RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
INADMISSIBILIDADE
IDENTIDADE DE FACTOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REENVIO PREJUDICIAL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
Sumário


I - São pressupostos substantivos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência:
a. dois acórdãos do STJ tirados em processos diferentes;
b. um acórdão da Relação que, não admitindo recurso ordinário, não tenha decidido contra jurisprudência fixada e outro anterior de tribunal da mesma hierarquia ou do STJ;
c. proferidos no domínio da mesma legislação;
d. assentes em soluções opostas relativamente à mesma questão de direito.
II - Na jurisprudência do STJ, os requisitos materiais ocorrem quando:
a. as asserções antagónicas dos dois acórdãos tenham decido em sentido oposto a mesma questão fundamental de direito;
b. as decisões em oposição sejam expressas;
c. as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas.
III - São, então, pressupostos formais:
a. a legitimidade do recorrente;
b. o trânsito em julgado dos acórdãos conflituantes;
c. interposição no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado do acórdão recorrido;
d. a invocação, e junção de cópia, do acórdão fundamento;
e. justificação, de facto e de direito, do conflito de jurisprudência.
IV - Não é admissível cumular questões de direito no mesmo recurso extraordinário, não podendo uniformizar-se, ao mesmo tempo, interpretações judiciais essencialmente “normativas” sobre mais que uma questão de direito.
V - O reenvio ao TJUE, a título prejudicial, tem como pressuposto inultrapassável que o a decisão tenha de aplicar alguma norma ou conjunto de normas de qualquer dos Tratados da União e, concomitantemente, se se suscitem dúvidas sobre a respetiva interpretação
VI - Ainda que, por mera hipótese académica, viesse colocada uma questão de interpretação de algum dos tratados da União, mesmo assim, não haveria lugar ao reenvio porque, como é jurisprudência uniforme do TJUE, “os órgãos jurisdicionais de última instância não são obrigados a reenviar uma questão de interpretação «se a questão não for relevante, isto é, quando a resposta a essa questão, qualquer que seja, não possa ter influência na solução do litígio»”.

Texto Integral

ACÓRDÃO:



*



O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em conferência, acorda:


A - RELATÓRIO:

1. o recurso extraordinário:

No processo em epigrafe, a assistente:

- AA, com os demais sinais dos autos, convocando o disposto nos artigos 437.º n.º 2 e sgs. do CPP, interpôs, em 21/12/2021, o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, contra o acórdão de 10.11.2021, do Tribunal da Relação ..., transitado em julgado em 20.12.2021 que, na procedência parcial do recurso, absolveu o arguido BB, revertendo a sentença do Juízo Local Criminal ... – Juiz ... , que o tinha condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º n.ºs 1 al.ªs b) e c) e 2 al.ª a) do Cód. Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, com execução suspensa por igual período de tempo, com deveres.

Remata a alegação com as seguintes conclusões (em síntese):

A. O acórdão recorrido decidiu julgar parcialmente procedente a sentença do Tribunal Judicial da Comarca ... – ... – Juízo Local Criminal – Juiz ..., na sequência de recurso do arguido, “absolvendo o arguido BB da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas b) e c) e 2, alínea a) do Código Penal, de que vinha acusado e por cuja prática se encontrava condenado em 1.ª instância”.

B. No entendimento do Tribunal da Relação ... a matéria de facto provada não integra o crime de violência doméstica, por cuja prática o recorrido se encontrava condenado.

C. Este Tribunal, fundamentou a decisão em dois pressupostos que entram em contradição com o disposto no acórdão fundamento.

D. Em primeiro lugar considerou inaplicável o artigo 152.º do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 44/2018 que entrou em vigor em 1-09-2018, em virtude de tal aplicação violar o princípio da não retroatividade da lei penal desfavorável.

E. Por outro lado, defendeu que da apreciação da factualidade provada resultava que as condutas geradoras de responsabilidade criminal teriam sido praticadas em reciprocidade, razão pela qual estava afastada a possibilidade de condenação do arguido.

F. Considerando que, os maus-tratos psíquicos não se revestiam de gravidade suficiente para poderem ser considerados como integrantes da previsão do crime de violência doméstica, sem, contudo, considerar os factos em causa na sua globalidade.

G. são estes os problemas, que geram o conflito entre este acórdão e o acórdão fundamento, cuja decisão vai de encontro à decisão do Tribunal de 1.ª instância.

H. Com efeito, o Tribunal de 1.ª instância decidiu condenar o arguido pela prática do crime de violência doméstica, para tanto, considerou aplicável o artigo 152.º do CP na redação dada pela Lei n.º 44/2018, de 9/08, por entender “que a reiteração de factos imputada ao arguido, constante dos factos considerados como provados, deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social e que, portanto, é susceptível de consubstanciar a prática de um crime de violência doméstica, pelo que a sua consumação ocorre com a prática do último acto de execução, devendo ser atendida a lei que se encontra em vigor à data da prática do último facto que, in casu, ocorreu em 2020, portanto, em plena vigência da Lei n.º 44/2018”, mas sobretudo por entender que os factos praticados pelo arguido configurarem comportamentos que denotam um quadro de humilhação, maus tratos e de degradação social a que o arguido submeteu AA, excluindo-se a reciprocidade das condutas, pois pese embora tenham existido, em certas ocasiões, agressões mútuas, a análise cuidada da globalidade dos factos terá de concluir que, não existe reciprocidade, porquanto as condutas da ofendida surgiram sempre em resposta às agressões do arguido, e em consequência da sua exasperação face à reiteração dessas condutas pelo agressor.

I. Em face do exposto, é inequívoca a gravidade das condutas do arguido, na pessoa da vítima, o vexame a que esta era sujeita, ora através da propalação de expressões injuriosas, quer através de comportamentos que revelam desprezo e aversão manifestada e sentida pelo arguido face a AA. Os impropérios eram inúmeros e frequentes, sendo sempre associados a uma postura hostil e sobranceria assumida pelo arguido, menosprezando a ofendida, como ser humano.

J. a decisão do acórdão fundamento está em linha com esta decisão da 1.ª instância e, portanto, em oposição com o acórdão recorrido.

K. o acórdão fundamento seguindo a jurisprudência maioritária entende que a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social, que se consuma com a prática do último ato de execução.

L. Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de maus-tratos, violência doméstica ocorre com a prática do último ato de execução.

M. Assim, a solução consignada no acórdão recorrido, relativamente à questão da aplicação da lei no tempo, no domínio da mesma legislação encontra-se em flagrante contradição com o acórdão fundamento.

N. Relativamente à subsunção dos factos ao crime de violência doméstica é entendimento do acórdão fundamento, que para a caracterização do crime é relevante que os factos, isolados ou reiterados, praticados no âmbito de uma relação conjugal ou de vida em comum, possuam uma gravidade e importância tais que, coloquem a pessoa ofendida numa situação inconciliável com a dignidade e a liberdade necessárias a qualquer membro do casal, devendo atender-se à globalidade dos factos provados.

O. De acordo com o acórdão fundamento na redacção actual do artigo 152.º do CP, o tipo legal de crime aí previsto verifica-se com a perpetração de acto de violência que afecte, de modo, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária. P. As condutas previstas e punidas por aquele preceito legal abrangem diversos géneros: ofensas corporais simples, maus-tratos psíquicos englobando humilhações, provocações, molestações, intimações e tratamentos desumanos. No que concerne ao elemento subjetivo, exige a lei o dolo, embora não o específico traduzido na atuação por malvadez ou egoísmo.

Q. De igual modo afirma o acórdão fundamento que “o crime de violência doméstica gera uma relação de concurso aparente de normas e de especialidade com outros tipos legais de crimes, v.g. o apontado.”

R. Pelo que, se as condutas do agressor se revestirem de especial desvalor da ação, ainda que, se possam integrar noutros tipos penais, terão de ser enquadradas no crime de violência doméstica.

S. É o que se verifica no caso, já que como bem sustenta a decisão da 1.ª instância “uma análise cuidada e global de toda a factualidade em crise nos autos permite a conclusão inequívoca de que o arguido sujeitou AA, durante o período de coabitação, a um clima de maus-tratos psicológicos, demonstrando um claro desprezo pela vítima, enquanto pessoa humana, que pela reiteração e pela gravidade das expressões e dos comportamentos assumidos pelo arguido permitem a subsunção em pleno ao crime de violência doméstica.

É paradigmático e revelador de tal ascendente psicológico, o episódio atinente à colocação da caneca, de roupa suja e ainda de montes de migalhas apenas e tão-só com o objectivo de fazer com que a vítima procedesse à arrumação e limpeza. É de igual modo revelador de um clima hostil, degradante e humilhante a forma como o arguido desconsiderou, em absoluto, as doenças de que padecia a vítima, nomeadamente lúpus e do foro oncológico, tendo feito troça quer aquando de um telefonema com AA, quer na presença de terceiros, como num jantar perante o seu patrão. Vendo AA a gemer com dores, após ter sido intervencionada ao colo do útero, o arguido não se demoveu de a apelidar de “nojenta”, “porca”, “puta” e “badalhoca”, demonstrando uma postura de total indiferença face ao estado frágil de saúde em que a vítima se encontrava.

O mesmo se diga em relação ao episódio descrito nos factos provados n.ºs 12 e 15, os quais demonstram que o arguido menosprezava e rebaixava a vítima, mesmo na presença do filho comum, dizendo ao mesmo para não tocar na vítima, porque é nojenta e insinuando que por falta de limpeza a vítima era culpada por borbulhas na cara do filho comum.

Todas as expressões utilizadas pelo arguido são reveladoras de uma inequívoca vontade de rebaixar, de menosprezar e de ofender, não a honra e consideração da vítima, mas de ofender também a sua dignidade enquanto pessoa humana. Repita-se: nem o facto de a vítima se encontrar grávida e, posteriormente, doente, com uma doença autoimune grave e do foro oncológico, foi suficiente para demover o arguido da prática dos factos em escrutínio nos autos, o que demonstra uma clara postura de ascendência psicológica face à pessoa da vítima.”

T. Estabelece o acórdão fundamento que “o que é determinante para a caracterização desse conceito legal é que os factos, isolados ou reiterados, praticados no âmbito de uma relação conjugal ou de vida em comum, possuam uma gravidade e importância tais que coloquem a pessoa ofendida numa situação inconciliável com a dignidade e a liberdade necessárias a qualquer membro do casal.

