CONCORRÊNCIA
APREENSÃO DE CORRESPONDÊNCIA ELECTRONICA E NÃO ELECTRÓNICA
Sumário

I. A apreensão de correspondência digital no quadro de busca a realizar em investigação da prática de contra-ordenação é regida pelo art. 17.º da Lei do Cibercrime;
2. Tal preceito não faz distinção entre correspondência aberta ou fechada ou comunicação digital lida e não lida;
3. É do juiz a competência para autorizar ou ordenar a apreensão mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante.

Texto Integral

Acordam na Secção de Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO                  
Nos autos em que se gerou o presente recurso foi proferida, em 06.09.2019, decisão judicial com o seguinte teor:
Em requerimento apresentado à Autoridade da Concorrência(AdC) e dirigido ao JIC, vem a NOS COMUNICAÇÕES, SA requerer, em síntese, que seja declarada na nulidade do mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público, na parte em que autoriza a pesquisa e apreensão de mensagens de correio eletrónico; a nulidade(ou irregularidade) de toda a prova obtida através da apreensão das mensagens de correio eletrónico; a nulidade(ou irregularidade) de toda a apreensão de mensagens de correio eletrónico efetuada por falta de mandado judicial para o efeito e a nulidade, por vício de proibição de prova, de todas as mensagens de correio eletrónico remetidas a advogados da requerente.
O MP pronunciou-se pelo indeferimento do requerido.
Vejamos.
No dia 11/12/2018 e no âmbito do processo de contraordenação nº. PRC/208/5 a correr termos na AdC, foram realizadas buscas na sede e instalações da NOS por funcionários da AdC deviamente credenciados, conforme previsto no artº. 18º nº.4 a) da Lei nº.19/2012 e na presença dos responsáveis pela operadora.
A requerimento da AdC foi proferido despacho pelo MP que determinou as buscas e a emissão de mandados com a finalidade, entre outros elementos de prova, da realização do exame, recolha e apreensão, designadamente, de mensagens de correio eletrónico nos precisos termos que consta do despacho do MP.
Tal despacho (cuja cópia foi entregue aos representantes da operadora) justifica e fundamenta a apreensão realizada não sendo exequível, como pretende a operadora, que no momento da apreensão o interesse para a investigação da infração de cada um dos documentos tenha de ser justificado por decisão fundamentada.
No decurso da busca foram copiados ficheiros informáticos relevantes para a prova sendo feita a transferência desses ficheiros para outro suporte informático que foi apreendido.
Atento os elementos constante dos autos, a AdC limitou-se a apreender mensagens lidas e arquivadas em suporte digital existindo, assim, fundamento legal para que a AdC fizesse a pesquisa e apreensão das mensagens de correio eletrónico, nos termos do disposto no artº. 20º nº.1 da Lei nº. 19/2012.
Como bem refere o MP no seu despacho de fls. 888: “as mensagens que depois de recebidas ficam gravadas no recetor deixam de ter natureza de comunicação em transmissão, são comunicações recebidas pelo que devem ter o mesmo tratamento da correspondência escrita já recebida e guardada pelo destinatário.
Tem sido pacificamente aceite que, depois de aberta, a correspondência passa a ser um mero documento escrito que pode, sem qualquer reserva, ser apreendida no decurso de uma busca.
Na sua essência, a mensagem mantida em suporte digital depois de recebida e lida terá a mesma proteção da carta de papel que tenha sido recebida pelo correio e que foi aberta e guardada em arquivo pessoal.
Assim, tratando-se de meros documentos estas mensagens não gozam da aplicação do regime de proteção da reserva da correspondência e das comunicações”.
Pelo exposto, não se verifica qualquer nulidade ou irregularidade no âmbito das diligências efetuadas.
NOS COMUNICAÇÕES, S.A., interpôs recurso desta decisão formulando as seguintes conclusões e pedido:
A) O presente recurso tem por objecto a decisão do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa que declarou integralmente improcedentes os vícios probatórios e processuais suscitados pela Recorrente a propósito da apreensão de correio electrónico realizada pela AdC durante as diligências de busca realizadas às suas instalações nos passados dias 11 a 21 de Dezembro de 2018.
B) À alegação da Recorrente de que a AdC não pode apreender correio electrónico, independentemente de o mesmo se encontrar aberto ou fechado por falta de habilitação legal ou, no limite, de autorização judicial, respondeu o Tribunal com a afirmação de que «[tjewi sido pacificamente aceite que, depois de aberta, a correspondência passa a ser um mero documento escrito que pode, sem qualquer reserva, ser apreendida no decurso de uma busca», pelo que «[t]ratando-se de meros documentos estas mensagens não gozam da aplicação do regime de proteção da reserva da correspondência e das comunicações».
C) Ora, independentemente do que haja a dizer sobre o mérito jurídico da decisão recorrida, existe um ponto em que esta é objectiva e indiscutivelmente errada: não só não é pacificamente aceite que, depois de aberta, a correspondência electrónica passa a ser um mero documento escrito, como é, aliás, praticamente aceite de forma pacífica a solução inversa.
D) Assim, e porque o entendimento subscrito pelo Tribunal a quo se encontra já manifestamente ultrapassado, impõe-se reverter a decisão recorrida, concluindo-se pela ilegalidade da apreensão de correio electrónico, daí se extraindo as devidas consequências quanto à nulidade dos mandados do Ministério Público que a suportou e à proibição da prova por essa via obtida.
Os motivos do recurso são os que se seguem:
II.
O regime da apreensão de correspondência em processo penal e a sua importação pelo Direito da Concorrência
E) No mandado relativo à Recorrente prevê-se a possibilidade de apreensão de mensagens de correio electrónico já abertas.
F) Porém, a AdC não dispõe de norma legal habilitante que lhe permita pesquisar e apreender correio electrónico, independentemente de estar aberto ou fechado e independentemente da precedência de um mandado do Ministério Público que o autorize. Vejamos,
G) Durante alguns anos, a doutrina e a jurisprudência entendiam frequentemente que o correio electrónico fechado deveria encontrar-se sujeito ao regime da apreensão de correspondência (do artigo 179.° do CPP), ao passo que as mensagens já abertas perderiam o carácter comunicacional que justificaria aquela tutela acrescida, devendo, por isso, sujeitar-se ao regime geral da apreensão de documentos.
