OFENSA DO CASO JULGADO
INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
SENTENÇA
LIQUIDAÇÃO
RATEIO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
RESTRIÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Sumário


I - Fundando-se a presente revista na previsão do art. 629.º, n.º 2, al. a), in fine, do CPC, conjugada com o disposto no art. 671º, n.º 2, al. b), do mesmo diploma legal, importará aferir se o acórdão recorrido, incidindo sobre a conformidade do mapa de rateio apresentado pelo administrador da insolvência, nos termos do art. 178.º do CIRE, com o conteúdo das reclamações de créditos (não impugnadas) das ora recorrentes, se encontra em necessária consonância com o teor da sentença proferida no apenso de verificação e graduação de créditos, sem o que se teria produzido ofensa de caso julgado.
II - Não havendo a sentença de verificação e graduação de créditos procedido à concreta quantificação numérica dos créditos reconhecidos que, nesses termos, não discriminou, tal significa que esses créditos, ora em análise na sua vertente quantitativa, foram efectivamente reconhecidos e graduados em conformidade com a reclamação apresentada pelas credoras, suas titulares, e que não suscitou impugnação.
III - Tendo as reclamantes, ora recorrentes, afirmado no presente processo de insolvência e em sede do concreto requerimento de reclamação de créditos, que o seu crédito respeitantes às tornas a que tinham direito ficara reduzido a € 309 477,70 (correspondente ao crédito individual de € 103 159,23), por já terem recebido, a esse título, a verba de € 200 000,00 - que as mesmas consideraram (então) dever entrar em linha de conta no crédito global de tornas a que teriam direito -, independentemente das operações de imputação que as reclamantes entenderam realizar, o montante do capital do seu crédito fixou-se nesse mesmo valor, que terá que ser considerado como tal no mapa de rateio apresentado pelo administrador da insolvência.
IV - Logo, é correcta a revogação da decisão de 1.ª instância e a consequente procedência da impugnação aos créditos da ora recorrentes, na medida em que o juiz a quo limitara-se a afirmar que “a sentença de verificação e graduação de créditos não se havia pronunciado sobre o recebimento pelas reclamantes da dita verba de € 200 000,00”.
V - Neste sentido, há que tomar em consideração o valor do capital em dívida entre a data da constituição em mora da devedora/insolvente e o momento da sua amortização em 2 de Novembro de 2006, bem como o remanescente do crédito assim amortizado, sendo necessário calcular os juros de mora correspondentes a tais períodos através das taxas aplicáveis, sobre os quais incidirá o regime específico fixado na sentença de verificação e graduação de créditos.
VI - Constando da decisão de reclamação de créditos que: “Deverão ser qualificados como garantidos os créditos reclamados por estas credoras relativos ao capital e juros relativos aos três primeiros anos, com o limite máximo fixado no registo dessa hipoteca até 15 de Janeiro de 2007. Já os juros de mora vencidos após essa data da declaração da insolvência são créditos comuns e os juros vencidos depois da declaração de insolvência são créditos subordinados”, deste excerto da decisão transitada em julgado resulta, em termos claros e inequívocos, a afirmação de que “os juros vencidos depois da declaração de insolvência são créditos subordinados”, a qual, independentemente do seu mérito (questão ultrapassada pela ausência de interposição de apelação pelas reclamantes), vincula definitivamente as ora recorrentes, que a procuraram, por esta via, reverter.
VII - Não se verifica, portanto, no acórdão recorrido, e em cada uma das suas vertentes, ofensa ao caso julgado, matéria que constituía o único fundamento admissível da presente revista que, nessa medida, é negada.

Texto Integral




 

 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.
No processo de insolvência em que é requerente HABITELHA – PROMOÇÃO E VENDA IMOBILIÁRIA, LDA., e devedora AA, foi esta declarada insolvente por sentença de 1 de Outubro de 2009.
Na fase e no apenso de liquidação, o Administrador da Insolvência apresentou, em 22 de Janeiro de 2021, a proposta de rateio final.
A credora BB reclamou contra o mapa de rateio apresentado pelo administrador da insolvência através de requerimento de 2 de Fevereiro de 2021.
Reclamaram igualmente, com fundamento diverso, as credoras CC, DD e EE, irmãs entre si, através de requerimento entrado em juízo na mesma data.
A credora BB alegou:
No mapa de rateio elaborado não foi tido em conta pelo Sr. Administrador da Insolvência o recebimento, por parte das credoras DD, CC e EE da quantia de € 200.000,00 por conta do crédito invocado e reclamado na presente insolvência, requerendo que fosse ordenado ao Sr. Administrador que refizesse o mapa de rateio final, tendo em conta o valor já recebido pelas ditas três credoras no montante global de € 543.500,00.
Por seu turno, as credoras CC, DD e EE, reclamaram do mapa de rateio alegando:
O mapa não contempla os juros vincendos, devendo ser aditado, a título de créditos, pelo menos comuns, das credoras, por juros vincendos sobre o capital garantido, este crédito de juros de € 153.203,28.
Solicitados esclarecimentos ao Sr. Administrador da Insolvência, veio o mesmo assumir a seguinte posição:
«No crédito comum de € 158.325,43 estão créditos em dívida sobre a insolvente e ainda juros de € 56.333,85, calculados pelas três reclamantes sobre o crédito garantido até à data da reclamação, apresentada em 7.12.2009. Além dos juros vencidos, calculados até à data da reclamação sobre o capital garantido, incluídos conforme referido na Reclamação de Créditos, como créditos comuns, verifica-se que estão também reclamados juros vincendos, que o AI não calculou, por entender que é ao tribunal que compete decidir sobre a reclamação feita, limitando-se, pois, a ter em conta a lista dos créditos reconhecidos, transitada do anterior AI.».
Seguidamente a 1ª instância apreciou as reclamações e proferiu as seguintes decisões:
Quanto à reclamação da credora BB, tendo transitado em julgado a decisão proferida no âmbito do apenso da reclamação de créditos, entendeu-se que tal questão não podia ser apreciada nesta sede, pelo que não se impunha qualquer alteração quanto a este aspeto do mapa de rateio elaborado.
Quanto à reclamação das credoras CC, DD e EE, entendeu-se que os juros vencidos até 15 de Janeiro de 2007 deverão ser qualificados como garantidos, os vencidos entre 16 de Janeiro de 2007 e a declaração de insolvência (em 1 de Outubro de 2009), serão qualificados como comuns e os vencidos desde 2 de Outubro de 2009 até ao pagamento do crédito, serão créditos subordinados.
Daí que se tivesse entendido que o Sr. Administrador da Insolvência deveria incluir no mapa de rateio os juros vencidos desde a data da reclamação de créditos até ao pagamento às credoras, qualificando-os como créditos subordinados.