U. segundo o entendimento perfilhado neste acórdão fundamento o bem jurídico protegido neste tipo de crime é complexo, integrando a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de actos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação conjugal ou análoga ou por causa dela. Daí que o ponto fulcral do crime de violência doméstica resida na dignidade da pessoa em relação livremente contraída. V. O fenómeno da violência doméstica tem vindo a assumir importância cada vez maior na sociedade, uma vez que atenta gravemente contra direitos fundamentais e põe em causa a qualidade de vida das vítimas. Por essa razão, tem vindo, cada vez mais, a deixar de se encarar [como] crime do foro particular, da família, passando a existir uma preocupação geral da comunidade e do Estado em preveni-lo e reprimi-lo.

W. Apesar da sua relevância social não existe unanimidade, na doutrina e na jurisprudência, quanto ao bem jurídico protegido, razão pela qual se afigura relevante que seja proferida uma decisão que uniformize a jurisprudência nesta matéria.

X. sufragamos o entendimento maioritário na doutrina e jurisprudência, que aponta a saúde, enquanto “integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica” e a manutenção do bem-estar físico e mental, como o bem jurídico protegido por este crime.

Y. Por outro lado, é indubitável que, do ponto de vista formal, as condutas típicas ínsitas na previsão do artigo 152.º do Código Penal são os maus-tratos físicos e psíquicos.

Z. Analisados os factos provados verificamos que as agressões ocorreram durante acesas discussões entre o casal, sempre iniciadas pelo arguido com o intuito de causar mal estar à ofendida, que por não aguentar mais acabou por responder a alguns dos atos do agressor, pelo que a proteção do bem jurídico em causa reclama que estes atos não possam ser considerados praticados em reciprocidade em virtude dos mesmos não se revestirem de idêntica gravidade, para tanto é essencial atender a que as expressões utilizadas pelo arguido são reveladoras da vontade de rebaixar, de menosprezar e de ofender, não só a honra e consideração da vítima, mas de ofender também a sua dignidade enquanto pessoa humana.

AA. A este propósito refere acórdão recorrido, que uma subsunção nos termos acima descritos redundaria numa exagerada abrangência típica do crime de violência doméstica.

BB. Esta conclusão embate com as considerações do acórdão fundamento em matéria de apreciação da prova, na medida em que, o mesmo refere que “No nosso sistema processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127° do CPP, que estatui "salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada seguindo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.". A este propósito salienta o Sr. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, v. I, Coimbra Editora, Lda., 1981, pág. 202: "Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e, portanto, arbitrária - da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada" verdade material" - de tal sorte que a apreciação há-de se, em concreto, recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo..."

E adianta, Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, " Meios de Prova", Livraria Almedina, pág. 227/228: "Por outro lado, livre convicção ou apreciação não poderá nunca confundir-se com apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. A mais importante inovação introduzida pelo Código nesta matéria consiste, precisamente, na consagração de um sistema que obriga a uma correcta fundamentação das decisões que conheçam a final do processo de modo a permitir-se um controlo efectivo da sua motivação".

CC. A inserção da conduta no artigo 152.º ou nos tipos legais simples, como o artigo 143.º ou o artigo 181.º, dependerá, pois, do juízo sobre se a conduta material em causa representou, em concreto, uma violação do bem jurídico protegido pelo tipo legal, que é um bem jurídico complexo, que compreende, reflexamente, a convivência familiar, para-familiar ou doméstica, a confiança relacional, desde que, como avançado pelo acórdão fundamento, essas condutas possuam gravidade e importância tais que coloquem a pessoa ofendida numa situação inconciliável com a dignidade e a liberdade necessárias a qualquer membro do casal.

DD. O que significa, que dos factos provados tem de resultar a demonstração de um estado de degradação ou aviltamento da dignidade humana, não sendo a pessoa tratada como pessoa, em resultado da crueldade, insensibilidade para com o outro e traduzida em manifestação de desprezo ou desconsideração, ou impondo uma essencial é que os comportamentos assumam gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar e se não necessita de uma reiteração (face à norma legal) não prescinde de uma gravidade que vá para além e ultrapasse a ofensa à integridade física ou à honra (sob pena de o crime de violência doméstica se traduzir apenas num crime familiar), ou seja é necessário que justifique a sua autonomia, pondo em causa a relação existente entre agressor e ofendido.

EE. A violência doméstica pode assumir várias formas, não tendo de ser necessariamente física.

FF. No caso, as condutas do agressor traduzem uma violência emocional e psicológica, intimidação e violência física.

GG. Do acórdão recorrido resulta que, a matéria de facto não foi impugnada, o arguido limitou-se a criticar a forma como foi valorada a prova e a percecioná-la de forma diversa. HH. importa atender ao descrito no acórdão fundamento segundo o qual “aos julgadores, no tribunal de recurso, está vedada a imediação e a oralidade em toda a sua extensão, contrariamente ao que ocorre no tribunal da instância que contacta com uma multiplicidade de factores, relativos a percepção da espontaneidade dos depoimentos da verosimilhança, da seriedade, das hesitações, da linguagem, do tom de voz, do comportamento, das reacções, dos trejeitos, das expressões e, até, dos olhares.

Assim, condicionados pela impossibilidade da captação desses elementos directos, resultantes da imediação da prova, perante duas ou mais versões dos factos, podem afastar-se do juízo feito pelo julgador da primeira instância, naquilo que não tiver origem nestes dois princípios (oralidade e imediação), ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art.º 374º n.º 2, do aludido compêndio adjectivo. (…)

“O arguido negou a quase generalidade dos factos que lhe são imputados na acusação, admitindo apenas que, por vezes durante as discussões “comuns” do casal poderia ter chamado à assistente as seguintes palavras “puta” e “bruxa”.

Tal versão foi contrariada pela assistente que referiu expressamente não apenas aquelas mas todas as expressões que na acusação se refere terem-lhe sido dirigidas pelo arguido, de forma regular, ao longo da coabitação de ambos e que o arguido, com muita frequência, sobretudo nos últimos tempos de casados, lhe cuspia para a cara, durante as discussões de ambos, não precisando situações concretas em que tal ocorrera, precisamente por tal suceder com muita frequência, sempre que o casal discutia, o que, face às suas declarações, acontecia permanentemente.”

O facto de o arguido os ter negado não significa que não os tenha cometido, e as suas declarações, confrontadas com as da vítima, com todos os demais elementos de prova e com o comportamento global do arguido, não são credíveis.

Da análise probatória global, efectuada igualmente pelo tribunal ad quo não pode de todo concluir-se por uma errada apreciação da prova em termos de julgamento pelo tribunal. Pelo contrário, os factos provados consignados emencionados, são totalmente pertinentes, por resultarem da conjugação de toda a prova, resultando a sua verificação de presunções materiais ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral de experiência”.

II. Consta da sentença de 1.ª instância que, atenta a matéria de facto que resultou provada nos pontos deve concluir-se summo rigor e que se verificam todos os elementos objectivos do tipo de legal de crime de violência doméstica, atenta a gravidade dos episódios de violência física, verbal e psíquica que o arguido infligiu à ofendida, dos quais resultam, vistos em conjunto, uma ofensa à própria dignidade daquela, enquanto mulher, submetendo-a a situações de ofensa à integridade física e essencialmente de crueldade psicológica através das ameaças, das injúrias e das perturbações da paz e sossego, o que é humilhante para qualquer mulher.

JJ. Apurou-se que tais factos foram cometidos pelo arguido, muitos deles no interior do domicílio comum e, algumas vezes, na presença do filho menor de ambos, pelo que se mostram verificados os factos que reivindicariam a agravação prevista no n.º 2 do citado art.º 152.º do Cód. Penal.

KK. Tudo para concluir que a gravidade e reiteração das condutas adotadas pelo arguido nos termos supra indicados, as mesmas devam ser enquadradas na tipicidade objetiva do ilícito e violência doméstica, atenta a teleologia que lhe está subjacente, rectius por ofenderem a própria dignidade humana.

LL. Refere a douta sentença que atento a prova produzida ficou claro que o arguido agiu com pleno conhecimento e vontade de insultar, ameaçar, agredir e ofender psicologicamente, como efetivamente conseguiu, nas apontadas circunstâncias de tempo, de modo e de lugar, a integridade física e psíquica da ofendida, que sabia ser então sua companheira e mãe do seu filho, nos termos supra descritos, atuando, nessa medida, com dolo direto.

MM. Preencheu, assim, o recorrente, os elementos objetivos e subjetivos de um crime de violência doméstica agravado, conforme bem entendeu o Mm.º Juiz de 1.ª instância.

NN. Contrariamente ao defendido no acórdão recorrido e conforme entendimento do Acórdão fundamento deve considerar-se que que a Relação ... fez incorreta (para não dizer machista) aplicação do direito, pois que, em face da situação concreta dos autos, e da doutrina do acórdão fundamento, impunha-se solução jurídica diferente da produzida no acórdão recorrido.

OO. Verifica-se que, quanto às duas questões fundamentais de direito em causa e que foram subsidiariamente determinantes para a absolvição do arguido, se encontram preenchidos os pressupostos de admissão do recurso para uniformização de jurisprudência, consagrado no CPP, estando o acórdão em crise em contradição expressa, direta e flagrante com o Acórdão fundamento, no domínio da mesma legislação e sobre as mesmas questões fundamentais de direito.

PP. Termos em que se impõe uniformizar a jurisprudência quanto às duas questões fundamentais de direito acima indicadas levando à concretização das questões a solucionar. QQ. Esta [é] a única interpretação que respeita o disposto na legislação nacional, também é a única que respeita os princípios ordenadores do direito da União em matéria de violência de género.

RR. analisando os diplomas europeus sobre esta matéria verifica-se que[a] violação dos direitos fundamentais à vida, segurança, liberdade, dignidade e integridade física e emocional não pode ser tolerada ou desculpada seja por que motivo for.

SS. O ordenamento jurídico da União Europeia é um sistema complexo, comum a todos os Estados-Membros, sendo que para além das fontes originárias e derivadas, integra igualmente os princípios jurídicos “que ao longo dos tempos foram sendo acolhidos, elaborados ou explicitados pelo Tribunal de Justiça”.