H) Primeiro em 2007, com a alteração ao artigo 189.° do CPP, e depois com a entrada em vigor da Lei do Cibercrime, em particular do seu artigo 17.°, a intenção do legislador passou a ser inequívoca: todo o correio electrónico se encontra sujeito ao regime da apreensão de correspondência, independentemente de as mensagens se encontrarem abertas ou fechadas.
I) Assim, e por muito que a AdC, secundada pelo Tribunal a quo, possa discordar da solução legislativa, a verdade é que in clans non fit interpretado e, pelo menos aqui, a lei é clara, como reconhece actualmente a doutrina (designadamente a de Rita Castanheira Neves, Paulo Pinto de Albuquerque, Pedro Verdelho, Rui Cardoso e Sónia Fidalgo), a jurisprudência dos tribunais superiores, incluindo desse Venerando Tribunal, bem como o Gabinete do Cibercrime junto da Procuradoria-Geral da República: o correio electrónico passou a configurar sempre correspondência e nunca um mero documento electrónico, pelo que se encontra sempre protegido, pelo menos pelo direito à inviolabilidade da correspondência, tal como previsto no artigo 34.°, da CRP, extensível às pessoas colectivas por via do seu artigo 12.°, n.° 2.
J) E ainda que a mera interpretação literal, histórica e sistemática do artigo 17.° da Lei do Cibercrime não bastasse, a verdade é que, também no plano teleológico, é possível encontrar motivos perfeitamente razoáveis para que o correio electrónico tenha uma tutela acrescida por comparação com o correio tradicional aberto.
K) Em primeiro lugar, tal justifica-se pela circunstância de o correio electrónico, ao contrário do correio tradicional, conter, para além do conteúdo textual, muito mais informação constitucionalmente tutelada, na qual se incluem dados de tráfego, nos termos do artigo 2.°, alínea c), da Lei do Cibercrime, como seja informação sobre o remetente (from), o destinatário principal (to), os destinatário secundários (em cc) e mesmo ocultos (em bcc), a data e a hora exactas de envio e/ou de recepção do e-mail, o Message-ID, o time-stamp do momento em que a mensagem passou por um servidor no qual seja executado o Microsoft Exchange, ou mesmo o trajecto seguido pelo e-mail, como seja o endereço IP de todos os sistemas informáticos pelos quais a mensagem passou até chegar ao destinatário, juntamente com a data e hora em que o fez, incluindo os endereços do fornecedor de serviços de e-mail do remetente e do destinatário.
L) E justifica-se ainda pela circunstância de, ao contrário do que sucede com o correio tradicional, o correio electrónico tipicamente se encontrar armazenado em sistemas de armazenamento massivo de informação ou, pelo menos, em elevados volumes de informação, susceptíveis de tratamento automatizado e de pesquisa em termos especialmente rápidos e tecnologicamente eficientes, mas também especialmente lesivos e com um grau de ingerência em direitos fundamentais agravado.
M) Por fim, a distinção entre mensagem de correio electrónico aberta e fechada é absolutamente estéril e anacrónica, seja porque o acto de marcar uma mensagem como lida frequentemente nada tem a ver com a efectiva apreensão do seu conteúdo pelo destinatário, seja porque facilmente, tanto o utilizador como, eventualmente, a AdC ou terceiros de forma acidental ou dolosa, podem marcar uma mensagem como não lida, mesmo após já o ter sido, sem que algum programa informático forense o descubra.
N) O entendimento que a AdC e, bem assim, o Tribunal a quo importaram do processo penal, atribuindo relevância à distinção entre mensagens abertas e fechadas vigorou apenas até 2007.
O subsequente abandono dessa tese e a atribuição da mesma tutela a mensagens lidas e não lidas impõe que se importe paira o direito das contra-ordenações o regime actualmente vigente no processo penal: o correio electrónico constitui, sempre, correspondência e, por isso, não pode ser apreendido sem habilitação legal expressa ou, no mínimo, sem mandado judicial.
II.
A ilegalidade da apreensão de correio electrónico ao abrigo da Lei da Concorrência
O) Quanto, à Lei da Concorrência, o legislador, em 2012, limitou-se a prever, no seu artigo 18.°, n.° 1, alínea c), a possibilidade de a AdC proceder à recolha e apreensão de extratos da escrita e demais documentação, independentemente do seu suporte.
P) A falta de previsão de um regime autónomo para a apreensão de correio electrónico não foi, porém, uma omissão acidental, antes resultou da eliminação do artigo 16.°, n.° 1, da alínea c) do Projecto de Proposta de Lei do Governo que Aprova o “Regime Jurídico da Concorrência”, onde se previa expressamente a atribuição de poderes à AdC para proceder «à busca, exame, recolha e apreensão de extractos da escrita e demais documentação, incluindo a que for relativa a correspondência, mensagens de correio electrónico, registo de comunicações, que se encontrem em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, sempre que tais diligências se mostrem necessárias à obtenção de prova».
Q) A omissão do legislador, por muito inconveniente que seja para as pretensões de enforcement da AdC, não pode deixar de ser interpretada- como unanimemente faz a doutrina disponível sobre o tema e o Conselho Superior da Magistratura como intencional, (i) quer porque diferiu do regime previsto 3 (três) anos antes para a Lei do Cibercrime (numa altura em que a alteração da legislação e as respectivas interpretação e consequências eram já sobejamente conhecidas), (ií) quer porque resultou de uma clara opção pela supressão da previsão inicial do Projecto de Proposta de Lei do Governo que Aprova o “ Regime Jurídico da Concorrência” , {Ui) quer ainda porque o legislador foi expressamente alertado por pareceres como o que acima se transcreveu para as consequências da não inclusão de norma habilitante no diploma final.
R) Apesar do evidente bloqueio legal e constitucional à apreensão de correio electrónico em qualquer processo contra-ordenacional, porquanto se trata sempre de correspondência, a AdC manteve-se, no entanto, irredutível, continuando a aplicar o disposto no artigo 18.° da Lei da Concorrência para apreender correio electrónico,
S) Ora, o regime previsto na Lei do Cibercrime, por força da sua matriz penal, tem de servir como critério interpretativo do conceito de (e do regime do) correio electrónico - rectius, de correspondência electrónica - e do conceito de (e do regime do) documento.
T) Se é ao processo penal que a AdC, secundada pelo Tribunal a quo, vai buscar a distinção entre carta aberta e carta fechada, abstendo-se de apreender cartas fechadas por configurarem correspondência, também deve ser ao processo penal que se vai buscar o conceito e as garantias aplicáveis ao correio electrónico. O que agora sucede é que não faz sentido: a AdC importa um entendimento do processo penal que já não encontra acolhimento no que respeita especificamente ao correio electrónico e não importa o entendimento vigente quanto a este porque não lhe convém.