Inconformadas com esta decisão, recorreram de apelação todas as referidas credoras BB, por um lado, e CC, DD e EE, por outro.
Foi proferido o acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 24 de Fevereiro de 2022, no qual:
- julgou-se procedente o recurso interposto pela credora BB e, em consequência, determinou-se que o mapa de rateio final levasse em consideração a redução de € 200.000,00 do crédito de tornas (de € 509.477,69) das credoras CC, DD e EE, por lhes ter sido pago pela devedora;
- julgou-se improcedente a apelação das credoras CC, DD e EE, explicitando-se, no entanto, a decisão recorrida, de acordo com a sentença de graduação de créditos que, no que concerne aos seus créditos:
1- Apenas beneficiam da garantia de hipoteca legal os juros vencidos durante os três anos subsequentes à data da constituição daquela garantia, ou seja, entre 15.1.2004 e 15.1.2007, pelo valor dos bens hipotecados;
2- Os juros vencidos desde 16.1.2007 até à data da declaração de insolvência (1.10.2009) são créditos comuns;
3- Os juros vencidos desde a sentença declarativa da insolvência e vincendos, até à data do pagamento dos créditos, são créditos subordinados.
4- Acaso o produto dos bens hipotecados não chegue para pagar a totalidade dos juros de que aquelas são titulares, vencidos entre 15.1.2004 e o dia 15.1.2007 (os únicos juros garantidos pelas hipotecas) o remanescente de tais juros (e apenas deles) deve ser graduado como crédito comum.
Vieram as credoras CC, DD e EE interpor recurso de revista, apresentar as seguintes conclusões:
1ª Apelação:
I - O douto acórdão recorrido revogou o douto despacho recorrido de 1ª instância, ordenando que o sr. AI inclua no mapa de rateio a importância de € 200.000,00, recebida pelas recorrentes, em 2 de Novembro de 2006, para abatimento dos seus créditos sobre a devedora de tornas;
II- Ora, a entrega da dita quantia verificou-se muito antes da declaração de insolvência, o prédio hipotecado vendido não entrou no auto de apreensão, e o acto de venda é alheio à insolvência, além de que o sr. AI é também estranho a tal venda.
III- A imposição contida no douto acórdão viola antes de mais o plano de pagamento dos créditos, conhecido e aprovado pelos credores, e homologado por sentença, que não foi impugnada, na medida em que para os pagamentos a efectuar o sr AI. só pode socorrer-se da lista de créditos reconhecidos e da sentença que os verificou e graduou e do produto das vendas;
IV- Por outro lado, para incluir a quantia no mapa de rateio, ela tem de corresponder a um pagamento que o sr. AI não fez, e a que é alheio, devendo tal pagamento corresponder também a um bem do activo liquidado, que também não existiu (artº 46, 55, 172, 174 CIRE);
V- Além disso, o sr. AI, feitas as vendas dos prédios apreendidos (de que não consta o referido) e obtidos os proveitos das vendas, apresentou as contas para aprovação ao tribunal, de que apenas constam os pagamentos por si efectuados e os prédios por si vendidos; tais contas estão aprovadas por sentença no apenso respectivo (Apenso R), de que não houve recurso por parte de qualquer credor, incluindo a recorrida;
VI- Há também aqui violação do caso julgado (artº 629 nº 2 alª a) CPC).
VII - Por outro lado, as contas por si apresentadas têm como pressuposto básico a sentença de verificação e graduação de créditos, a qual é homologatória, por ausência de impugnação dos créditos reconhecidos (artº 129 e 130 CIRE) da lista de credores - (vide STJ ac. 08-09-2021 P 1937/19.9T8STS-E.P1.S1 e TRE ac. 1561/16.8T8STB-H.E1; TRP ac. 668/19.4T8STS.P1, disponíveis na NET);
VIII - Deste modo, não observando o que está sentenciado e julgado, impondo uma entrega de dinheiro que só podia ter como contraponto um bem do activo liquidado, que não se verificaram nem existiram no processo de insolvência, o douto acórdão violou o caso julgado (artº 629 nº 2 alª a) CPC)
IX - Acresce que a quantia recebida pelas recorrentes em 2006 foi imputada pelas mesmas nos créditos de juros e capital em dívida, desde 2003, ao abrigo do disposto no artº 785 CC, como está alegado e documentalmente justificado nos artº 1 a 10 da sua reclamação de créditos e de que não houve impugnação;
X- Tendo as credoras, além dos juros em dívida, imputado parte da quantia recebida em capital (garantido), como decorre do artº 9 da reclamação de créditos, a imposição do douto acórdão equivalia a deduzir duas vezes nos seus créditos a quantia recebida, pelo menos quanto ao capital;
X - O respeito da sentença de verificação e graduação de créditos não se compadece com a afirmação do douto acórdão de que “a quantia em débito é de € 309.477,69, sem prejuízo do crédito de juros” (quais?), quando o que está reclamado em capital garantido, não impugnado pelos credores (incluindo a recorrida), e homologado por sentença (como reconhecido no douto acórdão) é € 469.448,69;
XII - A sentença, como acto formal, deve ser interpretada com um só sentido, ou pelo menos com um sentido que tenha na sua letra um mínimo de correspondência, e de modo algum ela comporta a interpretação feita no douto acórdão por mais criatividade que seja lícito admitir (artº 295, 236 e 238 CC);
XIII – É, portanto, ilegal e violadora das ditas normas a aliás douta decisão contida no acórdão recorrido, pelo que deve ser revogado e resposta a douta decisão de 1ª instância.