TT. Do leque de princípios do direito da União, destaca-se o princípio da cooperação leal, previsto no artigo 4.º, n.º 3, do Tratado da União Europeia, e de entre os princípios que, não obstante não estarem expressamente consagrados nos Tratados, o densificam designadamente o princípio do primado do direito da União Europeia sobre o direito nacional; o princípio da interpretação conforme e o princípio do efeito direto dos atos jurídicos europeus.

UU. O princípio do primado é uma exigência do direito europeu, em consequência de não existir nos Tratados qualquer norma de solução de conflitos e estabelece que, em caso de conflito “o direito da União se aplica com preferência sobre o direito nacional dos Estados-Membros”.

VV. Segundo o princípio da efetividade, as autoridades nacionais devem assegurar que, as pretensões decorrentes do direito da União sejam tão protegidas quanto aquelas resultantes do direito nacional, o que se traduz numa ampliação dos poderes do Juiz que, sempre que o direito nacional não ofereça um recurso efetivo ao particular, o juiz deve criar.

WW. é nosso entendimento que a melhor interpretação que se pode efetuar deste preceito, com base na adequação do direito interno ao direito da União Europeia, em matéria de subsunção dos factos provados ao tipo do crime de violência doméstica terá de concluir pela inexistência de reciprocidade capaz de afastar a condenação, quando os atos perpetrados pela ofendida surjam em resposta às condutas agressivas do arguido e em consequência da exasperação vivida pela vítima.

XX. Admitindo, sem conceder que possa ser outro o entendimento deste Tribunal, desde já se formula a questão prejudicial a colocar ao TJUE ao abrigo do disposto no artigo 267.º do TFUE, requer-se que ao TJUE seja colocada a seguinte questão, a título de reenvio prejudicial:

É conforme ao Direito Europeu, uma interpretação normativa do artigo 152.º do Código Penal que conclua pela irrelevância dos maus-tratos por praticados em reciprocidade, mesmo que atendendo à globalidade dos factos provados resulte claro que os atos perpetrados pela ofendida surgiram sempre em resposta às condutas agressivas do arguido e em consequência da exasperação vivida pela vítima?

YY. quando o ora Recorrente formula o pedido de reenvio prejudicial no sentido que “ que salientar que, incumbirá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, se os artigos 685º, 666º e 615º, n.º 1, alíneas b) e c) e 616º, N.º 2, alínea a), todos do Código de Processo Civil (doravante CPC), aplicável ex vi artigo do CPTA que regulam a matéria suscitada no mencionado requerimento de 04/11/2020 do ora requerente, nomeadamente o n.º 2 do artigo 666.º do CPC que prevê a decisão em conferência, violam ou não o direito a uma tutela jurisdicional efectiva e o direito a um tribunal imparcial, previstos nos artigos 2.º, 19.°, n.ºs 1 e 2, do TUE e artigo 47.º da Carta, porquanto a decisão final (desde logo porque, ao contrário das outras instâncias, não existe possibilidade de recurso) sobre o requerimento que suscitar eventuais vícios caberá sempre aqueles que lhes deram origem”, fá-lo em estrita observância dos princípios defendidos na jurisprudência inovadora do Acórdão ASJP do TJUE de 27.02.2018.

ZZ. Com efeito, na medida em que o STA se podia pronunciar, na qualidade de «órgão

jurisdicional», sobre questões relativas à aplicação ou à interpretação do direito da União, o que incumbia ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, era se o Estado-Membro garantia que a instância em causa satisfazia as exigências inerentes a uma tutela jurisdicional efetiva, em conformidade com o artigo 19. °, n.° 1, segundo parágrafo, TUE.

AAA. Para garantir essa tutela, é fundamental que seja preservada a imparcialidade da instância, como confirma o artigo 47.°, segundo parágrafo, da Carta, que refere o acesso a um tribunal «imparcial» entre as exigências associadas ao direito fundamental a uma ação.

BBB. A imparcialidade dos órgãos jurisdicionais nacionais é essencial, em particular, ao bom funcionamento do sistema de cooperação judiciária que o mecanismo do reenvio prejudicial previsto no artigo 267.° TFUE representa, na medida em que, em conformidade com a jurisprudência constante, esse mecanismo só pode ser acionado por uma instância encarregue de aplicar o direito da União, que satisfaça, designadamente, esse critério de imparcialidade. CCC. Tal como resulta do artigo 267.º do TFUE, “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submetera questão ao Tribunal”, o que era o caso.

DDD. acreditamos que a questão de reenvio prejudicial suscitada era inédita, desde logo porque só na esteira da, também ela inovadora, jurisprudência ASJP, proferida no Acórdão de 27.02.2018, processo C-64/16 do TJUE, passou a ter enquadramento, pelo que, entendemos que se encontravam preenchidos os requisitos para o reenvio prejudicial e não a sua dispensa, nos termos exarados no acórdão fundamento.

EEE. No mesmo sentido veja-se o acórdão deste Colendo STA de 05.12.2018(21), proc. 02202/08.5BEPRT 01280/16, disponível em www.dgsi.pt.

FFF. Entendemos pois que, no caso sub judice, reputava-se indispensável a resposta do Tribunal de Justiça para a decisão da controvérsia jurídica que constituía objeto da presente acão e que consistia em saber se os artigos 685º, 666º e 615º, n.º 1, alíneas b) e c) e 616º, n.º 2, alínea a), todos do Código de Processo Civil (doravante CPC), aplicável ex vi artigo 1º do CPTA que regulam a matéria suscitada no mencionado requerimento de 04/11/2020 do então requerente, nomeadamente o n.º 2 do artigo 666.º do CPC que prevê a decisão em conferência, violavam ou não o direito a uma tutela jurisdicional efetiva e o direito a um tribunal imparcial, previstos nos artigos 2.º, 19.°, n.ºs 1 e 2, do TUE e artigo 47.º da Carta, porquanto a decisão final (desde logo porque, ao contrário das outras instâncias, não existe possibilidade de recurso) sobre o requerimento que suscitava eventuais vícios caberia sempre aqueles que lhes deram origem.

GGG. “teoria do Acto Claro”, de novo sem prejuízo de em caso de permanência de qualquer dúvida acerca de tal clareza, o juiz dever ordenar o reenvio. Esta teoria pretendeu contribuir para a diminuição de reenvios desnecessários, ainda que seja intrínseca uma certa dificuldade na concretização ou preenchimento do que seja “clareza” de um ato, já que é inerente a tal juízo conclusivo uma certa conceção pessoal e circunstancial de difícil apreciação objetiva. HHH. Segundo HJALTE RASMUSSEN a jurisprudência Cilfit baseia-se numa engenhosa estratégia de “give and take”. Na verdade, após consentir uma ampla excepção à obrigatoriedade de reenvio, o TJUE formulou grandes limites à teoria do Ato Claro, com a especial intenção de incentivar os órgãos jurisdicionais a utilizarem o “mecanismo de cooperação judicial” e, apenas o recusarem nas matérias inequivocamente evidentes, para assim reduzir a diversidade de interpretações do DUE.

III. Uma vez que o ac. Cilfit obriga à verificação de “uma série de condições indeterminadas e dificilmente verificáveis”, os tribunais nacionais têm ignorado os limites à teoria do Ato Claro, acabando por o invocar de forma simplificada, e, com isso, foram dando origem ao desrespeito da obrigação de suscitação e à consequente aplicabilidade de sanções específicas para o efeito.

JJJ. O não cumprimento destas obrigações e a necessidade imperativa de tutelar os direitos dos particulares impõe a aplicação da disciplina da responsabilidade extracontratual do Estado por decisões jurisdicionais violadoras do DUE.

Peticiona “a admissão do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, confirmando-se a contradição existente entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento, concluindo-se, a final, pela uniformização de jurisprudência levando à concretização das questões a solucionar;

Subsidiariamente, e caso seja perfilhado entendimento diferente, seja submetido o pedido de reenvio prejudicial formulado.

Juntou: pedido de certidão do acórdão fundamento (com trânsito).

2. resposta do Ministério Público:

O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação ..., defende a improcedência do recurso extraordinário da assistente. Resume a argumentação, concluindo (em síntese):

I. Apesar de discordar da decisão recorrida, não adere à argumentação do recorrente e muito menos à forma como vem apresentada.

II. A decisão recorrida, objectiva no que toca à impugnação da matéria de facto sustentada pelo arguido no seu recurso e que foi indeferida, não dá o devido valor ao juízo formado na 1ª instância, onde existiu a imediação e a possibilidade de melhor apreensão dos factos e dos seus efeitos sobre a vítima.

III. Para desvalorizar a apreciação dos factos feita na primeira instância, no acórdão recorrido, apelou-se ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2019 e ao estudo ali feito sobre o crime de violência doméstica, sintetizado na expressão: o conceito de maus-tratos, essencial no crime de violência doméstica, tem na sua base lesões graves, intoleráveis, brutais, pesadas. Ainda com inspiração no mesmo Acórdão, invoca-se a reciprocidade na actuação da assistente face ao arguido.

IV. Porque não assistimos à produção da prova, perfilhamos o entendimento da sentença condenatória bem estruturado e fundamentado no que toca à relevância que os factos que reputamos de graves tiveram na vítima.

V. Quanto à invocada reciprocidade, não está de todo presente nas ameaças proferidas, é mais plausível que a vítima apenas se tenha defendido do agressor ou respondido a agressões que sofreu anteriormente e, no que toca às expressões injuriosas, na matéria de facto assente na primeira instância, a tese do acórdão recorrido apenas encontra apoio no facto dado como provado no item 36. Ora, aqui apenas se caracteriza alguém que depois de ter sido atacado sucessivamente por outrem, acaba por reagir a esses ataques e não à conclusão de que entre arguido e assistente era normal a utilização recíproca desse tipo de tratamento.

