INJUNÇÃO DE PAGAMENTO EUROPEIA
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Sumário

I - Na ordem jurídica nacional vigoram em simultâneo dois regimes gerais de competência internacional: o regime comunitário ou da União e o regime interno; quando a ação está compreendida no âmbito de aplicação do regime da União, esse regime prevalece sobre o regime interno por ser de fonte hierarquicamente superior e face ao princípio do primado do direito europeu.
II - O Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, é, por força do art.º 6º do Regulamento (CE) nº 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, aplicável ao procedimento europeu de injunção de pagamento em matéria de competência.
III - Aquele Regulamento, prevendo como regra a determinação da competência internacional dos Tribunais com base no domicílio (ou da sede) do requerido, prevê, no entanto, regra de competência especiais (art.ºs 7º e seg.s), designadamente em matéria contratual, no caso de compra e venda e no caso de prestação de serviços, sendo que, nesta última situação, o requerente pode demandar o requerido no lugar onde os serviços foram ou devam ser prestados, tendo sido adotado um conceito com definição autónoma que não releva apenas para as questões relacionadas com a prestação do serviço, mas também para as demais questões emergentes do contrato, entre elas a ação para obtenção do respetivo pagamento.
IV - O artigo 26° do Regulamento (UE) n° 1215/2012 prevê também a chamada competência convencional tácita, abarcando aquelas situações em que, apesar de uma ação ter sido instaurada no tribunal de um Estado-Membro para a qual, em princípio, o mesmo não era competente, a comparência do requerido torna-o competente, a não ser que a comparência tenha como único objetivo invocar a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do art.º 24º.
V - Se, apresentado requerimento de injunção europeia nos Tribunais portugueses que, em princípio não são internacionalmente competentes para aquele procedimento, mas o requerido deduz oposição eficaz (ainda que não fundamentada) sem invocar a referida incompetência e, assim, evita a formação do título executivo, determinando a prossecução da ação nos termos do art.º 17º do Regulamento (CE) nº 1896/2006, o juiz deixa de poder conhecer oficiosamente da incompetência do tribunal (art.º 28º, nº 1, do Regulamento (UE) n° 1215/2012), ocorrendo, da parte do requerido, uma respeitável e indeclinável aceitação tácita da competência do tribunal do Estado-Membro de origem, Portugal, onde foi requerida e foi emitida a injunção de pagamento europeia.

Texto Integral

Proc. nº 14404/21.1T8PRT.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto – Juízo Local Cível da Maia - J 1

Relator: Filipe Caroço
Adjuntos: Desemb. Judite Pires
Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
K..., S.A., com sede na Maia, requereu procedimento especial de injunção europeia, ao abrigo do Regulamento (CE) 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, contra F..., SL, com domicílio em Barcelona, Espanha.
Pediu o pagamento de € 3.950,00, em duas faturas, e juros de mora, por serviços de transitário, logística e operações de apoio ao serviço de transporte da Alemanha para Espanha.
A Requerida opôs-se à injunção por requerimento que apresentou no dia 12.11.2021, pelo que o processo foi remetido ao Juízo Local Cível da Maia, depois do Tribunal Central Cível do Porto se ter considerado incompetente, em razão do território e do valor, para dele conhecer.
Por despacho de 20.12.2021, o Tribunal da Maia determinou que o processo seguiria, com as adaptações necessárias, a forma da acção especial destinada a exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contrato, estabelecidas no Regime Anexo ao DL 269/98, de 1/9 – cf. art.º 17º, nº 1, b), e nº 2, do Regulamento nº 1896/2006, de 12.12.2006. Mas, invocando dúvidas sobre a competência internacional dos tribunais portugueses, também ordenou a notificação da Requerente para esclarecer quais os factos e o Direito que a justificam.
A Requerente a presentou requerimento a justificar a competência internacional dos tribunais nacionais.
Por despacho de 18.1.2022, o tribunal declarou a sua incompetência internacional para o conhecimento da ação e absolveu a Requerida da instância.

*
Inconformada com a decisão, dela apelou a Requerente, tendo produzido alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
………………………………
………………………………
………………………………
Defendeu, assim, a recorrente a competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da ação.
*
Não foram oferecidas contra-alegações.
*
Foram colhidos os vistos legais.

II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 634º e 639º do Código de Processo Civil).

Com efeito, está para apreciar e decidir se os Tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a ação.
*
III.
A matérias de facto a considerar tem natureza processual e consta do relatório que antecede.