2ª Apelação:
XIV- Ao abrigo do disposto na lei insolvencial quanto aos juros vincendos (após a insolvência) decorrentes do crédito garantido, as recorrentes peticionaram-nos, indicando a taxa de juro legal de 4%;
XV - Socorreram-se das disposições do artº 47 nº 4 alª b) e 48 alª b) do Cire, de onde claramente decorre a faculdade de pedir tais juros, na qualidade de crédito não subordinado;
XVI- O douto acórdão não os aceitou, com a consideração de que a sentença de verificação e graduação os não tinha acolhido como tal, declarando que deviam ser pagos como créditos subordinados;
XVII- Todavia, a análise da sentença permite concluir seguramente que a atribuição de juros, como créditos subordinados após a declaração de insolvência, não se refere ao crédito garantido das recorrentes (artº 1º da reclamação de créditos), mas a outro crédito decorrente de uma hipoteca legal registada em 22-01-2014, que a sentença não considerou garantia;
XVIII - Certo é que a douta sentença resolve esta questão da 2ª hipoteca, e a fls 6 v e 7 contrapõe a qualificação destes juros aos decorrentes do crédito declarado garantido;
XIX - No que respeita aos segundos, a douta sentença qualifica-os como garantidos, com fundamento no disposto do artº 48 alª b) CIRE, e, portanto, o pagamento destes juros tem de seguir o regime previsto na lei, seja como crédito garantido até ao valor dos bens garantidos, seja como crédito comum;
XX - Há pois violação de caso julgado (artº 629 nº 2 alª a));
XXI - Considerando tais juros peticionados como créditos subordinados, o douto acórdão está em oposição com o do STJ nº 1937/19.9T8STS-E.P1.S1 de 08-09-2021, visto que aqui estão qualificados tais juros como garantidos;
XXII - A questão posta em ambos os acórdãos é a mesma, a legislação a mesma, embora as decisões sejam opostas;
XXIII - A questão dos juros vincendos moratórios, previstos no artº 48 alº b) CIRE não é pacífica e é escassa a jurisprudência sobre o regime a seguir;
XXIV - De facto, devem tais juros considerar-se credito garantido, privilegiado, ou comum?; acresce que não obstante o interesse da questão para a generalidade dos créditos hipotecários, é muito escassa a jurisprudência sobre o assunto, através de uma busca nos meios disponíveis, e daí a admissão do recurso com este fundamento, sem prejuízo da sua desnecessidade.
XXV - O douto acórdão por erro de interpretação ou violação das normas indicadas deve ser revogado, prolatando-se douta decisão que, quanto à 1ª apelação declare que não deve ser ordenado o acrescento da referida quantia no mapa de rateio, e quanto à 2ª, que os juros vincendos peticionados devem ser contados como crédito não subordinado, a partir da insolvência.
Contra-alegou BB nos seguintes termos:
A - QUANTO À PRIMEIRA APELAÇÃO:
Convém historiar brevemente o processo conducente ao recurso interposto pela ora recorrida quanto ao douto despacho que indeferiu a reclamação por si apresentada relativamente ao mapa de rateio apresentado pelo Administrador da Insolvência.
Em 1 de Outubro de 2009 foi proferida sentença de declaração de insolvência de AA, transitada em julgado em 9 de Novembro de 2009, pelo então ... Juízo Cível ..., no âmbito do Proc. nº 5.723/09.6TBVNG.
As recorrentes eram titulares de um crédito de tornas sobre a insolvente no montante de € 482.169,54, tendo, por via dessa qualidade, intentado uma execução que correu termos pelo ... Juízo Cível ..., Proc. nº 418-D/1999.
E já aí confessaram expressamente ter recebido por conta do seu crédito sobre a insolvente (à data executada) € 200.000,00.
Aquando da apresentação do requerimento de reclamação e verificação dos seus créditos nestes autos de insolvência, confessaram de novo - vide art. 9º - já lhes ter sido paga a importância de € 200.000,00 por conta desse crédito.
Pelo que o Administrador da Insolvência teve obviamente conhecimento desse facto, ao invés do que se alega no presente recurso.
Ora, a sentença de verificação e graduação de créditos data de 2 de Maio de 2016 que a Meritíssima Juíza que a prolatou verificou e graduou os créditos reclamados, quer pelas recorrentes DD, CC e EE, quer pela recorrida, nos termos vertidos nas suas reclamações, não especificando os montantes respetivos.
Ou seja, verificou e graduou o crédito das recorrentes no montante por elas indicado na reclamação apresentada, na qual haviam já confessado ter recebido, por conta daquele, € 200.000,00.
Daí que a recorrida não tivesse impugnado por meio de recurso essa douta sentença que nenhum vício possuía - o Tribunal verificou e graduou corretamente os créditos em apreço, reconhecendo-os nos exatos termos vertidos na reclamação de créditos das recorrentes e da recorrida.
Em 21 de Fevereiro de 2017, isto é, após a data da prolação da douta sentença de verificação e graduação de créditos, que é anterior (2 de Maio de 2016), a recorrida foi notificada de uma proposta de rateio parcial apresentada pelo Administrador da Insolvência através do documento com a Refª ...37, num momento, o que é relevante frisar, em que ainda não estava concluída a liquidação, não se sabendo à data, e por isso mesmo, qual o valor que iria ser apurado com a venda dos bens apreendidos.
A recorrida deu-se conta de que o mapa elaborado pelo Administrador omitia o recebimento desse montante de € 200.000,00, além de que dizia peremptoriamente “contudo, esta última credora (a recorrida) não verá nunca, como credora hipotecária, a regularização do seu crédito, já que o montante resultante da alienação desses bens, não será suficiente para a satisfação dos créditos registados em 1º lugar”.
Enganou-se e teve de corrigir tão convicta declaração.
Face a tal proposta de rateio parcial, a recorrida apresentou nestes autos principais uma reclamação através do requerimento remetido a juízo em 6 de Março de 2017, sob o documento com a Refª ...89, sobre a qual não incidiu despacho decisório.
Ou seja, a questão do recebimento da quantia de € 200.000,00 pelas recorrentes só foi suscitada pela primeira vez em 6 de Março de 2017, na sequência da proposta de rateio parcial apresentada pelo Administrador, datando a sentença de verificação e graduação de créditos de 2 de Maio de 2016, dado que nesta o crédito das recorrentes foi reconhecido nos termos em que havia sido reclamado, isto é, com a admissão confessada expressamente do recebimento daquela quantia.
Por requerimento notificado à recorrida em 9 de Novembro de 2017, pelo documento com a Refª ...86, o Administrador da Insolvência apresentou nova proposta de mapa de rateio em que não considerava novamente o recebimento da quantia de € 200.000,00 por parte das recorrentes.
E em 21 de Novembro de 2017 a recorrida apresentou, através do requerimento com a Refª ...74, a segunda reclamação, invocando os mesmos fundamentos já vertidos na primeira.
Sobre esta reclamação também não incidiu qualquer despacho decisório.
Em 6 de Novembro de 2020 o Administrador da Insolvência remeteu aos autos, concluída a liquidação e conhecido finalmente o valor arrecadado para os credores proveniente da venda dos bens, a proposta de rateio final em que, contrariamente à sua céptica premonição inicial, a recorrida, afinal, sempre receberia alguma coisa, in casu, o valor de € 73.928,93.
Por requerimento datado de 16 de Novembro de 2020, com a Refª ...53, a recorrida solicitou-lhe esclarecimentos sobre o aludido mapa.
Por notificação datada de 4 de Dezembro de 2020, através do documento com a Refª ...74, o Administrador da Insolvência prestou os esclarecimentos requeridos nos autos principais, indicando que as recorrentes tinham já recebido € 343.500,00 (montante pago adiantadamente ao longo da insolvência), e não € 543.500,00, o valor efetivamente recebido, se contabilizados os € 200.000,00 que as próprias reconheceram, confessando, ter recebido por conta do crédito reclamado.