VI. No recurso interposto entende-se que se impõe uniformizar a jurisprudência porque o acórdão recorrido contraria o acórdão da Relação de Évora, de 19-12-2013, que relativamente à questão da aplicação da lei no tempo perfilha outra solução pois, seguindo a jurisprudência maioritária, entende que a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social, que se consuma com a prática do último ato de execução. Por outro lado, este acórdão elegido como fundamento, às avessas do recorrido aprecia globalmente os factos. VII. Na interpretação do Ministério Público, no acórdão recorrido apenas se afasta a aplicação da Lei n.º 44/2018, de 9/08, aos factos dados como provados após a entrada em vigor da lei por se considerar que tais factos não têm relevância penal. Neste contexto, porque entende que todos os factos com relevância penal ocorreram na vigência da lei anterior, não faria sentido a aplicação do novo regime. Aliás, este não teria qualquer peso no caso em análise. VIII. As diferenças entre a decisão que a recorrente apresenta como acórdão fundamento face ao acórdão recorrido, na sucessão de regimes legais no tempo, levam a que neste último não se coloque em causa a doutrina do acórdão fundamento pois não a negando, apenas dá aos factos contornos que no seu entender a tornam inaplicável.

IX. Contudo, existem diferenças entre as decisões em análise que, prendendo-se com as dinâmicas próprias das situações, vão colidir com a pretensão da recorrente. A própria recorrente apela a uma das circunstâncias que evidenciam uma das maiores e mais relevantes diferenças entre o que a assistente entende ser o acórdão fundamento e o acórdão recorrido ao referir que neste se dá especial relevo ao facto de que as condutas geradoras de responsabilidade criminal teriam sido praticadas em reciprocidade.

X. No Ac. Rel. Évora de 19-12-2013, não existe essa circunstância que tão decisiva terá sido para a absolvição do arguido. Se entendemos que a reciprocidade desempenhou um papel importante não só na decisão recorrida, como também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2019 que fundamentou o acórdão recorrido, parece-nos que terá sido inadequada a seleção do Ac. Rel. Évora para servir como acórdão fundamento.

XI. O mesmo se diga para sustentar a afirmação de que no acórdão recorrido não se consideraram os factos na sua globalidade. Como decorre do seu texto, entende-se que em diversas ocasiões em que o arguido agrediu ou injuriou a recorrente, tal ocorreu num contexto de reciprocidade.

XII. O que está em causa é a interpretação que se faz dos factos. Aliás, o conceito de globalidade na apreciação dos factos a que a recorrente apela é algo que deve presidir a todas as decisões judiciais, pelo que não seria fundamento para a prolação de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência.

XIII. Pelo exposto, entendemos que o acórdão recorrido no que se refere à aplicação da lei penal no tempo não contraria o acórdão referido com fundamento, apenas dá outro contorno aos factos. Por outro lado, porque os factos analisados em ambas as decisões apresentam diferenças substanciais e ainda porque a interpretação e avaliação dos factos no acórdão recorrido é feita na sua globalidade., entendemos que não se verificam os requisitos substanciais para o recurso de fixação de jurisprudência.


3. resposta do arguido:

Pugna pela rejeição do recurso. Defendendo inexistir oposição de julgados, argumenta (em síntese): “a necessária identidade das situações de facto ponderadas nos acórdãos em conflito, não se verifica, não podendo afirmar-se que ambas as decisões se reportam a idêntico substrato factual porque os factos analisados em ambas as decisões apresentam diferenças substanciais.

Desde logo a circunstância que a recorrente invoca como diferença entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido, referindo que neste último se especial relevo ao facto de as condutas geradoras de responsabilidade criminal teriam sido praticadas em reciprocidade.

no acórdão fundamento, não encontramos essa circunstância, acrescendo que nos factos dados como provados na sentença que determinou a decisão do Tribunal da Relação de Évora estão em causa agressões físicas muito mais graves e ainda ameaças e injúrias, sempre sem reacção da vítima.

Pelo que não se encontram reunidos os requisitos, nos termos do art.º 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para a fixação de jurisprudência, visto não serem similares os cenários que foram ponderados e em que se sustentaram ambos os acórdãos e daí que não se vislumbre um quadro de soluções opostas em relação à mesma questão fundamental de direito.

Por conseguinte, o recurso deve ser rejeitado”.

De referir ainda que os Acórdãos não foram proferidos no domínio da mesma legislação, uma vez que no intervalo da sua prolação, ou seja, entre a data em que foi proferido o acórdão fundamento (19/12/2013) e a data em que foi proferido o acórdão recorrido (10/11/2021) ocorreu modificação legislativa que interfere na resolução de direito, em concreto, do teor do artº152º do Código Penal.

Também por este motivo, o recurso deve ser rejeitado”.

Quanto ao mais alegado pela recorrente, contrapõe não ser o recurso extraordinário “o lugar para debater essa questão, esgotadas que foram as devidas instâncias legais para o efeito, e porque foi efetivamente feita a ponderação global de tais factos”.


4. parecer do M.º P.º:

A Digna Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, em fundamentado parecer e detalhada comparação dos acórdãos recorrido e fundamento, pronuncia-se pela rejeição do recurso, argumentando (em síntese):

A recorrente pretende que o STJ conheça e decida questões plúrimas e diversas.

Para além de colocar a questão de saber se (1) é ou não aplicável o artigo 152º do Código Penal, na redacção dada pela Lei nº 44/2018, de 01.09., e se, (2) tendo as condutas geradoras de responsabilidade criminal sido praticadas em reciprocidade, fica afastada a possibilidade de condenação do arguido, pretende ainda, que se aprecie (3) se os factos em causa devem ser considerados na sua globalidade.

A enunciação de mais do que uma questão afasta os pressupostos do recurso extraordinário, constituindo, na motivação e no pedido, um recurso normal de impugnação de uma decisão. No caso, não se verificam, portanto, os pressupostos formais do recurso extraordinário: identificação de uma [única] questão de [direito a uniformizar].

[Por outro lado] um dos requisitos substanciais é a oposição de julgamento relativamente à mesma questão de direito.

A decisão da questão de direito não pode ser desligada do substracto factual sobre que incide. Em suma, a viabilidade do recurso de fixação de jurisprudência pressupõe que estejam em causa soluções de direito dadas a situações de facto idênticas.

No caso, no acórdão [fundamento], para além de estar em causa o artº 152º do CP, na redacção da Lei nº 59/2007, 04.09, – o que, não seria relevante -, não há identidade da situação factual uma vez que não se levanta a questão da reciprocidade nas agressões.

Não estamos perante uma divergência na [mesma] questão de direito na medida em que ambos os acórdãos estão de acordo em que o crime de violência doméstica é um crime complexo, que protege vários bens jurídicos, como a saúde, integridade física e psíquica, a honra e dignidade, a liberdade e que pode, portanto, haver concurso aparente com o crime de ofensas à integridade física, ameaça, injúria.

Ambos estão igualmente de acordo, que para os factos integrarem a prática do crime de violência doméstica, é necessário que os actos praticados, pela sua gravidade ou reiteração, envolvam um tratamento claramente degradante, humilhante.

Verifica-se que no acórdão recorrido, perante o quadro factual imputado ao arguido, o Tribunal valorou os factos provados e decidiu que a sua actuação não envolveu um tratamento degradante ou humilhante com relevância e dimensão suficientes para justificarem a sua subsunção ao tipo legal e, no acórdão fundamento, perante o quadro factual imputado ao arguido, o Tribunal valorou os factos provados e atribuiu à actuação do arguido tal relevância e dimensão.

O recurso de fixação de jurisprudência não tem por objeto a decisão de uma questão ou de uma causa, mas, sim, a definição do sentido de uma norma.

Como facilmente se observa, as questões que a recorrente pretende ver resolvidas - a saber se é ou não aplicável o artigo 152º do Código Penal, na redacção dada pela Lei nº 44/2018, de 01.09; se tendo as condutas geradoras de responsabilidade criminal sido praticadas em reciprocidade, fica afastada a possibilidade de condenação do arguido; e se o tribunal devia ou não ter considerado os factos em causa na sua globalidade -, têm unicamente a ver com a valoração dos factos provados e a sua subsunção jurídica.

Trata-se, pois, de matéria que tem por objeto a decisão de uma causa e não do sentido de uma norma e, portanto, escapa ao escopo do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência. Em conclusão, claudicando um pressuposto substancial do presente recurso extraordinário, não pode o mesmo prosseguir.

DO REENVIO PREJUDICIAL

Requer a recorrente, que seja suscitado junto do TJEU o reenvio da questão de direito consistente em saber; se «é conforme ao Direito Europeu, uma interpretação normativa do artigo 152º do Código Penal que conclua pela irrelevância dos maus-tratos por praticados em reciprocidade, mesmo que atendendo à globalidade dos factos provados resulte claro que os atos perpetrados pela ofendida surgiram sempre em resposta às condutas agressivas do arguido e em consequência da exasperação vivida pela vítima

Nos termos do invocado artigo 267º do TFUE, aquela instância é competente apenas para decidir, a título prejudicial:

a) Sobre a interpretação dos Tratados;

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Assim, “(…) nas questões de reenvio prejudicial por efeito do disposto na aludida norma, não estão em causa questões relativas à interpretação ou apreciação das normas legislativas ou regulamentares de direito interno, nem matérias relacionadas com a compatibilidades destas normas ou regulamentos com o direito comunitário e muito menos, as questões respeitantes à validade ou interpretação das decisões dos tribunais nacionais. Na verdade, o aludido reenvio prejudicial, apenas pode/deve acontecer, quando um tribunal nacional, se confrontado com uma situação de interpretação de uma norma comunitária cuja resolução se torne necessária para o julgamento do caso sub judice, pois se justifica a submissão dessa questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. (…)

O efeito útil do citado Artº 267 visa, precisamente, a harmonização europeia, razão pela qual, faz sentido o reenvio prejudicial quando se coloquem questões contraditórias relativas à aplicação do direito comunitário na aplicação das normas jurídicas provenientes da União Europeia.

Para que ocorra e seja necessária a intervenção do TJUE através do mecanismo do reenvio, essencial é que se trate de aplicar o direito comunitário ao caso em apreço (pois visa-se uma interpretação e aplicação uniforme deste e não do direito nacional), pois se estiver em causa a interpretação e aplicação do direito nacional não lugar á intervenção do TJUE.»

É o caso dos autos.

Não será de utilizar o instrumento jurídico do reenvio prejudicial: nem para ser aferida da conformidade de uma norma legislativa de direito interno e nem mesmo da interpretação das decisões dos tribunais nacionais.