*
IV.
Apreciemos a questão da apelação.
Debate-se no recurso a competência internacional dos Tribunais portugueses para conhecer de um litígio de direito privado (comercial) resultante de um contrato de prestação de serviços de transitário celebrado entre uma sociedade com sede na Maia, Portugal (a Requerente) e uma sociedade com sede em Barcelona (Espanha), relativamente um serviço de transporte realizado da Alemanha para Espanha, todos eles países integrantes da União Europeia.
O nº 4 do art.º 8º da Constituição da República --- preceito introduzido pela Lei Constitucional nº 1/2004, de 24 de Julho (Sexta Revisão Constitucional) --- consagra o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário.
Nos termos do art.º 59º do Código de Processo Civil, “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.° e 63.° ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.°”.
A incompetência internacional dos Tribunais constitui uma exceção dilatória por incompetência absoluta, conducente à absolvição a instância, nos termos dos art.ºs 96º, al. a), 97º, nº 1, 99º, nº 1e 278º, nº 1, al. a), 576º, nº 2 e 577º, al. a), do Código de Processo Civil.
É de uma ação com origem em procedimento europeu de injunção para pagamento que tratamos, sendo-lhe aplicável o regime do Regulamento (CE) nº 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho[1], alterado pelo Regulamento (EU) n.° 936/2012 da Comissão de 4 de outubro de 2012, pelo Regulamento (EU) n.° 517/2013 do Conselho de 13 de maio de 2013, e pelo Regulamento (EU) 2015/2421 do Parlamento Europeu e do Conselho.
Nos termos do art.º 6º, nº 1, do Regulamento1896/2006, para efeito da sua aplicação, a competência judiciária é determinada em conformidade com as regras de direito comunitário aplicáveis na matéria, designadamente o Regulamento (CE) nº 44/2001.
A remissão para o Regulamento (CE) 44/2001 deve entender-se, no caso, como sendo para o Regulamento (EU) nº 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012[2], dado que, pelo seu art.º 80º, revogou aquele Regulamento (CE) 44/2001, tendo entrado em vigor no dia 10.1.2015 e a Injunção foi requerida no dia 15.9.2021 (cf. respetivos art.ºs 66º e 88º).
O Regulamento 1215/2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial[3], foi instituído ao abrigo dos artigos 67º, n.º 4 e 81º, n.º 2, al.s a), c) e e) do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), tendo o mesmo, a nível nacional, a relevância e a primazia que lhe é conferida pelo artigo 8º, nº 4, da Constituição da República.
De acordo com o seu art.º 1º, nº 1, o Regulamento aplica-se, “em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição. Não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras ou administrativas, nem a responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado («acta jure imperii»)”, estando expressamente excluídas as causas enunciadas no subsequente nº 2. Tem, assim, como seu objeto as relações jurídicas de natureza estritamente privada, na sua vertente civil e comercial, salvo as que ali estão expressamente excluídas.
A recorrente começa por defender o afastamento da aplicação da Convenção CMR[4] (que, aliás, o tribunal recorrido não aplicou) com o fundamento de que está estritamente em causa o não pagamento dos serviços de transporte de mercadorias por estrada, que ela prestou à recorrida, não sendo este um tema abordado na Convenção.
O art.º 71º, nº 1, do Regulamento 1215/2012, determina que o mesmo não prejudica as convenções em que os Estados-Membros são partes e que, em matérias especiais, regulem a competência judiciária, o reconhecimento ou a execução de decisões.
Resulta do art.º 1º daquela Convenção que a mesma se aplica a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tal como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, e independentemente do domicílio e nacionalidade das partes.
Como é sabido, a competência é um pressuposto processual relativo ao tribunal e vem sendo entendido na jurisprudência e na doutrina que, para a determinação do tribunal competente para o julgamento de uma ação --- à semelhança da verificação dos demais pressupostos processuais --- deve atender-se ao pedido nela formulado e à causa de pedir que lhe está subjacente, seja quanto aos seus elementos objetivos, seja quanto aos elementos subjetivos; os elementos identificadores da causa (pedido fundado na causa de pedir), tal como o autor a configura[5].
Manuel de Andrade[6], citando Redenti, afirma que a competência do tribunal se afere pelo quid disputatum (quid decidendiun, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se afere em função do pedido do autor.
