CC e DD, na qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito de AA e de herdeiros habilitados nestes autos de BB, a pagar ao L..., LDA. nas quantias de:
• 8.391,17€ (oito mil trezentos e noventa e um euros e dezassete cêntimos), a título de capital em dívida, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos conforme peticionado;
• 8.113,73€ (oito mil cento e treze euros e setenta e três cêntimos), a título de capital em dívida, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos conforme peticionado;
e, em substituição, condena-se as HERANÇAS ABERTAS POR ÓBITO DE AA e de BB, representadas pelos herdeiros CC e DD, a pagar ao L..., LDA. as quantias de:
• 8.391,17€ (oito mil trezentos e noventa e um euros e dezassete cêntimos), a título de capital em dívida, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos conforme peticionado;
• 8.113,73€ (oito mil cento e treze euros e setenta e três cêntimos), a título de capital em dívida, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos conforme peticionado.
Custas pelo recorrente DD na respectiva apelação.

Porto, 13 de Julho de 2022
Ana Lucinda Cabral
Rodrigues Pires
João Ramos Lopes

(A relatora escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.)