B - FUNDAMENTAÇÃO:

1. O direito:

a) pressupostos:

O artigo 437.º do CPP, estabelece os “fundamentos do recurso” extraordinário para fixação de jurisprudência, dispondo:

1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4. Como fundamento do recurso pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5. O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

São, assim, pressupostos substantivos deste recurso extraordinário:

(i)   dois acórdãos do STJ tirados em processos diferentes;

(ii)    um acórdão da Relação que, não admitindo recurso ordinário, não tenha decidido contra jurisprudência fixada e outro anterior de tribunal da mesma hierarquia ou do STJ;

(iii)    proferidos no domínio da mesma legislação;

(iv)    assentes em soluções opostas relativamente à mesma questão de direito.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, os requisitos materiais ocorrem quando:

- as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito;

- as decisões em oposição sejam expressas;

- as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões1.

A contradição das decisões definitivas (transitadas em julgado) tem de ser efetiva e explícita, não apenas tácita.

Os julgados contraditórios têm de incidir sobre a mesma questão de direito. Isto é, a mesma norma ou segmento normativo foi aplicada/o com sentidos opostos a situações fácticas iguais ou equivalentes.

Entende-se que assim sucede quando nos dois acórdãos foi decidida a mesma matéria de direito, “ou quando esta matéria constar de fundamentos que condicionam, de forma essencial e determinante, a decisão proferida”2.

Têm de aplicar a mesma legislação. O que sucede sempre que, entre os momentos do seu proferimento, não se tenha verificado qualquer modificação legislativa com relevância para a resolução da questão de direito apreciada. A identidade mantém-se ainda que o diploma legal do qual consta a legislação aplicada não seja o mesmo3 ou, tendo sido alterado, a modificação não interfere com o sentido com que foi aplicada nas decisões conflituantes, nem veio resolver o dissídio interpretativo que grassava na jurisprudência dos tribunais superiores.

E julgar situações de facto idênticas, similares ou equivalentes quanto aos efeitos jurídicos produzidos. Mesmo que a diferença factual entre as duas causas, a do acórdão recorrido e a do acórdão fundamento, seja inelutável por dizer respeito a acontecimentos históricos diversos, terá que tratar-se de diferenças que não interfiram com o aspeto jurídico do caso4.

Por sua vez o artigo 438º (interposição e efeito) do CPP estabelecendo específicos

requisitos de forma (que acrescem aos requisitos formais gerais de qualquer recurso), dispõe:

1. O recurso para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2. No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

São, então, pressupostos formais5:

(i)    a legitimidade do recorrente;

(ii)    o trânsito em julgado dos acórdãos conflituantes;

(iii)     interposição no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado do acórdão recorrido;

(iv)   a invocação, e junção de cópia, do acórdão fundamento;

(v)    justificação, de facto e de direito, do conflito de jurisprudência.

Conforme jurisprudência fixada no Acórdão (AUJ) n.º 5/2006, de 20 de Abril de 2006, publicado no Diário da República, I Série-A, de 6.06.2006:

No requerimento de interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência (artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), o recorrente, ao pedir a resolução do conflito (artigo 445.º, n.º 1), não tem de indicar «o sentido em que deve fixar-se jurisprudência» (artigo 442.º, n.º 2).

Assim, nesta fase do presente recurso, o recorrente não tem de indicar o sentido da jurisprudência a fixar.

b) finalidade:

A finalidade da uniformização da jurisprudência não é prioritariamente dirigida à justiça do caso concreto, mas sim ao objetivo latitudinário de evitar a propagação do erro de direito judiciário pela ordem jurídica6. Visa a uniformização da resposta jurisprudencial, contribuindo para uma interpretação e aplicação uniformes do direito pelos tribunais, a igualdade, a certeza e a segurança jurídica no momento de aplicar o mesmo direito a situações da vida que são idênticas.

Trata-se de um recurso de carácter marcadamente normativo destinado unicamente a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade da aplicação do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei.

Constitui um mecanismo procedimental que visa tutelar, primacialmente, uma vertente objetiva de boa aplicação do direito e de estabilidade jurisprudencial7, firmando um determinado sentido de certa norma ou complexo normativo na sua aplicação a situações factuais identicas.

Não está em causa a reapreciação da bondade da decisão (da aplicação do direito ao caso) proferida no acórdão recorrido (já transitado em julgado). Trata-se apenas de verificar, partindo de uma factualidade equivalente, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa.

Por outro lado, como se assinala no Acórdão de 19/04/20178 deste Supremo Tribunal, “o recurso para fixação de jurisprudência é um recurso excecional, com tramitação especial e autónoma, tendo como objetivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.

Do carácter excecional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um grau de exigência na apreciação da respetiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários”, obstando a que possa transformar-se em mais um recurso ordinário, contra decisões transitadas em julgado.

Exigência que se repercute com intensidade especial na verificação dos dois pressupostos nucleares: a oposição dos julgados; e a identidade das questões decididas. Entendendo-se que são insuscetíveis de «adaptação», que poderia por em causa interesses protegidos pelo caso julgado, fora das situações expressamente previstas na lei9.

Mas também se repercute na constatação dos demais pressupostos substantivos e bem assim dos requisitos formais.

Como se referiu e é entendimento jurisprudencial uniforme10, a oposição, expressa, tem de aferir-se pelo julgado e não pelos fundamentos em que assentou a decisão.

E a questão de direito só será a mesma se houver identidade das situações de facto contemplados nas duas decisões11.

c)   no caso:

Vejamos se no vertente recurso estão preenchidos os pressupostos para que possam ser concedidas as pretendidas fixações de jurisprudência:

i.   quanto aos pressupostos formais:

Da legitimidade: à recorrente, em razão da sua qualidade de assistente no processo em que foi proferido o acórdão recorrido, assiste o direito de interpor os recursos legalmente admitidos, entre os quais se inclui o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência –art. 437º n.º 5 do CPP.

Acórdão transitado: o acórdão recorrido foi proferido pela Relação ... em recurso interposto de sentença da 1ª instância, está datado de 10/11/2021 e, não admitia outro recurso ordinário –art. 400º n.º 1 al.ª d) do CPP.

Não admitindo recurso ordinário podia ser visado com a arguição de nulidades, admitia pedido de correção de erros, lapsos, obscuridades ou ambiguidades que não importasse modificação essencial da decisão e da fundamentação (ao abrigo do art. 380.º, n.º 1, al.ª b) aplicável por força do art. 425.º, n.º 4) e poderia, eventualmente, interpor-se recurso para o Tribunal Constitucional.

Não prescrevendo a lei prazo especial para o pedido de correção a que alude a norma do art. 380º citado, vem a jurisprudência deste Supremo Tribunal entendendo que o prazo para tal efeito é de 10 dias, conforme prevê o art. 105.º, n.° 1 do CPP.

O prazo para a interposição do recurso para o Tribunal Constitucional é também de 10 dias, nos termos do art. 75.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15-11.

No caso vertente, como em tal prazo nenhum dos sujeitos processuais lançou mão de qualquer dessas vias procedimentais, o acórdão recorrido transitou em julgado decorrido o referido prazo de 10 dias, conforme estabelece o art. 628.º do CPC (aqui aplicável por força do art. 4.º do CPP, por sua vez aplicável ex vi do art. 41º do RGCO). Por isso - e por eventuais incidências que não vêm referidas nem documentadas -, fazendo fé na certidão constante dos autos, transitou em julgado em 20 de dezembro de 2021.

Prazo: verifica-se que o recurso foi interposto em 21/12/2021, portanto, no 1º dia posterior ao trânsito em julgado e, assim, dentro do prazo legalmente estabelecido. Que é de 30 dias –art. 438º n.º 1 do CPP.

Acórdão fundamento: a recorrente alega que o decido no acórdão recorrido está em oposição com o decidido no acórdão fundamento, proferido pela Relação de Évora em 19.12.2013, tirado no processo n.º 62/17.1T8CNT.C1, de que indicou o sítio da web oficial onde pode ser consultado e ao qual se acedeu. Alega ter transitado em julgado sem que certifique esse facto nem a data do trânsito. Todavia, estando publicado no site oficial da justiça, aceita-se que é firme e definitivo.

Motivação: O requerimento de interposição de recurso inclui motivação, na qual se expõem as razões de facto e de direito que, no entendimento da recorrente, demonstram a contradição do julgado nos acórdãos recorrido e invocado como fundamento quanto às questões que indica.

Não existe jurisprudência fixada sobre as temáticas colocadas pela recorrente.

Estão, assim, reunidos os pressupostos formais para a admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência intentado nestes autos pela assistente.

ii. quanto aos pressupostos substanciais:

Vejamos se o mesmo sucede com os pressupostos substantivos.

Dois acórdãos de diferentes tribunais superiores: A assistente, ademais de identificar o acórdão recorrido, da Relação ..., proferido no processo em epígrafe, fundamenta a sua pretensão uniformizadora de jurisprudência num acórdão anterior proferido pela Relação de Évora no processo n.º 62/17.1T8CNT. C1, transitado em julgado.

No domínio da mesma legislação: as normas, (ou com mais propriedade, a norma extraída do complexo normativo) aplicadas nas duas decisões colocadas em confronto, – o disposto no art. 152.º n.ºs 1 al.ªs c) e d) e 2 al.ª a) do Cód. Penal -, não foram alteradas no período temporal sobre que incidiram. Nesse espaço de tempo aquele artigo foi alterado pelas Leis n.º 18/2013 de 2 de fevereiro, n.º 44/2018 de 9 de agosto e, depois, pela Lei n.º 57/2021 de 16 de agosto. Contudo, o segmento dos n.ºs 1 al.ª b) e 2 na parte aplicável, permaneceram inalterados como adiante se vai especificar. Resulta, assim verificado o pressuposto ora em análise.

Identidade ou semelhança da questão jurídica: exige-se que a questão jurídica apreciada e decidida nos dois acórdãos conflituantes tenha a mesma incidência fáctico-normativa.

Ao pressuposto da identidade da questão jurídica, a jurisprudência deste Supremo aditou a identidade de factos, entendida esta, “não como uma identidade absoluta entre dois acontecimentos históricos mas que eles se equivalham para efeitos de subsunção jurídica a ponto de se poder dizer que, pese embora a solução jurídica encontrada num dos processos assente numa factualidade que não coincide exatamente com a do outro processo, esta solução jurídica continuaria a impor-se para o subscritor mesmo que a factualidade fosse a do outro processo”12.