U) É que, como é amplamente reconhecido, sem prejuízo da componente administrativa que inevitavelmente enforma o direito das contra-ordenações, existe uma conexão óbvia entre este e o direito penal e processual penal, pelo que, naquilo em que a específica natureza do processo contra-ordenacional não se distancie da lógica do Processo Penal, deverão aplicar-se os mesmos princípios e as mesmas garantias, com as devidas adaptações, desde logo, em matéria de legalidade da prova.
V) Se assim não fosse, tomar-se-ia mais fácil a obtenção de prova – e, correspondentemente, a restrição de direitos fundamentais em processo contraordenacional do que em processo penal, apesar de neste se tutelarem, à partida, interesses e bens jurídicos de relevo superior.
W) Assim, a única solução conforme à natureza do processo contra-ordenacional e coerente com o quadro jurídico-sancionatório vigente é a de reconhecer ao correio electrónico, lido ou não lido, o estatuto de correspondência para efeitos probatórios.
X) Diga-se, por fim, que é, na realidade, irrelevante que a omissão do legislador tenha ou não sido intencional. O que releva é que haja uma omissão.
Y) E num domínio como o da apreensão de correspondência, a omissão de legislação habilitante implica que a sua execução seja ilegal e que, por isso, o mandado do Ministério Público seja inexistente ou, no mínimo, nulo por violação do princípio da legalidade, nos termos do disposto nos artigos 18.°, n.ºs 2 e 3, 32.°, n.° 8 e 10 e 34.°, n.° 4, da CRP.
Z) Ou seja, a apreensão de correspondência sem fundamento legal e sem consentimento constitui uma ingerência não autorizada na correspondência e nas telecomunicações, cuja consequência é a nulidade (leia-se, a proibição) da prova prevista no artigo 126.°, n.° 3, do CPP, 18.°, 32.°, n.° 8 e 34.°, n.° 4, da CRP, bem como a de toda a prova obtida, directa ou indirectamente, através daquela.
AA) A conclusão idêntica chegaríamos ainda que não estivessem em causa os direitos à inviolabilidade das telecomunicações e da correspondência, uma vez que a apreensão de correio electrónico representa também uma ingerência não autorizada no direito à reserva da intimidade da vida privada, no caso das pessoas colectivas reconduzível aos aspetos relacionados com a vida profissional ou o segredo dos negócios, ou os aspetos relacionados a factos que se desenvolveram em locais públicos, mas que, também, fazem parte da vida privada, nos termos dos artigos 26.°, n.° 1 e 12.°, n.° 2, da CRP.
BB) Isto, naturalmente, tendo em consideração que a correspondência electrónica apreendida pela AdC respeita, na sua grande parte, a informações estratégicas, relações negociais com fornecedores e clientes, procedimentos internos, entre outros. Informações que, quando devassadas, produzem, sem margem para dúvida, uma verdadeira «abusiva intromissão na vida privada», desprovida de habilitação legal, e, por isso, apta a gerar, por si só, a proibição de prova a que respeita o artigo 32.°, n.° 8, da CRP.
CC) Assim, e em suma, a interpretação do artigo 18.°, n.° 1, alínea c), da Lei da Concorrência, no sentido em que é permitido à Autoridade da Concorrência apreender correio electrónico, independentemente de o mesmo se encontrar aberto ou fechado, é inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, do direito à inviolabilidade da correspondência, do direito à inviolabilidade das telecomunicações e do direito à privacidade dos respectivos destinatários, ainda que sejam pessoas colectivas, tudo nos termos do disposto nos artigos 18.°, 32.°, n.° 8 e 10, 34.°, n.° 4, 26.° e 12.°, n.° 2, da CRP, o que desde já se alega para os devidos efeitos
DD) Por outro lado, mesmo, que se entendesse estar abrangida pelos poderes da AdC a possibilidade de apreensão de correspondência - o que se admite apenas para efeitos de exposição de raciocínio -, a verdade é que - aqui sim - tal sempre implicaria que o intérprete fosse novamente ao processo penal buscar os critérios para a densificação do conceito de correio electrónico e do regime da sua apreensão,
EE) Com efeito, dispõe o artigo 41.°, n.° I, do RGCO que «[s\empre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal».
FF) Pelo que, a admitir-se como possível - o que não se concede - a apreensão de correio electrónico em processo contra-ordenacional, sempre deverá procurar-se no processo penal o regime aplicável.
GG) Ora, entre os preceitos reguladores do processo criminal encontram-se, não só o artigo 17.° da Lei do Cibercrime - por ser o regime jurídico geral aplicável à prova digital em processo penal, de acordo com o respectivo artigo 11.°, n.° 2 – como o artigo 189.° do Código de Processo Penal.
HH) Assim, aplicando-se o regime de apreensão de correspondência electrónica previsto nos artigos 17.° da Lei do Cibercrime e 179.° do Código de Processo Penal, sempre seria necessário que tais apreensões fossem determinadas por despacho judicial, “ sobpena de nulidade" (n.°1).
II) Ora, no caso dos presentes autos, está em causa a pesquisa, o acesso e a apreensão de mensagens de correio eletrónico com base, tão-somente, em mandado do Ministério Público. Inexiste um regime legal específico, diverso, menos exigente, que permita dispensar o cumprimento do disposto no artigo 179.° do CPP, quando os termos do regime geral em matéria de prova digital, a Lei do Cibercrime, remetem expressamente para o regime previsto no Código de Processo Penal, sem redução do seu âmbito, antes se impondo a sua aplicação na sua totalidade.
JJ) Destarte, a omissão de mandado judicial para a apreensão das mensagens de correio electrónico sempre implicaria a nulidade das apreensões e todos os demais elementos probatórios por essa via obtidos.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, deverá o presente recurso ser declarado integralmente procedente e, em consequência, ser:
a) Declarada a nulidade do mandado de busca e apreensão do Ministério Público na parte em que autoriza a pesquisa e apreensão de mensagens de correio electrónico, e,
b) Declarada a nulidade, por vício de proibição de prova, de toda a prova obtida, directa ou indirectamente, através da apreensão de mensagens de correio electrónico nas instalações da Requerente, nos termos do disposto nos artigos 126.°, n.° 3, do CPP (ex vi artigos 41.°, n.° 1, do RGCO e 13.°, n.° 1, da Lei da Concorrência) e 18.°, n.° 2 e 3. 32.°, n.° 8 e 34.°, n.° 4, da CRP; ou, no mínimo, ser declarada a sua irregularidade nos termos do disposto no artigo 123.° do CPP; ou, assim não se entendendo,
c) Declarada a nulidade de toda a apreensão de mensagens de correio electrónico efectuada por falta de mandado judicial para o efeito, nos termos do disposto no artigo 17.° da Lei do Cibercrime e 179.°, n.° 1, do CPP, ou, no mínimo, ser declarada a sua irregularidade, nos termos do disposto no artigo 123.°, do CPP.