E em 22 de Dezembro de 2020 a recorrida, através do requerimento com a Refª ...20, apresentou a terceira reclamação, vertendo na mesma os fundamentos que já havia invocado nas duas anteriores.
Sobre esta reclamação não incidiu, a exemplo das anteriores, qualquer despacho decisório.
Em 21 de Janeiro de 2021 o Administrador da Insolvência remeteu aos autos principais nova proposta de rateio final, em que manteve, salvo a ponderação do valor das custas nos pagamentos a realizar, a sua posição de não considerar, para efeito do rateio, o facto evidente de, para além dos valores recebidos durante o processo de insolvência - € 345.500,00 -, as recorrentes já terem recebido a quantia de € 200.000,00, pelo que o seu crédito sempre teria, em função da sentença de verificação e graduação de créditos, de ser deduzido desse montante, operação que o Administrador da Insolvência se negou a efetuar.
E, assim sendo, a recorrida em 2 de Fevereiro de 2021, pelo requerimento com a Refª ...21, apresentou a quarta reclamação ao mapa de rateio, reproduzindo o já anteriormente aduzido.
O Tribunal, por douto despacho notificado à recorrida em 3 de Março de 2021 pelo documento com a Refª ...81, ordenou que o mapa de rateio remetido aos autos pelo Administrador da Insolvência em 21 de Janeiro de 2021 fosse notificado aos credores.
E por requerimento datado de 11 de Março de 2021, com a Refª ...03, a recorrida apresentou a quinta reclamação, opondo-se ao rateio nos termos propostos pelo Administrador da Insolvência, com os fundamentos expendidos nas quatro anteriores.
O Tribunal de 1ª Instância considerou que “a questão do recebimento da aludida quantia foi suscitada no âmbito do apenso da verificação e graduação de créditos e aí apreciada. Assim, a sentença proferida nessa sede levou em consideração todos os elementos constantes dos autos, encontrando-se a mesma transitada em julgado”.
E deste douto despacho foi interposto recurso pela ora recorrida, julgado procedente pelo Tribunal da Relação do Porto.
Como bem se decidiu no acórdão de que vem interposto o presente recurso, “a sentença de verificação de créditos, que efectivamente transitou em julgado, atendeu ao valor reclamado pelas três irmãs reclamantes a título de tornas, na nova reclamação de créditos que deduziram no apenso deste processo de insolvência”.
E, prosseguindo, “esse crédito é, portanto, o que resulta da reclamação que apresentaram no seu requerimento, qual seja o valor das tornas que lhe foi reconhecido no inventário por óbito dos seus avós, de que se constituiu devedora sua mãe e ali também interessada e executada, e aqui insolvente, AA, valor esse deduzido da quantia de € 200.000,00 que as próprias reclamantes ali também confessam já ter recebido da insolvente, no dia 2.11.2006, no âmbito daquela execução nº 418/1999, do ... Juízo Cível de .... Ou seja, nos termos da própria reclamação de créditos que apresentaram neste processo de insolvência, estas reclamantes consideram-se credoras da quantia de € 509.477,69 de tornas, mas deduzida da quantia de € 200.000,00 já recebida da devedora, pelo que reclamam a título daquele capital a quantia de € 309.477,69 (cf. Artigos 2º e 9º da reclamação de créditos), sem prejuízo dos demais créditos reclamados, designadamente a título de juros”.
E conclui, dizendo que “a sentença de graduação de créditos, na medida em que determina, no seu dispositivo, o pagamento do crédito reclamado por aquelas três reclamantes, está a acolher na decisão o montante efectivamente reclamado, o que não pode deixar de consistir na quantia de tornas de € 309.477,69 (já deduzida da quantia de € 200.000,00, não reclamada), sem prejuízo dos juros. Nesta decorrência, o respeito pelo caso julgado formado sobre a sentença de verificação e graduação de créditos impõe que, no rateio, se considere que o crédito reclamado na insolvência por CC, DD e EE, relativo ao capital de tornas, sobre a insolvência é de € 309.477,69 (€ 509.477,69 - € 200.000,00), sem prejuízo do crédito de juros. O mapa de rateio deve ser elaborado em conformidade, assim se cumprindo, nesta parte, a sentença de graduação de créditos. As entregas parcelares totais no valor de € 343.500,00 às três referidas reclamantes já foram atendidas, devendo continuar a sê-lo, no mapa de rateio”.
Por manifesta obstinação, e com grave prejuízo para os demais credores, pretendem as recorrentes opor-se à reelaboração do mapa de rateio que, tal como o Administrador da Insolvência, o desenhou, obviamente as beneficia.
E invocam, note-se, que o Administrador desconhece o recebimento por aquelas de € 200.000,00 por conta do crédito que vieram reclamar no processo de insolvência, quando elas próprias o confessaram expressamente!... Apenas podia desconhecer se não tivesse lido a reclamação de créditos no que não é verosímil acreditar, não se lhe faça essa injustiça.
Seria ofensivo das regras da boa fé, porque incorporaria um benefício ilegítimo para determinados credores, as recorrentes, em detrimento de outros (a recorrida e os demais credores), ignorar o recebimento de € 200.000,00 por conta do crédito que está vertido na reclamação de créditos trazida ao processo de insolvência.
O Supremo Tribunal de Justiça, salvo algumas e raras exceções, não conhece da matéria de facto que é fixada pela 1ª Instância e, eventualmente, pelos Tribunais da Relação, quando a mesma estiver em causa nos recursos interpostos.
Pelo que tudo quanto se alega em 2 a 4 das doutas alegações das recorrentes (um acervo de contas que procura justificar o injustificável) extravasa do objeto próprio de um recurso de revista.
O aí enunciado releva da já mencionada obstinação em que as recorrentes insistem a benefício do seu bolso – considerar que o valor de € 200.000,00, recebido por conta do seu crédito sobre a insolvente, como expressamente confessaram, não deve ser deduzido ao valor a receber em resultado da liquidação, tendo em conta o já recebido.
O Tribunal da Relação do Porto, e com inteiro acerto, fez justiça ao ordenar que esse montante seja tido em conta aquando do rateio final, pois reporta-se inequivocamente ao crédito detido pelas recorrentes sobre a insolvente, irrelevando a data em que se formou.
Não há, pois, como sustentam as recorrentes, violação alguma de caso julgado, dado que o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto decidiu exatamente em função da sua observância, ao decretar que o mapa de rateio deve ser reelaborado de acordo com a sentença de verificação de créditos transitou em julgado, não tendo as recorrentes dela recorrido; e nela consta o reconhecimento do seu crédito nos termos por elas reclamado, com a confissão expressa de que receberam, por conta do mesmo o valor de € 200.000,00, devendo, deste passo, ser atendido pelo Administrador aquando da elaboração do mapa de rateio final.