Como sustenta Baptista Machado, “não é possível determinar a existência de um conflito de decisões sem uma referência bipolar, simultânea, às questões de direito e às situações da vida”13.

Efetivamente, salienta a jurisprudência, não pode haver oposição ou contradição entre dois acórdãos, relativamente à mesma questão fundamental de direito, quando são diversos os pressupostos de facto em que assentaram as respetivas decisões.

Oposição de julgados: exige-se que as decisões tendo por objeto idêntico núcleo factual, se contrariem ou colidam entre si, no julgamento da mesma questão fundamental de direito.

Oposição que tem de ser expressa, sendo irrelevante a divergência da fundamentação.

iii. multiplicidade de questões jurídicas a uniformizar:

Ainda que colocadas com alguma imprecisão14, - inicialmente constantes de três cls (D, E, F), mais adiante diz, repetidamente, serem duas (cls OO e PP) a que depois acrescenta mais uma (cls W) -, alcança-se que a recorrente, pretende que se uniformize jurisprudência relativamente às seguintes questões de direito:

1ª – para efeitos de aplicação da lei no tempo, em que momento se considera consumado o crime de violência doméstica cometido por atos reiterados na vigência de dois regimes legais?

2ª – a prática, em reciprocidade, de atos que integram os respetivos elementos constitutivos, exclui o crime de violência doméstica?

3ª – os atos constitutivos do crime de violência doméstica têm de valorar-se na sua globalidade?

Às quais parece ter querido acrescentar outra mais geral e meramente abstrata que define assim (cls):

W. Apesar da sua relevância social não existe unanimidade, na doutrina e na jurisprudência, quanto ao bem jurídico protegido, razão pela qual se afigura relevante que seja proferida uma decisão que uniformize a jurisprudência nesta matéria.

A Digna Procuradora-Geral Adjunta, perfilhando o entendimento de que não deve, em cada AUJ, fixar-se jurisprudência relativamente a mais que uma questão fundamental de direito, pronuncia-se pela rejeição do recurso.

No Acórdão de 24/03/2021, deste Supremo Tribunal, com o mesmo coletivo,

proferido no proc. 64/15.2IDFUN.L1-A.S1, fundamentou-se e decidiu-se “que não é legalmente admissível cumular questões de direito no mesmo recurso extraordinário, (…) não podendo uniformizar-se, ao mesmo tempo, interpretações judiciais essencialmente “normativas” sobre mais que uma questão de direito, Entendimento que tem suporte, desde logo, na interpretação literal. Efetivamente, o elemento gramatical é inequivocamente nesse sentido. O legislador expressou o seu pensamento no texto da lei servindo-se, repetidamente da categoria singular. Assim sucede no art. 437º: no n.º 1, com a expressão: “relativamente à mesma questão de direito”; e no n.º 3 com a expressão: “resolução da questão de direito controvertida”.

Identicamente se expressou (…) no art. 445º n.º 3, designando “o conflito” (e não os conflitos).

Igualmente no mesmo sentido aponta o caráter extraordinário deste recurso, a implicar interpretação estrita do quadro normativo disciplinador inerente à respetiva excecionalidade. E suporta-se, decisivamente, na teleologia do recurso em causa. A finalidade deste meio procedimental extraordinário não é a justiça do caso concreto sobre que versou o acórdão recorrido. Não se destina a verificar se o acórdão recorrido violou o precedente judiciário que o recorrente pretende, na realidade, que se atribua ao acórdão fundamento. No nosso sistema, o julgado no acórdão fundamento não é a stare decisis que teria de ser seguida no acórdão recorrido. A fixação de jurisprudência visa essencialmente obstar a que se propague o dissídio surgido entre dois arestos firmes que, aplicando o mesmo regime normativo, resolveram antagonicamente duas realidades idênticas. Se é exato que o CPP estabelece que a resolução do conflito tem eficácia no processo onde é tirado o AUJ, todavia, em substância, só assim sucede quando a jurisprudência fixada implique alteração ou revogação do acórdão recorrido. Caso em que o STJ revê a decisão ou reenvia o processo para que o tribunal competente a reveja, aplicando a jurisprudência fixada. Sempre que a resolução do dissenso jurisprudencial vai no sentido do julgado no acórdão recorrido, nada a rever. A decisão nele proferida era e, nesse caso, continua firme e exequível, não carecendo de confirmação. Deste modo, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência não pode ser admitido com a finalidade de alçar o caso ao reexame extraordinário da regularidade processual ou do mérito da decisão recorrida. O que acabaria sucedendo, inegavelmente, se o recorrente pudesse, no mesmo recurso extraordinário, requerer, cumulativamente, a fixação de jurisprudência sobre as múltiplas questões de direito que tivessem sido decididas no acórdão impugnado na tentativa de que alguma pudesse ter êxito e, assim, obter a revisão do julgado. Admitindo-se tão possibilidade, ficaria subvertida a lógica deste recurso extraordinário, fazendo prevalecer o interesse pessoal do recorrente, em detrimento da eficácia externa que acabaria remetida a plano secundário. Não é isso que o legislador, seguramente, pretendeu. Finalmente, ainda no mesmo sentido, apontam razões de praticabilidade e da necessária coerência lógica que as decisões judiciais têm de observar. Por um lado, a fixação de jurisprudência culmina um procedimento marcado por ampla discussão no Pleno das Secções Criminais do STJ, com argumentos, muitas vezes inconciliáveis, sobre a mesma questão de direito e não raramente sobre o seu exato sentido e alcance. Discussão que perderia clareza se houvesse que fixar jurisprudência sobre mais que uma questão de direito no mesmo recurso. Por outro lado, num recurso normativo, que não se atem ao caso concreto e numa decisão largamente colegial, como é a que fixa jurisprudência, não seria incomum formarem-se maiorias que poderiam variar de uma para outra das múltiplas questões de direito a uniformizar. Pelo que poderia fixar-se jurisprudência que na eficácia intra-processual, isto é, aplicada na resolução do julgado no acórdão recorrido, poderia revelar-se impraticável. Exemplificando com o vertente recurso: ainda que, por mera hipótese, se viesse a fixar jurisprudência relativamente às duas primeiras questões, no sentido pretendido pelo recorrente, nenhum efeito teria na decisão condenatória se, também hipoteticamente, para a última fosse fixada jurisprudência em sentido contrário ao reclamado pelo arguido.

É certo que a admissibilidade de o recorrente poder requerer, no mesmo recurso extraordinário, a fixação de jurisprudência relativamente a mais que uma questão de direito, com a indicação de apenas um acórdão fundamento (…) não tem encontrado solução uniforme na jurisprudência das secções criminais deste Supremo Tribunal.

A corrente largamente maioritária, adotada nos acórdãos de 12/3/2003 (proc. 4623/02), de 4/03/2004 (proc. 03P2387), de 4-04-2010 (proc. 242/08.0TTCSC.L1.S1), de 21/03/2013 (proc. 465/07.0TALSD.P1.L1), de 4/07/2013 (proc. 712/00.9JFLSB-U.L1-A.S1), de 21/03/2013 (proc. 465/07.0TQLSD.P1-A.S1), de 19/06/2013 e de 16/10/2014 (proc. 113/07.8IDMGR.C1-B.S1), vai na linha que acima se expôs.

Assim, no mencionado Ac. de 4/07/2013 expende-se (sublinha-se para realçar): “a partir da caracterização do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência como um “recurso categorialmente designado de normativo, que não tem por objeto a decisão de uma questão ou causa, mas apenas a definição do sentido de uma norma, - no rigor a construção jurisprudencial de uma norma ou quase-norma perante divergências de interpretação” afirmou-se no recente acórdão de 21-03-2013 – Proc. 465/07.0TALSD.P1.L1 – que o mesmo “pressupõe no entanto a identificação da fonte normativa e da questão que determina a oposição de decisões, de modo unitário e não múltiplo ou complexo”.

No acórdão indicado em último da secção -, decidiu-se (sublinhamos para realçar): “nos recursos para fixação de jurisprudência, as exigências legais formais, quer a nível da génese fáctico-jurídica do recurso, quer a nível da tramitação processual (decorrentes dos arts. 437.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 438.º, n.ºs 1 e 2, do CPP) integram especificidade ou excepcionalidade dos meios procedimentais, e, são de taxativa e rigorosa aplicação, vinculando todos os sujeitos processuais.

V- no caso vertente o requerimento de interposição do recurso de fixação de jurisprudência, não se encontra motivado de harmonia com as exigências expressas da lei o que, desde logo, resulta do facto de deduzir pretensão de que seja fixada jurisprudência em relação a três questões de direito autónomas o que não é admissível processualmente.15”

A corrente minoritária é adotada nos acórdãos de 4/11/2010, 3/07/2014 (proc. 1431/11.6PEARVR.C1-A.S1), de 22/10/2014 (proc. 154/11.0PAPNI.L1-A.S1) e de 8/10/2015 (proc. 804/03.2TAALM-B.S1). Contudo, acaba concedendo que que se reconheceu haver oposição relativamente a cada questão de direito tem de, seguidamente, instaurar-se processo separado para apreciação autónoma.

Assim, no mencionado Ac. de 4/11/2010 (5ª secção), expende-se: “se o objectivo de unificação jurisprudencial aponta, por razões pragmáticas ponderosas, para a multiplicação de tantos processos e portanto de decisões, quantas as questões de direito invocadamente em oposição, já a ponderação do efeito interno do acórdão de fixação de jurisprudência aconselharia a posição contrária. Ou seja, a resolução da oposição, das mais do que uma questão de direito, tratadas na mesma decisão recorrida, reclamaria uma só decisão de fixação, por ser a que melhor proporcionaria efeitos concomitantes sobre a dita decisão recorrida. Estar-se-ia aqui perante uma “cumulação de pedidos” sem incompatibilidade entre si, e que proporcionariam a unidade decisória.

“(…) a invocação de um único acórdão fundamento em cada recurso, como vem sendo pacificamente exigido no STJ, obrigaria necessariamente a que cada questão de direito fosse resolvida na sua própria decisão de fixação.