No caso, nem dos elementos do requerimento de injunção, nem da explicação dada pela A. para justificar a competência internacional dos Tribunais portugueses, nem ainda dos documentos que apresentou resultam factos suficientes ao enquadramento do transporte no âmbito da aplicação da Convenção CMR, como seja, desde logo, que os dois serviços de transporte prestados à R. foram efetuados por estrada; pelo que não dispomos sequer de elementos que permitam concluir pela aplicação daquela Convenção.
A questão da competência deve ser dirimida pela aplicação dos referidos Regulamentos da União.
Consta dos considerandos do Regulamento 1215/2012 que “as regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição.” (§ 15)
Segundo o § 16, 1ª parte, dos mesmos considerandos, “o foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele”.
A regra geral da competência está fixada no art.º 4º daquele Regulamento: “Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro” (nº 1). Já “as pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado-Membro em que estão domiciliadas ficam sujeitas, nesse Estado-Membro, às regras de competência aplicáveis aos nacionais” (nº 2). Tratando-se de uma sociedade ou pessoa equiparada (pessoa coletiva, associação de pessoas singulares ou coletivas), determina o artigo 63º do Regulamento que tem domicílio na sua sede social (a), na sua administração central (b) ou no seu estabelecimento principal (c).
O Regulamento 1215/2012 confere, assim, primazia à regra do actor sequitur forum rei, ou seja, o autor deve demandar o réu no seu domicílio.
Os subsequentes art.ºs 7º e 8º estabelecem competências especiais e os art.ºs 10º a 16º um conjunto de regras exclusivamente aplicáveis à determinação da competência internacional em matéria de seguros, sem prejuízo da aplicação do disposto nos art.ºs 6º e 7º, ponto 5, ainda do Regulamento 1215/2012.
Tais normas abrem uma possibilidade de escolha do correspondente foro jurisdicional no âmbito da União Europeia, naquilo que vulgarmente se assinala como “forum shopping”, também designável por foro de conveniência, que é característico do direito internacional privado.
O art.º 7º concede ao autor a possibilidade de, em várias situações, demandar o réu noutro Estado-Membro, ou seja, num Estado-Membro que não seja o do seu domicílio. Assim acontece, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão (nº 1, al. a)).
Tratando-se de um contrato de prestação de serviços --- como acontece no caso em análise ---, determina a subsequente al. b) que, salvo convenção em contrário --- que, no caso, não ocorre --- a obrigação em questão para efeito da determinação do lugar do cumprimento, corresponde ao lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.
Com efeito, (a) a vontade do autor e (b) aquele lugar são determinantes para a fixação da competência, seja para exigir a prestação efetiva do serviço contratado, seja para exigir o pagamento desse serviço quando já realizado. É essencialmente para abarcar as situações em que o serviço foi prestado, com perfeição ou com defeito e os casos em que ainda não foi pago que aquela norma não se refere apenas ao lugar onde os serviços devam ser prestados, mas também ao lugar onde os serviços foram prestados. Não teria sentido lógico, não seria vantajoso para os interesses das partes nem para a realização da justiça se, no âmbito do cumprimento de um contrato de prestação de serviços, os tribunais de um Estado-Membro fossem competentes para exigir o cumprimento da obrigação de executar os serviços contratados e os tribunais de outro Estado-Membro fossem competentes para exigir a correção do serviço defeituosamente realizado ou o pagamento dos serviços.
Lima Pinheiro[7] refere, a propósito que, quer relativamente ao contrato de compra e venda, quer ao de prestação de serviços, que constituem os tipos contratuais de maior importância, o Regulamento veio introduzir uma dita “definição autónoma” do lugar de cumprimento das obrigações contratuais. Não se trata de uma verdadeira definição autónoma do lugar de cumprimento, mas de estabelecer que só releva, na venda de bens, o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e, na prestação de serviços, o lugar de cumprimento da obrigação do prestador de serviços. É irrelevante o lugar de cumprimento da obrigação de pagamento do preço dos bens ou dos serviços, mesmo que o pedido se fundamente nessa obrigação.[8]
A recorrente apela à aplicação do Direito nacional, designadamente ao art.º 774º do Código Civil e ao art.º 71º do Código de Processo Civil, para justificar a competência internacional dos tribunais portugueses.