Haveria, sim, violação de caso julgado se o mapa de rateio desconsiderasse, como fez o Administrador, o decidido na sentença de verificação de créditos. O Tribunal da Relação do Porto o não permitiu, aplicando correctamente o Direito aos factos.
B – QUANTO À SEGUNDA APELAÇÃO
Como se alcança do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto de que as recorrentes vêm recorrer para este Supremo, o que estava em causa na segunda apelação era saber se “devem ser contados os juros vencidos após a declaração de insolvência sobre o crédito garantido das recorrentes não como créditos (juros) subordinados, mas como créditos comuns ou mesmo privilegiados”.
Ora, no acórdão tirado pelo Supremo Tribunal de Justiça junto pelas recorrentes o que se discutiu foi, e transcreva-se a III conclusão do aí recorrente, “De facto, a questão fulcral que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se, junta aos autos a lista definitiva de credores e créditos reconhecidos e não reconhecidos, elaborada pela Sra Administradora da Insolvência (doravante, AI) nos termos do artigo 129º do CIRE, na qual não é feita qualquer menção aos juros, abrangidos por garantia real, vincendos depois da declaração da insolvência, juros esses que, nos termos do artigo 128º do CIRE, foram oportunamente reclamados por um credor, se recai sobre este o ónus de impugnar a lista, nos termos do artigo 130º do mesmo diploma legal, ou, afinal, de recorrer da sentença de graduação de créditos que se limite a homologá-la”.
Do confronto entre as duas problemáticas, facilmente se conclui que tratam realidades diferentes, contendendo com dispositivos legais diversos – são as próprias recorrentes que invocam, para peticionarem o conhecimento do seu recurso, os arts. 47º, nº 4, b) e 48º, b), do CIRE.
É o bastante para que fique demonstrado não estarem preenchidos os pressupostos elencados, quer no art. 14º, nº 1, do CIRE, quer, se se considerar aplicável (e na visão da recorrida não é), no art. 672º, nºs 1 e 2, do CPC, para que seja admitido este recurso.
Não obstante, e porque cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, compulsemos o decidido no douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto sobre o objeto do recurso das recorrentes.
Como se verte naquele aresto, o Tribunal da 1ª Instância debruçou-se sobre o objeto da reclamação das recorrentes relativamente à qualificação do crédito de juros, decidindo que deveriam “ser qualificados como garantidos os créditos reclamados por estas credoras relativos ao capital e aos juros de mora relativos aos três primeiros anos, com o limite máximo fixado no registo dessa hipoteca, vencidos até 17/1/2007. Já os juros de mora vencidos após essa data, até à data da declaração da insolvência são créditos comuns e os juros vencidos depois da declaração de insolvência são créditos subordinados”.
O Tribunal da Relação do Porto, interpretando com todo o acerto o douto despacho que incidiu sobre a reclamação das recorrentes, entendeu, de acordo com a sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado e da qual não houve recurso por parte das ora recorrentes, que (e transcreva-se):
“1- Apenas beneficiam da garantia de hipoteca legal os juros vencidos durante os três anos subsequentes à data da constituição daquela garantia, ou seja, entre 15.1.2004 e 15.1.2007, pelo valor dos bens hipotecados;
2 – Os juros vencidos desde 16.1.2007 até à data da declaração de insolvência (1.10.2009) são créditos comuns;
3 – Os juros vencidos desde a sentença declarativa da insolvência e vincendos, até à data do pagamento, são créditos subordinados;
4 – Acaso o produto dos bens hipotecados não chegue para pagar a totalidade dos juros de que aquelas são titulares, vencidos entre 15.1.2004 e o dia 15.1.2007 (os únicos juros garantidos por hipotecas) o remanescente de tais juros (e apenas deles) deve ser graduado como crédito comum.”.
Não se vislumbra, como sustentam as recorrentes em XX das conclusões, qualquer violação de caso julgado; ocorre é que as recorrentes não souberam interpretar a douta sentença de verificação e graduação de créditos, como, com clareza e objetividade (o que às recorrentes escasseia), demonstrou o Tribunal da Relação do Porto.
Diversamente do que afirmam, com o intuito óbvio de obter benefícios ilegítimos à custa do prejuízo dos restantes credores, a sentença de verificação e graduação de créditos quis referir-se, sim, ao crédito garantido, explicitando temporalmente (o que as recorrentes sintomaticamente não fazem) a qualificação do crédito de juros desde a constituição da garantia até ao pagamento.
Compulsando o douto acórdão deste Supremo junto com as alegações das recorrentes, facilmente se enxerga que o que nele foi decidido teve a ver, outrossim, com os juros de mora vincendos que, nos autos sob escrutínio, não foram pura e simplesmente considerados pela administradora da insolvência.
Qual a similitude com o que se questiona nestes autos? Nenhuma.
Nestes termos deve o presente recurso ser rejeitado por inadmissível, seja como recurso de revista, seja como recurso de revista excecional, por violar o estatuído no art. 14º, nº 1, do CIRE e 629º, nº 1, e 672º, nºs 1 e 2, do CPC, ou, se assim se não entender, deve o mesmo ser julgado improcedente, confirmando-se o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto.

II – FACTOS PROVADOS.
Os indicados no RELATÓRIO supra.

III - QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
1- Aplicação do regime geral de recursos, por remissão do artigo 17º, nº 1, do CIRE. Admissibilidade da presente revista
2 – Alegada ofensa ao caso julgado, enquanto fundamento da presente revista nos termos do artigo 629º, nº 2, alínea a), “in fine”, do Código de Processo Civil. Conformidade do mapa de rateio proposto pelo administrador da insolvência em relação ao decidido, com trânsito em julgado, na sentença de verificação e graduação de créditos proferida por apenso no presente processo de insolvência. Tomada em consideração da verba de € 200.000,00 recebida pelas recorrentes. Inclusão dos juros vincendos reclamados por estas como créditos subordinados.
Passemos à sua análise:
1- Aplicação do regime geral de recursos, por remissão do artigo 17º, nº 1, do CIRE. Admissibilidade da presente revista.
Cumpre antes de mais referir que a decisão em apreço foi proferida no âmbito do processo de liquidação (a processar por apenso) e antes desta fase processual do processo de insolvência se encontrar finda.
Assim, o presente recurso de revista seguirá o regime geral previsto no artigo 17º, nº 1, do CIRE, e não o constante do artigo 14º do mesmo diploma legal (que neste caso suporia o encerramento da liquidação previsto no artigo 182º do CIRE).