O Ministério Público respondeu às alegações de recurso concluindo:
1. O processo contraordenacional n° PRC/2018/5 foi instaurado por despacho do Conselho da Autoridade da Concorrência, de 16 de novembro de 2018, dada a existência de indícios de práticas restritivas da concorrência que infringem o disposto nas alíneas a), b) e c), do n°l, do art.9.°, da Lei n.° 19/2012, de 8 de maio, punível nos termos da alínea a), do n°l, do art 68.°, do mesmo diploma legal, envolvendo várias empresas do setor das comunicações,
2. No âmbito do referido processo contraordenacional, considerando a necessidade de aquisição e recolha de elementos de prova de tais comportamentos atenta a complexidade dos factos ilícitos em apreço e a especial dificuldade da obtenção da respetiva prova, bem como o risco para a investigação decorrente da utilização de outro tipo de meios de obtenção de prova — , a requerimento da Autoridade da Concorrência, por despacho do Ministério Público foi autorizada a realização de buscas nas sedes e outras instalações das empresas envolvidas, para exame, recolha e apreensão de cópias ou extratos da escrita e ademais documentação, designadamente mensagens de correio eletrónico trocadas entre as referidas operadoras de telecomunicações e entre estas e as respetivas agências de comunicação, bem como destas últimas entre si, de documentos internos de reporte de informação entre níveis hierárquicos distintos e de preparação de decisões a nível da política comercial de marketing digital das operadoras de telecomunicações, quer se encontrem ou não em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, incluindo em quaisquer suportes informáticos ou computadores, que estejam direta ou indiretamente relacionados com práticas restritivas da concorrência, e exame e cópia da informação que contiverem. (. . .),
3. No dia 11 de dezembro de 2018, em execução dos referidos mandados, foram iniciadas as diligências de busca e apreensão na sede e instalações da NOS Comunicações, S.A., as quais se prolongaram até ao dia 21 de dezembro de 2018,
4. As buscas foram efetuadas por funcionários da Autoridade da Concorrência devidamente credenciados e realizadas na presença de quem se apresentou como sendo responsável da sociedade visada, após ter sido indicada a finalidade e a entidade visada com a busca,
5. Foram entregues às pessoas que se apresentaram como representantes da sociedade buscada cópias dos mandados e do despacho que determinou a realização das buscas, bem como dos respetivos autos de busca e apreensão,
6. No decurso das referidas diligências vieram ser copiados ficheiros informáticos considerados relevantes para a prova das infrações, procedendo-se à transferência dos ficheiros selecionados para um outro suporte informático que seria objeto de apreensão.
7. Todos os documentos e ficheiros apreendidos foram devidamente identificados nos autos de busca, em função do local onde foram encontrados e dos descritivos que ostentavam, de modo a serem reconhecidos e apresentados para posterior consulta,
8. De acordo com o Código de Processo Penal vigente (aplicado subsidiariamente), os atos que na lei processual penal não estiverem cometidos ao Juiz cabem ao Ministério Público (art 267.°, do CPP), designadamente a busca na sede de pessoa coletiva,
9. A emissão dos mandados de busca e apreensão requeridos pela Autoridade da Concorrência competia ao Ministério Público, uma vez que a situação em apreço não se enquadrava na previsão dos arts. 174.° e 177.°, do Código de Processo Penal, e, nessa exata medida, não careciam da intervenção do Juiz de Instrução,
10. O regime aplicável aos processos contraordenacionais é sempre, em primeiro lugar, a legislação especial que exista sobre a matéria em causa, isto é, o diploma específico que atribui competências sancionatórias a uma concreta autoridade administrativa e que prevê os ilícitos contraordenacionais ou de mera ordenação social,
11. Estando em causa práticas restritivas de concorrência, o regime aplicável é claramente o estatuído na Lei n° 19/2012, de 8 de maio, que no seu art. 20.°, n° 1, autoriza expressamente a apreensão de documentos «independentemente da sua natureza ou do seu suporte»,
12. Dos elementos disponíveis nos autos não resultam quaisquer dados que nos permitam concluir pela apreensão de correspondência, mas antes e apenas de documentos lidos e arquivados em suporte digital,
13. Na sua essência, a mensagem mantida em suporte digital depois de recebida e lida terá a mesma proteção da carta em papel que tenha sido recebida pelo correio e que foi aberta e guardada em arquivo pessoal,
14. Assim, tratando-se de meros documentos, estas mensagens não gozam da aplicação do regime de proteção da reserva da correspondência e das comunicações,
15. Nesta conformidade, a Mma. Juíza a quo não merece qualquer reparo, sendo que procedeu a uma correta interpretação das normas aplicáveis ao caso em apreço.
Terminou pedindo que fosse negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.
A AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA respondeu também às alegações concluindo e pedindo:
A. O recurso a que ora se responde vem interposto do Despacho (ref.ª 389558208) do Juiz de Instrução Criminal que indeferiu as nulidades arguidas pela NOS, ora Recorrente, validando, o ato de apreensão realizado pela AdC no âmbito do PRC/2018/5 relativamente às mensagens de correio eletrónico apreendidas nas instalações da Recorrente e que deram origem ao PRC/2019/1 onde esta é Co-visada.
B. O requerimento apresentado pela NOS8 tinha como propósito o da declaração de nulidade do despacho emitido pelo Ministério Público que autorizou as diligências de busca exame e apreensão promovidas pela AdC no PRC/2018/5 e da subsequente nulidade da apreensão de qualquer mensagem de correio eletrónico que seja efetuada pela AdC no decurso da diligência autorizada pelo mandado de busca e apreensão (emitido pelo Ministério Público).
C. Deste modo e pese embora o despacho recorrido não mereça, no plano substantivo, qualquer reparo pela AdC, a verdade é que, ao apreciar a validade do despacho emitido pelo Ministério Público, o Tribunal a quo imiscuiu-se, salvo o melhor respeito, numa esfera de competências que não lhe pertence.