Na ordem jurídica nacional vigoram em simultâneo dois regimes gerais de competência internacional: o regime comunitário ou da União e o regime interno; quando a ação está compreendida no âmbito de aplicação do regime comunitário, esse regime prevalece sobre o regime interno por ser de fonte hierarquicamente superior e face ao princípio do primado do direito europeu.[9]
A jurisprudência do Tribunal Justiça (TJ), anteriormente designado da Comunidade Europeia (TJCE), tem considerado que os conceitos expressos nos Regulamentos têm caráter autónomo, ou seja, têm um significado e uma leitura no contexto do Direito da União Europeia e não como suporte densificador do Direito Nacional de cada um dos seus Estados-Membros. Como exemplo inicial desse posicionamento, que tem raízes fortes e ancestrais que remontam ao Direito Comunitário, está o acórdão do TJCE e 14 de outubro de 1976, no caso LTU Lufttransportunternehmen GmbH Co./Eurocontrol, o qual prescindiu da referência ao Direito de qualquer dos Estados intervenientes na causa do litígio, partindo antes dos objetivos e do sistema do respetivo instrumento, conjugado com os princípios gerais resultantes do conjunto dos sistemas jurídicos nacionais. O mesmo sucedeu posteriormente com o acórdão do TJCE de 22 de novembro de 1978 no caso Somafer/Saar-Ferngas, que seguiu essa linha de interpretação autónoma, com a preocupação de garantir a segurança jurídica, bem como a igualdade dos direitos e obrigações das partes.
Continuou o Tribunal de Justiça a salientar mais recentemente que as normas do direito da União diretamente aplicáveis, que são uma fonte imediata de direitos e obrigações para todos, sejam Estados-Membros ou particulares partes em relações jurídicas abrangidas pelo direito da União, devem produzir a plenitude dos seus efeitos de modo uniforme em todos os Estados-Membros, a partir da sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade. Resulta igualmente de jurisprudência assente que qualquer juiz nacional, no âmbito da sua competência, tem, enquanto órgão de um Estado-Membro, a obrigação, por força do princípio da cooperação consagrado no artigo 10° CE, de aplicar integralmente o direito da União diretamente aplicável e de proteger os direitos que este confere aos particulares, não aplicando nenhuma disposição eventualmente contrária da lei nacional, seja anterior ou posterior à norma do direito da União.[10]
Assim e por aplicação do citado art.º 7º, nº 1, al.s a) e b), 2ª parte, os tribunais portugueses não são, em princípio, os competentes para o procedimento de Injunção Europeia, porque os serviços não foram prestados pela A. em Portugal.

Porém, a recorrente invoca ainda um novo fundamento de competência, assente na aplicação do art.º 26º nº 1, do Regulamento 1215/2012, segundo o qual, “para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objetivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 24.°”.
De acordo com o subsequente art.º 28º, nº 1, “caso o requerido domiciliado num Estado-Membro seja demandado no tribunal de outro Estado-Membro e não compareça em juízo, o juiz deve declarar-se oficiosamente incompetente, salvo se a sua competência resultar do disposto no presente regulamento”.
Não sendo o caso sub judice enquadrável em qualquer das exceções previstas no referido art.º 24º do Regulamento, os tribunais portugueses tornam-se competentes para ação se o Requerido compareceu sem que tivesse arguido (exclusivamente) a incompetência.
Estão aqui previstas situações em que a competência internacional dos tribunais portugueses deve ser aferida pelas regras do direito europeu e concretamente quando haja de ser aplicado o Regulamento (CE) 1215/2012, fora dos casos de violação de competência exclusiva (não convencional). Se o requerido comparecer sem arguir a incompetência, o tribunal não conhece oficiosamente da infração das regras do Regulamento, ocorrendo a extensão da competência a que alude o seu artigo 26, n.º 1.[11]
Como se refere no citado acórdão da Relação do Porto de 23.2.2017, é “uma situação em que a competência para o julgamento do litígio se alarga, passando a ser competente não só o tribunal inicialmente designado por disposição do Regulamento, como também aquele perante o qual o demandado compareça a oferecer a sua defesa”. Ao intervir na ação sem arguir logo a incompetência do tribunal, o requerido aceita tacitamente que a ação prossiga no tribunal onde foi instaurada.
A extensão tácita da competência não ocorrerá se o requerido deduzir a exceção de incompetência, expressando a sua vontade de não aceitar a competência do órgão jurisdicional onde a ação foi interposta, ou se o litígio em causa for um dos litígios relativamente aos quais o artigo 24º do referido regulamento estabelece regras de competência exclusiva.