Estando outrossim em causa uma decisão de natureza interlocutória (não final) a admissibilidade da revista depende igualmente do preenchimento das exigências (em alternativa) consignadas no artigo 671º, nº 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.
Neste sentido, as recorrentes fundam o seu recurso de revista na invocação da ofensa ao caso julgado, o qual se consubstancia, segundo elas, no facto de o acórdão recorrido haver desrespeitado o decidido na sentença de verificação e graduação de créditos e na sentença de aprovação das contas prestadas pelo administrador da insolvência, alterando, substancialmente e em sentido antagónico, o conteúdo e alcance daquelas decisões transitadas em julgado.
A presente revista, tal como se encontra em concreto configurada pelas recorrentes, é admissível por ter na sua base a invocação pelas recorrentes de ofensa de caso julgado, nos precisos termos do artigo 629º, nº 2, alínea a), “in fine”, do Código de Processo Civil, o que habilita a sua interposição, em qualquer circunstância e independentemente do valor da causa (ou da eventual constituição de dupla conforme).
(Sobre esta matéria vide Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil”, Almedina 2022, 7ª edição, a página 55; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina Março de 2022, 3ª edição, Volume III, a página 28; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – 6ª Secção - de 5 de Abril de 2022 (relator Barateiro Martins), proferido no processo nº 107/20.8T8ALR-A. E1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
Tal invocação vai, nestes mesmos termos, ao encontro da exigência prevista no artigo 671º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil, aplicável às decisões interlocutórias, integrando os casos em que o recurso é sempre admissível (efectuando a correspondente remissão para o artigo 629º, nº 2, do Código de Processo Civil).
A admissibilidade da revista com este fundamento (artigo 629º, nº 2, alínea a), “in fine”, do Código de Processo Civil) delimitará o seu âmbito de conhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça, encontrando-se circunscrita, necessariamente e apenas, à verificação, ou não, da dita ofensa ao caso julgado constituído por decisões anteriores.
Perante a alegação concretamente produzida pelas recorrentes, não existem elementos que permitam afastar liminarmente a possibilidade de a situação assim descrita se enquadrar numa eventual ofensa ao caso julgado, ou seja, de não ser manifestamente aplicável na situação sub judice o regime previsto no artigo 629º, nº 1, alínea a), in fine, do Código de Processo Civil.
Assim sendo, e nesta perspectiva, não assiste razão à recorrida quando pugna pela inadmissibilidade da revista e consequente rejeição, face à motivação específica apresentada pelas recorrentes e à configuração concreta que lhe imprimem.
Pelo que haverá lugar ao seu conhecimento.
2 – Alegada ofensa ao caso julgado, enquanto fundamento da presente revista nos termos do artigo 629º, nº 2, alínea a), “in fine”, do Código de Processo Civil. Conformidade do mapa de rateio proposto pelo administrador da insolvência em relação ao decidido, com trânsito em julgado, na sentença de verificação e graduação de créditos proferida por apenso no presente processo de insolvência. Tomada em consideração da verba de € 200.000,00 recebida pelas recorrentes. Inclusão dos juros vincendos reclamados por estas como créditos subordinados.
O conhecimento da presente revista circunscreve-se estritamente à questão da necessária conformidade do mapa de rateio proposto pelo administrador da insolvência relativamente ao decidido no apenso de verificação e graduação de créditos, que transitou em julgado (não relevando para este efeito a sentença que aprovou a prestação de contas prestada pelo anterior administrador da insolvência e que não tem por objecto o efectivo e directo reconhecimento de créditos, nada interessando para a análise jurídica que cumpre proceder na presente revista nem, naturalmente, o acordo aprovado pelos credores).
Importa, portanto, aferir se o acórdão recorrido - que incidiu sobre o mapa de rateio apresentado pelo administrador da insolvência nos termos do artigo 178º do CIRE, confrontado com as reclamações das ora recorrentes -, decidiu, ou não, em consonância com a sentença proferida no apenso de verificação e graduação de créditos, sem o que se teria produzido ofensa de caso julgado.
É esse o único objecto do conhecimento deste Supremo Tribunal de Justiça no âmbito da presente revista.
Esta análise desdobra-se em duas vertentes distintas e autónomas:
1 - Tomada em consideração da verba de € 200.000,00, recebida pelas recorrentes da devedora/insolvente para amortização do respectivo crédito de tornas no inventário de seus avós e que haverá que imputar no respectivo valor do capital reclamado.
2 - Inclusão dos juros vincendos reclamados pelas reclamantes como créditos subordinados.
Apreciando:
1 - Tomada em consideração da verba de € 200.000,00, recebida pelas recorrentes da devedora/insolvente para amortização do respectivo crédito de tornas no inventário de seus avós e que haverá que imputar no respectivo valor do capital reclamado.
As recorrentes alegaram essencialmente que:
A entrega desta importância (€ 200.000,00) verificou-se muito antes da declaração de insolvência, sendo que o prédio hipotecado vendido não entrou no auto de apreensão e o acto de venda é alheio à insolvência, (além de que o sr. AI é também estranho a tal venda).
A dita imputação contida no douto acórdão viola o plano de pagamento dos créditos, conhecido e aprovado pelos credores, e homologado por sentença, que não foi impugnada, na medida em que para os pagamentos a efectuar o sr AI. só pode socorrer-se da lista de créditos reconhecidos e da sentença que os verificou e graduou e do produto das vendas;
Para incluir a quantia no mapa de rateio, ela tem de corresponder a um pagamento que o sr. AI não fez, e a que é alheio, devendo tal pagamento corresponder também a um bem do activo liquidado, que também não existiu (artº 46, 55, 172, 174 CIRE);
O administrador, feitas as vendas dos prédios apreendidos (de que não consta o referido) e obtidos os proveitos das vendas, apresentou as contas para aprovação ao tribunal, de que apenas constam os pagamentos por si efectuados e os prédios por si vendidos; tais contas estão aprovadas por sentença no apenso respectivo (Apenso R), de que não houve recurso por parte de qualquer credor, incluindo a recorrida;
Por outro lado, as contas por si apresentadas têm como pressuposto básico a sentença de verificação e graduação de créditos, a qual é homologatória, por ausência de impugnação dos créditos reconhecidos da lista de credores.