D. Tal escrutínio da validade do mandado só poderia ser feito em sede reclamação hierárquica junto do próprio Ministério Público – isto sem prejuízo do controlo de plena jurisdição que caberá sempre ao TCRS fazer, em sede de recurso de impugnação judicial de eventual decisão final condenatória que venha a ser proferida no âmbito do respetivo processo contraordenacional.
E. O Juiz de Instrução Criminal não assume nenhum papel como instância recursiva dos atos praticados pelo Ministério Público: inexiste qualquer disposição processual penal suscetível se sustentar semelhante competência e nem poderia ser de outra forma, à luz do princípio de separação de poderes, o princípio da legalidade e as garantias de independência e autonomia do Ministério Público.
F. São diversas as decisões judiciais que corroboram a referida incompetência. Muito recentemente, esta mesma secção proferiu recentemente um Acórdão, num outro caso de contornos e natureza semelhantes aos presentes autos de recurso, que veio confirmar a incompetência do Juiz de Instrução Criminal para se pronunciar sobre mandados emitidos pelo Ministério Público ao abrigo da Lei da Concorrência – Acórdão de 07.04.2022, proferido no âmbito do processo n.º 8121/19.0T9LSB-B.L2.
G. Isto posto e sem questionar, todavia, a bondade do respetivo sentido decisório do Despacho recorrido, a verdade é que, ao apreciar a validade do mandado emitido pelo Ministério Público, o Tribunal a quo não respeitou as regras de competência ínsitas na alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º e no artigo 21.º da Lei da Concorrência, o que, se antecipa, consubstanciará uma nulidade insanável, nos termos da alínea e) do artigo 119.º do CPP.
H. E, se é certo que a AdC não tem interesse em suscitar um vício que enferma um despacho que lhe é integralmente favorável e que validou os mandados que autorizaram as diligências de busca levadas a cabo no PRC/2019/4 e o subsequente ato de apreensão, a verdade é que se entende colocar a este Tribunal a referida falta de competência, em coerência, de resto, com o que a AdC já fez em outros processos e no sentido de corroborar e cumprir aquele que tem sido o entendimento deste Tribunal a propósito da divisão de competências supra exposta.
I. Sem embargo, o entendimento perfilhado pelo Tribunal de Instrução Criminal colhe abono em diversas decisões do TCRS e do Tribunal da Relação de Lisboa, nos moldes e pelos fundamentos melhor desenvolvidos na Secção I.1 da presente resposta: a apreensão de correio eletrónico lido é permitida pela Lei da Concorrência, o que tem sido corroborado, de forma uníssona, pelo TCRS e por este Tribunal ad quem (PICRS e 3.º Secção).
J. Ocorrendo a apreensão de mensagens de correio eletrónico em ambiente empresarial, como sucedeu nos presentes autos, nunca se verificaria – independentemente de até só ter sido apreendido correio eletrónico já lido – qualquer ofensa ao direito à inviolabilidade das comunicações, porquanto estamos no âmbito da esfera jurídica da pessoa coletiva e não das pessoas singulares que colaboram com a Recorrente – sendo que a dissemelhança da proteção atribuída pela Lei Fundamental às pessoas singulares e às pessoas coletivas afasta estas últimas do âmbito subjetivo do n.º 4 do artigo 34.º da CRP. Semelhante entendimento foi recentemente preconizado pelo TCRS, no processo n.º 225/15.4YUSTR-W (sentença de 28.04.2022).
K. Pelas mesmas razões, não se verifica qualquer inconstitucionalidade por inobservância do n.º 1 do artigo 26.º da CRP. Ademais, a tutela dos temas da vida profissional e do segredo de negócio são asseguradas também no plano infraconstitucional, como seja no procedimento previsto no artigo 30.º da Lei da Concorrência.
L. As temáticas em apreciação devem ser apreciadas à luz do primado do Direito da União Europeia – proclamado, entre outros, no conhecido Acórdão Costa c. Enel – cuja primazia perante a ordem constitucional interna apenas cederá, nos termos do n.º 4 do artigo 8 da CRP, em face de ameaça dos aspetos essenciais dos princípios fundamentais do Estado de direito.
M. Precisamente, a Diretiva ECN+ vem constituir um instrumento adicional de defesa concorrência e de garantia do bom funcionamento do mercado interno em face dos novos desafios que emergem do ambiente digital, sendo certo que, de acordo com o teu teor, passa a ser inequívoca a admissibilidade de apreensão de correio eletrónico por parte da Comissão Europeia, e das autoridades nacionais da concorrência, independentemente de qualquer filtro como o “lido” ou “não lido”. Particularmente elucidativo sobre a necessidade de interpretar os poderes de investigação da AdC à luz desta Diretiva é o Acórdão proferido no processo n.º 18/19.0YUSTR-D, em 21.12.2020 (ainda não transitado).
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deverá ser negado provimento ao recurso interposto (…)
O processo foi com vista ao Ministério Público junto deste Tribunal que se pronunciou no sentido da «manutenção do despacho recorrido» e pugnou «pela improcedência do recurso».
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
São as seguintes as questões a avaliar:
1. Pelas razões indicadas no recurso, é nulo o mandado de busca e apreensão do Ministério Público na parte em que autorizou a pesquisa e apreensão de mensagens de correio electrónico?
2. É nula ou irregular, por vício de proibição de prova, toda a prova obtida, directa ou indirectamente, através da apreensão de mensagens de correio electrónico nas instalações da Requerente?
3. Ou é nula ou irregular toda a apreensão de mensagens de correio electrónico efectuada com falta de mandado judicial?
4. A interpretação do artigo 18.°, n.° 1, alínea c), da Lei da Concorrência, no sentido em que é permitido à Autoridade da Concorrência apreender correio electrónico, independentemente de o mesmo se encontrar aberto ou fechado, é inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, do direito à inviolabilidade da correspondência, do direito à inviolabilidade das telecomunicações e do direito à privacidade dos respectivos destinatários, ainda que sejam pessoas colectivas, tudo nos termos do disposto nos artigos 18.°, 32.°, n.° 8 e 10, 34.°, n.° 4, 26.° e 12.°, n.° 2, da CRP?
II. FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Relevam, na presente sede, os factos processuais narrados no relatório supra-lançado bem como os vertidos na decisão impugnada.