Depois, e sobretudo, a lógica do recurso extraordinário em foco é a de se atender preferencialmente à eficácia externa da uniformização de jurisprudência, ao serviço da segurança do direito, para todos. Nesta linha, as vantagens do tratamento de uma única questão por recurso são inegáveis.

(…) Somos, portanto levados a interpretar literalmente o nº 1 do artº 437º do CPP: soluções opostas quanto à mesma questão de direito, uma só, plasmadas em dois acórdãos, só dois”. (…) A exigência de processos separados, e de decisões autónomas de fixação de jurisprudência, justifica-se se, a partir do exame preliminar, o processo houver de prosseguir”16 .

No Ac. de 22/10/2014 – 3ª secção -, decidiu-se: “o art. 437.º do CPP não afasta a possibilidade de existirem várias questões de direito no recurso interposto. Em parte alguma a lei fala de uma única questão. É certo que impõe que a oposição incida sempre sobre a mesma questão. Porém, essa exigência não impede que sejam suscitadas várias oposições.17”

Conforme se expôs, entendendo este Tribunal Supremo que não é viável peticionar, no mesmo recurso extraordinário, a fixação de jurisprudência relativamente a mais que uma questão de direito, não resta senão concluir pela rejeição do vertente recurso, porque o recorrente requereu a fixação de jurisprudência sobre três questões de direito, (…) não sendo possível convidá-lo a corrigir tais patologias.

Com o que ficaria prejudicado o conhecimento da alegada contradição de julgados”. Reafirma-se aqui o entendimento ali adotado. Acrescenta à interpretação literal e teleológica o texto, a finalidade e o sentido prático da norma do art. 445º n.º 2 do CPP, na qual se estabelece que o Supremo Tribunal de Justiça “revê a decisão recorrida ou reenvia o processo.”

Evidentemente, o processo, o mesmo onde foi proferido o acórdão recorrido.

No outro entendimento reenviam-se cada um dos processos separados? Ou, determina-se a sua apensação ou incorporação naquele de onde foram separados para outra vez unificados(!) dar cumprimento àquela norma legal?

Não se alcança qual seja a norma adjetiva à “sombra” da qual se poderia amparar a separação dos processos. Não é, certamente, o disposto no art. 30º n.º 1 do CPP, por não se enquadrar na previsão de qualquer das situações aí catalogadas.

Acresce que uma vez organizado um processo separado para cada uma das múltiplas questões fundamentais de direito colocadas pelo recorrente, após ter sido reconhecida oposição de julgados, haveria que indagar e decidir se deveria de distribuir-se como recurso extraordinário ou, ao invés, se ficava atribuído ao mesmo relator e, numa situação ou na outra, à luz de que disposição legal.

Depois, se o acórdão do Pleno em cada um dos processos separados não transitar em julgado ao mesmo tempo – o que facilmente se perspetiva (basta que não sejam decididos no mesmo dia; algum dos sujeitos processuais provoque incidentes em algum e não em outros, ou num seja interposto recurso para o Tribunal Constitucional) -, como e quando se haveria de cumprir o disposto no art.º 445º n.º 2 do CPP. Em que momento o STJ reexaminava a decisão recorrida ou reenviando o processo, qual processo reenviava e em que momento – imediatamente ou esperava-se que a decisão transitasse em julgado em todos?

Enfim, a referida separação dos processos, ademais de solução ilegal – não há norma que a ampare – suscita enormes dificuldades práticas. Além de que abre a porta a permitir que os sujeitos processuais utilizem este recurso extraordinário como uma via de impugnar uma decisão judicial transitada em julgado, como, sem acanhamento, bem ilustra o vertente recurso (na Cls NN, o recorrente pede que se considere que a Relação ... fez incorreta (para não dizer machista) aplicação do direito, pois que, em face da situação concreta dos autos e da doutrina do acórdão fundamento, impunha-se solução jurídica diferente da produzida no acórdão” (sublinha-se para realçar).

Procede, pois, a questão prévia da rejeição do recurso suscitada pela Digna Procuradora-Geral Adjunto.

iv. não oposição de julgados:

Acresce que o vertente recurso extraordinário também não poderia prosseguir para a fixação de jurisprudência relativamente a qualquer das questões colocadas pela recorrente por não cumprir com pressupostos nucleares da admissibilidade.

A primeira questão construída pela recorrente consistiria em saber que redação das normas das alíneas b) e c) do n.º 1 e da al.ª a) do n.º 2 do art. 152º do Cód. Penal deveria aplicar-se ao crime de violência doméstica cuja execução, reiterada, se prolongando no domínio de duas leis que “retocaram”, sucessivamente, o referido tipo crime. Na sua própria expressão, quer saber se é “inaplicável o artigo 152.º do Código Penal, na redação atual dada pela Lei n.º 44/2018 que entrou em vigor em 1-09-2018, em virtude de tal aplicação violar o princípio da não retroatividade da lei penal desfavorável” conforme se decidiu no acórdão recorrido.

A recorrente, aparentemente induzida pelo acórdão recorrido, não terá alcançado (ou terá pensado que escaparia à atenção do Supremo Tribunal) que, a ser relevante tal construção, o seu recurso extraordinário tinha de rejeitar-se liminarmente. Como facilmente entenderá, a ser aplicável aos dois casos, o do acórdão fundamento e o do acórdão recorrido, regime legal que, entre as datas de um e do outro, tivesse sofrido alteração projetável no tipo de ilícito em causa, falhava, inexoravelmente, o prossuposto da mesmidade da lei aplicada ou, na expressão do legislador, não se estaria perante decisões tiradas no domínio da mesma legislação. Evidentemente que se as normas ou o complexo normativo aplicado numa e na outra decisão tivesse sido modificado entre ambas e se se pretende a aplicação da alteração para obter efeitos que a redação antecedente, supostamente, não teria, então, é inegável que os arestos colocados em confronto não teriam aplicado o mesmo regime normativo. A recorrente, não deveria olvidar que se a Lei n.º 44/2018 tivesse alterado as normas aplicadas no caso, concretamente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do art.º 152º do Cód. Penal, este seu recurso extraordinário carecia daquele pressuposto essencial e estaria inexoravelmente votado à rejeição

Ao invés do que a recorrente parece supor, o complexo normativo que efetivamente estava em causa e vinha aplicado na sentença condeantoria da 1ª instância e que o acórdão recorrido simplesmente reverteu em absolvição, mantem-se desde 2007. O aditamento da Lei n.º 44/2018 ao introito do n.º 1 – incriminando também a conduta de quem “impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns” -, não foi aplicado no caso e, por conseguinte, nenhum efeito poderia projetar sobre a decisão final. Na alínea b) do n.º 1 acrescentou-se a tipificação da violência doméstica contra a/o atual ou ex namorada/o. Segmento também não aplicado no caso. Conforme resulta da facticidade provada, a relação entre o arguido e a assistente era análoga à dos cônjuges. A alínea c) do n.º 1 não teve qualquer alteração. Também a redação do introito do n.º 2 e bem assim a norma da respetiva alínea a) não sofreram modificação (porque foi aditada uma alínea b), o anterior texto do n.º 2 passou introito e a alínea à da vigente redação).

Aliás, o acórdão recorrido disso dá fé, sinalizando que a previsão típica, na parte aplicável mantém a mesma redação da versão em vigor à data da prática da maioria dos factos (anteriores a 1/09/2018).

Consequentemente, a questão da aplicação da lei no tempo não tem sentido nem relevância.

Ainda quanto a esta questão, decorre do que vem de realçar-se que não se vê que efeito diverso poderia ter a aplicação no caso da redação anterior ou da redação dada pela referida Lei n.º 44/2018 ao tipo incriminador concretamente aplicado. Ou, de outra perspetiva, para efeitos de consumação do crime, que diferença faria a aplicação da norma extraída do mesmo complexo normativo do tipo incriminador cabido no caso, que, repete-se, permaneceu – e se mantém – inalterado desde 2007.

Nota-se, finalmente, que a alegação se apresenta contraditória. Defende, amparando-se no sustentado no acórdão invocada como fundamento que o crime se consuma com o último ato de violência física ou psíquica sobre a pessoa com que o arguido manteve uma relação análoga à dos cônjuges e que, por isso, a lei aplicável é a vigente nessa data. Mas no acórdão recorrido entendeu-se que os factos ocorridos na vigência da referida Lei “são destituídos de relevância penal”. Ora, o recurso extraordinário de revisão não é, conforme realçado, um mecanismo processual onde os sujeitos processuais possam discutir e fazer reexaminar o mérito da decisão condenatório ou absolutória. Aqui não se pode reapreciar a facticidade julgada provada e/ou não provada no acórdão recorrido.

Mormente evidente é também a artificialidade da 2ª questão fundamental de direita postulada pela recorrente, consistente em saber qual deve ser a relevância sobre a incriminação, da prática, em reciprocidade, de atos materiais constitutivos do crime de violência doméstica.

É que, na situação fáctica sobre que versou o acórdão que a recorrente invoca como fundamento não há prova, nem qualquer indicação de que a vítima tenha respondido “na mesma moeda”, ou “retrucado” de qualquer modo, à violência física, verbal e  psicológica que sobre ela exerceu o ali arguido, seu marido.

Conforme resulta dos factos provados, não é essa a situação sobre que versou o acórdão recorrido.

A falta de identidade fáctico-jurídica entre os dois arestos é patente.

Neste contexto falhava rotundamente, o pressuposto nuclear para se poder julgar verificada oposição de julgados relativamente a tal questão.

Com a terceira questão, a recorrente pretendia que se esclarecesse se a valoração dos atos e/ou condutas que preenchem a descrição típica têm de valorar-se na globalidade para ajuizar da gravidade e importância para atentarem contra a “dignidade e a liberdade necessárias a qualquer membro do casal”.

Afirma existir antagonismo sobre tal questão fundamental de direito entre os dois acórdãos que coloca em comparação, o recorrido e o invocado como fundamento.

No referido em último lugar expendeu-se que “no crime de violência doméstica, a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social”.

Embora não seja tão explicito, flui do acórdão recorrido que também aí se entendeu que relevante para efeito de incriminação é a atuação do agente na sua globalidade. Assim se deteta no segmento da motivação onde conclui que “excluídos os comportamentos acima referenciados e as agressões e insultos mútuos, os escassos factos restantes são constituídos por algumas injúrias e ameaças”, em face do que expendeu: “fundamental é que esta provada atuação do recorrente não consubstancia o «infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais» envolvendo um tratamento «degradante ou humilhante», com relevância e dimensão suficientes para justificar a sua subsunção ao tipo legal aplicado”.