Acresce que a quantia recebida pelas recorrentes em 2006 foi imputada pelas mesmas nos créditos de juros e capital em dívida, desde 2003, ao abrigo do disposto no artº 785 CC, como está alegado e documentalmente justificado nos artº 1 a 10 da sua reclamação de créditos e de que não houve impugnação;
Tendo as credoras, além dos juros em dívida, imputado parte da quantia recebida em capital (garantido), como decorre do artº 9 da reclamação de créditos, a imposição do douto acórdão equivalia a deduzir duas vezes nos seus créditos a quantia recebida, pelo menos quanto ao capital;
O respeito da sentença de verificação e graduação de créditos não se compadece com a afirmação do douto acórdão de que “a quantia em débito é de € 309.477,69, sem prejuízo do crédito de juros” (quais?), quando o que está reclamado em capital garantido, não impugnado pelos credores (incluindo a recorrida), e homologado por sentença (como reconhecido no douto acórdão) é € 469.448,69;
Vejamos:
A sentença de verificação e graduação de créditos, proferida em 2 de Maio de 2016, não procedeu à concreta quantificação numérica dos créditos reconhecidos e graduados e que, nesses termos, não discriminou.
De resto, nenhum dos factos dados como provados diz sequer directamente respeito ao crédito de que são titulares as ora recorrentes.
(Na sentença apenas se refere que: “Reclamaram ainda as credoras CC; DD e EE das qualificações dadas aos seus créditos, sendo que se encontram garantidos por hipoteca legal, decorrente de créditos de tornas em processo de inventário” (...) Deverão ser qualificados como garantidos os créditos reclamados por estas credoras relativos ao capital e juros relativos aos três primeiro anos, com o limite máximo fixado no regista dessa hipoteca até 15 de Janeiro de 2007. Já os juros de mora vencidos após essa data da declaração da insolvência são créditos comuns e os juros vencidos depois da declaração de insolvência são créditos subordinados”).
O que significa que tais créditos, que estão agora em análise na sua vertente quantitativa – saber quais os montantes a considerar devidos a título de capital e juros -, foram reconhecidos e graduados em estreita conformidade com a reclamação apresentada pelas credoras, suas titulares, e que não suscitou impugnação.
Ora, para se aferir da pretensão recursiva das ora recorrentes haverá então que tomar em consideração o exacto conteúdo da reclamação por si apresentada.
Neste sentido, consta a fls. 213 a 220 a reclamação de créditos apresentada, em 9 de Dezembro de 2009, por estas credoras, cuja análise não deixa margem para quaisquer dúvidas.
No seu artigo 2º, as mesmas quantificam o seu crédito global em € 509.477,70 (€ 169.825,00 x 3), decorrente do direito a tornas que se são titulares sobre a ora insolvente.
No artigo 9º, referem espontaneamente que “na data de 2 de Novembro de 2006, foi paga às ora reclamantes a quantia de € 200.000,00 (...)”.
Assim, segundo o que elas próprias afirmaram no presente processo de insolvência e, em concreto, no seu requerimento de reclamação de créditos, o crédito respeitante às tornas a que têm direito ficou assim reduzido a €309.477,70 (correspondente ao crédito individual de € 103.159,23), dado já terem recebido – em 2 de Novembro de 2006 - os mencionados € 200.000,00 – que as mesmas consideraram (então) dever entrar em linha de conta com o crédito global de tornas a que teriam direito.
(Pagamento este que ocorreu no âmbito da execução nº 418/1999, do ... Juízo Cível ... que moveram à sua devedora, ora insolvente).
Seguidamente, as mesmas reclamantes desenvolvem a sua explicação do processo de imputação do valor recebido a título de juros que consideram legalmente adequado, socorrendo-se do critério estabelecido no artigo 785º do Código Civil.
De resto, noutros articulados que juntaram aos autos as mesmas credoras, ora recorrentes, voltaram a confirmar o recebimento, por conta do seu crédito de tornas na herança de FF e GG, da citada verba de € 200.000,00, em 2 de Novembro de 2006.
Neste sentido, vide o requerimento de fls. 73 a 76, junto na Assembleia de Credores de 21 de Dezembro de 2009, onde consta que: “os créditos reclamados pelas requerentes sobre a insolvente decorrem das tornas sentenciadas e garantidas”; requerimento para exercício do contraditório apresentado em 16 de Março de 2017, a fls. 821 a 824, onde pode ler-se: “Artigo 8º - As requerentes apresentaram a sua reclamação de créditos, reclamaram créditos garantidos e não garantidos (comuns e subordinados), não tendo a sua liquidação sofrido qualquer contestação, por qualquer dos credores, com excepção da insolvente que não concordou com a imputação da quantia recebida de € 200.000,00 (artigo 785º do CC), efectivamente recebida em 2 de Novembro de 2016”; requerimento de fls. 845 a 846, entrado em juízo em 23 de Novembro de 2017, onde se refere: “Antes de ocorrer a declaração de insolvência (1 de Outubro de 2010) a insolvente vendeu alguns prédios (2 de Novembro de 2006) e entregou o produto dessa venda - € 200.000,00 – às ora credoras, CC e irmãs”.
Assim sendo, não há dúvidas de que o montante do capital respeitante ao seu crédito fixou-se, a partir de 2 de Novembro de 2006, no valor de € 309.477,70, afirmado pelas próprias titulares, que terá que ser considerado como tal no mapa de rateio apresentado pelo administrador da insolvência, com expressa referência a tal confessado recebimento.
E é tendo em conta o valor do capital em dívida entre a data da constituição em mora da devedora/insolvente e o momento da sua amortização em 2 de Novembro de 2006, bem como o remanescente existente daí em diante, que será necessário calcular os juros de mora correspondentes através das taxas aplicáveis, sobre os quais incidirá o regime específico fixado (quanto à sua natureza) na sentença de verificação e graduação de créditos.
É precisamente este o verdadeiro sentido do caso julgado que se formou com a prolação da sentença de verificação e graduação de créditos, contra a qual não foi interposto recurso de apelação.
Pelo que não pode deixar de concordar-se com o acórdão recorrido quando, pelas razões que nele se expôs, foi ordenada a correcção do mapa de rateio, na sequência da reclamação apresentada pela reclamante BB, dado não poder sufragar-se a singela afirmação produzida em 1ª instância no sentido de que “a sentença de verificação e graduação de créditos não se havia pronunciado sobre o recebimento pelas reclamantes da dita verba” (que motivou verdadeiramente a revogação em 2ª instância do decidido e a consequente procedência da impugnação apresentada por BB).
Ao versar sobre a reclamação de créditos das ora recorrentes que continha o reconhecimento de que tal montante havia sido recebido para amortização da dívida de tornas, a sentença de verificação de créditos integrou (nestes termos e de pleno) tal crédito que reconheceu e graduou, embora, como se salientou, não haja procedido à sua quantificação, quer a título do capital devido, quer aos juros correspondentes.
O apuramento dos juros entretanto vencidos (e a sua forma de imputação) sobre o montante de capital (reduzido dos ditos € 200.000,00) constitui questão autónoma e diversa que extravasa o conhecimento do presente recurso de revista.