Fundamentação de Direito
1. Pelas razões indicadas no recurso, é nulo o mandado de busca e apreensão do Ministério Público na parte em que autorizou a pesquisa e apreensão de mensagens de correio electrónico?
Porque nos encontramos perante impugnação que tem incidência sobre matéria situada bem acima da mera manifestação de descontentamento perante intervenção do Ministério Público – já que se pede a avaliação do regime de apreensão de correspondência  electrónica e a definição do seu eventual quadro específico de tutela garantística – não nos confrontamos com temática a avaliar ao nível da hierarquia daquela magistratura mas perante vero tema de aferição jurisdicional, o que convoca, também, a ponderação, em sede de recurso para este Tribunal da Relação de Lisboa, da problemática descrita.
Efectivamente, estamos situados no âmbito do chamado «núcleo da garantia constitucional» (na feliz terminologia do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º  687/2021, de 22 de Setembro) que clama por intervenção dos Tribunais e ora justifica a ponderação que se enceta.
Está em causa nos autos a apreensão, pela Autoridade da Concorrência,  na sequência da prolação de despacho do Ministério Público nesse sentido, de «mensagens lidas e arquivadas em suporte digital». Tal apreensão foi alegadamente feita nos termos do disposto no n.º 1 do art. 20.º da Lei n.º 19/2012, de 08.05 (Novo Regime Jurídico da Concorrência – NRJC).
Este preceito refere, genericamente, a apreensão de documentos pelo que há que averiguar se existe norma que, com maior precisão e nível de especialidade, abranja as ditas mensagens electrónicas.
Essa norma consta, efectivamente, da «Lei do Cibercrime» – Lei n.º 109/2009, de 15.09 – correspondendo ao art. 17.º desse encadeado normativo. Esse preceito, sob a epígrafe «Apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante», estatui:
Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.
A propósito desta problemática, vem questionado se existe distinção juridicamente relevante entre correspondência digital aberta e fechada e se apenas esta será merecedora de particular tutela legal e constitucional, cabendo aquela na mole genérica de «documentos», assim gerando a aplicação do regime abrangente da al. c) do n.º 1 do art. 18. e no n.º 1 do art. 20.º do NRJC.
A este respeito, importa começar por referir que a questão não tem o menor suporte na letra do mencionado artigo 17.º da Lei do Cibercrime (doravante também LC) o que logo convoca o brocardo latino «ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus». Com efeito, o legislador não fez tal distinção entre correspondência lida ou por ler.
Do texto do referido artigo antes se extrai que o criador da norma quis proteger a correspondência digital em qualquer estado do processo comunicacional e até após o termo deste, fazendo englobante menção a «mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante».
À luz desse diploma legal, não tem suporte qualquer tentativa de separação conceptual e classificativa.
A jurisprudência posterior à aprovação desse texto normativo não podia, pois, deixar de espelhar a opção do legislador. Neste sentido, encontramos no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.09.2012 (processo n.º 787/11.5PWPRT.P1, in http://www.dgsi.pt) ajustada referência ao câmbio de paradigma ao convocar «um olhar diferente sobre a temática» que fizesse um corte com a comum restrição da tutela da correspondência imposta pelo art. 34.º da Constituição da República Portuguesa e pela lei, às comunicações não abertas.
Aceita-se a afirmação de que, na área do correio electrónico, não se pode verdadeiramente falar em abertura de correspondência, embora se possa também tomar em consideração que os diversos programas de correio electrónico contêm mecanismos de marcação das mensagens como lidas o que corresponde à menção a um acto digital de abertura de correspondência e poderia, pois, ter influência na análise que se empreende. Esta referência não assume, porém, relevo no caso que nos ocupa já que, na verdade, o legislador nada segregou.
Não podia, neste contexto, a doutrina deixar de espelhar o que, de forma clara e, logo, insofismável, emerge da lei – vd., neste sentido e por todos, o afirmado por ALBUQUERQUE, Paulo Pinto no excerto do seu Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora, 4.ª ed., 2011, pág. 510, invocado pela Recorrente nas suas alegações e recurso, com o seguinte teor:
O artigo 17.º da Lei n.º 109/ 2009, de 15.9, não revogou o disposto no artigo 189.º sobre a intercepção de correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática. Portanto, a apreensão de correio electrónico "armazenado" ou "guardado" e de outros "registos" de comunicações e transmissão por via telemática rege-se, sem quaisquer restrições, pelo disposto no artigo 17.º da Lei n.° 109/2009, conjugado com o disposto nos artigos 179.º e 252.° do CPP (acórdão do TRL, de 11.1.2011, 5412/08.9TDLSB-A.L1-5).
Não se divisam, efectivamente, como bem referiu este autor, quaisquer restrições de regime.
Resulta directamente daquele art. 17.º que é do juiz o poder de autorizar ou ordenar a apreensão de correspondência electrónica.
Este monopólio de intervenção legitimadora emerge devidamente esclarecido do referido aresto jurisprudencial do Tribunal Constitucional, que patenteou, com relevo para o que aqui se aprecia (ainda que em sede de fiscalização preventiva da alteração proposta para o referido art. 17.º pelo Decreto n.º 167/XIV da Assembleia da República):
Nestes termos, considerando todos os argumentos até agora aduzidos, não se duvida de que os interesses prosseguidos pela investigação criminal constituem razões legítimas para uma afetação restritiva dos direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e sigilo das comunicações (artigo 34.º, n.os 1 e 4, da CRP), e à proteção dos dados pessoais, no domínio da utilização da informática (artigo 35.º, n.os 1 e 4 da Lei Fundamental), enquanto manifestações particular e intensamente tuteladas da reserva de intimidade da vida privada (n.º 1 do artigo 26.º da CRP). Contudo, a restrição de tais direitos especiais, que correspondem a refrações particularmente intensas e valiosas de um direito, mais geral, à privacidade, não pode deixar de respeitar não apenas as condições genericamente impostas pelo texto constitucional para qualquer lei restritiva de direitos fundamentais, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, como a exigência específica, em sede de processo criminal, de intervenção de um juiz, consagrada no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição.