Interpretando o art.º 24º do Regulamento n.º 44/2001, sob a epígrafe «Extensão de competência», a que sucedeu sem alterações significativas na matéria o atual Regulamento 1215/2012, resulta dos acórdãos do Tribunal de Justiça ČPP Vienna Insurance Group, C-111/09, EU:C:2010:290, n.º 21, e Cartier parfums-lunettes e Axa Corporate Solutions Assurance, EU:C:2014:109, n.º 34, que o primeiro período daquele artigo estabelece uma regra de competência assente na comparência do requerido, aplicável a todos os litígios em que a competência do tribunal onde foi intentada a ação não decorra de outras disposições daquele Regulamento. Esta disposição é aplicável também aos casos em que a ação foi intentada em violação das disposições do Regulamento e implica que a comparência do requerido possa ser considerada uma aceitação tácita da competência do tribunal onde foi intentada a ação e, portanto, uma extensão da sua competência.
Esta jurisprudência tem vindo a ser seguida também no âmbito de aplicação do art.º 26º do Regulamento 1215/2012 --- aplicável às ações instauradas a partir de 10.1.2015 (cf. art.ºs 66º e 88º do Regulamento) --- como é o caso do acórdão do TJ de 11.4.2019, ZX contra Ryanair DAC.[12]
A extensão de competência ocorre ainda que conduza à derrogação das competências de proteção, só cedendo perante as normas do Regulamento que definem competências exclusivas (artigo 24º), ao contrário do que sucede com a definição de competência através do pacto de jurisdição que nunca pode contrariar as regras de competência exclusivas e em matéria de seguros, contratos celebrados por consumidores e contratos individuais de trabalho (artigo 25º, n.º 4).
Tal solução justifica-se porque a intenção clara destes Regulamentos é agilizar o funcionamento da justiça no espaço da União e impor a todos os Estados a aceitação das decisões proferidas pelos tribunais de qualquer deles, pelo que se o réu é demandado nos tribunais de um Estado-Membro e aí comparece a defender-se sem suscitar, como podia, a incompetência dos tribunais desse Estado, nenhum interesse existe em inutilizar o processado e obrigar à instauração de nova ação nos tribunais de outro Estado, exceto nas situações que justificam a fixação de uma competência exclusiva.[13]
A comparência a que se refere aquele art.º 26º, nº 1, não é apenas uma comparência física, devendo entender-se que vale como tal a oposição no processo de injunção. E esta forma de intervir ou comparecer basta-se até com uma simples declaração de oposição, mesmo sem fundamentação (art.º 16º, nº 3, do Regulamento 1896/2006).[14]
Como resulta do acórdão da Relação de Évora de 4.5.2006[15], a não comparência pode consistir na revelia do réu. Se o réu não é revel, se praticou um ato relevante no processo, como é a sua oposição eficaz, sem que tivesse arguido logo a incompetência internacional do tribunal, ocorre a aceitação tácita daquela competência.
A Requerida deduziu oposição à injunção --- a sua primeira intervenção no processo --- e não arguiu a incompetência internacional dos Tribunais portugueses, pelo que a aceitou tacitamente, sendo os Tribunais portugueses, em princípio, internacionalmente competentes para a ação judicial.[16]
Defendeu também a recorrente que a competência internacional dos Tribunais portugueses decorre do nº 1 do art.º 17º do Regulamento 1896/2006 que regula o procedimento europeu de injunção, que considera competente para a tramitação dos autos o Estado-Membro de origem, sendo esse Estado, no caso em apreciação, Portugal, por ser o lugar onde foi emitida a injunção de pagamento dos serviços contratados.
O art.º 5º, nº 1, do Regulamento 1896/2006 dá-nos a definição daquele conceito, sendo Estado-Membro de origem o Estado-Membro no qual é emitida uma injunção de pagamento europeia.
A questão da fixação da competência na injunção europeia está necessariamente ligada à da determinação do Estado-Membro de origem, já que só pode emitir a injunção de pagamento europeia o Estado-Membro cujos tribunais sejam internacionalmente competentes para o efeito, sendo esse Estado, e apenas esse, o Estado-Membro de origem.
Este Estado, na própria definição do citado art.º 5º, nº 1, do Regulamento 1896/206 é, portanto, o Estado-Membro onde a injunção é emitida (art.º 12º do mesmo Regulamento), e não necessariamente o Estado-Membro onde o requerimento de Injunção é apresentado pelo Requerente[17]. Do art.º 17º, nº 1, do mesmo Regulamento, apenas decorre a regra de que a apresentação pelo Requerido de oposição no procedimento de injunção não determina a alteração da competência dos tribunais do Estado-Membro de origem onde até então correu termos o respetivo procedimento e que só assim não será se o Requerente tiver solicitado expressamente que, em caso de oposição do Requerido, seja colocado termo ao processo de Injunção. A forma como o processo deve prosseguir, segundo as al.s a) e b) do nº 1 e os nºs 2, 3 e 4 do mesmo art.º 17º nada tem a ver com a fixação da competência internacional dos tribunais do Estado-Membro de origem.