Destarte, perfilhando os dois arestos da mesma interpretação quanto à apreciação conjugada, na globalidade, dos atos e factos para ajuizar da sua densidade e gravidade para poderem constituir violência doméstica, também por aqui não pode  julgar-se verificada oposição de julgados quanto àquela questão fundamental de direito.

Quanto à fixação de jurisprudência sobre o jurídico protegido nota-se que os acórdãos recorrido e invocado como fundamento coincidem, no essencial, o último, citando até aresto deste Supremo Tribunal de Justiça.

No acórdão invocado como fundamento, sintetizando, entendeu-se que “este tipo legal de crime, na redacção actual do normativo legal aludido, verifica-se com a perpetração de acto de violência que afecte, de modo, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária.

As condutas previstas e punidas por aquele preceito legal abrangem diversos géneros: ofensas corporais simples, maus-tratos psíquicos englobando humilhações, provocações, molestações, intimações e tratamentos desumanos.”

No acórdão recorrido entendeu-se que o crime de violência doméstica “é um crime complexo que protege vários bens, entre eles a saúde, a integridade física e psíquica e a honra e dignidade”. Aderindo a entendimento firmado em aresto deste Supremo Tribunal – se 30/10/2019 - que cita, “tem na base (…) o conceito nuclear de maus-tratos (físicos ou não físicos) que verdadeiramente o distingue de outras infrações (a integridade física, ameaça, perseguição, injúria, difamação”.

De modo mais ou menos claramente expresso, as duas decisões entendem que o o bem juridico protegido é complexo, construído a partir da conceito de maus tratos, e pode englobar um conjunto de atos que afetam a sáude física e psíquica e a dignidade da vítima na sua relação com o/a agente do crime.

Consequentemente, também quanto a esta questão se não verificaria oposição de julgados.

Ao que acresce que o recurso de fixação de jurisprudência não tem como finalidade discutir questões juridicas abstratas, independentemente da sua relevância social, nem lhe assiste a função de criar normas jurídicas. Visa apenas resolver dissídio surgido na jurisprudência dos tribunais superiores, fixando um sentido interpretativo para determinados aspetos de uma norma ou complexo normativo substantivo ou adjetivo.

Porque a recorrente construiu o vertente recurso extraordinário com a finalidade de impugnar a decisão absolutória proferida no acórdão recorrido – como patenteiam as asserções vertidas nas cls. KK. (tudo para concluir que a gravidade e reiteração das condutas adotadas pelo arguido nos termos supra indicados, as mesmas devam ser enquadradas na tipicidade objetiva do ilícito e violência doméstica) e NN (deve considerar-se que que a Relação ... fez incorreta «para não dizer machista» aplicação do direito, pois que, em face da situação concreta dos autos, (…), impunha-se solução jurídica diferente da produzida no acórdão recorrido), assim como quando apela ao disposto noss arts.º 125º e 126º do CPP, impõe-se salientar que o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, não é o meio processual para discorrer sobre a valia fáctica e jurídica da decisão absolutória, da qual discorda a assistente aqui recorrente, mas também assim do Digno Procurador-Geral Adjunto no Tribunal recorrido. A discordância de dois sujeitos processuais relativamente ao julgamento de um recurso ordinário em processo penal não é parâmetro de admissibilidade deste recurso extraordinário.

Nesta fase, ao objeto da pretensão uniformizadora visada pela recorrente, se cumprisse com os requisitos formais, interessava somente apurar se no acórdão invocado como fundamento e no acórdão recorrido se decidiram contraditoriamente as mesmas questões fundamentais de direito. Isto é, se no julgamento de questão fáctico-jurídica idêntica, os dois tribunais da Relação aplicaram o mesmo quadro normativo, antiteticamente, decidindo-as em sentido oposto.

O que, manifestamente, se não verifica.

Em conformidade com o exposto e nos termos do art. 441º do CPP, o vertente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência não pode prosseguir.

C. do reenvio prejudicial:

A recorrente pretende que se “pergunte” ao Tribunal de Justiça da União Europeia/TJUE se “é conforme ao Direito Europeu, uma interpretação normativa do artigo 152.º do Código Penal que conclua pela irrelevância dos maus-tratos por praticados em reciprocidade, mesmo que atendendo à globalidade dos factos provados resulte claro que os atos perpetrados pela ofendida surgiram sempre em resposta às condutas agressivas do arguido e em consequência da exasperação vivida pela vítima?

Surpreendentemente argumenta com normas do processo civil e princípios e teorias em vez de convocar, como seria exigível para ter algum sentido e alguma relevância prática, convocar normas de algum dos tratados da União Europeia que estão em vigor.

É que, o art. 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia/TFUE atribui ao Tribunal de Justiça da União Europeia competência “para decidir, a título prejudicial:

a) sobre a interpretação dos Tratados;

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Estando fora de cogitação a aplicação do disposto na al.ª b), porque a decisão recorrido não provém, evidentemente, de instituições, órgãos ou organismos da União, restaria a subsunção da pretensão da recorrente à previsão da al.ª a) daquele preceito. Ou seja, para que pudesse reenviar-se ao TJUE, a título prejudicial, a questão suscitada pela recorrente, era pressuposto inultrapassável que o acórdão recorrido tivesse aplicado alguma norma ou conjunto de normas de qualquer dos Tratados da União e, concomitantemente, se suscitasse dúvidas sobre a respetiva interpretação.

No caso, o acórdão recorrido não aplicou senão o direito interno. E, de todo modo, pela recorrente não vem questionada a aplicação e, consequentemente, a interpretação de norma alguma dos tratados da União Europeia (o Tratado da União Europeia/TUE, o TFUE, o Tratado que institui a Comunidade Europeia da Energia Atómica e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).

O objeto do recurso extraordinário em apreço é o de resolver o dissídio jurisprudência, fixar o sentido com que determinados segmentos de uma norma do direito penal interno devem ser interpretados e aplicados pelos tribunais judiciais nacionais.

Não é, pois, uma questão que possa competir ao TJUE.

Ainda que, por mera hipótese académica, fosse uma questão de interpretação de algum dos tratados da União, mesmo assim, não haveria lugar ao reenvio porque, como é jurisprudência uniforme do TJUE, “os órgãos jurisdicionais de última instância não são obrigados a reenviar uma questão de interpretação «se a questão não for relevante, isto é, quando a resposta a essa questão, qualquer que seja, não possa ter influência na solução do litígio»”18.

Conforme se salientou, não há mesmidade ou identidade da questão fáctica atinente ao postulado da reciprocidade. Pelo que, não se verificando, na questão da reciprocidade, oposição de julgados, fosse qual fosse a interpretação do TJUE sobre a mesma, jamais se poderia fixar aqui jurisprudência a tal respeito por inverificação do correspondente pressuposto substancial nuclear.

Destarte, improcede, por manifestamente infundada, a pretensão da recorrente.

D. DECISÃO:

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3.ª Secção, acorda em rejeitar, por inadmissível – art. 441º do CPP -, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pela assistente AA.


*

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça, em 4 UCs.

*


Lisboa, 9 de fevereiro de 2022


Nuno Gonçalves (Relator)

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro Adjunto)

________

1 Ac. STJ de 9-10-2013, 3ª sec., proc. 272/03.9TASX, www.dgsi.pt/jstj
2 Miguel Teixeira de Sousa, Sobre a constitucionalidade da conversão do valor dos assentos - apontamentos para uma discussão, 1996, pág. 56.
3 M. Teixeira de Sousa, ob. e loc. cit.
4 Ac. STJ de 28-05-2015, 5ª sec. proc. 6495/12.2TBBRG.G1-A.S1, www.dgsi.pt/jstj.
5 Atinentes ao tempo e ao modo.
6 Ac. STJ de 23/07/2016, proc n.º 2023/13.0TJLSB.S1, www.dgsi.pt/jstj.
7 Ac. n.º 75/2020 do Tribunal Constitucional, www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200075.
8 3ª secção, proc. 175/14.1GTBRG.G1-A.S1, www.dgsi.pt.
9 Ac. STJ de 6/4/2016, Proc. 521/11.0TASCR.L1-A.S1
10 Ac. STJ de 11/01/2017, proc. 133/14.6T9VIS.C1-A.S1, www.dgsi.pt.
11 Neste sentido Ac. STJ de 12/1/2017, proc. 427/13.GAARC.P1-A.S1, www.dgsi.pt/jstj.
12 Ac. STJ de 26.06.2014, proc. n.º 1714/11.5GACSC.L1.S2.
13 Âmbito de Eficácia e Âmbito de Competência das Leis, p. 224.
14 Nas palavras da recorrente:
G. são estes os problemas, que geram o conflito entre este acórdão e o acórdão fundamento a dissidência situa-se no seguinte:
D. Em primeiro lugar [o acórdão recorrido] considerou inaplicável o artigo 152.º do Código Penal, na redação atual dada pela Lei n.º 44/2018 que entrou em vigor em 1-09-2018, em virtude de tal aplicação violar o princípio da não retroatividade da lei penal desfavorável.

E. Por outro lado, defendeu que da apreciação da factualidade provada resultava necessariamente que as condutas geradoras de responsabilidade criminal teriam sido praticadas em reciprocidade, razão pela qual estava afastada a possibilidade de condenação do arguido.
F. Considerando que, os maus-tratos psíquicos não se revestiam de gravidade suficiente para poderem ser considerados como integrantes da previsão do crime de violência doméstica, sem, contudo, considerar os factos em causa na sua globalidade.
15 Proc. 140/08.8TAGVA.L1-A.S1, in www.dgsi.pt.
16 Proc. 242/08.0TTCSC.L1.S1, in www.dgsi.pt.
17 Proc. 154/11.0PAPNI.L1-A.S1, in www.dgsi.pt.
18 V., por exemplo, Acórdãos de 17 de julho de 2008, Coleman (C‑303/06, EU:C:2008:415, n.o 29 e jurisprudência referida); e de 22 de dezembro de 2008, Les Vergers du Vieux Tauves (C‑48/07, EU:C:2008:758, n.o 20 e jurisprudência referida).