Por tudo isto, não se descortina de que forma o acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação do Porto contrariou minimamente o decidido na sentença de verificação e graduação de créditos, não existindo, nessa medida e manifestamente, qualquer espécie de ofensa ao caso julgado.
O que, por si só, pelas razões desenvolvidas supra (era este o único objecto da presente revista), impõe o não provimento da revista que se encontrava, como se disse e salientou, circunscrita a esta temática (invocada ofensa do caso julgado).
De resto, foi pertinentemente e com total clareza sublinhado no acórdão recorrrido que:
“A sentença de graduação de créditos, na medida em que determina, no seu dispositivo, o pagamento do crédito reclamado por aquelas três reclamantes, está acolher na decisão o montante efectivamente reclamado, o que não pode deixar de consistir na quantia de tornas de € 309.447,69 (já deduzida da quantia de € 200.000,00, não reclamada), sem prejuízo dos juros.
Nesta decorrência, o respeito pelo caso julgado formado sobre a sentença de verificação e graduação de créditos impõe que, no rateio, se considere que o crédito reclamado na insolvência por CC, DD e EE, relativo ao capital de tornas sobre a insolvência é de € 309.477,69 (€ 509.477,69 - € 200.000,00), sem prejuízo do crédito de juros.
O mapa de rateio deve ser elaborado em conformidade, assim se cumprindo, nesta parte, a sentença de graduação de créditos.
As entregas parcelares totais no valor de € 343.500,00 às três referidas reclamantes já foram atendidas, devendo continuar a sê-lo, no mapa de rateio”.
Não é possível deixar de concordar inteiramente com estas conclusões, soçobrando o argumentário em sentido oposto deduzido pelas credores/reclamantes, as quais chegaram a afirmar que este recebimento nada tinha a ver com o processo de insolvência da sua devedora, quando o que está em causa é, precisamente e apenas, o seu crédito de tornas no processo de inventário dos seus avós, identificado nos autos, respeitando tal recebimento a um pagamento parcial desse débito, cujo crédito foi nestes autos reclamado.
2 - Inclusão dos juros vincendos reclamados pelas recorrentes como créditos subordinados.
As recorrentes alegaram essencialmente que:
Ao abrigo do disposto na lei insolvencial quanto aos juros vincendos (após a insolvência) decorrentes do crédito garantido, as recorrentes peticionaram-nos, indicando a taxa de juro legal de 4%, socorrendo-se das disposições do artº 47 nº 4 alª b) e 48 alª b) do Cire, de onde claramente decorre a faculdade de pedir tais juros, na qualidade de crédito não subordinado;
A análise da sentença permite concluir seguramente que a atribuição de juros, como créditos subordinados após a declaração de insolvência, não se refere ao crédito garantido das recorrentes (artº 1º da reclamação de créditos), mas a outro crédito decorrente de uma hipoteca legal registada em 22-01-2014, que a sentença não considerou garantia;
Certo é que a douta sentença resolve esta questão da 2ª hipoteca, e a fls 6 v e 7 contrapõe a qualificação destes juros aos decorrentes do crédito declarado garantido;
No que respeita aos segundos, a douta sentença qualifica-os como garantidos, com fundamento no disposto do artº 48 alª b) CIRE, e, portanto, o pagamento destes juros tem de seguir o regime previsto na lei, seja como crédito garantido até ao valor dos bens garantidos, seja como crédito comum;
Considerando tais juros peticionados como créditos subordinados, o douto acórdão está em oposição com o do STJ nº 1937/19.9T8STS-E.P1.S1 de 8 de Setembro de 2021, visto que aqui estão qualificados tais juros como garantidos.
Vejamos:
Consta da decisão de reclamação de créditos a este respeito:
“Deverão ser qualificados como garantidos os créditos reclamados por estas credoras relativos ao capital e juros relativos aos três primeiros anos, com o limite máximo fixado no regista dessa hipoteca até 15 de Janeiro de 2007. Já os juros de mora vencidos após essa data da declaração da insolvência são créditos comuns e os juros vencidos depois da declaração de insolvência são créditos subordinados”.
Deste excerto da decisão transitada em julgado resulta, em termos claros e inequívocos, a absoluta falta de razão das ora recorrentes, como se assinalou no acórdão recorrido.
Encontra-se inevitavelmente abrangida pela força de trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos a afirmação peremptória de que “os juros vencidos depois da declaração de insolvência são créditos subordinados”, independentemente do mérito de tal consideração, questão esta totalmente ultrapassada pela ausência de impugnação pelas reclamantes e consequente trânsito em julgado dessa decisão judicial.
Dizer ou pretender o contrário equivale sim, de forma frontal e inequívoca, a uma ofensa ao caso julgado que, entretanto, se constituiu neste particular.
Note-se que na sentença de verificação e graduação de créditos é precisamente colocada como uma das questões a decidir:
“(...) a de saber se devem ainda ser qualificados como garantidos os créditos de juros de mora objecto de nova hipoteca em relação aos demais juros em dívida”, concluindo-se que “Deverão, assim, ser qualificados como garantidos os créditos reclamados por estas credoras relativos ao capital e aos juros de mora relativos aos três primeiro anos, com o limte máximo fixado no registo dessa hipoteca, vencidos até 15 de Janeiro de 2007.
Já os juros de mora vencidos após essa data, até à data da declaração de insolvência são créditos comuns e os juros vencidos depois da declaração de insolvência são créditos subordinados”.
Tiveram as ora recorrentes a sua oportunidade de impugnar o decidido na sentença referida quanto a este ponto, se porventura com o mesmo se não tivessem, pela sua inércia, conformado; não o tendo feito, constitui-se inapelavelmente caso de julgado sobre o decidido, tal como foi entendido neste ponto pelo administrador da insolvência e pelas instâncias, o que não pode obviamente suscitar qualquer reparo, mas apenas natural concordância.
Acrescente-se ainda que o acórdão recorrido não conflitua de forma alguma com o decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Setembro de 2021, proferido no processo nº 1937/19.9T8STS-E.P1.S1, que se limitou a considerar abrangidos na sentença de verificação e graduação de créditos os juros vincendos efectivamente peticionados pelo reclamante, no caso de se considerar reconhecido esse mesmo crédito global nos precisos termos em que foi apresentado pelo reclamante, face à sua omissão do mapa final de rateio elaborado administrativamente pela secretaria, quando na situação sub judice houve lugar ao atendimento de todos os juros peticionados, embora como créditos subordinados (desde a declaração da insolvência em diante - até ao efectivo pagamento).
Pelo que se nega a presente revista.

IV – DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 21 de Junho de 2022.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Resende

Ana Paula Boularot





V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.