No contexto normativo que se aprecia não é importável a tese de Rui Cardoso, lançada em A apreensão de correio electrónico após o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º  687/2021: do juiz das liberdades ao juiz purificador investigador?», em https://rpdc.pt/wp-content/uploads/2021/12/rpdc-rui-cardoso-online.pdf, (página consultada em 06.06.2012), enunciada noutro contexto, com incidência na possibilidade de reforma do art. 17.º da LC, nos seguintes termos:
Contrariamente ao que parece resultar do Acórdão, afigura-se-me que mesmo o sistema em que a intervenção do JIC só ocorre para, analisando a selecção de mensagens já feita pelo MP, determinar quais poderão ser utilizadas como prova (2.) é não só conforme à Constituição como é aquele previsto na lei vigente.47 Como supra assumido, é inquestionável que deve haver intervenção do JIC. Porém, esta não necessita de ser prévia, sendo a posterior ainda adequada à sua função garantística. As concretas especificidades da apreensão de dados informáticos em geral e de correio electrónico em especial, supra expostas – v. g., a dificuldade em determinar previamente onde irão ser encontrados dados de correio electrónico ou até dados sensíveis ou íntimos, a dificuldade em separar a pesquisa que vise obter dados de correio electrónico das pesquisas que tenham outra finalidade –, justificam que neste caso a intervenção seja apenas posterior.
Retém-se, do transcrito, de qualquer forma, a importante menção à necessidade de intervenção do juiz de instrução criminal. E, acrescenta-se, intervenção sem restrições em função do estado da mensagem.
A intervenção do juiz visada pelo legislador na redação vigente do art. 17.º é inicial e não meramente posterior e confirmativa, face à ausência de verbalização normativa conducente a essa conclusão.
De qualquer forma, também os factos analisados neste processo não têm conexão com distinta hipótese, tudo se reconduzindo a uma intervenção investigatória meramente sustentada em despacho do Ministério Público e destituída de acto confirmativo posterior.
A consequência do incumprimento do regime legal avaliado é a nulidade dos actos praticados – cf. o disposto no n.º 1 do art. 179 do Código de Processo Penal aplicável ex vi do disposto no n.º 1 do art. 41.º do RGCO e da parte final do art. 17.º sob ponderação, bem como o n.º 3 do art. 126.º do mesmo Código.
Não há, no entanto, lugar ao pretendido decretamento de anulação do despacho do Ministério Público, por não se estar perante decisão judicial.
Flui do exposto ser positiva, mas nos termos enunciados, a resposta que merece a questão analisada, o que terá expressão final na parte dispositiva desta decisão.
2. É nula ou irregular, por vício de proibição de prova, toda a prova obtida, directa ou indirectamente, através da apreensão de mensagens de correio electrónico nas instalações da Requerente?
A resposta a esta questão mostra-se já dada no quadro da ponderação da questão anterior.
3. Ou é nula ou irregular toda a apreensão de mensagens de correio electrónico efectuada com falta de mandado judicial?
Ocorre, quanto a esta questão, situação idêntica à referida em sede de resposta à pergunta que antecede.
4. A interpretação do artigo 18.°, n.° 1, alínea c), da Lei da Concorrência, no sentido em que é permitido à Autoridade da Concorrência apreender correio electrónico, independentemente de o mesmo se encontrar aberto ou fechado, é inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, do direito à inviolabilidade da correspondência, do direito à inviolabilidade das telecomunicações e do direito à privacidade dos respectivos destinatários, ainda que sejam pessoas colectivas, tudo nos termos do disposto nos artigos 18.°, 32.°, n.° 8 e 10, 34.°, n.° 4, 26.° e 12.°, n.° 2, da CRP?
Face ao respondido à questão n.º 1, carece de substracto avaliativo o aqui perguntado.

III. DECISÃO
Pelo exposto, concedemos provimento ao recurso e, em consequência, revogamos a decisão impugnada e declaramos a nulidade dos actos de apreensão de correspondência digital referenciados nos autos.
Sem custas.
*
Lisboa, 15.06.2022
Carlos M. G. de Melo Marinho
Paula Dória de Cardoso Pott
Ana Isabel de Matos Mascarenhas Pessoa (vota vencida nos termos da declaração infra-lançada)
*

Vencida por entender, salvo melhor opinião, que:
A defesa da concorrência constitui um bem público constitucionalmente consagrado na alínea f) do artigo 81.º da Constituição da República Portuguesa que cabe à Autoridade da Concorrência preservar numa perspetiva instrumental.
A Autoridade da Concorrência, pessoa coletiva de direito público, com a natureza de entidade administrativa independente, dotada de autonomia administrativa e financeira, de autonomia de gestão, de independência orgânica, funcional e técnica, e de património próprio, nos termos dos artigos 1º e 4º do respectivo estatuto, tem por missão assegurar a aplicação das regras de promoção e defesa da concorrência nos setores privado, público, cooperativo e social, no respeito pelo princípio da economia de mercado e de livre concorrência, tendo em vista o funcionamento eficiente dos mercados, a afetação ótima dos recursos e os interesses dos consumidores.
A importância da actividade das ANC foi recentemente sublinhada no Considerando 30 da Diretiva (UE) 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho, que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados-Membros competência para aplicarem a lei de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno.
No âmbito do exercício dos seus poderes sancionatórios, cumpre à Autoridade identificar e investigar as práticas suscetíveis de infringir a legislação da concorrência nacional e europeia, proceder à instrução e decidir sobre os respetivos processos, aplicando, se for caso disso, as sanções previstas na lei, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º, dos Estatutos supra mencionados.
Nos termos do artigo 21.º da Lei da Concorrência, a regra é a de que a competência para ordenar a realização das diligências a que se referem as alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 18.º e os artigos 19.º e 20.º é do Ministério Público.
Prevê ainda a mesma norma a exceção de que, (apenas) quando expressamente previsto, esta competência será do juiz de instrução: é o caso autorização da busca domiciliária (cf. n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 19/2012), da presença em busca em escritório de advogados ou consultório médico (cf. n.º 7 do artigo 19.º da Lei n.º 19/2012) ou da apreensão em banco ou instituição de crédito de documento sujeito a sigilo bancário (cf. n.º 6 do artigo 20.º da Lei n.º 19/2012).
Sendo no caso, a competência do Ministério Público (por não existir a exceção prevista no artigo 21º citado), o escrutínio da validade do mandado emitido só poderia ser feito em sede reclamação hierárquica junto do próprio Ministério Público atento o princípio de separação de poderes, o princípio da legalidade e as garantias de independência e autonomia do Ministério Público.