Ora, devendo considerar-se fixada no procedimento de injunção a competência internacional dos Tribunais portugueses, ao abrigo do art.º 26º, nº 1, do Regulamento 1215/2012, não pode o juiz declarar-se oficiosamente incompetente, por isso lhe ser vedado pelo subsequente art.º 28º, nº 1.
Também nesta parte assiste razão à recorrente.
Com efeito, o recurso procede, considerando-se os Tribunais portugueses competentes para a ação que tem na sua origem o procedimento de Injunção Europeia.
*
SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
………………………………
………………………………
………………………………
*
V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, considerando-se os Tribunais portugueses internacionalmente competentes para processar e decidir a ação.
*
Custas pela A. recorrente, por a R. nunca se ter oposto, designadamente em contra-alegações, à questão da competência que aquela suscitou, sendo que foi a recorrente que tirou proveito do recurso (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil), levando-se em conta a taxa de justiça paga pela interposição do recurso.
*
Porto, 8 de junho de 2022
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
________________
[1] Será adiante designado apenas por Regulamento 1896/2006.
[2] Adiante designado apenas por Regulamento. A ele pertencem também todas as disposições legais que forem citadas sem menção de origem.
[3] Adiante também designado por Regulamento 1215/2012 (Bruxelas I Reformulado).
[4] Convenção Relativa ao Contrato de Transporte de Mercadorias por Estrada celebrada em Genebra a 19.05.1956, aprovada para adesão pelo Decreto-Lei n.º 46235, de 18 de março de 1965.
[5] Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.3.2004, proc. 04B873 e de 13.5.2004, proc. 04A1213 e de 10.4.2008, proc. 08B845, in www.dgsi.pt; acórdão da Relação do de 07.11.2000, Colectânea de Jurisprudência, Tomo VI, pág. 184.
[6] Noções Elementares de Processo Civil, vol. I, pág. 88.
[7] Direito Internacional Privado, Vol. III, pág.s 83 e 84.
[8] Assim tem entendido também a jurisprudência, sendo disso exemplo o acórdão da Relação do Porto de 23.2.2017, proc. 159312/15.4YIPRT.P1, relatado pelo Ex.mo Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida, aqui Adjunto, o acórdão desta mesma Relação de 14.9.2021, proc. 91530/20.4YIPRT.P1, e o acórdão da Relação de Guimarães, proc. 733/18.5T8GMR.G1, todos in www.dgsi.pt.
[9] Citado acórdão da Relação do Porto de 23.2.2017.
[10] Referido acórdão da Relação do Porto de 23.2.2017, citando jurisprudência europeia.
[11] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Julho de 2021, roc. n.º 4138/20.0T8PRT.P1, in www.dgsi.pt.
[12] ECLI:EU:C:2019:311. Na jurisprudência nacional, cf. acórdão da Relação de Coimbra de 7.2.2017, proc. 549/16.3T8LRA.C1, in www.dgsi.pt.
[13] Ainda o acórdão da Relação do Porto de 23.2.2017.
[14] Neste sentido do acórdão desta relação do Porto de 23.1.2022 (relatado pelo aqui também relator e também subscrito pelos mesmos Ex.mos Adjuntos), no proc. 13249/18.0T8PRT.P1, in www.dgsi.pt.
[15] Proc. proc. 66/06-3, citado no acórdão da Relação do Porto de 13.3.2017, proc. 13923/16.6T8PRT.P1, in www.dgsi.pt.
[16] Cf. ainda acórdão da Relação do Porto de 12.7.2021, proc. 4138/20.0T8PRT.P1 e acórdão da Relação de Guimarães de 21.11.2019, proc. 19210/18.8T8PRT.G1, in www.dgsi.pt.
[17] Não fosse assim, os tribunais internacionalmente competentes seriam sempre os tribunais do Estado-Membro onde o Requerente apresentasse o requerimento de Injunção Europeia, o que é manifestamente contrário à existência de princípios e regras sobre a determinação da competência internacional na União Europeia, designadamente em sede de Procedimento de Injunção, como decorre do art.º 6º do Regulamento 1896/2006, esta, sim, uma norma de competência.