Esta separação de esferas de competências e que impede que o Juiz de instrução Criminal sindique a validade dos mandados emitidos pelo Ministério Público foi, muito recentemente, reiterada por esta mesma Secção, no âmbito do processo n.º 8121/19.0T9LSB-B.L2, por acórdão de 07.04.2022 (Relatora Maria da Luz Seabra), subscrito pela ora signatária, num processo de contornos e natureza e idêntica aos dos presentes autos, onde se entendeu:
 “O Tribunal de Instrução Criminal não tem competência para se pronunciar sobre se o MP tem ou não legitimidade para autorizar buscas e apreensões no âmbito do Regime Jurídico da concorrência e muito menos revogar tais actos, não sendo nem instância de recurso dos actos praticados ou autorizados pelo MP nos processo de natureza contra-ordenacional jusconcorrencial, quando não foi o emitente do mandado de busca e apreensão em apreciação (sendo que ao Juiz de Instrução Criminal apenas cabe autorizar as buscas e apreensões especificamente previstas nos arts. 19º nº 1 e 7 e 20º nº6 da LdC)”
Tudo isto, sempre sem prejuízo do controlo de plena jurisdição que caberá sempre ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (“TCRS”) fazer, em sede de recurso de impugnação judicial de eventual decisão final condenatória que venha a ser proferida no âmbito do respetivo processo contraordenacional.
Tem sido este, de resto, o entendimento sedimentado da jurisprudência deste Tribunal, quanto ao escrutínio da validade dos mandados de busca, exame e apreensão emitidos pelo Ministério Público nos termos da Lei da Concorrência (escrutínio esse que não se confunde com aqueloutro respeitante à forma como a AdC executa os mesmos mandados), entendimento que não vemos razão para inverter.
Por outro lado, a apreensão de correio eletrónico lido é permitida pela Lei da Concorrência, sendo que ocorrendo a apreensão de mensagens de correio eletrónico em ambiente empresarial, nunca se verificaria – independentemente de até só ter sido apreendido correio eletrónico já lido – qualquer ofensa ao direito à inviolabilidade das comunicações, porquanto estamos no âmbito da esfera jurídica da pessoa coletiva e não das pessoas singulares que colaboram com a Recorrente – sendo que a dissemelhança da proteção atribuída pela Lei Fundamental às pessoas singulares e às pessoas coletivas afasta estas últimas do âmbito subjetivo do n.º 4 do artigo 34.º da CRP.
Assim temos entendido, e foi reiterado na Sentença do TCRS e o Acórdão desta Secção que lhe sucedeu, proferidos no âmbito do processo n.º 71/18.3YUSTR-M.,
Na aludida sentença, de 06.20.2021, pode ler-se o seguinte:
“Assim sendo, o momento fulcral é o momento do conhecimento da mensagem por parte do destinatário, já que é nesse momento que a comunicação atinge a sua perfeição, sendo esse o momento que estabelece a fronteira entre uma realidade que é constitucionalmente protegida por via do sigilo das comunicações, de outra que não é.
Ultrapassado o momento fulcral, o correio electrónico metamorfoseia-se em mero documento armazenado / guardado / alojado em suporte digital”.
Já o Acórdão proferido nesses autos, de 24.02.2022 (Relatora Ana Mónica Pavão), asseverou, entre o mais:
“Perfilhamos o entendimento sustentado no aludido acórdão, coincidente com a tese defendida na sentença recorrida, no sentido de que a apreensão de mensagens enviadas por email, já lidas, porque se trata de documentos, não está sujeita à tutela prevista no art. 34º/4 da CRP, sendo ainda certo que também não podem considerar-se mensagens privadas na acepção desta norma.(…)
Tal como também foi entendido no acórdão proferido em 4/3/2020 no apenso D, não vislumbramos fundamento para a aplicação ao caso de qualquer regime subsidiário (cf. art. 13º, 59º/2 e 83º do RJC), porquanto não se nos afigura existir lacuna no regime jurídico da concorrência, já que o regime aplicável às práticas restritivas previstas no art. 9º se encontra expressamente regulado no mencionado art. 18º do RJC.
Por outra banda, subscrevemos o juízo do Tribunal a quo no sentido de que deve ser excluída a aplicação ao caso da Lei 109/2009 (Lei do Cibercrime), cujo objecto e âmbito de aplicação é bem distinto do da Lei da Concorrência.
Aquela lei apenas se aplica aos processos crime, como flui do seu art. 1º, além de que não existe qualquer remissão para esse diploma, quer no RJC, quer no CPP (ex vi art. 41º/1 do RGCO). No sentido da inaplicabilidade da Lei do Cibercrime no domínio do direito contraordenacional da concorrência, vide o acórdão desta Secção PICRS proferido, em 21/12/2020, no apenso D do processo nº 18/19.0YUSTR, assim como o supra citado acórdão proferido pela 3ª Secção Criminal deste TRL em 4/3/2020 (processo nº 71/18.3YUSTRD. L2)”.
A a busca, exame e apreensão de mensagens de correio eletrónico, in casu abertas e lidas, não estão sujeitas à proteção conferida pelo n.º 4 do artigo 34.º da CRP, configurando simples documentos e não correspondência, não gozando, por essa razão, de tutela constitucional. Censura alguma merece, pois, a Sentença recorrida neste conspeto.”
Acresce que as temáticas em apreciação devem ser apreciadas à luz do primado do Direito da União Europeia – proclamado, entre outros, no conhecido Acórdão Costa c. Enel – cuja primazia perante a ordem constitucional interna apenas cederá, nos termos do n.º 4 do artigo 8 da CRP, em face de ameaça dos aspetos essenciais dos princípios fundamentais do Estado de direito, sendo que a Diretiva ECN+ já referida (DIRETIVA (UE) 2019/1 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO) vem constituir um instrumento adicional de defesa concorrência e de garantia do bom funcionamento do mercado interno em face dos novos desafios que emergem do ambiente digital, sendo certo que, de acordo com o teu teor, e na qual se refere, no Considerando 30
“(30) A competência de investigação das autoridades administrativas nacionais da concorrência deverá ser adequada aos desafios da aplicação das normas no ambiente digital e deverá permitir que as ANC obtenham todas as informações relacionadas com a empresa ou associação de empresas objeto da medida de investigação em formato digital, incluindo os dados forenses, independentemente do suporte em que as informações estiverem armazenadas, designadamente computadores portáteis, telemóveis, outros dispositivos móveis ou armazenamento em nuvem.”
Neste mesmo sentido pode consultar-se o Acórdão desta Secção proferido no processo n.º 18/19.0YUSTR-D, em 21.12.2020 (Relator Rui Teixeira).
Por estes motivos julgaria improcedente o recurso.
Ana Pessoa